RESUMO: A dissolução de uma sociedade pode ser total, quando a sociedade é extinta, ou parcial, quando um ou alguns dos sócios saem da sociedade, que é preservada. Na hipótese de dissolução parcial, a consequência é a conservação da atividade empresarial, dando-se plena aplicabilidade ao princípio da preservação da empresa. O mencionado princípio significa a conservação do exercício da empresa em razão dos diversos interesses coletivos que transcendem as pretensões individuais dos sócios e empreendedores. Faz-se imprescindível, portanto, a análise de como o princípio da preservação da empresa foi aplicado na estruturação do instituto da dissolução parcial da sociedade e como tem sido aplicado pela jurisprudência nas ações que versam sobre essa modalidade de dissolução.
Palavras-chave: dissolução parcial; princípios; preservação da empresa.
ABSTRACT: The dissolution of a company may be total, when the society is extinguished, or partial, when one or a few partners leave society, which is preserved. In case of partial dissolution, the consequence is the conservation of the company, given full applicability to the company’s preservation principle. The mentioned principle means the conservation of business activity because of the many collective interests that transcends the associate’s individual pretensions. Therefore, it is necessary to analyze of how the preservation company principle contributed to the structuring of the company’s partial dissolution institute and how it is been used by the jurisprudence on the actions that manages this dissolution modality.
Keywords: partial dissolution; principles; company preservation.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 – O PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA. 2 – A AÇÃO DE DISSOLUÇÃO PARCIAL DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA. 2.1- Do processamento da ação de dissolução parcial de sociedade. 2.2 - Legitimados à propositura da ação. 2.3 - Dissolução Parcial de Sociedade Anônima. 3 - O PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA NA DISSOLUÇÃO PARCIAL DAS SOCIEDADES. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
O princípio da preservação da empresa possui especial relevância no atual direito comercial, sobretudo em razão da observância dos inúmeros interesses que circundam a exploração de uma atividade comercial e do impacto positivo que ela gera a toda a sociedade.
A existência de conflitos de interesses em uma empresa pode ensejar a quebra do vínculo de fidelidade, ou seja, da affectio societatis entre os seus sócios e/ou sucessores. Diante de tal situação, existem duas saídas para a sociedade empresária: a primeira é a dissolução de todos os vínculos contratuais, culminando na inexistência da referida sociedade. A esta solução dá-se o nome de dissolução total. A dissolução parcial é a que está em consonância com o princípio da preservação da empresa, na medida em que concilia a solução do conflito e a continuidade da atividade.
No primeiro capítulo será analisado o princípio da preservação da empresa, sua importância e sua aplicabilidade prática, sendo tecidas considerações doutrinárias relevantes acerca do referido princípio.
No segundo capítulo, será realizada a análise do instituto da dissolução parcial da sociedade, procedendo-se a uma abordagem histórica acerca do tema, dos dispositivos legais relacionados e da doutrina correspondente.
No terceiro capítulo, por fim, será analisada a incidência do princípio da preservação da empresa no desenvolvimento do instituto da ação de dissolução parcial da sociedade, bem como na construção jurisprudencial acerca da referida ação. Objetiva-se, portanto, verificar em que medida o princípio influenciou e impacta a temática da dissolução parcial de empresas.
1 O PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA
O princípio da preservação da empresa trouxe, ao direito empresarial, a tendência de sempre procurar conservar a atividade empresarial, trazendo a dissolução como ultima ratio, já que sua preservação afeta não só os seus sócios, como também a sociedade em si. Neste sentido,
Em decorrência deste princípio, considera-se que os assuntos particulares dos sócios, seus atos ilícitos, sua inaptidão para a vida de empreendedor, seus desentendimentos, devem ser equacionados e solucionados juridicamente com o mínimo de comprometimento da atividade econômica explorada pela sociedade. Este princípio, o da preservação da empresa, não pode ser ignorado, nos dias correntes, no estudo de qualquer questão de direito societário. Assim é, também, na dissolução.[1]
No princípio da preservação da empresa, o valor prestigiado é o da conservação da atividade
“em virtude de uma gama de interesses que transcendem os donos do negócio e gravitam em torno da continuidade deste; assim os interesses de empregados quanto aos seus postos de trabalho, de consumidores em relação aos bens ou serviços de que necessitam, do fisco voltado à arrecadação e outros”[2]
O princípio da preservação da empresa tem sido utilizado pela jurisprudência a para fundamentar decisões relacionadas à falência, recuperação de empresas e dissolução de sociedades.
