RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar de que maneira o princípio da liberdade é respeitado, principalmente, dentro das relações familiares no Direito Brasileiro, com principal enfoque na Lei do Planejamento Familiar, a fim de verificar se os seus dispositivos legais respeitam a liberdade individual que está prevista na Constituição Federal de 1988.
ABSTRACT: This article aims to analyze in which way the principle of freedom is respected, mainly within family relationships according to Brazilian Law, focusing on the Family Planning Law, in order to verify if its legal devices respect individual freedom, expected in the Federal Constitution of 1988.
1 INTRODUÇÃO
O Direito de Família encontra-se em constante evolução. A cada momento, novas formas de família, novas leis e adaptações surgem com o intuito de proteger aqueles mais vulneráveis.
Nos dias atuais, verifica-se uma grande mudança no conceito de família e nas próprias relações interpessoais que a compõem. O que antes era considerado uma verdade universal, hoje não é mais e, por isso, a liberdade se faz tão importante.
Pode-se considerar que o princípio da liberdade nas relações familiares é um grito de democracia, uma vez que garante autonomia e igualdade entre seus membros.
O respeito aos princípios do Direito de Família é de grande importância, a fim de valorizar e preservar toda a evolução que foi construída até o momento.
Caso houvesse um questionamento sobre quais os tipos de liberdades dentro do âmbito familiar há cinquenta anos, a maioria das pessoas informaria que eram muito poucas, pois todas as famílias eram iguais e deviam seguir as regras determinadas pelo Estado, ou seja, não havia uma forma de lidar com os diferentes, afastando assim, qualquer possibilidade de análise subjetiva do caso concreto.
Após observância do princípio da liberdade em seu sentido mais amplo, há a necessidade de se analisar a Lei n° 9.263/96 que trata sobre o Planejamento Familiar e regula o parágrafo 7º do artigo 226 da Constituição Federal.
A partir do momento que existe uma determinada lei que regula o planejamento familiar, cabe questionar se os dispositivos presentes preservam os princípios constitucionais como a liberdade, além de outros.
O objetivo do presente artigo, portanto, é demonstrar como a liberdade deve caminhar juntamente com a evolução do Direito de Família e demonstrar se a lei do planejamento familiar respeita e protege a autonomia dos membros de uma relação familiar.
2 O QUE É A LIBERDADE?
De acordo com o Dicionário Michaelis, a palavra liberdade pode significar: “Nível de total e legítima autonomia que representa o ideal maior de um cidadão, de um povo ou de um país” ou “Poder de agir livremente, dentro de uma sociedade organizada, de acordo com os limites impostos pela lei”.
Este segundo conceito se destaca, pois verifica-se que a liberdade não é absoluta. O fato de poder agir livremente só é possível se ocorrer de acordo com os limites impostos pela lei, ou seja, até a autonomia conferida a alguém tem limitações.
Tais limites demonstram que a liberdade é o ponto de partida para qualquer decisão e atitude que se possa realizar, entretanto, dentro de um sistema organizado que delimita o que é possível e o que não ultrapassa a barreira do aceitável.
É necessário separar o conceito de liberdade segundo a Filosofia e sua aplicação no meio jurídico, pois pode se verificar na prática como seu significado é diverso, dependendo do campo de investigação.
2.1 A LIBERDADE SEGUNDO A FILOSOFIA
Até os dias atuais, a liberdade é uma das principais questões que inquieta o ser humano. Tal inquietação é justificável no sentido que se percebe o quão o conceito de liberdade é paradoxal.
Para uns, a verdade universal, e para outros, a subjetividade e análise cética de cada caso concreto. Com o objetivo de não cometer injustiças, o ideal e previsto deve ser a análise de cada caso, tendo em vista a impossibilidade de garantir a todos o mesmo direito, sem identificar a especificidade da causa.
