RESUMO: Partindo da subsistência das condições da ação como categoria jurídica autônoma, o artigo valida a aplicação da teoria da asserção no CPC/2015, diante da sua sintonia com a teoria eclética da ação e as normas fundamentais do moderno processo civil brasileiro, não sem antes percorrer pelos institutos da ação e do processo, com notas sobre a evolução da natureza jurídica da ação e a diferença entre o juízo de admissibilidade do processo e da ação. A ideia foi demonstrar que somente pelo método da teoria della prospettazione será possível se estabelecer uma diferença ontológica entre as condições da ação e o mérito.
Palavras-chave: Condições da Ação. Teoria da Asserção. Validade. Código de Processo Civil 2015.
O tema tratado tem como foco central o estudo da validade do método da asserção como forma de identificação das condições da ação no CPC/2015.
Foi Enrico Tullio Liebman com a sua autoridade que situou as condições da ação entre os pressupostos processuais e o mérito. Mas a categoria é controversa, pois parte da doutrina entende que as condições da ação não constituem matéria processual, por não existir diferença ontológica entre carência de ação e mérito.
Não se pode negar que o CPC/1973 adotava a teoria eclética de Liebman. Mas no CPC/2015 a questão é polêmica. Para alguns, foi o fim das condições da ação. Para outros, as condições da ação passaram a ser enquadradas como pressupostos processuais. Para a maioria, contud[1]o, as condições da ação continuaram a subsistir como conceito autônomo em nosso direito positivo, pertencendo ao quadro dos pressupostos genéricos de admissibilidade da tutela jurisdicional.
A (re)discussão da importância das condições da ação, sob a perspectiva instrumental do direito processual, ganha relevo diante da necessidade de uma interpretação focada em resultados mais efetivos na aplicação da norma processual. Nesta seara a teoria da asserção se destaca ao enunciar que o julgador deve investigar as condições da ação in statu assertionis, ou seja, apenas à luz da hipótese narrada pelo autor na petição inicial. Sob esse prisma a teoria da asserção tem a importante função de complementar o estudo das condições da ação, ao estabelecer um método que diga quando a questão é examinada como simples carência de ação ou como inexistência do direito do autor ao bem da vida.
1.OS INSTITUTOS DA AÇÃO E DO PROCESSO
1.1 Notas sobre a evolução da natureza jurídica da ação
Para a teoria civilista ou imanentista (clássica), que vigorou desde o direito romano até meados do século XIX, o direito processual era considerado um simples apêndice do direito material. A ação um simples capítulo do direito civil (PINHO, 2019, 8.2.1). Essa concepção, inspirada na passagem de Celso (nihil aliud este actio quam ius quod sibi debeatur in iudicio persequendi), identificava a ação ao direito subjetivo material posto em movimento. Segundo a tese não havia ação sem direito.
Tudo mudou a partir da célebre polêmica havida entre Windscheid e Muther: a ação passou a ser considerada um direito autônomo à prestação jurisdicional.
Também nominada de conceitual ou processualista, a teoria autonomista teve origem na obra de Oskar Von Bülow em 1868[2]. Pela primeira vez foi diferenciada a relação jurídica de direito material da relação jurídica processual, inaugurando a fase autonomista do processo civil. Foi nesta época que se desenvolveram as categorias do juízo de admissibilidade e de mérito.
Foi Adolf Wach[3], em 1885, que apresentou a primeira teoria sobre a autonomia da ação. Era a teoria do direito concreto de ação, que veio a reforçar a pesquisa levada a efeito por Büllow (SILVA, 2001, p. 95). Para Wach, além de não se confundir com o direito material, o direito de ação tem natureza pública, posto que um direito subjetivo público contra o Estado.
Mas a autonomia do direito de ação defendida por Wach, frisa João Batista Lopes, não significava que ele fosse um direito abstrato apartado do direito material. Ao revés, exceção feita à ação declaratória negativa, o reconhecimento do direito de ação somente seria possível se o pedido deduzido fosse julgado procedente, pois o direito subjetivo precede necessariamente o direito de ação (LOPES, 2009a, p. 35). Ou seja, por essa teoria o direito de ação é o direito a uma sentença favorável (MEDINA, 2019, p. 159).
Chiovenda, influenciado por Wach, na famosa Prolusione Bolognese de 1903, apresentou a sua teoria de base concretista em prestigiada conferência sob o título “A ação no sistema dos direitos”. Para a chamada teoria dos direitos potestativos, a ação se opõe ao direito de prestação, porque a ela não corresponde nenhuma obrigação. Não configura a ação, assim, “nenhum direito público, mas sim o kann recht, o poder jurídico de realizar a condição necessária para a atuação da vontade da lei” (GRINOVER, 2011, 5.2). Um direito potestativo em face do réu concluiu Chiovenda sobre a ação, discordando assim de Wach para quem a ação era um direito subjetivo de natureza pública.
Para a teoria concretista, como se viu, o direito de ação só estaria presente quando ela fosse julgada procedente, isto é, “o direito de ação pertence a quem tem razão, contra quem não a tem” (FERREIRA, 2000, p. 59). É fácil notar o seu equívoco: uma ação teria primeiro que ser procedente para, então, ser admitida.
Contrapondo às inúmeras teorias que viam a ação como um direito à obtenção de uma providência jurisdicional favorável, surgiu na Alemanha com Degenkolb e quase ao mesmo tempo com Plosz, na Hungria, a chamada teoria da ação no sentido abstrato (SANTOS, 2012, p. 184). Na Itália foi Alfredo Rocco, mesmo sob os protestos de Chiovenda, que lhe deu fundamentação própria e definiu o direito de ação. Depois veio Ugo Rocco, seguindo as mesmas pegadas, e juntamente com Alfredo consolidaram a noção com a qual substancialmente concordam os mais importantes processualistas contemporâneos (SANTOS, 2012, pp. 186/187).
Pela teoria abstratista, discorre Lopes da Costa, a ação seria o direito que tem qualquer pessoa de provocar a função jurisdicional do Estado. A existência ou a inexistência do direito subjetivo não tem importância alguma. Pouca importa também o resultado do processo, pois o direito de ação, dirigido contra o Estado (obrigado à prestação jurisdicional), é de todo desvinculado do direito material (COSTA, 1959, p. 85).
A teoria abstrata da ação teve grande penetração no Brasil pelas lições de Enrico Tullio Liebman, mas acrescentada de um detalhe bastante significativo: o direito de ação não é incondicionado, sendo necessário para a sua existência a presença das condições da ação.