De acordo com Fabio Ulhoa Coelho, foi em razão desse princípio que a doutrina e a jurisprudência, antes da vigência do atual Código Civil, criaram o instituto da dissolução parcial da sociedade empresarial, até então não regulamentado pelo Código de Processo Civil.
Não obstante, exige-se cautela para que a aplicação do princípio não provoque sua banalização:
“Muitas vezes atividades empresariais devem mesmo ser encerradas, e nesses casos impedir a falência do empresário ou da sociedade empresária contraria a ordem espontânea do mercado (...). O princípio da preservação da empresa é uma construção importante, mas sua aplicação deve limitar-se à situações em que o próprio mercado, espontaneamente, encontra soluções para a crise de um agente econômico, em bases consensuais”[3]
A jurisprudência do STJ tem aplicado o princípio da preservação da empresa em inúmeros julgados. Recentemente, utilizou-se do referido princípio ao decidir que associações civis sem fins lucrativos, com finalidade e atividades econômicas, detêm legitimidade para requerer recuperação judicial:
“Portanto, apesar de realmente haver posicionamentos doutrinários em sentido contrário, assinalo que também há diversas doutrinas especializadas defendendo, com substrato nos princípios e objetivos insculpidos no art. 47 da LREF, a possibilidade de se efetivar uma leitura sistêmica dos arts. 1º e 2º, de modo que, em interpretação finalística da norma fulcrada nos princípios da preservação da empresa e de sua função social, reconhecem como possível a extensão do instituto da recuperação judicial a entidades que também exerçam atividade econômica, gerando riqueza e, na maioria das vezes, bem-estar social, apesar de não se enquadrarem literalmente no conceito de empresa”[4]
Desta forma, em consideração não só ao princípio da preservação da empresa como também ao princípio da função social, os magistrados passaram a possibilitar a retirada do sócio de uma empresa com a devida apuração de seus haveres sem que ocorresse a dissolução total da mesma.
Nesse sentido, nas lições de André Luiz Santa Cruz Ramos, é preciso compreender que, como a propriedade dos bens de produção está sujeita ao cumprimento de uma função social, nos termos do art. 5º, XXIII, da CF/1988, o exercício da empresa também deve cumprir uma função social específica. Essa função, portanto, estará satisfeita quando houver a criação de empregos, geração de riqueza, respeito ao meio ambiente e aos direitos dos consumidores.[5]
Diante de todo o exposto, depreende-se que a tendência atual do direito comercial é a de procurar preservar a empresa. Fabio Ulhoa aduz que, em razão dos múltiplos interesses que gravitam em torno da produção e circulação de bens e serviços, reservadas à empresa, a sua existência deixa de ser assunto de exclusivo dos investidores e empreendedores. Assim, para ele, os mecanismos legais voltados ao reerguimento econômico da empresa insolvente, que o legislador instituiu na Lei de Falências, possuem o objetivo de atender a esses interesses.
Ulhoa exemplifica ainda com a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que possibilita a coibição de fraudes perpetradas por meio da separação patrimonial sem comprometimento da exploração da atividade econômica da empresa.
Portanto, em decorrência do princípio da preservação da empresa,
“considera-se que os assuntos particulares dos sócios, seus atos ilícitos, sua inaptidão para a vida de empreendedor, seus desentendimentos, devem ser equacionados e solucionados juridicamente com o mínimo de comprometimento da atividade econômica explorada pela sociedade. Este princípio, o da preservação da empresa, não pode ser ignorado, nos dias correntes, no estudo de qualquer questão de direito societário. Assim é, também, na dissolução”[6]
2 – A AÇÃO DE DISSOLUÇÃO PARCIAL DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA
A dissolução de uma sociedade pode ser total, quando a sociedade é extinta, ou parcial, quando um ou alguns dos sócios saem da sociedade, a qual é preservada.
