Resumo: O princípio da reparação integral é a norma regente da responsabilidade civil, dependendo a sua efetividade, sobretudo em seu aspecto repressivo, do atendimento a essa máxima. Sob a ótica coletiva, há um grande percurso a ser percorrido tanto na doutrina quanto na jurisprudência, a fim de consagrar um direito à reparação efetiva. A intersecção entre tutela coletiva e responsabilidade civil não ocorre sem desafios particulares ao próprio caráter metaindividual do direito violado. Entretanto, também apresenta dificuldades similares à quantificação do dano extrapatrimonial individual para o operador da norma jurídica, diante da ausência de mensurabilidade em termos patrimoniais do bem violado, bem como da inexistência de parâmetros para a quantificação. Em decorrência da titularidade indeterminada, não é possível uma reparação voltada para as vítimas específicas, mas sim para toda a coletividade, utilizando os valores das indenizações a fim de reconstituir os bens lesados, bem como prevenir futuros danos a interesses difusos e coletivos. Portanto, a finalidade principal de recomposição e prevenção da reparação de danos extrapatrimoniais coletivos resta comprometida, colocando em risco a própria tutela coletiva como microssistema processual e material apto a proteger os interesses difusos e coletivos.
Palavras-chave: Dano extrapatrimonial coletivo; reparação integral; responsabilidade civil; tutela coletiva; recomposição.
Abstract: The principle of integral reparation is the ruling norm for civil liability, depending its effectiveness of civic especially in its repressive aspect, reliant on the achievement of that ultimate goal. Under a collective lens, there is still a great way to go through regarding both the doctrine and the jurisprudence, in order to achieve an effective civil liability. The intersection of collective tutelage civil liability is not without its particular challenges to the own character of the violated right’s meta-individuality. However, there are difficulties similar to the quantification of individual general damages for the normative operator, facing the absence of measurability in economic terms in regards to the violated right, and the absence of parameters of quantification. Since the ownership is indeterminate, it is not possible a recovery focused on isolated victims, only for all of community, with a fund that will use the value to reconstitute the damaged rights, as well as avoid future damages to collective rights. Therefore, the effectiveness of the reparation of collective general damages is compromised, putting at risk collective tutelage itself as a processual and material microsystem able to protect collective rights.
Keywords: Collective general damages, integral reparation, civil liability, collective tutelage, reconstitution.
INTRODUÇÃO
O presente artigo visa tecer algumas considerações sobre a nova dimensão da responsabilidade civil, sob uma perspectiva transindividual de reparação de danos, que atende às necessidades de uma sociedade moderna. Pretende-se, com uma breve análise dos instrumentos normativos da tutela coletiva, bem como à luz das contribuições da doutrina e jurisprudência para a matéria, analisar quais os desafios enfrentados para a adequada recomposição de valores metaindividuais, a partir da análise dos parâmetros utilizados para quantificar, em termos econômicos, o dano a interesses difusos e coletivos.
A responsabilidade civil é uma expressão do ordenamento jurídico enquanto pacificador das relações sociais, visando restaurar o equilíbrio em uma situação jurídica, violada em razão de um dano injusto. É inegável, portanto, que o princípio da reparação integral é uma verdadeira expressão da dignidade da pessoa humana, sobretudo no tocante à reparação de danos extrapatrimoniais, que, desprovidos de mensurabilidade, apresentam-se como verdadeira violação ao núcleo de direitos básicos do indivíduo.
Entretanto, o que poderíamos chamar de uma visão clássica da responsabilidade civil se mostrou insuficiente diante dos crescentes anseios da sociedade e de grupos peculiares nela contidos. Houve uma necessidade de reformular os conceitos tradicionais da responsabilidade civil a fim de criar mecanismos aptos a tutelar os interesses de grupos ou classes que, no prisma individual, sofriam com a inviabilidade das vias materiais e processuais fornecidas pelo direito.
As mudanças socioeconômicas ao longo do século XX fizeram com que a responsabilidade civil clássica sofresse transformações a fim de acompanhar a crescente necessidade de oferta de um novo modelo de tutela jurisdicional. Notadamente, o século XX foi marcado pelas lutas de classe voltadas para a conquista de direitos trabalhistas, sobretudo em decorrência da Revolução Industrial, que gerou jornadas de trabalho excessivas, tendo como consequência a criação e fortalecimento do direito do trabalho, a fim de proteger os trabalhadores contra os abusos cometidos pela classe patronal. É, dessa forma, que nasce a ideia de direito coletivo.
Temos uma figura para além dos polos “Estado” e “indivíduo”, sendo uma classe de direitos com características peculiares, próprio de uma categoria que surgiu com as modificações sociais do século XX. Assim, temos uma categoria que representa um verdadeiro tertium genus na esfera de interesses passíveis de tutela jurisdicional[1].
O traço marcante responsável por distinguir os direitos considerados “individuais” dos direitos metaindividuais é a sua titularidade. Temos direitos os quais são de todos e, simultaneamente, não pertencem a ninguém[2]. Essa ideia de interesse comum, que se sobressai aos interesses individuais que eventualmente possam com ele conflitar, define o direito coletivo em seu sentido amplo.
A reparação integral, nesses casos só terá seu conteúdo preenchido quando se reconhece a existência de direitos cuja titularidade recai sobre grupos de indivíduos que, independentemente de serem ou não determináveis, não podem dividir entre si o objeto do direito, sendo possível apenas sua satisfação integral.
Com a distinção entre interesses individuais e coletivos, é necessário reconhecer que, com a crescente constitucionalização de esferas jurídicas privadas, há uma superação da dicotomia entre direito público e privado. Há uma crescente incidência da intervenção estatal em interesses que, inicialmente, eram vistos sob um prisma individual, como o direito à propriedade, passando a existir sob um aspecto de proteção ao bem comum.
Nossa Constituição Federal de 1988 foi inovadora ao instituir um espaço, em seu Capítulo I, Título II, intitulado “Dos direitos individuais e coletivos”, em que pese não tenha delimitado de maneira densa o âmbito de proteção desses direitos coletivos.
Uma menção de destaque aos direitos coletivos é feita na qualidade de “interesses coletivos”, no art. 129 da Magna Carta, atribuindo ao Ministério Público para a instauração de “inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.
O dispositivo mencionado acima traz a base constitucional para a tutela coletiva, que deve ser compreendida como o microssistema material e processual voltado para a proteção de direitos metaindividuais. Entretanto, é por meio de dispositivos infraconstitucionais, como as Leis 4.717/1965 e 7.347/1985, que disciplinam a Ação Popular e Ação Civil Pública, respectivamente, que encontramos a origem normativa de uma incipiente tutela coletiva.