De acordo com Kant, é possível compreender a autonomia da vontade como uma liberdade, uma vez que é a propriedade que implica a não escolha, de modo que as máximas sejam incluídas simultaneamente como lei universal. Destacar que através da simples análise dos conceitos morais, pode-se calcular que “o princípio da autonomia é o único princípio moral”
Para o filósofo, o conceito de liberdade está intrinsecamente ligado à autonomia da vontade, um conceito só pode ser pensado se o outro estiver presente, pelo simples fato do ser humano ter aversão a agir contra sua própria vontade, pois, de certa forma, se tal fato fosse uma imposição, não estaria preservando, assim, sua liberdade.
Não obstante, Kant acredita que o único modo para a análise do conceito de liberdade ocorrer de maneira satisfativa, é por meio da reflexão da moral.
Por outro lado, apesar de Platão não ter se dedicado a escrever uma obra exclusivamente sobre a liberdade em si, em seus livros é possível entender seu pensamento sobre o conceito.
De acordo com Platão, a liberdade individual indicava “que a cada um é dada de dispor de todos os seus bens ou de adquirir os dos outros, e, depois, de tudo se desfazer, mas cabendo às leis (ao Estado) regular as liberdades.”
Em uma breve análise sobre tal conclusão, é possível verificar que Platão também não sustentava que a liberdade era absoluta e que sim, cabia ao Estado estabelecer o limite à essas liberdades.
Já Aristóteles, associa a liberdade à ação moral, que sempre visa a alcançar o bem maior, advindo de uma ação voluntária.
De acordo com Silva:
A liberdade aristotélica surge, então, como a atividade racional que, pelo hábito, busca a virtude (o bem), visando dar uma finalidade para a existência. A realização da liberdade (dar uma finalidade para a existência) é a própria felicidade (sumo bem), proporcionada e garantida pela política.
Em Aristóteles, considerando a premissa de que a ética e a política constituem duas dimensões de um mesmo fenômeno e que ambas visam um mesmo fim, é possível afirmar que a liberdade conduz à alteridade, pois ninguém, na prática, exerce, sozinho, a liberdade. Destarte, o exercício da liberdade pressupõe o outro e, na intersubjetividade do eu com o outro, se encontra o nós, a coletividade, a sociedade, a política. E é na polis, locus da essência do animal racional e político (zoon politicon), que também reside a felicidade e com ela, a liberdade encontra sua razão de ser (SILVA, 2019, p. 148-149)
Para Aristóteles, a ação moral que visa alcançar um bem maior, busca a virtude. E o objetivo da liberdade é dar uma finalidade para a existência e, consequentemente, ao realizar todo este percurso, o cidadão chegar a um lugar de plena felicidade.
3 CONCEITO E EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA
A família é um tipo de instituição que existe desde os primórdios. De acordo com Rousseau (1762, p. 25) “a mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a da família (...) é a família o primeiro modelo das sociedades políticas”.
O ser humano aprende a conviver em sociedade a partir de suas vivências familiares. É dentro de uma relação familiar que o indivíduo adquire sua liberdade e compreende seus limites.
Até se chegar aos dias atuais, a família sofreu diversas alterações a fim de acompanhar a evolução da sociedade.
Essa evolução tem influência direta na forma como elas se organizam. O conceito familiar que existia no século passado, não é mais o mesmo dos tempos atuais.
De acordo com Carlos Roberto Gonçalves:
A família é uma realidade sociológica e constitui a base do Estado, o núcleo fundamental em que repousa toda a organização social. Em qualquer aspecto que é considerada, aparece a família como uma instituição necessária e sagrada, que vai merecer a mais ampla proteção do Estado. (GONÇALVES, 2011, p. 120)
A fim de comparar com o Direito brasileiro, no Direito Romano, a família era organizada baseada exclusivamente no princípio da autoridade. O pater famílias exercia sobre os filhos direito de vida e de morte (ius vitae AC necis). Podia desse modo, vendê-los, impor-lhe castigos e penas corporais e, até mesmo, tirar-lhes a vida. Naquela época, a família era, simultaneamente, uma unidade econômica, religiosa, política e jurisdicional.
Além disto, antigamente, havia a crença de que os princípios não deveriam ser usados como base de fundamentação para garantir direitos ou decidir casos; estes atuavam como uma fonte subsidiária integrativa do direito que era claramente positivista.