O Código de Processo Civil de 1939 disciplinou apenas a dissolução total das sociedades em seus artigos 655 a 674. Em contrapartida, o Código de Processo Civil de 1973 não disciplinou a ação de dissolução das sociedades empresárias. Diante da omissão da referida Lei, os artigos referentes à dissolução total disciplinados no Código de 1939 passaram a ter aplicabilidade durante a vigência do Código de 1973 para regular a mencionada ação de dissolução. A vigência desses dispositivos foi possibilitada a partir do permissivo previsto no art. 1218, VI, do Código Civil, que dispunha:
Art. 1.218. Continuam em vigor até serem incorporados nas leis especiais os procedimentos regulados pelo Decreto-lei nº 1.608, de 18 de setembro de 1939, concernentes: [...] VII - à dissolução e liquidação das sociedades (arts. 655 a 674).
Neste sentido, a jurisprudência, aliada à doutrina, foi um instrumento que passou a reconhecer e disciplinar a ação de dissolução parcial, não regulada pelo pretérito Código de 1973.
O Código de Processo Civil de 2015, em seus artigos 599 a 609, passou a regulamentar a ação de dissolução parcial da sociedade, positivando a jurisprudência que já dispunha sobre o assunto não tratado pelos Códigos anteriores.
O Código Civil de 2002, ao entrar em vigor, passou a tratar da dissolução parcial da sociedade em seus arts. 1.028 a 1.032, 1.085 e 1.086, denominando-a de “resolução da sociedade em relação a um sócio”.
O artigo 1.028 do Código Civil dispõe sobre as hipóteses de dissolução parcial: se o contrato dispuser diferentemente; se os sócios remanescentes optarem pela dissolução da sociedade; se, por acordo com herdeiros, regular-se a substituição do sócio falecido.
Nesse caso, não se nomeia liquidante, bastando que seja indicado perito contábil para apuração de haveres. O cálculo devido ao sócio retirante, portanto, é realizado por meio do procedimento denominado apuração de haveres, disposto no artigo 1.031 do Código Civil.
A dissolução parcial da sociedade pode ser causada por: vontade dos sócios; morte do sócio; retirada de sócio; exclusão de sócio; falência de sócio e liquidação da quota a pedido de credor de sócio, conforme expressa o art. 599 do Código de Processo Civil.
O recurso Especial 613629/RJ trouxe o precedente de que a ação de dissolução parcial da sociedade segue o rito ordinário. No referido recurso, a Ministra Relator Nancy Andrighi relata que, não havendo disciplina específica para essas hipóteses, a única conclusão possível é a de que elas se regulam pelas regras gerais do Código de Processo Civil. Ou seja, a ação deve ser proposta pelo procedimento ordinário e, se não for possível decidir, no processo de conhecimento, o valor dos haveres do sócio retirante, ele deve ser determinado em liquidação de sentença.[7]
2.1 Do Processamento da Ação de Dissolução Parcial de Sociedade
O art. 599 do Código de Processo Civil trata do objeto da ação de dissolução de sociedade, cujas hipóteses estão previstas nos incisos do referido dispositivo.
O inciso I do mencionado artigo trata da hipótese de resolução da sociedade empresária contratual ou simples em relação ao sócio falecido, excluído, ou que exerceu o direito de retirada ou recesso.
Anteriormente à vigência do Código de Processo Civil de 2015, o direito de recesso, que trata da saída motivada do sócio, tinha como fundamento o art. 1.077 do CC, que permite a retirada deste nos casos de alteração do contrato social, fusão ou incorporação da sociedade. O direito de retirada, que versa sobre a saída do sócio de forma imotivada, ou seja, quando ele não mais tem interesse na atividade empresarial, possuía respaldo no art. 1.029 do CC, que autoriza a retirada do sócio além dos casos previstos em lei ou no contrato.