A teoria eclética de Liebman foi lançada em aula inaugural na Universidade de Turim no ano de 1949, sendo por ele evitadas as posições extremadas das doutrinas existentes (BARBI, 2008, p. 13). Ao elaborar a sua própria teoria, o professor buscou superar as críticas da teoria concreta e da teoria abstrata pura.
O processualista italiano formulou uma teoria combinando elementos destas duas teorias, evitando os defeitos nelas encontrados. Daí a denominação de teoria eclética, justamente porque apresenta características das teorias abstrata e concreta, ambas marcadas pela autonomia da relação processual.
Na segunda metade do século passado, a doutrina processual brasileira foi fortemente influenciada por Liebman. Suas lições procuraram conciliar as concepções do direito de ação preconizadas por Francesco Carnelutti e Piero Calamandrei.
Segundo a teoria de Liebman, o direito de ação ficaria “localizado entre os pressupostos processuais e o mérito, estando próximo ao direito material, ligando-se às ideias de Calamandrei, mas que, por outro lado, afirmava também ser a ação um direito público abstrato distinto do mérito da lide, conforme o pensamento de Carnelutti” (RODRIGUES; LAMY, 2018, 1.1.2.4).
Assim, “as teorias da ação - concreta, material e privada de Calamandrei e abstrata, processual e pública de Carnelutti - resultaram na formulação da teoria eclética de Liebman, essencialmente descritiva. A Teoria Eclética, portanto, aquilatou, quantificou e esmiuçou as demais teorias para concluir merecerem, as denominadas ‘condições da ação’, uma análise separada do mérito e dos pressupostos processuais” (RODRIGUES; LAMY, 2018, 1.1.2.4).
Liebman ficou entre aqueles que defendiam que o exercício da ação dependia da existência do direito material e os que entendiam que a ação decorre de um direito de agir totalmente abstrato.
A posição de Liebman no sentido de que o direito de ação não depende da efetiva existência do direito material, adverte João Batista Lopes, possui uma peculiaridade: a ação não consistiria no simples poder de movimentar a máquina judiciária, mas no direito de obter uma sentença de mérito (LOPES, 2009a, p. 39). A ação somente existiria se fosse possível um provimento no caso concreto.
Nesses termos, na teoria elaborada por Liebman a ação consiste no direito a uma sentença de mérito, desde que presentes determinados requisitos denominados “condições da ação.” A ausência desses requisitos resultaria na inexistência da própria ação e de um autêntico exercício da jurisdição.
As condições da ação seriam definidas “como condições de admissibilidade do julgamento da demanda, ou seja, como condições essenciais para o exercício da função jurisdicional com referência à situação concreta [concreta fattispecie] deduzida em juízo” (LIEBMAN, 2005, p. 203).
Diante disso parece claro que para Liebman a ação representa o direito de provocar o julgamento do pedido, ou seja, o exercício da jurisdição pelo Estado, resultando assim um relacionamento estreito entre a jurisdição e a atividade jurisdicional que decide o mérito da lide.
Logo, para a teoria eclética a sentença que extingue o processo sem resolução do mérito, porque ausente as condições da ação, não seria um ato praticado no exercício da jurisdição, por não estar decidindo sobre o fato concreto. Mas isso não significa que a ação dependa de uma sentença favorável. Para a existência da ação bastaria uma sentença favorável ou desfavorável ao autor, o que seria alcançado com a presença das condições da ação, a princípio definidas por Liebman como legitimação para agir, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido, e posteriormente por ele reduzidas apenas à legitimidade e ao interesse.
O exercício da jurisdição, em outras palavras, somente seria possível quando presentes as condições da ação. Por isso que, a exemplo da teoria concreta, uma das principais críticas recebidas pela teoria de Liebman foi a de que restaria inexplicado o fenômeno processual ocorrido entre a distribuição do pedido e o reconhecimento da carência de ação, quando ausentes as condições da ação.
Procurando explicar e arredar tal critica, “Liebman elaborou uma construção baseada em duas categorias ou estágios distintos do direito de ação: o primeiro, chamado de direito de ação constitucional, ou direito de demandar, ou direito de petição, refere-se ao direito de ação amplo, totalmente abstrato e incondicionado, previsto pela Constituição Federal; o segundo, chamado de direito de ação processual, vincula-se à situação jurídica de direito material trazida pelo autor e está condicionado à existência das condições da ação” (COSTA, 2005, p. 39).
É verdade que Liebman não confunde a ação com o direito material. Mas ao condicionar a existência do direito de ação à presença da legitimidade e do interesse processual, provocou um profundo debate teórico sobre a natureza jurídica das condições da ação.
1.2 A admissibilidade do processo e da ação
A presença dos pressupostos processuais e das condições da ação é que garantem a admissibilidade (do processo e da ação) a um pronunciamento de mérito.
Antes de proferir uma sentença de mérito (questão de fundo), o juiz deve decidir questões prévias relacionadas a uma série de matérias de natureza preliminar (juízo de admissibilidade). Essas questões, assinala Olavo de Oliveira Neto, estão relacionadas a três diferentes conjuntos: o primeiro atinente a regularidade do exercício do direito de ação, o segundo atinente a regularidade do processo, e, o terceiro, atinente ao preenchimento de certos requisitos específicos do meio processual utilizado (ex: para poder propor ação de busca e apreensão de veículo, a instituição financeira, antes, deve comprovar a mora) (OLIVEIRA NETO; MEDEIROS NETO; OLIVEIRA, 2015, p. 157).
Mas não é simples alcançar o meritum causae. O processo exige uma atividade mental ordenada e muitas vezes complexa. A falta de atenção a uma determinada ordem lógica de prejudicialidade (lato sensu) pode comprometer o resultado do julgamento.
Observar uma ordem de enfrentamento pode implicar na desnecessidade do exame de uma ou mais matérias. Mas não é só. O exame despreocupado, sem a análise de questões logicamente antecedentes, em situações mais graves pode acarretar inclusive a nulidade do processo.