Os princípios somente eram aventados em casos nos quais existia lacuna na lei. Ou seja, apenas na inexistência de legislação a respeito de determinado tema, na impossibilidade de ser utilizada a analogia e na ausência de esclarecimentos sobre os costumes é que se recorria, em último caso, aos Princípios Gerais do Direito.
Este fato demonstra como o direito correspondia ao engessamento do conceito de família. Tal comportamento impedia a exata adequação dos termos para a realidade vivida.
De acordo com Rolf Madaleno:
Ao tempo do Código Civil de 1916 até o advento da Carta Política de 1988, a família brasileira era eminentemente matrimonializada, só existindo legal e socialmente quando oriunda do casamento válido e eficaz, sendo que qualquer outro arranjo familiar existente era socialmente marginalizado (...) A família matrimonializada, patriarcal, hierarquizada, heteroparental, biológica, institucional, vista como unidade de produção e de reprodução cedeu lugar para uma família pluralizada, democrática, igualitária, hetero ou homoparental, biológica ou socioafetiva, construída com base na afetividade e de caráter instrumental. (MADALENO, (2013, p. 32)
A partir do momento que a família inscrita na Constituição Federal de 1998 é a família-instrumento, funcionalizada por meio da promoção da personalidade de seus membros, deixando assim de existir a grande família, que passou a ser nuclear formada pela tríade pais e filhos (considera-se que a tríade pai, mãe e filho já não representa totalmente, tendo em vista o reconhecimento da multiparentalidade, bem como das uniões entre pessoas do mesmo sexo), os princípios ganharam seu devido destaque.
Estes princípios são responsáveis por ampliar seu próprio leque de pretensões juridicamente tuteladas, além de garantir que todas as pessoas sejam representadas nas codificações vigentes e decisões judiciais.
O artigo 226 da Constituição Federal dispõe em seu caput que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado, bem como em seus parágrafos que tratam sobre o casamento, a igualdade entre homem e mulher etc.
De acordo com Lourival Serejo:
Embora os alicerces básicos do Direito de Família estejam atrelados ao direito privado, em nosso ordenamento jurídico, a vocação publicística do Direito de Família está assentada em nossa Carta Maior, onde estão abrigados seus princípios e institutos norteadores, e firmada uma maior abrangência da tutela de proteção da família (art. 226: a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado). (SEREJO, 2004, p. 4)
Entretanto, cumpre-se ressaltar, que a entidade familiar deve ser entendida, atualmente, como grupo social fundado, essencialmente, em laços de afetividade, pois à outra conclusão não se pode chegar, sob análise do texto constitucional. Assim, afirma-se a importância do afeto para a compreensão da própria pessoa humana, integrando o seu “eu”, sendo fundamental compreender a possibilidade de que dele – afeto; decorram efeitos jurídicos diversos. Essa afetividade traduz-se, concretamente, no necessário e fundamental respeito às peculiaridades de cada um de seus membros, preservando a imprescindível dignidade de todos.
Por esta forma, percebe-se que a Constituição Federal logrou êxito ao identificar esta nova realidade. Formada por pessoas dotadas de anseios, necessidades e ideais que se alteram, significativamente, no transcorrer dos tempos, mas com um sentimento coletivo, a família deve ser compreendida como um ponto de referência comum na sociedade. Pode-se dizer que a Constituição promoveu verdadeira reconstrução da dogmática jurídica, estabelecendo como base a afirmação da cidadania como seu elemento propulsor.
Desse modo, a entidade familiar está vocacionada, com a ajuda de princípios, a promover a dignidade e a realização da personalidade de seus membros, integrando sentimentos, esperanças e valores, sendo alicerce primordial para o alcance da felicidade.
4 O PRINCÍPIO DA LIBERDADE NO DIREITO DE FAMÍLIA
O princípio da liberdade no ordenamento jurídico brasileiro é bastante citado no Código Civil e na Constituição Federal, como foi demonstrado no capítulo anterior.
O artigo 1.511 do Código Civil dispõe: “O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.”
A comunhão plena de vida significa um ponto de partida para que os partícipes da relação possam ter o seu pleno desenvolvimento pessoal sem ingerências externas.