Posteriormente, a matéria foi densificada pelo Código de Defesa do Consumidor que, ao conceituar as espécies de direitos coletivos em seu art. 81, constituiu um grande avanço na construção da tutela coletiva, pois, como afirmou Kazuo Watanabe, “num certo sentido, portanto, o conceito de ‘coletivo’ do Código é mais amplo do que o sustentado pela doutrina corrente, pois abrange os interesses ou direitos não-organizados [...]”[3].
Contudo, é inegável o papel da Constituição Federal em tratar, ainda que de forma meramente tangencial, de direitos difusos e coletivos. Isso porque, como a norma máxima no ordenamento jurídico, o tratamento constitucional conferido à tutela coletiva permitiu que a doutrina e a jurisprudência delineassem os contornos dessa nova proteção conferida aos interesses transindividuais e, consequentemente, fosse adotado um novo prisma da responsabilidade civil, sob a ótica coletiva.
À vista dos aspectos da reparação de danos transindividuais, não há como duvidar que a feição individual e metaindividual da dignidade da pessoa humana se complementam de forma harmônica. O microssistema material e processual que compõe a tutela coletiva é organizado de forma que a via individual não inviabiliza nem compromete a via coletiva. Pelo contrário, a eficácia da responsabilidade civil ganha novas dimensões. Se, por um lado, é cabível a reparação por danos patrimoniais e extrapatrimoniais diante de um evento danoso, este mesmo evento pode afetar a coletividade, como parte igualmente legítima para pleitear sua reparação.
A metaindividualidade de direitos é inerente às diretrizes máximas adotadas pela Constituição Federal de 1988. Ao elencar a dignidade da pessoa humana como objetivo o qual delineia a nossa Magna Carta, temos um objetivo desprovido de contornos meramente individuais. Nesse sentido é a ponderação feita por Ingo Wolfgang Sarlet:
Pelo fato de a dignidade da pessoa encontrar-se ligada à condição humana de cada indivíduo, não há como descartar uma necessária dimensão comunitária (ou social) desta mesma dignidade de cada pessoa e de todas as outras pessoas, justamente por serem todos iguais em dignidade e direitos (na iluminada fórmula da Declaração Universal de 1948) e pela circunstância de nesta condição conviverem em determinada comunidade ou grupo. O próprio Kant – ao menos assim nos parece – sempre afirmou (ou, pelo menos, sugeriu) o caráter intersubjetivo e relacional da dignidade da pessoa humana, sublinhando inclusive a existência de um dever de respeito no âmbito da comunidade dos seres humanos.[4]
É na dignidade da pessoa humana que reside o fundamento jurídico-normativo direto de diversas regras e, até mesmo, de determinados princípios em nosso ordenamento jurídico. A força desse princípio fundamental implica em tutelar a pessoa humana em seu aspecto individual e coletivo, pois apenas pela concretização de uma sociedade igualitária é que cada pessoa humana usufruirá de uma vida digna.
Portanto, devemos fazer uso de instrumentos jurídicos materiais e processuais aptos a promover a dignidade da pessoa humana em um aspecto coletivo, sem deixar de lado o indivíduo isoladamente considerado. Dessa forma, a chamada tutela coletiva apresenta-se como meio adequado para viabilizar esse objetivo.
De tal maneira, torna-se necessário rever os dogmas rígidos de um modelo de reparação voltado para o escopo individual. Não houve outra alternativa para a doutrina e jurisprudência senão reconhecer que esses direitos transindividuais merecem a proteção jurisdicional concedida pelo nosso ordenamento no âmbito individual, com o devido respeito às particularidades que a metaindividualidade do interesse jurídico protegido lhe confere. É assim que a doutrina e jurisprudência caminham, ainda que lentamente, para o reconhecimento dessa tutela diferenciada de interesses que, muitas vezes, afetam intimamente toda a sociedade.
1. Os danos extrapatrimoniais coletivos no ordenamento jurídico brasileiro
Nossa Magna Carta foi responsável por instituir a base para a admissibilidade de reparação do dano extrapatrimonial, da qual o dano moral é espécie, levando em consideração a existência dos chamados novos danos, que surgiram a partir desse novo modelo constitucional. Com base nisso, podemos dizer que a Constituição Federal apresenta uma verdadeira cláusula aberta, apta a ser utilizada como fundamento para o reconhecimento de danos que, embora atípicos, estando ausente uma previsão normativa expressa e específica, devem ser reconhecidos pela sua incidência nas relações interpessoais.
Já no campo infraconstitucional, nosso ordenamento jurídico, por meio do art. 186 do Código Civil de 2002, define que “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, abrindo espaço para que toda a sistemática contida do artigo 927 ao artigo 954 do Código Civil seja aplicada no tocante à reparação de danos extrapatrimoniais, com as modificações cabíveis pertinentes à própria natureza do dano.
Essa cláusula aberta, ainda, nos permite chegar à conclusão lógica de que a legislação vigente estabelece um modelo aberto de proteção de interesses jurídicos, visando concretizar a máxima de proteção ao indivíduo. Ademais, pela forma como nossa Constituição Federal está estruturada, com a previsão de direitos os quais só produzem efeitos de forma plena por meio de uma concretização a nível coletivo, podemos aferir que nosso sistema jurídico criou os pilares de uma proteção transindividual de direitos, que, com o auxílio da doutrina e jurisprudência, possibilitou um novo panorama de tutela jurídica.
Os interesses passíveis de tutela jurídica não podem ser preconcebidos por meio de um rol estático, excluindo da proteção estatal tudo que estivesse fora daquele leque. O Direito, como objeto social de regulamentação de condutas humanas, deve acompanhar as mudanças sofridas no plano fático do mundo. Assim, surgindo novos interesses jurídicos conforme eventos sociais aconteçam, deve o ordenamento jurídico oferecer um arcabouço normativo apto a concretizar aqueles interesses, sobretudo em um nível social.
Tais interesses de relevância social não serão sempre traduzíveis em termos econômicos, tampouco poderiam sê-lo. A partir do momento em que se reconhece um complexo inalienável e insuscetível de violação pertencente ao indivíduo, também se reconhece que tais valores podem existir perante determinados grupos, categoriais ou classes de pessoas, ou mesmo à sociedade coletivamente considerada.