Neste cenário pode-se afirmar que a atividade jurisdicional se desenvolve de forma sequencial com a observância obrigatória do seguinte trinômio: pressupostos processuais, condições da ação e mérito da causa. Arlete Inês Aurelli bem explica este iter lógico:
O órgão julgador, quando da primeira análise da petição inicial que lhe é submetida à apreciação para recebimento ou, posteriormente, quando profere o julgamento conforme o estado do processo, ou até mesmo no momento de proferir a sentença, percorre um iter lógico, devendo analisar primeiramente se estão presentes os requisitos de existência e validade do processo. Somente se existirem, ou seja, se o processo tiver condições de prosseguir, o juiz passará a análise da existência dos requisitos essenciais para configurar o direito de ação. Somente se estes estiverem presentes é que o juiz passará para o terceiro degrau desse raciocínio lógico, que é analisar o mérito, julgar a lide que lhe foi submetida, decidindo se o autor tem razão ou não (AURELLI, 2006, p. 70).
Mas a ordem de enfrentamento das questões nem sempre é simples, já que “pode o demandado alegar a falta de mais de um pressuposto processual ou de mais de uma condição da ação ou, mesmo, suscitar várias questões de mérito. E às vezes fá-lo simultânea e desordenadamente” (SANTOS, 1996, pp. 97/98).
A ação tem previsão no art. 5.º, XXXV, da CF/1988[4], segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Mas este direito constitucional está sujeito a requisitos para o seu exercício diante do caso concreto. São as condições da ação, previstas na legislação infraconstitucional.
É certo que o acesso à jurisdição é garantido pela Constituição de forma irrestrita, visto que qualquer pretensão, por mais infundada que seja, merece receber uma resposta jurisdicional. Mas este direito de se obter uma sentença sobre o mérito da lide depende da observância dos requisitos de admissibilidade da ação. Ou seja, temos um direito cívico de ação (abstrato e incondicionado) ao lado de um direito processual de ação (condicionado a requisitos para a completa entrega da prestação jurisdicional).
Sobre a natureza jurídica das condições da ação, considerados os sentidos do direito de ação, leciona Leonardo Greco:
Contudo, o direito de ação, tratado como direito à jurisdição, direito à prestação jurisdicional sobre o direito material, é condicionado. Só tem direito de exigir do Estado a prestação jurisdicional sobre o direito material aquele cuja postulação preencha certos requisitos, certas condições, as chamadas condições da ação.
Os diversos sentidos em que é utilizado o direito de ação influenciam a reflexão acerca da natureza jurídica das condições da ação. Em realidade, conforme já observamos, os autores que consideram as condições da ação requisitos do legítimo exercício do direito de ação estão se referindo ao conceito de ação como direito cívico, como direito incondicionado pertencente a qualquer cidadão.
Entretanto, o direito à prestação jurisdicional sobre o direito material é um direito que depende do cumprimento de certos requisitos. Assim, considero as condições da ação requisitos da existência do direito de ação como direito à prestação jurisdicional sobre uma pretensão de direito material (GRECO, 2015, 9.3).
As condições da ação emergem da relação de direito material. É por meio das condições da ação que ocorre a vinculação entre o processo e o caso concreto apresentado perante o juiz. Ausente este requisito de admissibilidade o processo será julgado extinto sem resolução de mérito, isto é, sem decisão sobre a crise substancial submetida a julgamento.
Então não basta a presença dos pressupostos processuais para que seja alcançada a solução de mérito. É preciso mais. É necessário que o autor apresente uma pretensão idônea revestida das condições da ação, sem o que a prestação jurisdicional restará incompleta ou não integral.
Portanto, é fácil concluir que as condições da ação devem ser apreciadas preliminarmente, em caráter prejudicial ao exame de mérito da lide estabelecida no processo. É uma fase intermediária entre a propositura válida do processo e o seu provimento final.
Somente após a investigação das questões preliminares (aí incluídos os pressupostos processuais), que antecedem lógica e cronologicamente a questão principal, o mérito poderá ser decidido. Uma vez ausente as condições da ação o autor será julgado carecedor de ação, fato que impede o juiz de alcançar o julgamento da causa.
As condições da ação têm a função de evitar o prosseguimento de processos inúteis, desarrazoados e em última análise lesivos à paz social. Assim evita-se o desperdício de tempo e recursos de uma atividade jurisdicional sem resultado. Pelo filtro das condições da ação impede- se que a parte ex adversa seja submetida a um processo que lhe suprima ou reduza direitos, causando até mesmo prejuízos irreparáveis. Além do que, atende-se à necessidade da duração razoável do processo, princípio de direito fundamental previsto no rol do art. 5º da CF/1988.
Não obstante as polêmicas que cercam a teoria das condições da ação, bem como as opções do atual Código de Processo Civil, não se pode negar a sua importância diante da distinção entre as sentenças terminativas e definitivas, ou seja, entre aquelas que põem fim ao processo sem ou com resolução de mérito.
As expressões “condições da ação” e “carência de ação” foram abandonadas pelo legislador do CPC/2015. Nos estudos do processo civil as condições da ação sempre foram o interesse processual, a legitimidade das partes e a possibilidade jurídica do pedido. Esta última deixou de ser uma categoria autônoma e passou, para alguns, a integrar o interesse de agir, exatamente como concluiu Liebman com o amadurecimento dos seus estudos. Para outros, a possibilidade jurídica passou a fazer parte do exame de mérito.
O interesse e a legitimidade seguem recebendo tratamento processual diverso do mérito, pelo menos na fase inaugural do processo para os que adotam a teoria da asserção. Tanto é que a ausência destas condições figuram entre as hipóteses de extinção do processo sem resolução de mérito (art. 485, VI, do CPC/2015).
Desse modo, continuam os requisitos do interesse de agir e da legitimidade ad causam sujeitando a integral prestação jurisdicional, conforme preceitua o art. 17 do CPC/2015. Ausente o interesse e/ou a legitimidade (pois devem figurar concomitantemente) o processo deverá ser extinto prematuramente sem resolução de mérito. Será o caso de carência de ação como se diz na doutrina.
2.A SUBSISTÊNCIA DAS CONDIÇÕES DA AÇÃO NO CPC/2015 COMO PRESSUPOSTO DO EXAME DE VALIDADE DA TEORIA DA ASSERÇÃO
Não se pode confundir o direito de acesso ao judiciário (direito constitucional de ação) com o direito de ação processual. O direito de petição de modo genérico garante a defesa de direitos dos cidadãos. Já, toda vez que apresentamos uma pretensão por meio do processo ocorre o exercício do direito de petição, espécie ação, consistente no direito de obter a prestação jurisdicional. Melhor ainda nas palavras de Arruda Alvim sobre os dois tipos de ação: “a) uma de cunho eminentemente originário do direito constitucional: é o direito de petição (art. 153, § 4., da Constituição); b) outra - que é a processual - estudada no processo, mas que nasce do próprio direito de petição” (ALVIM, 1975, p. 315).