O entendimento para a possibilidade de ingressar com a ação de dissolução parcial para exclusão de sócio foi construído no sentido de que o procedimento judicial – que passou a ser regulado com o novo Código de Processo Civil - era cabível quando um dos requisitos para a exclusão extrajudicial, previstos no art. 1.085 do CC, não tivesse sido cumprido. O caso de morte de um dos sócios também possuía respaldo no art. 1.028 do Código Civil. Com relação a tal possibilidade, é importante pontuar que
A dissolução parcial é a solução jurídica que busca compatibilizar os interesses conflitantes dos sucessores de sócio morto que não desejam ingressar na sociedade ou de sócio sobrevivente, em sociedade “de pessoa”, que veta o ingresso deles. Mas inexistindo o conflito de interesses, a sociedade deve permanecer, com a cota do de cujos transferida a quem o suceder. O falecimento de sócio é causa de dissolução judicial, se não houver concordância entre as partes quanto à ocorrência de causa dissolutória (por exemplo, os sócios supérstites recusarem-se a proceder à apuração dos haveres), ou extrajudicial, quando houver essa concordância entre as partes.[8]
Além disso, a ação de dissolução parcial da sociedade pode também ter como objeto, cumulativamente, a apuração de haveres do sócio falecido, excluído, ou que exerceu o direito de retirada da empresa. Quando a dissolução parcial se resolver extrajudicialmente, resta apenas a apuração de haveres, que poderá ser feita por meio judicial, tendo aí natureza meramente condenatória. A jurisprudência já reconhecia a propositura da ação de apuração de haveres, tendo tal possibilidade apenas positivada no Código de Processo Civil de 2015. Neste sentido, é de se destacar o Recurso Especial nº 958.116/PR, em que o Relator pontua a importância da ação de apuração de haveres. Nas palavras do Ministro João Otávio de Noronha:
Deve-se considerar que, operada a resolução da sociedade em relação a um sócio, ele deve exercer seu direito patrimonial inerente à condição de sócio, pleiteando o recebimento de sua parte do patrimônio da sociedade, pois, ao ter contribuído para o capital social e adquirido a qualidade de sócio, passou a ser titular de um direito potencial de crédito. Assim, havendo a dissolução de seu vínculo com a sociedade, faz jus à liquidação da sua cota, que representa uma parte do patrimônio da sociedade. Para tanto, avalia-se o patrimônio da sociedade a fim de se definir o quinhão que toca a cada um dos sócios, inclusive àquele que se afastou.[9]
Nas hipóteses do inciso I e II, o legislador apontou a cumulação de pedidos para a mesma demanda.
Em contrapartida, o inciso III aponta para a possibilidade de formulação do pedido de resolução ou apuração de haveres, de forma alternativa, sem qualquer especificação de condições para sua utilização.
2.2 Legitimados à propositura da ação
Quanto à legitimidade ativa para a ação de dissolução parcial das sociedades, o atual Código de Processo Civil positivou o que já dispunham as normas pretéritas acerca do tema, conforme já mencionado no tópico 3.2. Neste sentido, quanto à legitimidade do espólio do sócio falecido prevista no inciso I do art. 600, esta já era aplicada pelos tribunais a partir da disposição do art. 1.028 CC. As hipóteses dos incisos I e II, igualmente, já eram permitidas na jurisprudência pátria anterior ao contemporâneo Código de Processo Civil.