Enquanto classicamente o bem comum é compreendido sob o óbice do controle estatal, se transmite no âmbito de direitos difusos e coletivos como um bem cuja titularidade é compartilhada pelos membros de determinada coletividade, traduzindo-se em uma concretização do princípio da solidariedade, sob uma lógica não proprietária, ao menos não no sentido tradicional de propriedade, relacionado a bens corpóreos, divisíveis e individuais[5].
Conceituado o termo “interesse coletivo” em seu aspecto amplo, cumpre destacar que a categoria descrita, como tantas outras na ciência jurídica, pode apresentar características próprias e circunstanciais, as quais permitem dividir o interesse coletivo latto sensu em três espécies distintas, a serem analisadas brevemente.
Tendo em vista a complementariedade entre as feições individual e coletiva da reparação do dano, os mecanismos processuais e materiais hábeis a garantir a tutela de interesses transindividuais, organizados em nosso ordenamento jurídico de forma que a tutela de direitos coletivos não inviabiliza a tutela de direitos individuais. Houve uma crescente preocupação do legislador infraconstitucional em garantir que os danos sofridos pela coletividade, em suas diversas configurações, fossem reparados, por meio de uma resposta eficaz do sistema jurídico. Com isso, a coletividade passa a poder reivindicar a tutela jurisdicional em campos que anteriormente só tinham espaço no âmbito individual, transcendendo, inclusive, o campo das reparações meramente patrimoniais
Evidentemente, o rol de valores coletivos não será nunca exaustivo. Trabalhamos com conceitos que, não custa ressaltar, são mutáveis no espaço-tempo. Assim, além daqueles constantes nos incisos do artigo 1º, I a III, da Lei 7.347/85, temos valores como a honra, tanto em seu aspecto objetivo (a reputação da coletividade) como subjetivo (a imagem que aquele grupo tem de si mesmo), além da dignidade nacional[6]. O primeiro destes dois exemplos tem especial relevo considerando a preocupação com a tutela de grupos de minorias como o povo indígena, quilombolas, pessoas com deficiência, negros e mulheres[7]. Todos estes, bem como outros valores, são passivos de tutela jurídica.
Seu fundamento normativo é retirado da Lei 7.347/1985, mais precisamente de seu artigo 1º, o qual prevê expressamente a reparação de danos morais a pessoas indeterminadas. Entretanto, não é apenas a Lei da Ação Civil Pública que compõe o arcabouço jurídico que embasa as condenações de reparação dessa natureza. O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 6º, incisos VI e VII prevê a reparação de “danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos” e assegura aos consumidores o acesso aos órgãos pertinentes para reparação desses mesmos danos.
A existência de interesses extrapatrimoniais passíveis de reparação encontra resguardo, ainda, conforme já mencionamos, na dignidade da pessoa humana, bem como à proteção às lesões de natureza extrapatrimonial no artigo 5º da Constituição Federal de 1988:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
Dessa forma, devemos compreender a norma supracitada como uma cláusula aberta, da qual podemos extrair a fundamentação jurídica para a tutela de interesses extrapatrimoniais.
A expressão “dano moral coletivo” não traduz adequadamente a amplitude da violação sofrida. Em primeiro lugar, a ideia de dano moral individual já é passível de críticas doutrinárias pelo fato de que a ideia de “moral” remete à dor ou ao sofrimento de natureza psíquica, classificando o dano por um resultado que, não necessariamente, irá se concretizar. O dano moral, como dito anteriormente, não é o sentimento de abalo sofrido pela pessoa humana, mas sim uma violação a um direito da personalidade. Por tal motivo, se reconhece que a pessoa jurídica pode sofrer o chamado dano moral, cabendo a ela, por expressa disposição no art. 52 do Código Civil, a proteção, com as devidas alterações, a certos aspectos da pessoa jurídica, embora não seja dotada, evidentemente, de sentimentos como uma pessoa natural. De tal maneira, a proteção conferida à pessoa jurídica dá-se por equiparação, por reconhecer-se a existência de um direito passível de tutela, ainda que não se possa conferir uma forma física a sua vítima.
Em segundo lugar, a ideia de “moral” remete à ideia de indivíduo. Consequentemente, remete também à ideia de pessoas determinadas ou determináveis, sendo um dos motivos para que uma parte da doutrina e a jurisprudência relutarem, por tanto tempo, em admitir a existência de danos dessa natureza.
Como restou demonstrado pela breve exposição anterior sobre a entrada dos direitos coletivos no direito pátrio, houve uma evolução no sistema jurídico brasileiro no sentido de recepcionar proteção especial a determinados interesses jurídicos, notadamente interesses no âmbito difuso e coletivo. Entretanto, o que convencionamos chamar de tutela coletiva ainda caminha timidamente, carecendo de uma atuação concreta por parte do legislador e do aplicador da norma jurídica.
A jurisprudência muito relutou em admitir essa proteção jurídica diferenciada para direitos metaindividuais, especialmente para reconhecer a incidência da responsabilidade civil diante de um dano extrapatrimonial a grupos ou categorias de pessoas. Uma das razões para tal fato reside na inexistência de previsão normativa suficiente e adequada sobre o tema, considerando que o que temos hoje em nosso ordenamento jurídico são institutos que foram criados para o dano individual e, sobretudo, patrimonial, sem equivalente para danos extrapatrimoniais difusos e coletivos.
Tomemos como parâmetro a disciplina dada pelo Código Civil acerca do arbitramento do valor da indenização. Há uma regra expressa, contida no artigo 944, que determina que a extensão do dano será o parâmetro utilizado para fixar o quantum indenizatório. Entretanto, os prejuízos efetivos e eventuais que a vítima tenha sofrido só comportam determinação econômica quando o dano tem natureza material. Em consequência, os artigos seguintes, destacando-se os artigos 948 e 952, não comportam equivalência quando o prejuízo é de ordem extrapatrimonial.
2. A função punitiva na tutela de interesses extrapatrimoniais coletivos
Não há como afastar a importância de parâmetros para a fixação do valor indenizatório em ações cíveis, sobretudo quando tratamos de danos extrapatrimoniais coletivos. Isso porque há, na responsabilidade civil coletiva, uma inegável função punitiva da responsabilidade civil.
Enquanto na responsabilidade civil clássica e individual o interesse primordial é compensar o valor do dano sofrido, tomando as funções punitiva e preventiva papéis secundários, na responsabilidade civil coletiva, a ideia de punição-precaução se destaca diante da natureza da lesão, que muitas vezes não comporta reversão, bem como diante do interesse da sociedade de forma geral em impedir uma lesão daquela natureza.