Arlete Inês Aurelli, além de concordar com Arruda Alvim, acrescenta que o direito constitucional de ação, diferentemente da ação processual, não está sujeito a qualquer condição restritiva:
Portanto, concordamos com a opinião de Arruda Alvim, no sentido de que existem dois tipos de ação: a ação constitucional, de natureza genérica e especificada no art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal, e a ação processual, que embora seja decorrente da ação constitucional, com ela não se confunde, sendo regulada no processo.
Veja-se que, ao se deparar com o direito constitucional de ação, ou seja, o direito que é assegurado a todo e qualquer cidadão de levar ao Poder Judiciário um conflito de interesses para ser resolvido, verifica-se que este não é incondicional e ilimitado. Portanto, jamais poderia depender, para seu implemento, de requisitos como as condições da ação. Assim, parece lógico que somente o direito processual de ação é que sofrerá a limitação imposta pela necessidade de implemento das condições da ação (AURELLI, 2006, pp. 107/108).
Direito de ação e ação, pois, são conceitos distintos: “Aquele é abstrato, flutua nos altos páramos do Direito Constitucional sem amarras nem condições, como inespecífico ‘direito de todos’, especialização do direito de petição. Esta, a ‘ação’, é necessariamente concreta, veiculadora de uma determinada pretensão ou ‘razão’, inconcebível sem o liame com determinada relação jurídico-material afirmada” (FABRÍCIO, 2011, 14).
O que diferencia o direito de ação processual do direito de petição, este entendido como um amplo direito de movimentar a máquina judiciária, são as condições da ação. Estas referem-se tão somente à ação exercida, nada tendo haver com o direito público subjetivo de ação que sempre vai existir independentemente da presença de tais condições.
As condições da ação são requisitos exigidos pelo legislador processual, com observância dos princípios constitucionais, sem os quais a prestação jurisdicional não se completa com a sentença de mérito. A constitucionalidade das condições da ação, ou mesmo a sua necessidade “como filtro para evitar pretensões ilegítimas e absurdas” (ABELHA, 2016, 5.3), foi destacada por José Roberto dos Santos Bedaque:
Admitir as condições da ação não implica aceitar limitações à garantia constitucional, que é incondicionada. O Supremo Tribunal Federal já firmou entendimento sobre a constitucionalidade das condições da ação (RE 631.240-MG, rel. Min. Roberto Barroso, DJe 10.11.2014), exigências feitas pela técnica processual para tornar possível o julgamento do mérito. Sem elas o processo será inútil, pois, por problemas relacionados ao próprio direito material deduzido, a solução pleiteada revela-se inadmissível de plano (BEDAQUE, 2016, art. 485).
Em conjunto com os pressupostos processuais, as condições da ação constituem os pressupostos de admissibilidade da tutela jurisdicional. Sem estes requisitos não se pode decidir sobre a crise de direito material.
No dizer de José Roberto dos Santos Bedaque, “os requisitos de admissibilidade do julgamento de mérito constituem exigências legais destinadas à proteção de determinados valores inerentes às partes e à jurisdição, visando a possibilitar que o processo seja efetivo instrumento de acesso à ordem jurídica ou, em outras palavras, que ele represente método équo e justo de solução de controvérsias” (BEDAQUE, 2016, art. 488).
Antes de se saber quem está com a razão, se ocorre ou não violação a direito, é preciso verificar se preexistem os pressupostos processuais e as condições da ação, requisitos mínimos para o prosseguimento da demanda sem os quais o processo deve ser extinto sem resolução do mérito. Tais exigências integram a ampla categoria das condições de admissibilidade do julgamento do mérito ou pressupostos genéricos de admissibilidade do julgamento do mérito como prefere Tereza Arruda Alvim.[5]
Essa divisão, contudo, não é comum na doutrina estrangeira:
No processo de conhecimento pode-se falar em requisitos de admissibilidade do julgamento do mérito, que no Brasil são classificados em duas categorias: os pressupostos processuais e as condições da ação. Essa divisão, como já visto, não é usual na doutrina alienígena, conforme se pode verificar do tratamento dado à matéria pelos alemães e italianos, por exemplo (BEDAQUE, 2007, p. 176).
Por aqui Cândido Rangel Dinamarco, em consagrada obra, desenvolveu um capítulo inteiro dedicado aos pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito, fazendo distinção entre os pressupostos processuais e as condições da ação:
Como em todo processo, os pressupostos para o provimento sobre o mérito, que no processo ou fase de conhecimento é um ‘julgamento’, incluem requisitos relacionados com o hipotético direito a obtê-lo (condições da ação), com a iniciativa de parte (demanda), com a capacidade e personalidade dos litigantes, com a regularidade de todo o processo e do procedimento etc. Todos eles situam-se no patamar das ‘preliminares’ ao julgamento do mérito e a ausência de um deles, um só que seja, impede que este seja proferido. Impede-o determinando a extinção do processo ou impede-o retardando esse julgamento mediante a exigência de providências corretivas. Seguindo uma linha metodológica tradicional no direito brasileiro, o Código de Processo Civil agrupa os pressupostos de admissibilidade em quatro grandes categorias, que são (a) os ‘pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo’, (b) as ‘condições da ação’, (c) os ‘requisitos de regularidade’ do processo mesmo, em sua concreta realização e (d) a inexistência de certas circunstâncias externas, qualificadas como ‘pressupostos negativos’ (litispendência, coisa julgada etc.) (DINAMARCO, 2017a, p. 150).