Além disto, o princípio da liberdade diz respeito ao livre poder de escolha ou autonomia de constituição, realização e extinção de entidade familiar, sem imposição ou restrições externas de parentes, da sociedade ou do legislador; à livre aquisição e administração do patrimônio familiar; ao livre planejamento familiar; à livre definição dos modelos educacionais, dos valores culturais e religiosos; à livre definição dos modelos educacionais, dos valores culturais e religiosos; à livre formação dos filhos, desde que respeitadas suas dignidades como pessoas humanas; à liberdade de agir, assentada no respeito à integridade física, mental e moral.
De acordo com Maria Berenice Dias:
A liberdade floresceu na relação familiar e redimensionou o conteúdo da autoridade parental ao consagrar os laços de solidariedade entre pais e filho, bem como a igualdade entre os cônjuges no exercício conjunto do poder familiar voltada ao melhor interesse do filho. Em face do primado da liberdade, é assegurado o direito de constituir uma relação conjugal, união estável, bem como o direito de recompor novas estruturas de convívio. A possibilidade de alteração do regime de bens na vigência do casamento (CC 1.639, parágrafo 2º) sinala que a liberdade, cada vez mais, vem marcando as relações familiares. (DIAS, 2015, p. 36)
Entretanto, cria-se um questionamento? Até que ponto, de fato, as pessoas dentro de suas respectivas relações familiares são livres para decidirem da forma que quiserem suas questões internas? O Estado limita esta suposta liberdade existente nas relações?
A liberdade traz consequências positivas e negativas a todos. Muitas vezes, dentro de uma relação familiar, a dependência emocional entre as partes ultrapassa o aceitável e caracteriza subordinação, bem como prejuízos à própria liberdade. Cumpre destacar que esta decisão, frequentemente, surge entre os participantes da relação, inexistindo ingerência externa.
Por outro lado, na prática, percebe-se que o Estado apresenta como justificativa para a intromissão na relação familiar, a necessária fiscalização, o que se torna justificável em situações onde existam filhos, que podem ser vítimas de condutas inadequadas de seus genitores, que ultrapassam os limites, que ferem o princípio da paternidade responsável e, consequentemente, a dignidade humana da vítima, podendo ensejar consequências cíveis e até sanções criminais.
Contudo, há alguns limites na liberdade imposta pelo Estado que merecem maior discussão, como no caso da Lei do Planejamento Familiar – Lei n° 9.262/1996 que será melhor abordada no próximo capítulo.
4.1 UMA ANÁLISE DA LEI N° 9.262/1996 E A VIOLAÇÃO À LIBERDADE
Inicialmente, cumpre destacar que o artigo 226, § 7º da Constituição Federal dispõe:
Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. (BRASIL, 1988, não paginado)
De acordo com Canotilho e Vital Moreira:
O direito ao planejamento familiar é garantido em termos positivos e negativos. A dimensão positiva aponta para as dimensões prestacionais - informação, acesso aos métodos de planejamento, estruturas jurídicas e técnicas. A dimensão negativa traduz-se na garantia da liberdade individual, salientando-se sobretudo as capacidades cognitivas e a capacidade para a autodeterminação (CANOTILHO; VITAL MOREIRA, 2007, p. 858).
Marques e Lando (2020) afirmam que o planejamento familiar é um direito reprodutivo e entendê-lo como tal é de extrema importância para que ele se efetive verdadeiramente, de uma maneira consciente e autônoma. O planejamento familiar envolve o direito à informação, assistência especializada e acesso aos recursos que permitam a escolha livre e consciente de se ter ou não filhos, o seu número, a diferença de idade entre cada um e o método contraceptivo mais conveniente para os parceiros.
O planejamento familiar é livre decisão do casal e o Estado cumpre sua função de propiciar os recursos necessários para o exercício deste direito, portanto, verifica-se que há uma limitação constitucional imposta baseada nos princípios da dignidade humana e na paternidade responsável.
Além disto, cabe um destaque quanto a vedação a qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. Mais do que um enunciado, deve ser um preceito respeitado integralmente pelo Estado.