A função compensatória, preponderante no dano extrapatrimonial individual é secundária no âmbito difuso e coletivo, por um motivo simples: Não é possível determinar a integralidade da lesão sofrida pela coletividade, em função da própria característica de direito transindividual. Dessa forma, o retorno ao status quo ante não é sempre viável. De fato, na maioria das lesões a interesses difusos e coletivos, é impossível. Não tratamos aqui da responsabilidade civil clássica, porque lidamos com interesses que, no desenvolvimento da teoria clássica do Direito de Danos, não haveriam de ser contemplados, pelo momento em se desenvolveu os parâmetros do Direito Civil, ou seja, um Direito voltado ao indivíduo, em que a ideia de solidariedade não se manifestava de forma significativa. Apenas com a constitucionalização do Direito Civil e com a quebra da divisão entre Direito Público e Direito Privado é que houve uma tendência a focar no aspecto macrossocial, como forma efetiva de tutela de direitos. E tal tutela só seria viável se a responsabilidade civil fosse além da compensação do dano, abrangendo também formas de repreensão e prevenção de condutas.
Assim, o que se visa na fixação de um montante pecuniário é sancionar a prática da conduta ilícita, que causou um dano a um valor fundamental da coletividade. A fixação de uma reparação pecuniária seria, ainda, dotada de uma função preventiva, a fim de desestimular a prática danosa[8]. A finalidade compensatória perde espaço, ainda, pela natureza indivisível do objeto em questão, bem como a indeterminabilidade dos sujeitos que se inserem no grupo afetado[9].
Neste sentido, é apenas de forma secundária que há uma finalidade compensatória, que se constitui apenas indiretamente, razão que justifica a destinação do valor pecuniário para um fundo específico.
Entretanto, há autores que entendem que o dano moral não pode ser visto como dano punitivo, mesmo no aspecto transindividual, tendo em vista que desvirtuaria a função reparatória da indenização e, assim, não estaria presente um dos pressupostos da responsabilidade civil. Seguindo tal linha:
[...] o caráter punitivo do dano moral, em última análise, cria muito mais problemas do que soluções, incentivando decisões incompatíveis com o paradigma democrático, que muitas vezes, sob o pretexto da necessária atividade criativa do judiciário, passa a permitir decisões arbitrárias ou maquiadas[10].
Entendemos que, inegavelmente, a função punitiva do Direito Civil deve ser admitida com bastante parcimônia, caso contrário haveria uma verdadeira substituição do Direito Penal. Contudo, nos parece que negar a incidência do caráter punitivo na responsabilidade civil não seria o melhor caminho, sendo importante considerar que a existência da função punitiva não desvincula a responsabilidade civil de seu caráter compensatório. Pelo contrário, ao se analisar uma nova função da responsabilidade civil, pretende-se estabelecer uma harmonia entre a figura da vítima e a figura da sociedade.
Fica evidente que prepondera na reparação do dano extrapatrimonial coletivo a finalidade punitiva ou de desestímulo da conduta, sendo tal finalidade um parâmetro a ser observado na fixação do montante reparatório. Trata-se de um importante fator para prevenir a reiteração do comportamento danoso pelo ofensor, ou que terceiros incorram no mesmo comportamento[11].
Ademais, a reparação de danos extrapatrimoniais coletivos tem uma função ainda preventiva, voltada para impedir o comportamento futuro. Nesse sentido, é aplicável quando o agente ofensor exerça aquela atividade a qual deu causa a conduta danosa. Seria o caso em especial de pessoas jurídicas que atuam no mercado de consumo produzindo mercadorias. Pelo fato do desestímulo se ligar a um fato futuro, diferenciando-se, assim, da função punitiva (a qual é sempre voltada pelo fato já praticado pelo ofensor), as verbas pecuniárias reparatórias devem estar devidamente descriminadas46. A função preventiva tem um papel social importante, sendo ressaltada por alguns autores, que veem no desestímulo o verdadeiro sentido da condenação a indenização por danos transindividuais coletivos. Compactua desse entendimento Amaury Júnior:
Admite-se a função punitiva, mas não como retribuição tailiônica ao ofensor, antes como medida salutar de reprimenda social que objetive o desestímulo (tanto do autor da ofensa quanto de terceiros) a práticas socialmente condenadas. Para além da punição, que busca satisfazer um sentimento egoístico que é próprio do ser humano, mas não deve marcar indelevelmente os atos de uma sociedade que prima pelo respeito à dignidade humana, mostra-se de todo apropriado conceber a indenização por dano moral coletivo como instrumento inibidor de condutas impróprias, aquelas que desrespeitam os valores éticos norteadores do sentimento coletivo de dignidade e solidariedade humana[12].
A noção de risco, e, consequentemente, sua regulamentação, representa hoje um importante papel no âmbito da tutela de interesses transindividuais, tendo em vista que é a sua existência que enseja a proteção jurídica oferecida pelo sistema. Dessa forma, é crescente o campo da tutela que parte do ponto do risco, e não mais do dano ou do ato ilícito. Seguindo esse mesmo entendimento:
[...] a proteção do meio ambiente (e de modo semelhante a do consumidor), na ordem constitucional brasileira não se fundamenta nem na noção de dano ou em uma limitada leitura do ilícito, mas sim na de risco. O risco representa o próprio desconhecimento, a indisponibilidade, a insuficiência ou a incerteza sobre as bases de conhecimento associadas aos comportamentos ou atividades. Não é possível aferir-se sob essas condições a verossimilhança de dano ou de violação à regra jurídica. Há simplesmente um estado de risco e de indefinição cognitiva, que, por si só, já autoriza a instauração de processos de proteção[13].
A tutela preventiva encontra respaldo legal na Lei n. 7.347 que, como dissemos anteriormente, estabelece várias diretrizes materiais e processuais no âmbito dos direitos difusos e coletivos. Vejamos o que determina a referida lei sobre o assunto:
Art. 4º Poderá ser ajuizada ação cautelar para os fins desta Lei, objetivando, inclusive, evitar dano ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos, à ordem urbanística ou aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
A Lei da Ação Civil Pública, de igual maneira, silencia no tocante aos critérios utilizados para estabelecer o quantum reparatório extrapatrimonial. Em seu silêncio, o instrumento normativo a ser utilizado deveria ser o Código Civil, mas, como supramencionado, o diploma normativo não traz solução para o problema.