Aliás, a doutrina é quase unânime em fazer a distinção entre esses “elementos básicos e centrais da ordem pública processual” (APRIGLIANO, 2011, p. 75), pois tecnicamente são inconfundíveis conforme destaca Donaldo Armelin:
Condições de admissibilidade da ação e pressupostos processuais constituem sempre matéria preliminar ao exame de mérito. Integram aquela esfera do que concerne à admissibilidade do pedido, que, como acentua Sauer, corresponde à matéria genérica que antecede este no plano processual. Todavia embora inseridos todos no plano da admissibilidade, condições de admissibilidade da ação e pressupostos processuais não se confundem, dizendo as primeiras respeito ao exercício regular da ação, considerada como um direito a um pronunciamento do mérito ou como direito a uma decisão favorável, e os segundos à estrutura da relação processual gerada pelo exercício daquele direito. A ação, como direito totalmente abstrato, só depende da vontade do autor para seu exercício. Enquanto as condições da ação concernem à pertinência e validade do exercício daquele direito, os pressupostos processuais atinem aos sujeitos do processo, tais como o aspecto formal da inicial, a citação e outros requisitos gerais ou especiais atinentes à relação jurídico-processual. Assim, sob esse prisma de pertinência, são aquelas e estes suficientemente diversos e inconfundíveis (ARMELIN, 1979, p. 41).
A verdade é que, mesmo sendo requisitos necessários a um provimento de mérito, os pressupostos processuais e as condições da ação, por pertencerem a institutos diversos da teoria geral do processo, não podem merecer o mesmo tratamento sob pena de confusão entre os fenômenos da ação e do processo.
O fato de não haverem os termos “condições da ação“ e “carência de ação” figurado no atual ordenamento processual, por si só, não leva à conclusão de que a legitimidade ad causam e o interesse processual possam ser tratados como pressupostos processuais.
Até porque, é inegável a distinção feita pelo art. 485, do CPC/2015, ao tratar das hipóteses em que o juiz não resolverá o mérito: a) quando verificar a ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo (inc. IV); b) quando verificar ausência de legitimidade ou de interesse processual (inc. VI).
Também, não se pode desconsiderar o argumento de que a legitimidade e o interesse de agir, por exigirem a análise da relação jurídica de direito substancial controvertida, dificilmente poderão ser encaixados no conceito clássico de pressupostos processuais, ainda que alguns pressupostos processuais possam apresentar vínculo com a pretensão, como é o caso da competência, pois a sua análise sempre vai ocorrer fora da perspectiva ligada à lide.
Deve ainda ser lembrado que o interesse e a legitimidade são tratados no art. 17, do Título Da Jurisdição e da Ação, do Livro Da Função Jurisdicional, do CPC/2015, a exemplo do estatuto revogado[6], o que leva a crer ter o código reservado a estes requisitos o mesmo tratamento dispensado pelo CPC/1973.
Por tudo isso, conclui-se inicialmente que não procedem as posições doutrinárias que não reconhecem a presença e a distinção das condições da ação dos pressupostos processuais, como pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito.
Agora é preciso saber se as condições da ação continuam a subsistir como categoria jurídica autônoma no atual ordenamento processual civil.
A vexata quaestio merece pronta resposta: as condições da ação foram mantidas como instrumento autônomo resultante de uma “construção teórica historicamente marcante no direito positivo brasileiro” (ALVIM, 2019, 4.2.2).
O vigente Código de Processo Civil não fala mais nas condições da ação, como falava o CPC/1973 ao elencar as hipóteses (art. 267, inc. VI) de extinção do processo sem resolução de mérito. Mas isso não quer dizer que a categoria tenha sido “banida do processo civil brasileiro ou de sua ciência” como esclarece Cândido Rangel Dinamarco:
Com ou sem uma especificação na lei, ao estudioso do processo é imperioso fazer esse enquadramento sistemático, dado que a categoria das “condições da ação” se insere a fundo no quadro dos pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito e a própria lei continua destinando à legitimidade e ao interesse uma disciplina comum. Essa é uma postura inerente à cultura processualística brasileira desde há muitas décadas, herdada de Chiovenda e cultivada por todos neste país. Suprimir no plano conceitual e científico a categoria das condições da ação significaria prestar meia adesão à orientação seguida pela doutrina alemã, sem adequar a esta toda a disciplina dos pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito (DINAMARCO, 2017b, pp. 353/354).
Na realidade, pode-se dizer que, exceto pela ausência das expressões “condições da ação” e “carência de ação”, o CPC/2015 “traz quase nada de novidade a respeito do assunto” (BUENO, 2018, cap. 4, 3.2). Mesmo o abandono da possibilidade jurídica, longe de afastar o código atual da doutrina de Liebman, acabou por confirmar a adoção da teoria eclética da ação pelo legislador, sabido que na 3ª edição do seu Manuale o mestre milanês passou a integrar o terceiro requisito da ação no interesse processual.
O raciocínio ganha força diante da redação do art. 485, inc. VI, do CPC/2015, “que corresponde em tudo e por tudo, inclusive na sua ‘textualidade’, ao inciso VI do art. 267 do CPC de 1973” (BUENO, 2018, cap. 4, 3.2).
Além do que, por ter o código se valido “das subcategorias ‘legitimidade’ e ‘interesse de agir’, mantendo ademais a mesma estrutura e dinâmica destes institutos,” parece incontestável que “o próprio conceito e a classificação da legitimidade e do interesse permanecem os mesmos no sistema atual”(MONNERAT, 2019, 8.6).
Até pode ser que do ponto de vista prático não se veja “maior relevância em distinguir os ‘pressupostos processuais’ das ‘condições da ação’, chamando-os todos de ‘pressupostos de admissibilidade da tutela jurisdicional.’” Mas tal “não significa dizer que o CPC/2105 aboliu as condições da ação. A aceitação (ou não) da autonomia dessa categoria é eminentemente uma questão de teoria jurídica” (WAMBIER; TALAMINI, 2016, 10.3).
Mas ainda que haja uma tendência, advinda da doutrina alemã, de enquadramento das condições da ação e dos pressupostos processuais numa única categoria, “é preciso examinar esta concepção de forma mais ampla. Isto porque a doutrina alemã mais moderna, de um modo geral, não faz qualquer alusão à ação como instituto fundamental autônomo do direito processual.” Nessa situação, “se a ação não é tratada como um instituto autônomo, mas como mero pressuposto de existência do processo, então não haveria mesmo qualquer razão para distinguir-se as ‘condições da ação’ dos pressupostos processuais de validade“ (CÂMARA, 2011).
Nesta quadra, mesmo sabendo-se que o tema há tempos vem sendo objeto de veemente debate na doutrina, acredita-se ter sido demonstrada a escolha metodológica adotada pelo CPC/2015, que optou por manter a concepção sustentada por Liebman.
3.O MÉTODO DA ASSERÇÃO E A DOUTRINA DE ENRICO TULLIO LIEBMAN
Inicialmente é preciso dizer que a teoria eclética de Liebman e a teoria da asserção não se excluem.