Em 1996, entretanto, houve a criação da Lei n° 9.262/96 que apresentava mais limites ao planejamento familiar disposto na Constituição Federal.
Cumpre destacar que a Constituição Federal foi promulgada em 1988 e a referida Lei em 1996, ou seja, oito anos depois. Um curto espaço de tempo para a imposição de limites.
Em seu primeiro artigo, a lei destaca que o planejamento familiar é direito de todo cidadão, portanto, repete o disposto na Constituição Federal. Mas até que ponto, de fato, o planejamento familiar é considerado um direito?
No segundo artigo é disposto:
Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal. (BRASIL, 1991, não paginado)
Ao elaborar tal artigo, percebe-se que a intenção do legislador foi unicamente a busca pela prole, eis que determinou que o planejamento familiar apenas garantisse direitos à limitação ou aumento da prole. E os casais que não podem ou não querem ter filhos? Estes não têm direito ao planejamento familiar?
O referido artigo afastou qualquer possibilidade de o planejamento familiar abarcar os casais que não desejam ou não querem ter filhos, ocasionando uma certa discriminação.
Apesar da Constituição Federal afirmar que planejar uma família é de livre decisão do casal, a lei do planejamento familiar, em seu artigo 10, impõe condições para que o método contraceptivo de maneira voluntária possa ocorrer.
Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações:
I - em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce;
II - risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos. (BRASIL, 1991, não paginado)
Cumpre destacar que a Lei 8.263/91 foi baseada no Código Civil de 1916, à época vigente no ordenamento jurídico brasileiro. Este código possuía normas que submetiam a mulher ao controle do marido, pois era estabelecido o pátrio poder.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, as demais leis deveriam se adaptar, tendo em vista a dinamicidade que existe, principalmente no Direito de Família, aproximando-as dos dias atuais.
Neste inciso I, somente é permitida a esterilização voluntária em casos em que os indivíduos possuem mais de 25 anos ou, pelo menos, com dois filhos vivos.
Este inciso escancara a incoerência entre o Código Civil de 2002 e a presente lei, pois conforme o artigo 5º, a menoridade civil cessa aos 18 anos completos. Após o atingimento da maioridade, o indivíduo está apto para decidir sobre todos os atos da vida civil. Então, por qual razão a esterilização voluntária só é permitida a partir dos 25 anos?
Verifica-se que a lei do Planejamento Familiar impõe uma série de obstáculos que impedem que os interessados exerçam sua liberdade individual.
O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) já se manifestou de forma contrária a tal determinação na referida lei.
De acordo com o art. 5º do Código Civil brasileiro, a menoridade extingue-se aos dezoito anos completos, quando a pessoa está habilitada a todos os atos da vida civil. Essa noção de capacidade revela-se em dois domínios distintos: o da titularidade e o do exercício pessoal e livre. Nessa lógica, parece de todo absurdo que uma legislação imponha uma idade superior à maioridade civil para a prática de um ato que, mais do que ser a prática de uma ação da vida civil, é um exercício de autodeterminação reprodutiva que se vincula à esfera pessoal e íntima dos indivíduos, sem causar quaisquer prejuízos a terceiros.
O indivíduo com 18 anos não é autorizado a realizar o devido procedimento de esterilização, mas é permitido a ele constituir família, conforme está disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Há a iminente necessidade de alteração destes dispositivos a fim de que aceitem e preservem a liberdade individual nestes casos.
Não obstante todas estas imposições, a esterilização voluntária só é permitida se o interessado tiver dois filhos vivos, o que demonstra um dever de procriação determinado pelo Estado, pois quem não possui filhos, está impedido de realizar o procedimento de esterelização.
Ainda, destaca-se que, no final do inciso I, está determinado que o aconselhamento multidisciplinar propiciado pelo Estado visa a desencorajar a esterilização precoce.
A partir do momento que o Estado impõe determinado comportamento a fim de garantir um resultado esperado – no caso, o aumento de prole – este está novamente desrespeitando a liberdade individual, constitucionalmente prevista no artigo 3º, inciso I da Constituição Federal.