Observa-se, portanto, que a tutela preventiva é plenamente cabível sob o óbice do microssistema processual coletivo. Não poderia ser diferente. Cada vez mais há um interesse da sociedade em evitar as condutas danosas, no lugar de enfrentar possíveis impactos irreparáveis a valores os quais não podem ser livremente reconstituídos, sendo insuficiente a mera reparação.
Ocorre que nem sempre a prevenção do dano será possível. Assim, restará, tão somente, minimizar o prejuízo sofrido. É por esse motivo que o art. 3º da Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985) prevê que “A ação civil poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer”. É apenas de maneira ideal que a tutela preventiva será possível. Na grande maioria das vezes, a judicialização se dá quando o direito já foi violado.
Assim, podemos dizer que o modelo brasileiro, que destina o valor das indenizações para um fundo de tutela dos bens lesados, possui, sobretudo, uma função social de destaque, predominante reconstitutiva de bens lesados, mas não é essa sua única prioridade[14], contando com uma visão preventiva da tutela transindividual. A recomposição é, de fato, preferível, mas há que se atentar para o fato de que, muitas vezes, é também inviável. É por essa razão que a quantificação do dano guarda importante relevância para a proteção de interesses transindividuais.
3. Para a construção de parâmetros adequados à quantificação de danos extrapatrimoniais coletivos
Dentro das deficiências do atual modelo de tutela coletiva, destaca-se o fato de que não há critérios bem delineados em dispositivos legais que permitam construir um método para estabelecer o quantum reparatório. Assim, restou à doutrina e à jurisprudência estabelecer parâmetros de fixação. E isso apenas no plano individual, pois ao compararmos a fixação da indenização em litígios coletivos, nos deparamos com verdadeiras atrocidades jurídicas, estando ausentes quaisquer critérios que permitam chegar ao montante fixado pelo julgador.
Dessa forma, um dos maiores desafios modernos da tutela coletiva é a adequação da sua indenização, tanto sob o aspecto quantitativo, a fim de corresponder o montante reparatório a um valor razoável para a compensação devida do dano, quanto sob o aspecto finalístico, que será melhor abordado em tópico próprio.
Em face à ausência de critérios legais, a aplicação adequada da norma mostra-se um exercício delicado, que exige do julgador o emprego de métodos jurídicos os quais, ainda que não obedeçam uma fórmula infalível, devem estabelecer parâmetros mínimos, a fim de que em instâncias superioras o valor da indenização não seja reduzido significativamente sob a alegação de desproporcionalidade em relação à lesão, sob pena da reparação do dano perder seu propósito.
Chega-se à conclusão lógica, portanto, de que no tocante às lesões de natureza transindividual, faz-se necessário uma reaproximação entre o Direito Civil e o Direito Penal. Considere-se, inicialmente, que a função sancionatória é preponderante na reparação de danos sofridos a interesses difusos e coletivos. Afinal, estamos diante de lesões as quais não comportam expressão econômica, mas que, tendo em vista sua relevância social, necessitam de tratamento especial pelo nosso ordenamento jurídico, de forma a reprimir a conduta danosa, diante de seu alto grau de reprovabilidade, bem como prevenir futuras lesões de natureza similar.
Assim, o modelo mais adequado para fixação do quantum reparatório parece ser aquele que leva em consideração essas particularidades da lesão transindividual, ressaltando o caráter pedagógico da sanção. Nesse sentido, a utilização de elementos tipicamente empregados no Direito Penal nos parece ser o mais adequado para que a indenização, em tais casos, atinja seu propósito.
O arbitramento do dano extrapatrimonial encontrou um óbice em sua própria natureza. Diante de um bem que não comporta quantificação em termos econômicos, os únicos critérios que se mostram adequados para determinar uma reparação pecuniária que melhor atenda o interesse violado são a proporcionalidade e a razoabilidade.
É no dano extrapatrimonial coletivo que encontramos uma maior junção dos ramos Civil e Penal do direito, superando uma velha dicotomia. Por essa razão é que a função preponderante na reparação de danos extrapatrimoniais de tal natureza é a função punitiva. Não se busca a mera compensação do ilícito civil. A gravidade da conduta praticada pelo agente ofensor foi de tal maneira gravosa que faz-se necessária uma sanção jurídica apta a responder ao ato ilícito.
Como bem delineado anteriormente, o Direito Penal é concebido como um ramo voltado para a tutela da sociedade, e não do mero indivíduo, este tradicionalmente tutelado pelo Direito Civil. Mas com a concepção de novos interesses que ultrapassam essa divisão clássica entre individual e coletivo, é nítida a aproximação do Direito Penal com o Direito Civil.
A superação dessa dicotomia e o caráter punitivo da sanção civil são elementos que devem ser levados em consideração pelo magistrado no arbitramento do quantum reparatório. Para tanto, a reparação não utilizará como parâmetro tão somente conceitos clássicos da responsabilidade civil, mas sim acrescentará princípios do direito penal.
A bem verdade, não poderia ser diferente. Afinal “as hipóteses sancionatórias das penas civis são ontologicamente incompatíveis com as regras inerentes às sanções reintegratórias de interesses privados”[15].
O direito aqui violado é, primordialmente, de relevância social. Ainda que a esfera individual seja afetada, o bem jurídico tutelado pertence a uma determinada coletividade. Portanto, a proporcionalidade e a razoabilidade são critérios adequados, mas demonstram-se insuficientes para estabelecer a reparação pecuniária.
Não se nega que o subjetivismo é inerente ao ser humano e, como julgador, o magistrado não está afastado de exercer um juízo de valor. Entretanto, proporcionalidade e razoabilidade não podem nem devem ser confundidas com permissão para o julgador decidir pautado em sua conveniência.
Pelo contrário. A ideia de proporcionalidade e razoabilidade impõem um dever de fundamentação, devendo o aplicador da norma demonstrar a adequação entre o resultado pretendido e o meio utilizado[16].
Entretanto, no Brasil, ainda há uma inegável dificuldade do operador do direito em valer-se efetivamente da proporcionalidade e da razoabilidade na aplicação normativa, que são utilizados pelos magistrados mais pela força da autoridade retórica desses conceitos, sem haver uma articulação mínima entre os elementos do caso concreto e os conceitos normativos, nem um conhecimento mais profundo sobre o tema e a sua consequente utilização[17]. Dessa forma:
[...] não é raro encontrar decisões em cuja fundamentação flutua apenas uma ementa de outro julgado como ‘motivo’ ou ‘justificação’ de sua conclusão, sem qualquer menção sobre a sua coerência, pertinência, relação ou simples ligação com o caso em questão[18].