A teoria da asserção, por versar sobre as condições da ação não deixa de ser eclética, somente dela se distanciando pelo momento e método de aferição dos requisitos de admissibilidade da ação, posto que pela teoria della prospettazione, diferentemente da teoria de Liebman, o processo poderá ser extinto com ou sem resolução do mérito tudo a depender do grau de cognição das condições da ação.
Na doutrina é grande a divergência quanto ao pensamento de Liebman sobre o momento de aferição das condições da ação: se no plano hipotético (in statu assertionis) ou após a realização da instrução.
Diz Cândido Rangel Dinamarco não lhe constar “que haja Liebman manifestado por escrito qualquer opinião a favor ou contra essa teoria” – a da asserção, dando o seu depoimento “de haver ouvido dele próprio uma palavra de repúdio a ela, dizendo que é inerente às teorias concretas da ação, francamente repudiadas na doutrina moderna” (DINAMARCO, 2011, 9).
Em sentido contrário é Machado Guimarães, ao afirmar ter Liebman aderido expressamente à teoria da asserção:
O Prof. LIEBMAN, em memorável conferência pronunciada em 29 de setembro de 1949, a cujas notas taquigráficas temos recorrido mais de uma vez, ensina que “todo problema, quer de interêsse processual, quer de legitimação ad causam, deve ser proposto e resolvido admitindo-se, provisoriamente e em via hipotética, que as afirmações do autor sejam verdadeiras; só nessa base é que se pode discutir e resolver a questão pura da legitimação ou do interesse. Quer isto dizer que, se da contestação do réu surge a dúvida sôbre a veracidade das afirmações feitas pelo autor e é necessário fazer-se uma instrução, já não há mais um problema de legitimação ou de interêsse, já é um problema de mérito” (GUIMARÃES, 1969, pp. 102/103).
Fato é que, embora da leitura do seu Manuale di diritto processuale civile possa ser intuído que Liebman adotava a teoria della prospettazione[7], não se sabe ao certo se ele coadunava ou não com o método da asserção, especialmente por não ter se manifestado expressamente sobre a sua adesão.
A partir do CPC/1973 a doutrina passou a questionar os limites entre o exame das condições da ação e o mérito.
Para a teoria eclética da ação a análise das condições da ação acontece à vista do caso concreto, pouco importando a necessidade de se recorrer ou não a elementos probatórios. Para Liebman nem tudo que resulta da atividade probatória pertence ao mérito, pois para ele as condições da ação, mesmo exigindo a produção de prova, não perdem a sua natureza. Não obstante a necessidade de instrução do feito para que seja possível analisar a carência de ação, segundo o professor, ainda assim não terá havido qualquer pronunciamento de mérito, restando intocada a relação jurídica material.
Para a teoria da asserção, as condições da ação devem ser aferidas diante da hipótese afirmada pelo autor na petição inicial, em juízo prelibatório. Sempre que haja a necessidade de uma análise aprofundada dessas alegações (baseada na contestação ou nas provas produzidas), terá havido incursão sobre o mérito da causa[8]. Noutras palavras, não será sentença terminativa a sentença prolatada à luz dos elementos trazidos na inicial, na contestação e nas provas produzidas, pois verdadeiramente trata-se de uma decisão de mérito. O método representa uma concepção doutrinária que veio amenizar problemas práticos: as dificuldades que normalmente se apresentam na separação das “antigamente chamadas ’condições da ação’ do mérito da causa“ (DIDIER JR., 2016, 2).
A teoria della prospettazione propugna o exame das condições da ação no plano da asserção do autor, a partir, e tão somente, segundo as suas afirmações. Não se trata de um juízo de cognição sumária que permite reexame após a cognição exauriente. O juízo definitivo sobre a existência das condições da ação, para a teoria, ocorre exclusivamente no juízo de admissibilidade, tudo o mais será considerado decisão de mérito (DIDIER JR., 2016, 2).
Ao aplicar a teoria da asserção, ensina Alexandre Freitas Câmara, “deve o juiz raciocinar admitindo, provisoriamente, e por hipótese, que todas as afirmações do autor são verdadeiras, para que se possa verificar se estão presentes as condições da ação” (CÂMARA, 2014, p. 154). Conforme João Batista Lopes: ao magistrado incumbe “examinar as condições da ação no plano meramente hipotético, como se respondesse à pergunta: ’admitindo-se, por hipótese, a veracidade das alegações da inicial, elas se referem às partes, ou não?’“ (LOPES, 2009b). “O que importa é a afirmação do autor e não a correspondência entre a afirmação e a realidade, que já é problema de mérito“ (MARINONI; MITIDIERO, 2016, 3.10).
Mas na visão de Leonardo Greco a teoria da asserção comporta temperamento, pois não se pode outorgar ao autor o direito à jurisdição por fatos completamente desprendidos da realidade, resultantes simplesmente da sua palavra. É o defeito que tem sido chamado de autolegitimação, critica o autor:
tal faculdade favorece o abuso do direito de demandar, o espírito de aventura, ou seja, a instauração das chamadas lides temerárias, porque aquele que tem um inimigo pode afirmar-se titular de um direito contra ele apenas com o intuito de prejudicá-lo, de molestá-lo no pleno gozo dos seus direitos.
Esse problema ganha ainda mais relevo na sociedade moderna, que, a despeito da importãncia conferida aos direitos humanos, é marcada pela exacerbação das relações de força, das relações de dominação e poder.
Então, esse é um problema real gerado pela adoção da teoria da asserção, na medida em que é extremamente liberal e facilitadora do ingresso em juízo, mesmo para o litigante temerário ou desonesto. Para ter direito à prestação jurisdicional, basta que o autor se afirme titular de um direito. Daí se sustentar que a teoria da asserção escancara as portas da justiça (GRECO, 2015, 9.4).
Para Leonardo Greco, a fim de evitar-se a autolegitimação, não haveria a necessidade da criação de uma nova condição da ação. Bastaria que o autor apresentasse uma hipótese consistente, a evidenciar a legitimidade e o interesse em recorrer à jurisdição. “Essa necessidade pressupõe uma hipótese verossímil, viável e minimamente fundada em fatos e provas” (GRECO, 2015, 9.4).
De qualquer modo, a visão do fenômeno das condições da ação sob o enfoque assertista “amplia a possibilidade de o processo cognitivo terminar com sentença de mérito, afastando o grande número de falsas extinções por carência, que tantos problemas têm causado ao sistema“ (BEDAQUE, 2007, p. 254).