Além deste princípio, o Estado viola os princípios da autonomia, igualdade e o próprio direito ao planejamento familiar.
Quanto ao inciso II do mesmo artigo, demonstra a permissão da esterilização voluntária em casos de risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, somente quando testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos.
Novamente, percebe-se uma imposição estatal ao fato de ser necessário um relatório escrito e assinado por dois médicos para testemunhar o risco à vida da mulher ou do feto. A lei deve prever afrouxamentos em caso de emergência e não obstar comportamentos que possam salvar a vida das partes envolvidas.
No parágrafo 1º está disposto:
É condição para que se realize a esterilização o registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado, após a informação a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes. (BRASIL, 1991, não paginado)
Este parágrafo destaca a necessidade de expressa manifestação de vontade em documento escrito e firmado com todas as devidas informações da cirurgia e os devidos riscos. De fato, é importante que a parte interessada na esterilização voluntária esteja ciente do que enfrentará, entretanto, para pessoas analfabetas ou com dificuldade de escrita, como deve se proceder?
A referida lei, ao invés de facilitar o acesso às pessoas necessitadas, cada vez, o obstaculiza perante a liberdade individual.
Já no parágrafo 2º está disposto: “É vedada a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores.”
Ao analisar-se o referido parágrafo, percebe-se que há a violação ao princípio da igualdade entre homem e mulher, tendo em vista que a mulher apresenta grande dificuldade na realização do procedimento, comparado ao homem. Não há qualquer justificativa apresentada para esta imposição de obstáculos de maneira exagerada.
O parágrafo 5º determina que: “Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges”.
Em uma rápida leitura deste parágrafo, é possível perceber as limitações que ele apresenta, como, novamente, a violação às liberdades individuais. A obrigação determinada pelo Estado de que a mulher deve se submeter à autorização formal do cônjuge para a realização da esterilização, caminha assim, de forma contrária ao exposto na Constituição Federal.
Para Maria Celina Bordin e Ana Carolina Brochado Teixeira este parágrafo traz uma interferência indevida do Estado:
Entretanto, a Lei 9. 263 /96, criada com o objetivo de regular o planejamento familiar, parece ter ido além do papel destinado ao Estado na circunstância. A lei tem o grave defeito da excessiva ingerência na vida pessoal, ao criar parâmetros para o exercício do direito planejamento familiar que em muito ultrapassam o papel ativo do Estado, como estabelecido pelo §7º do art. 226 da Constituição. Exemplo disto é a exigência de consentimento expresso do cônjuge para que haja esterilização do outro, caso se dê na constância do casamento, segundo dispõe o §5º do art. 10 da referida lei, em flagrante limitação ao direito de disposição do próprio corpo. (BORDIN; TEIXEIRA, 2013, p. 122)
Como forma de impedir que fragmentos inconstitucionais façam parte da referida lei e a fim de combatê-los, atualmente, tramita no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5097) que foi ajuizada pela ANADEP (Associação Nacional de Defensores Públicos).
A referida ação visa declarar como inconstitucional o parágrafo 5º, do artigo 10 da Lei n°9263/96. Em sua petição inicial está disposto:
Nesse sentido, toda mulher deve exercer o seu direito ao planejamento reprodutivo de forma consciente e livre de qualquer interferência, tanto do Estado como de qualquer outro indivíduo. A escolha sobre ter ou não ter filhos, ou sobre o número de filhos que terá, deve ser feita pela mulher, como titular do direito à liberdade de escolha e de disposição sobre o seu próprio corpo. (ANADEP, 2014, p. 14)
Prosseguem:
A exigência aqui trazida vai de encontro à liberdade de escolha e de disposição do próprio corpo, à autonomia privada e à dignidade humana (artigo 1º, III, e artigo 5º, caput, da Constituição Federal), bem como ao conteúdo do artigo 226, §7º da nossa Constituição. (ANADEP, 2014, p. 16)
Além desta Ação Direta de Inconstitucionalidade, mais recentemente, houve a propositura de outra, em 2018. Esta ADI 5911 foi ajuizada pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro) e busca a inconstitucionalidade parcial do inciso I do artigo 10 (quanto à idade superior a 25 anos ou existência de dois filhos vivos para poder realizar o procedimento) e total do parágrafo 5º do mesmo artigo da referida lei.