O inciso IV trata da legitimidade ativa do sócio que exerce direito de retirada ou recesso, o que reitera e complementa o disposto no art. 1.029, bem como no art. 1.077 do Código Civil. Neste sentido, a jurisprudência já se manifestava no sentido de que a ação de dissolução parcial poderia ser proposta pelo sócio que exerceu o direito de retirada ou recesso quando não tiver sido providenciada a alteração contratual consensual pelos demais sócios. Vejamos:
SOCIEDADE COMERCIAL. DISSOLUÇÃO PARCIAL. I - A AÇÃO DE DISSOLUÇÃO PARCIAL DEVE SER PROMOVIDA PELO SOCIO RETIRANTE CONTRA A SOCIEDADE E OS SOCIOS REMANESCENTES, EM LITISCONSORCIO NECESSARIO. II - DECIDINDO AS INSTANCIAS ORDINARIAS INEXISTIR PREVISÃO CONTRATUAL PARA A RETIRADA MOTIVADA, APLICA-SE A REGRA DO ARTIGO 668 DO CPC/39, EM VIGOR POR FORÇA DO DISPOSTO NO ARTIGO 1.218, VII DO CPC/73, A FIM DE SER EFETUADA A APURAÇÃO DOS HAVERES NA FORMA DETERMINADA NA SENTENÇA, ATRAVES DE BALANÇO ESPECIAL E PAGAMENTO EM UMA UNICA PARCELA. III - INCLUI-SE O FUNDO DE COMERCIO E O FUNDO DE RESERVA INSTITUIDO PELA VONTADE DOS SOCIOS, ENTRE OS HAVERES A SEREM CONSIDERADOS NO BALANÇO ESPECIAL. IV - ESTABELECIDO O LITIGIO ENTRE AS PARTES, EMBORA CONCORDEM OS REUS COM A RETIRADA DOS AUTORES, CABE A IMPOSIÇÃO DOS ONUS DA SUCUMBENCIA SOBRE OS REUS, QUE RECONHECERAM PARTE DO PEDIDO DOS AUTORES, E FICARAM VENCIDOS QUANTO AO RESTANTE. ARTS. 20 E 26 DO CPC. RECURSO CONHECIDO, EM PARTE, PELA DIVERGENCIA, MAS IMPROVIDO.
O inciso V versa sobre a legitimidade da sociedade em propor a ação de dissolução, nas hipóteses em que a lei não autoriza a exclusão extrajudicial. É de se ressaltar que o art. 1.030 do CC dispõe sobre a possibilidade de o sócio ser excluído judicialmente, mediante iniciativa da maioria dos demais sócios, por falta grave no cumprimento de suas obrigações, ou, ainda, por incapacidade superveniente. Agora há a autorização de a própria sociedade empresária propor a ação, e não apenas a maioria dos sócios.
2.3 Dissolução Parcial De Sociedade Anônima
O posicionamento doutrinário e jurisprudencial anterior ao Código de Processo Civil era de que o pedido de dissolução parcial de sociedade anônima era juridicamente impossível. A jurisprudência pátria não admitia, durante muito tempo, a figura da dissolução parcial nas sociedades anônimas, em razão da ausência de affectio societatis em sociedades de capitais.
Neste sentido, aduzia-se que o instituto que se aplica às sociedades pessoais, especialmente as por quotas de responsabilidade limitada, e não às impessoais. Outro argumento utilizado era de que a possibilidade de recesso do acionista limitava-se às hipóteses constantes do art. 137 da Lei 6.404/76, o que impossibilitava a prática da dissolução parcial neste tipo societário. No Recurso Especial 419.174 – SP, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça manifestou o entendimento de não ser possível a dissolução parcial nas sociedades anônimas de capital fechado[10].