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, não é diferente. Vemos diversas menções à proporcionalidade e razoabilidade, sem delinear de que maneira foram empregadas.
Classicamente, a referida Corte aplica o método bifásico de arbitramento para dano moral, consistindo em uma primeira fase em que se verificam os parâmetros jurisprudenciais utilizados até então, seguido de uma segunda fase destinada à apreciação do caso concreto, como podemos observar:
A reparação adequada do dano moral coletivo deve refletir sua função sancionatória e pedagógica, desestimulando o ofensor a repetir a falta, sem constituir, de outro lado, um ônus financeiro capaz de inviabilizar a continuidade da atividade empresarial exercida pelo fornecedor. Importante ressaltar, ademais, que a quantificação do dano moral coletivo reclama o exame das peculiaridades de cada caso concreto, observando-se a relevância do interesse transindividual lesado, a gravidade e a repercussão da lesão, a situação econômica do ofensor, o proveito obtido com a conduta ilícita, o grau da culpa ou do dolo (se presentes), a verificação da reincidência e o grau de reprovabilidade social (MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Op. cit., p. 163-165). O quantum não deve destoar, contudo, dos postulados da equidade e da razoabilidade nem olvidar dos fins almejados pelo sistema jurídico com a tutela dos interesses injustamente violados. Em se tratando de dano moral individual, esta Quarta Turma, quando do julgamento do Recurso Especial 1.473.393/SP - de minha relatoria -, adotou o mesmo entendimento da Terceira, no sentido da utilização de método bifásico para garantir o arbitramento equitativo da quantia indenizatória, valorados o interesse jurídico lesado e as circunstâncias do caso. (...) Nesse passo, suprimidas as circunstâncias específicas da lesão a direitos individuais de conteúdo extrapatrimonial, creio ser possível o emprego do referido método bifásico para a quantificação do dano moral coletivo. Assim, em primeira fase, verifica-se que julgados desta Corte, ao reconhecerem dano moral coletivo, consideraram razoável a fixação de valores entre R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) e R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), o que tem o condão de traduzir a relevância do interesse transindividual lesado (REsp 1.101.949/DF, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 10.05.2016, DJe 30.05.2016; REsp 1.250.582/MG, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 12.04.2016, DJe 31.05.2016; REsp 1.315.822/RJ, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 24.03.2015, DJe 16.04.2015; e REsp 1.291.213/SC, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 30.08.2012, DJe 25.09.2012). Por sua vez, em segunda fase, observadas as nuances do caso concreto (conduta dolosa causadora de dano de abrangência local; ofensor de grande capacidade econômica; incontroverso proveito econômico no importe de mais de R$ 90.000,00 - noventa mil reais - por programa; omissão apesar de sucessivos requerimentos do Ministério Público para a celebração de Termo de Ajustamento de Conduta; e significativa reprovabilidade social da lesão), considero razoável e adequado à função do dano moral coletivo o arbitramento da quantia de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), consoante estabelecido na origem[19].
A ausência de critérios bem delineados que levaram a essa decisão ainda poderia ser atribuída ao fato de que o STJ muito relutou em admitir a existência de danos extrapatrimoniais no âmbito de direitos difusos e coletivos, portanto, as particularidades dessas categorias jurídicas ainda são trabalhadas por nossas Cortes Superiores de forma incipiente. Contudo, isso não afasta a necessidade de se adotar critérios adequados para a fixação da prestação pecuniária pelo dano extrapatrimonial coletivo.
De tal sorte, a conclusão lógica é que alguns parâmetros devem ser utilizados pelo julgador, para impedir que, em instâncias superiores, o valor da indenização seja modificação. Isso porque, naturalmente, as instâncias superiores estão afastadas do resultado direto do dano.
Nesse sentido, entendemos que, dada a função punitiva do dano moral coletivo, podemos tomar como parâmetro o Código Penal para estabelecer um modelo adequado para fixar o montante reparatório. Mais especificamente, o art. 59 do Código Penal estabelece os aspectos subjetivos e objetivos que deverão ser levados em consideração pelo magistrado para o estabelecimento da pena. O referido dispositivo, em seu caput, estabelece:
Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
Portanto, na esfera penal o legislador estabeleceu critérios bem delineados para a fixação da pena. Entretanto, o mesmo não se dá no âmbito civil no tocante à responsabilidade civil por danos extrapatrimoniais. Embora o Código Civil determine os parâmetros objetivos para a fixação da indenização por danos patrimoniais, o dano moral ainda é tratado de maneira vaga e abstrata.
É de suma importância, então, que o valor fixado pelo juiz siga determinados parâmetros. Afinal de contas, a fixação de um valor desproporcional ao dano perde sua natureza reparatória, descaracterizando o instituto. Mas o magistrado precisa de elementos concretos para balizar sua decisão.
A quantificação será, evidentemente, sempre passível de questionamentos. Afinal, a valoração econômica de bens coletivos encontra desafios tanto de natureza prática quanto teórica. Temos um bem que não pode ser livremente transacionado, sendo impenhorável, inalienável e imprescritível.
Na verdade, a quantificação é uma forma de tutelar um bem, utilizando a via econômica. Como dito anteriormente, a imposição de obrigação de fazer ou não fazer não será sempre viável ou mesmo será a solução mais adequada, mas ao deixar de estabelecer uma sanção para o comportamento danoso, não há reestabelecimento do equilíbrio social colocado em risco pelo dano.
Alguns doutrinadores buscaram estabelecer critérios a fim de quantificar o dano extrapatrimonial coletivo. No que diz respeito ao dano ambiental, buscou-se estabelecer metodologia para a valoração econômica, dividindo os métodos em dois grupos principais: Os métodos diretos vinculam-se a valores de mercado, incluindo-se neste grupo o método do preço líquido, o qual multiplica o preço líquido de mercado de recursos naturais pelas unidades físicas dos recursos, e também o método das mudanças na produtividade, em que se avalia as mudanças físicas na produção causadas pelos impactos ambientais.
Já os métodos indiretos são empregados diante da inexistência de um mercado real para este bem, utilizando-se avaliações subjetivas. Neste grupo, considera-se não só as características materiais, mas também os atributos incorpóreos, os “atributos ambientais”. Por sua vez, a valoração contingente determina o valor dos recursos naturais a partir das preferências dos consumidores[20]
Na mesma linha, Nelson Rosenvald divide os critérios a serem utilizados na fixação da reparação em atributos subjetivos e objetivos[21], que deverão ser empregados quando o interesse tutelado ultrapassa o âmbito dos interesses privados, como é o caso em interesses transindividuais.