5.A VALIDADE DA TEORIA DA ASSERÇÃO NO CPC/2015
Antes de tudo é preciso dizer que a verificação das condições da ação in statu assertionis é propriamente um método investigativo e não uma nova teoria. Não se trata, salienta- se, de uma reformulação de antigos conceitos e velhos princípios. A metodologia assertista é apenas uma técnica para se perscrutar a existência das condições da ação. O não emprego desse método ou técnica importará na confusão entre as condições da ação e o mérito, até porque com o aprofundamento da cognição os institutos tornam-se ontologicamente idênticos. “A teoria da asserção ou prospettazione foi concebida para que se pudesse distinguir as condições da ação do mérito, minimizando as críticas desferidas contra a teoria eclética de Liebman“ (CUNHA, 2011).
A principal característica da teoria da asserção (expressão consagrada na doutrina) é “a limitação cognitiva às afirmações trazidas pelo autor na petição inicial que, tomadas hipoteticamente por verdade, são utilizadas pelo magistrado para, uma vez comparadas ao esquema abstrato previsto na lei, admitir uma mínima vinculação e razoabilidade da ação à luz do direito material“ (KLIPPEL, 2005, p. 114).
Com a adoção pelo nosso sistema processual (tanto o CPC/1973 como o CPC/2015) da concepção da ação como um direito abstrato (ainda que sujeita a requisitos), não é razoável sustentar que as condições da ação dependam para a sua verificação da análise da relação jurídico-substancial (assim pensavam os concretista[9]). A teoria da asserção é o único método que permite a aferição das condições da ação sem violar o postulado abstratista da teoria eclética de Liebman[10].
Por isso não se está a negar a teoria eclética da ação, abraçada pela legislação processual brasileira. Muito pelo contrário, com a adoção da técnica da asserção busca-se o seu aperfeiçoamento.
Isso porque é indubitável a diferença ontológica entre as condições da ação e as questões de mérito, pois são fenômenos completamente distintos. As condições da ação são encontradas na petição inicial (mediante o exame sumário do interesse juridicamente protegido), enquanto o mérito somente é encontrado após o exame exauriente do direito material controvertido. Embora o assunto não seja obviamente tão simples, especialmente quando envolve questão de direito, como bem adverte José Roberto dos Santos Bedaque[11], as condições da ação e o mérito são categorias processuais que produzem efeitos drasticamente diversos, daí advindo a necessidade de um método que estabeleça apropriadamente as suas divisas.
A teoria eclética é manifestamente instrumentalista. Liebman, comenta Cândido Rangel Dinamarco, associa a ação ao benefício que ela pode trazer a determinada pessoa. “Os laços dessa estreita instrumentalidade são as condições da ação” (DINAMARCO, 2002, p. 389).
Nesse sentido, sob o aspecto instrumental, a verificação da ação em estado de asserção evita o grave problema do concretismo (o prologamento desnecessário da causa), abreviando o processo no seu exame prima facie. “Essa, a propósito, é a circunstância essencial para que o provimento seja terminativo: sua prolação ocorre sem que seja examinada a relação jurídica descrita pelo autor na inicial e sobre a qual se referem a causa de pedir e o pedido” (SILVA, 2019, 2.3.2).
Verdade seja dita, essa é a função pragmática das condições da ação, que se conforma em tudo com o princípio da primazia do mérito consagrado no CPC/2015[12].
Cumpre enfatizar que a Constituição, além de garantir ao demandante o acesso à jurisdição, assegura também ao demandado a eficácia concreta do seu direito contra lides temerárias e o abuso do direito de demandar. Por força do princípio constitucional da efetividade do processo, é necessário fazer com que as condições da ação cumpram a sua autêntica função: entregar desde logo ao demandado o direito de não ser submetido a processo injusto. Paralelamente, o método da asserção atende também na sua plenitude o decantado princípio da duração razoável do processo.
Em suma, a teoria da asserção é a importante consagração de norma fundamental do processo, o art. 4º do CPC/2015, na medida em que assegura ao processo civil a aplicação dos princípios da duração razoável do processo, da preferência pela solução integral do mérito e da efetividade do processo.
Por outra vertente, os dispositivos do CPC/2015, definitivamente, não são incompatíveis com o método da asserção. Diz-se isso com segurança, porquanto em nenhum momento o estatuto processual vigente dá a entender que a legitimidade e o interesse processual não possam povoar o objeto material do processo (em caso de cognição profunda), salvo nos arts. 337, inc. XI e 485, inc. VI.
Mas referidos preceitos, numa interpretação conforme às normas fundamentais do processo (acima citadas), não chegam a impressionar. Quando o art. 485, inc. VI, determina que o juiz não resolverá o mérito quando verificar a ausência de legitimidade ou de interesse processual, não está a dizer, pensando bem, que o juiz não poderá extinguir o processo, com resolução de mérito, quando estiver diante das condições da ação numa análise medular fulcrada na exordial, na contestação e nas eventuais provas produzidas no processo. O mesmo raciocínio vale para o art. 337, inc. XI.
Nesse contexto não deve impressionar, também, o momento (fase do processo) da aplicação da técnica da asserção: na hipótese do art. 337, inc. XI, por ocasião da contestação; na hipótese do art. 485, inc. VI, por ocasião da sentença. Por um motivo simples. A metodologia assertista não estabelece um limite temporal para a análise das condições de ação em estado de asserção. Lógico que a ideia é que o controle de admissibilidade aconteça de pronto, com o recebimento da inicial. Mas tal nem sempre acontece.
Imagine-se que no juízo de prelibação, por falta de atenção ou mesmo de tempo, o juiz não tenha constatado a ilegitimidade do autor para propor a ação. Mas com a apresentação da resposta, já com mais calma e tempo, o juiz verifica a partir das asserções do autor que ele não é parte legitima. Nessa situação, é induvidoso que o juiz poderá extinguir o processo sem resolução de mérito, mesmo após a apresentação da resposta. É que na hipótese não terá havido o aprofundamento da cognição, até porque a ilegitimidade estará sendo reconhecida exclusivamente à vista das afirmações da petição inicial. Note-se bem: para a teoria da asserção não importa o momento da análise das condições da ação; o que importa mesmo é que as condições da ação sejam aferidas diante das considerações afirmadas pelo autor na petição inicial, em qualquer fase do processo.