À época, o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, em seu parecer n° 271438/2020, ao se manifestar sobre a ADI 5911/DF afirmou:
Embora se vislumbre o propósito a envolver a previsão – fundada no eventual arrependimento que possa acorrer a pessoas mais jovens –, verifica-se que existe ingerência em decisão individual de pessoas plenamente capazes, presumindo-as incautas e, por isso, inaptas para decidir sobre a própria vida reprodutiva, tendo-se a substituição da vontade individual pela legal.
Nota-se direcionamento estatal relacionado à livre decisão de ter ou não ter filhos, impondo-se, de algum modo, visão que supõe mais adequado resguardar a potência de eventualmente tê-los no futuro.
Quanto à alegação de inconstitucionalidade do parágrafo 5º do artigo 10, o procurador assevera:
A perspectiva (legal) de consenso não deixa de ser uma maneira articulada de sujeitar as partes ao arbítrio de alguém, porque, se houver divergência de pensamento, incidirá a norma (ou seja, a deliberação do Estado), e então prevalecerá a posição do dissidente contra o que pense o sujeito que pretenda submeter-se ao procedimento, a despeito de envolver um aspecto da sua própria e individual personalidade. (BRASIL, 1991, não paginado)
Portanto, o Procurador Geral da República se manifestou de forma favorável à ação proposta, a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da expressão “e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos” do inciso I do art. 10 da Lei 9.263/1996, bem como da integralidade do § 5º do mesmo artigo.
Diante do exposto, verifica-se que já existem movimentos com o objetivo de declarar a inconstitucionalidade dos referidos dispositivos a fim de que se proíba a violação aos princípios da liberdade individual, isonomia, dignidade humana e interrompa a enorme ingerência do Estado sobre a vida do indivíduo, além da preservação do planejamento familiar de fato e da autonomia de cada pessoa.
Cumpre destacar ainda que o interesse estatal em desestimular a realização da esterilização não se justifica, eis que a conduta fere de forma evidente todos os princípios que devem ser assegurados a qualquer cidadão.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O planejamento familiar é defendido pelo Estado de fato desde a promulgação da Constituição Federal em 1988 e com o advento da lei n° 9.263/96 a intenção estatal foi ratificada a fim de formalizar um direito que existia há muito tempo.
Entretanto, os artigos da referida lei, ao invés de assegurarem que os princípios constitucionais fossem preservados, como: dignidade da pessoa humana, autonomia, liberdade, planejamento familiar e isonomia, impuseram uma série de condutas aos interessados no procedimento que, na verdade, mais impede do que permite a realização desse direito.
A lei é posterior à promulgação da Constituição Federal de 1988, entretanto, não acompanha alguns posicionamentos garantistas, o que faz com que ela seja tida como ultrapassada, tendo em vista que diversas das suas restrições impostas apontam para grandes divergências comparadas ao próprio Código Civil de 2002, que entrou em vigor poucos anos depois, como a exigência de o indivíduo ter 25 anos ou mais para ser autorizado a fazer o procedimento de esterilização (inciso I do artigo 10 da lei)
Não obstante, o parágrafo 5º do artigo 10 da mencionada lei, ao determinar que deve haver o consentimento formal do cônjuge para autorizar a esterilização, demonstra grande retrocesso à liberdade individual adquirida com tanta batalha pelas partes interessadas.
A inconstitucionalidade dos dispositivos se evidencia diante da tramitação de ações junto ao Supremo Tribunal Federal de ações próprias com grandes possibilidades de sucesso e que buscam preservar normas de eficácia superior.
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Mestranda em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TRIVELONI, Mariana Fernandes. O princípio da liberdade nas relações familiares no direito brasileiro: uma análise à lei do planejamento familiar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 fev 2024, 04:10. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/59190/o-princpio-da-liberdade-nas-relaes-familiares-no-direito-brasileiro-uma-anlise-lei-do-planejamento-familiar. Acesso em: 26 dez 2024.
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