Há, primeiramente, no âmbito dos atributos subjetivos a gradação da culpa do agente. Embora a responsabilidade em danos extrapatrimoniais coletivos e difusos seja objetiva, essa gradação tem relevo ao passo que permite uma maior ou menor imputação à conduta do agente, devendo o mesmo responder de acordo juridicamente. Nesse sentido, a chamada “culpa grave” ou mesmo o “dolo” devem influir negativamente na valoração da conduta do agente.
A culpabilidade é, portanto, a primeira etapa a ser analisada pelo magistrado. Embora Rosenvald entenda que “havendo um ato ilícito culposo, decorrente de um comportamento negligente que eventualmente poderia suceder na vida de qualquer pessoa normalmente diligente e atenta, não há a necessidade do direito privado acionar mecanismos especiais de substância penal”[22], somos forçados a discordar do entendimento do referido autor. Isso porque a responsabilidade em danos extrapatrimoniais difusos e coletivos é objetiva, dada a relevância social do direito violado, então a culpa leve ou a ausência de tal elemento subjetivo pode ser utilizado para valorar positivamente a conduta do agente, mas jamais para afastar o caráter punitivo da reparação.
A conduta social e a personalidade do agente não devem ser aqui consideradas pelo fato de que são intrínsecos ao sujeito ofensor, sem guardar relevância com o dano causado, ultrapassando o liame subjetivo entre causa e efeito. Já o comportamento da vítima, por outro lado, deve ser desconsiderado, pela transidinvidualidade característica do direito violado, não sendo possível, na maioria das vezes, precisar como determinados membros da coletividade contribuíram para aquele dano. Os antecedentes do ofensor, por sua vez, devem ser levados em consideração, sobretudo se a ofensa analisada não for a primeira dessa natureza cometida pelo agente.
No tocante aos motivos, circunstâncias e consequências do crime, não há qualquer óbice para que seja feita uma valoração. Tomemos o mesmo exemplo da ementa transcrita acima, referente aos postos de combustível. O motivo da adulteração foi, evidentemente, o lucro. A ganância deverá, portanto, ser valorada negativamente. As circunstâncias do crime revelam que, além da adulteração por tempo indeterminado, houve comercialização de determinada marca de combustível no lugar de outra, em claro desrespeito às normas consumeristas. Por fim, as consequências foram que os consumidores pagaram alguns centavos a mais por litro de combustível, mas, coletivamente considerado, houve lucro exorbitante e desproporcional dos agentes infratores.
Em seguida, devemos nos ater à personalidade da pena, da qual decorre sua intransmissibilidade. Portanto, a sanção não pode nem deve ser afastada por cláusula contratual, para transferir o ônus do dever de reparar para terceiro. Se assim o fosse, estaria descaracterizada a própria natureza da sanção. Não será, de igual maneira, transferível aos herdeiros do agente, dado o caráter pessoal da sanção[23].
Sobre isso, André de Carvalho Ramos afirma que “cabe ao magistrado estimar o valor da reparação de ordem moral, adotando os critérios da razoabilidade, proporcionalidade e, principalmente, o fator de desestímulo que a indenização por dano moral acarreta”[24].
Por sua vez, Carlos Alberto Bittar Filho leciona que “há que se obedecer, na fixação do quantum debeatur, a determinados critérios de razoabilidade elencados pela doutrina (para o dano moral individual, mas perfeitamente aplicáveis ao coletivo), como, v.g., a gravidade da lesão, a situação econômica do agente e as circunstâncias do fato”[25].
CONCLUSÃO
O presente artigo teve como escopo fazer uma breve análise dos desafios na adequada reparação de danos a interesses transindividuais, sobretudo em relação à quantificação do montante reparatório em casos de violações a interesses difusos e coletivos.
Embora não seja possível estabelecer uma regra, sob pena de reduzir o tema a uma visão demasiadamente reducionista, é importante estabelecer critérios para a quantificação do dano. Não se discute que há uma série de fatores intrínsecos e extrínsecos a lesão, mas não podemos manter o status quo da doutrina e da jurisprudência e deixar que a proporcionalidade e a razoabilidade sejam os únicos critérios adotados pelos magistrados.
Afinal, a ausência de precisão nos critérios para a fixação do dano extrapatrimonial coletivo faz com que haja o perigo de, em situações semelhantes, nos depararmos com soluções díspares. Sob pena de aplicar uma solução inadequada para uma mesma lesão jurídica, não há outra alternativa que não seja delinear critérios robustos para fixação do dano.
Isso representa um grande perigo para a segurança jurídica, o que é inaceitável em um Estado Democrático de Direito, que é o que o Brasil pretende ser. Assim, deve ser reconhecida a necessidade de critérios mínimos para a fixação da indenização.
Há que se ressaltar, ainda, que, uma vez fixada a indenização, mesmo em uma instância superior, dificilmente haverá alteração do valor fixado pelo magistrado em primeiro grau. É o entendimento do STJ que a Corte não pode rever os critérios utilizados pelo julgador a não ser diante de flagrante desproporcionalidade. Nesse sentido, cabe observar o julgado recente:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANOS MORAIS COLETIVOS.ALEGADA NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. DEFICIÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF. ACÓRDÃO RECORRIDO QUE, À LUZ DASPROVAS DOS AUTOS, CONCLUIU PELA RESPONSABILIDADE CIVIL DA RECORRENTE. PRETENDIDA REDUÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO.IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO, NA VIA ESPECIAL. SÚMULA 7/STJ.DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. DISSÍDIO NÃO DEMONSTRADO. AGRAVOINTERNO IMPROVIDO. (...) A alteração desse entendimento demandaria incursão no conjunto fático-probatório dos autos, o que é vedado, no âmbito do Recurso Especial, pela Súmula 7desta Corte.V. No que tange ao quantum indenizatório, "a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a revisão dos valores fixados a título de danos morais somente é possível quando exorbitante ou insignificante, em flagrante violação aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o que não é o caso dos autos. A verificação da razoabilidade do quantum indenizatório esbarra no óbice da Súmula 7/STJ" (STJ, AgInt no AREsp 927.090/SC,Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 08/11/2016). No caso, o Tribunal de origem, à luz das provas dos autos e em vista das circunstâncias fáticas do caso, fixou a indenização por danos morais coletivos em R$ 300.000,00 (trezentos mil reais), considerando "a atividade desenvolvida pela ré, o elevado número de infrações, a revelar conduta abusiva, e a ofensa a diversos direitos tutelados pela Constituição Federal, com inegáveis prejuízos à coletividade". Tal contexto não autoriza a redução pretendida, de maneira que não há como acolher a pretensão do recorrente, em face da Súmula 7/STJ.VI. Descabimento do Recurso Especial com base no dissídio jurisprudencial, pois as mesmas razões que inviabilizaram o conhecimento do apelo, pela alínea a do permissivo constitucional, servem de justificativa quanto à sua alínea c. VII. Agravo interno improvido[26].