Em remate, ainda que muito mais possa ser trazido em prol da teoria da asserção, termina-se chamando a atenção para a redação do art. 330, incs. II e III, do CPC/2015, que por tudo cabe perfeitamente na técnica assertista, ao decretar que a petição inicial será indeferida (por certo diante da asserção do autor) quando a parte for manifestamente ilegítima ou o autor carecer de interesse processual.
SÍNTESE CONCLUSIVA
Ninguém pode afirmar categoricamente que a teoria eclética da ação, adotada pelo CPC/2015, é mesmo refratária à teoria da asserção, sabido que é francamente duvidosa a posição de Liebman sobre o assunto. Mesmo que o processualista italiano não tenha reconhecido expressamente a validade da técnica, ainda assim, numa interpretação conforme às normas fundamentais do processo, não se verifica conflito algum entre a metodologia assertista e os preceitos do CPC/2015.
Somente pelo método da asserção, em que o exame das condições da ação acontece in statu assertionis, será possível identificar as condições da ação sem que haja confusão entre o juízo de admissibilidade e o mérito da ação.
Salve a teoria della prospettazione!
REFERÊNCIAS
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[1] A exemplo de Susana Henriques da Costa: “Não se pode negar que o legislador adotou a teoria de Liebman (arts. 267, VI e 301, X, CPC), determinando que a extinção do processo por carência de ação não julga o mérito. Mas também não é a melhor posição aceitar o positivado, sem questioná-lo. De fato, diante de todo o exposto, conclui-se que o legislador cometeu um erro ao diferenciar as condições da ação das questões de mérito. Diferenciou fenômenos que, ontologicamente, são os mesmos. Essa diferenciação leva a sérias conseqüências de ordem prática e não pode ser aceita, porque não corresponde à realidade das coisas“ (COSTA, 2005, pp. 181/182). E também de Cassio Scarpinella Bueno: “O paradoxal é que o CPC de 2015, a despeito de abolir a referida expressão, continua a condicionar a ação. É certo que o faz com uma “condição” a menos – o CPC de 2015 aboliu a chamada “possibilidade jurídica do pedido” (por que ela seria, ontologicamente, questão de mérito, esquecendo-se que os dois outros referenciais também só são compreensíveis à luz das afirmações que desde a petição inicial se faz acerca do mérito). . . ” (BUENO, 2019, 3).
[2] Die Lehre von den Proceβeinreden und die Proceβvoraussetzungen, Gieβen, 1868, traduzida para o espanhol sob o título La teoría de las excepciones procesales y los presupuestos procesales. Buenos Aires: EJEA, 1964.
[3] Em sua obra Handbuch des deutschen Civilprozessrechts. Leipzig: Duncker & Humblot, 1885.
[4] Também no direito de petição previsto no art. 5º, XXXIV, a, da CF/1988.
[5] “Em meu entender, nulidades absolutas no processo estão ligadas aos ‘pressupostos genéricos de admissibilidade do julgamento do mérito.’ Esta categoria genérica abrange, no direito brasileiro, pressupostos processuais (positivos e negativos) e condições da ação. Havendo defeitos ligados a este plano, não poderá ser apreciado o mérito” (ALVIM, 2018).
[6] Que também tratava sob o Título Da Jurisdição e da Ação o interesse e a legitimidade (art. 3.º).
[7] No mesmo sentido Rodrigo Klippel: “Ao manusearmos a obra, o que podemos perceber é que, longe de se manifestar contrário aos postulados da análise in status assertionis, o mestre de Milão abre espaço para esse entendimento. Comentando sobre o interesse de agir, diz que ‘seria, de fato, inútil examinar a demanda para conceder (ou negar) o provimento requerido, na hipótese em que na situação de fato que vem narrada não se vislumbre hipoteticamente uma lesão ao direito ou interesse que se alega ter em face da outra parte’ (tradução livre). Fala LIEBMAN que faltaria interesse se pela situação de fato que vem afirmada não se puder hipoteticamente concluir pela lesão a direito ou interesse. Mais à frente, conclui que o interesse se verifica pela relação entre a situação antijurídica ‘denunciada’, ou seja, afirmada e o pedido que se faz para remediá-la mediante a aplicação do direito. Comentando agora sobre a legitimidade - e ligando-a ao requisito do interesse, acrescenta que ‘já se disse que o interesse de agir é dirigido a remover a lesão a um interesse substancial que se alega protegido pelo direito; esse (o interesse substancial) pode ser defendido somente por aquele que se afirma titular do interesse substancial do qual pede a tutela em juízo’ (tradução livre). Pontua, portanto, que só pode existir interesse para aquele que se “afirma” titular do direito” (KLIPPEL, 2005, pp. 77/78).
[8] Nesse cenário, não é demais dizer que a ausência das condições da ação julgadas por meio de um aprofundamento investigatório levará à improcedência do pedido, mas, ao contrário, se forem verificadas, nem sempre haverá a procedência do pedido.
[9] “Foi entre os alemães que surgiram as teorias concretistas, todas elas ligando a existência da ação à do direito subjetivo (Von Bülow, Adolf Wach e outros)” (DINAMARCO, 2009, p. 329).
[10] Por sinal, André Zulmar vê a teoria della prospettazione como “variação importante da teoria de Liebman” (DUARTE, 2018, 1).
[11] Em sua obra Efetividade do Processo e Técnica Processual (BEDAQUE, 2007, p. 261).
[12] No mesmo sentido Zulmar Duarte: “Aliás, essa impostação das condições da ação, consentida pela teoria da asserção, vai ao encontro da preponderância pelo mérito estabelecida pelo Código, pelo que há de se preferir a sentença com resolução de mérito em detrimento do provimento meramente terminativo (arts. 4º , 6º, 139, IX, 317, 321, 352, 932, parágrafo único, 938, § 1.0 , 1.007, 1.013, 1.029, § 3º , 1.032 e 1.033)” (OLIVEIRA JR.,
2015, 8).
Mestrando em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba - FDC. Juiz de Direito do Estado de Mato Grosso do Sul
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PUCCI, Alexandre Branco. A validade da teoria da asserção como método de investigação das condições da ação: In statu assertionis no CPC/2015 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 set 2022, 04:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/59189/a-validade-da-teoria-da-assero-como-mtodo-de-investigao-das-condies-da-ao-in-statu-assertionis-no-cpc-2015. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: ELISA CARDOSO BATISTA
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
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