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, conforme se vê, por exemplo, do julgamento do Recurso Especial 917.531 – RS, passou a possibilitar a extensão do referido instituto às sociedades "circunstancialmente" anônimas, ou seja, àquelas que, em virtude de cláusulas estatutárias restritivas à livre circulação das ações, ostentam caráter familiar ou fechado, onde as qualidades pessoais dos sócios adquirem relevância para o desenvolvimento das atividades sociais (affectio societatis). Nesta toada seguiu o julgamento do Recurso Especial 111.294 – PR[11] e do Recurso Especial 507.490 - RJ[12], que admitiram a possibilidade de dissolução parcial de sociedade anônima familiar:
I - RECURSO ESPECIAL. -SOCIEDADE ANÔNIMA - PEDIDO DE DISSOLUÇÃO INTEGRAL - SENTENÇA QUE DECRETA DISSOLUÇÃO PARCIAL E DETERMINA A APURAÇÃO DE HAVERES.- JULGAMENTO EXTRA PETITA - INEXISTÊNCIA. - Não é extra petita a sentença que decreta a dissolução parcial da sociedade anônima quando o autor pede sua dissolução integral. II - PARTICIPAÇÃO SOCIETÁRIA DO AUTOR. CONTROVÉRSIA. DEFINIÇÃO POSTERGADA À FASE DE LIQUIDAÇÃO DA SENTENÇA. IMPOSSIBILIDADE DE EXAME DA ALEGADA ILEGITIMIDADE ATIVA.1. A Lei 6.404/76 exige que o pedido de dissolução da sociedade parta de quem detém pelo menos 5% do capital social. 2. Se o percentual da participação societária do autor é controvertido nos autos e sua definição foi remetida para a fase de liquidação da sentença, é impossível, em recurso especial, apreciar a alegação de ilegitimidade ativa. III - SOCIEDADE ANÔNIMA. DISSOLUÇÃO PARCIAL. POSSIBILIDADE JURÍDICA. REQUISITOS. 1. Normalmente não se decreta dissolução parcial de sociedade anônima: a Lei das S/A prevê formas específicas de retirada - voluntária ou não - do acionista dissidente. 2. Essa possibilidade é manifesta, quando a sociedade, embora formalmente anônima, funciona de fato como entidade familiar, em tudo semelhante à sociedade por cotas de responsabilidade limitada.
Finalmente, o tema foi pacificado, tendo o STJ passado a entender pela possibilidade de dissolução parcial da sociedade anônima nos casos em que se verifique a presença da affectio societatis e a posterior quebra desse vínculo, como se verifica do julgamento do EREsp 111.294/PR pela Segunda Seção.
3. O PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA NA DISSOLUÇÃO PARCIAL DAS SOCIEDADES
A dissolução parcial da empresa tem como um de seus fundamentos basilares o princípio da preservação da empresa. A aplicação da dissolução parcial, com a retirada dos sócios dissidentes após a apuração de seus haveres, é uma das soluções que melhor concilia o interesse individual dos acionistas retirantes, por exemplo, na hipótese de retirada, com o princípio da preservação da sociedade e sua utilidade social, a fim de que não haja a necessidade de solução de continuidade da empresa, a qual prosseguirá com os sócios remanescentes.
Nas hipóteses de dissolução parcial previstas pelo Código Civil, verifica-se a influência direta do princípio da preservação da empresa. A primeira hipótese prevista no rol do artigo 1.028 é de morte de sócio. Com efeito, a morte de um dos sócios durante certo tempo configurou causa de dissolução total da sociedade. Contudo, em razão do princípio da preservação da empresa, atualmente entende-se que a morte de sócio deve incorrer tão somente na dissolução parcial da sociedade. Nesse caso, ocorrerá a apuração de haveres do sócio falecido.
O mesmo ocorreu com a hipótese do direito de retirada por parte de um dos sócios. O direito de retirada
“fundamenta-se na ideia de que ninguém é obrigado a contratar contra sua própria vontade. No entanto, esse direito do sócio não poderia acarretar sempre a dissolução total da sociedade, porque isso significaria impedir os demais sócios de continuar o vínculo contratual que os une e preservar a existência da pessoa jurídica que criaram”[13]
Durante muito tempo, ele também gerou a dissolução total da sociedade. Atualmente, também permite a dissolução parcial da sociedade. Ressalte-se que, mesmo antes da vigência do Código Civil de 2002, a jurisprudência já entendia ser possível transformar o pedido de dissolução total em dissolução parcial nos casos de exercício do direito de retirada.
A possibilidade de dissolução parcial da sociedade por ações pela jurisprudência do STJ com base na affectio societatis, como descrito anteriormente, ocorreu fundamentada no princípio da preservação da empresa.