A decisão é apenas uma das quais exemplifica que o Superior Tribunal de Justiça apenas revê as reparações quando encontram-se em um dos extremos: o montante exorbitante ou o montante irrisório. Portanto, a regra é que a quantificação seja mantida, salvo se representar verdadeira teratologia. Assim, dificilmente será mantida uma congruência entre as decisões relativas a danos de natureza semelhante.
De tal forma, cabe ao juiz tentar embasar a decisão em critérios seguros, não no sentido de fornecer um modelo inexorável, o qual não comporta exceções diante das particularidades do caso, mas sim de fornecer parâmetros flexíveis ao julgador a fim de garantir à coletividade uma reparação pecuniária que atenda ao interesse violado e sirva a seu papel de desestímulo à conduta do ofensor.
Portanto, é, não só adequado, como recomendável, a utilização das chamadas circunstâncias judiciais previstas no Código Penal, a fim de balizar a fixação de uma indenização razoável, justa, e, principalmente, capaz de reparar o dano sofrido pela coletividade, ao mesmo tempo em que dissuade o agente de reincidir na conduta lesiva.
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[1] MEDEIROS NETO, Xisto Tiago. Dano moral coletivo. 2 ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 106.
[2] VITORELLI, Edilson. O Devido Processo Legal Coletivo: Representação, participação e efetividade da tutela jurisdicional. 2015. Tese (Doutorado em Direito), UFPR, Curitiba, p. 33.
[3] WATANABE, Kazuo. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 628.
[4] SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 52.
[5] GUILHERMINO, Everilda Brandão. As titularidades dos direitos difusos e seus impactos nas relações privadas: uma reflexão sobre as categorias jurídicas ligadas ao pertencimento. In Revista Fórum de Direito Civil. ano 7, n. 17, Belo Horizonte, Editora Fórum, p. 45-57, janeiro/abril, 2018, p. 47-49.
[6] BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Disponível em <http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/30881-33349-1-PB.pdf>. Acesso em 06.06.2018.
[7] A palavra “minoria” deve ser compreendida sob o prisma de um grupo vulnerável em aspectos socioeconômicos, ainda que estejam em maior número populacional.
[8] CORRÊA, Morgana Braz de Siqueira. Dano moral coletivo e os serviços de transporte de passageiros. In: Revista de Direito Privado, v. 10, n.38, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 176-203, abr./jun., 2009, p. 189.
[9] MEDEIROS NETO, Xisto Tiago. Dano moral coletivo. 2 ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 160-161.
[10] CRESPO, Leme Danilo; FORTUNA, Marcelo. A função punitiva do dano moral individual e coletivo: uma análise crítica de viés lógico-jurídico. In: Revista de Direito Privado, ano 18, n. 79. Recife: Revista dos Tribunais, p. 131-161, Jul., 2017, p. 149.
[11] ANDRADE, André Gustavo de. Dano Moral & Indenização Punitiva: Os Punitive Damages na Experiência do Common Law e na Perspectiva do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 62.
[12] PINTO JÚNIOR, Amaury Rodrigues. A função social dissuasória da indenização por dano moral coletivo e sua incompatibilidade com a responsabilidade civil objetiva. In: Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região, Campo Grande, ano 56, n. 86, jul./dez., 2012. Disponível em < http://as1.trt3.jus.br/bd-trt3/handle/11103/27250 >. Acesso em 13/01/19.
[13] YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato. Tutela dos interesses difusos e coletivos. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2006, p. 236-237.
[14] CARNEIRO FILHO, Humberto João. Estrutura, funcionamento e evolução do fundo de defesa dos direitos difusos – FDDD. In: Revista Jurídica da Seção Judiciária de Pernambuco. Disponível em <https://revista.jfpe.jus.br/index.php/RJSJPE/article/view/25>. Acesso em 15/01/19.
[15] ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 48
[16] BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 115ss.
[17] Sobre a argumentação de autoridade que predomina no discurso jurídico brasileiro, conferir RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes?: para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro: FGV, 2013, p. 71ss.
[18] KRELL, Andreas J.; PAIVA, Raíi M. S. de. Hermenêutica jurídica e uso deficiente de métodos no contexto da aplicação do direito no Brasil. In: Direitos Fundamentais & Justiça, ano 11, n. 37, Belo Horizonte: Editora Fórum, p. 185-218, jul./dez., 2017, p. 207.
[19] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1517973/PE 2015/0040755-0, 4ª Turma, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, 16/11/2017. Disponível em < https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/549846390/recurso-especial-resp-1517973-pe-2015-0040755-0/inteiro-teor-549846399>. Acesso em 20/11/18.
[20] LEITE, José Rubens Morato; MELO, Jailson José de; PILATI, Luciana Cardoso Pilati; JAMUNDÁ, Woldemar. Jurisprudência sobre dano moral ambiental. Disponível em <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?artigo_id=1407&n_link=revista_artigos_leitura> Acesso em 25/07/18.
[21] ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 50.
[22] ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 50
[23] ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p. 52.
[24] RAMOS, André de Carvalho. A Ação Civil Pública e o Dano Moral Coletivo. Revista de Direito do Consumidor, v. 25. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan/mar de 1998, p. 86.
[25] BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Revista de Direito do Consumidor, v. 12, 1994, p. 59.
[26] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 1161016/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Assusete Magalhães, 13/09/2018. Disponível em < https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=201702162627 >. Acesso em 24 de jan. de 2019.
Advogada. Graduada em Direito pela UFAL. Pós-graduanda em Direitos Humanos pelo Círculo de Estudos pela Internet (CEI).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARRETO, Camila Pereira. Dano extrapatrimonial coletivo: a quantificação do dano em lesões a interesses metaindividuais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 fev 2024, 04:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/59142/dano-extrapatrimonial-coletivo-a-quantificao-do-dano-em-leses-a-interesses-metaindividuais. Acesso em: 23 dez 2024.
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