Nas razões de decidir, o Ministro Castro Filho se pronunciou no sentido de que,
“porquanto reconhecida a existência da affectio societatis como fator preponderante na constituição da empresa, não pode tal circunstância ser desconsiderada por ocasião de sua dissolução. Do contrário, e de que é exemplo a hipótese em tela, a ruptura da affectio societatis representa verdadeiro impedimento a que a companhia continue a realizar o seu fim, com a obtenção de lucros e distribuição de dividendos, em consonância com o artigo 206, II, "b", da Lei nº 6.404/76, já que dificilmente pode prosperar uma sociedade em que a confiança, a harmonia, a fidelidade e o respeito mútuo entre os seus sócios tenham sido rompidos”
E continua abordando a necessidade de incidência do mencionado princípio:
“A regra da dissolução total, nessas hipóteses, em nada aproveitaria aos valores sociais envolvidos, no que diz respeito à preservação de empregos, arrecadação de tributos e desenvolvimento econômico do país. À luz de tais razões, o rigorismo legislativo deve ceder lugar ao princípio da preservação da empresa, preocupação, inclusive, da nova Lei de Falências - Lei nº 11.101/05, que substituiu o Decreto-lei n 7.661/45, então vigente, devendo-se permitir, pois, a dissolução parcial, com a retirada dos sócios dissidentes, após a apuração de seus haveres em função do valor real do ativo e passivo. A solução é a que melhor concilia o interesse individual dos acionistas retirantes com o princípio da preservação da sociedade e sua utilidade social, para evitar a descontinuidade da empresa, que poderá prosseguir com os sócios remanescentes”[14]
No âmbito da jurisprudência mais recente do Superior Tribunal de Justiça, verifica-se que diversas decisões relacionadas à dissolução parcial foram fundamentadas no princípio da preservação da empresa.
A primeira decisão a ser destacada foi o Recurso Especial nº 1321263[15], oriundo do estado do Paraná, de relatoria do Ministro Moura Ribeiro. Na decisão foi decidido que é possível que sociedade anônima de capital fechado, ainda que não formada por grupos familiares, seja dissolvida parcialmente quando, a despeito de não atingir seu fim, consubstanciado no auferimento de lucros e na distribuição de dividendos aos acionistas, restar configurada a viabilidade da continuação dos negócios da companhia.
Na fundamentação do acórdão, o Ministro Relator afirma que a Lei nº 6.404/76 acolheu o princípio da preservação da empresa em seus artigos 116 e 117, por adotar a prevalência da função social e comunitária da companhia e por caracterizar como abuso de poder do controlador a liquidação de companhia próspera.
Afirma, nesse sentido, que não é plausível a dissolução parcial de sociedade anônima de capital fechado sem antes aferir cada uma e todas as razões que militam em prol da preservação da empresa e da cessação de sua função social, tendo em vista que os interesses sociais hão que prevalecer sobre os de natureza pessoal de alguns dos acionistas.
No caso em cotejo, havia certo potencial lucrativo na empresa, recomendando-se sua preservação, porém, não se pode imobilizar o capital do acionista, num negócio que em raros momentos foi lucrativo e que já não apresenta liquidez para venda das ações no mercado, impondo-se a dissolução parcial. A dissolução parcial, portanto, constitui solução menos gravosa, assegurando aos acionistas que entendem ser possível uma reviravolta na sorte da companhia a continuação de suas atividades.
Outro caso envolvendo dissolução parcial de sociedade anônima foi analisado no bojo do Recurso Especial nº 1377697, originário do estado do Amazonas. No referido recurso, a controvérsia cingia acerca da verificação de dissolução parcial de sociedade por tempo determinado, criada por força de acordo de associação firmado para a exploração do comércio brasileiro de disquetes, em razão do rompimento da affectio societatis e a inviabilidade da continuação do objeto social da empresa.
No julgamento, foi levantado que a jurisprudência do STJ, analisando casos similares sob a perspectiva de preservação da empresa em decorrência de sua inquestionável função social, tem entendimento no sentido de que a oposição da maioria, interessada em preservar a empresa, prevaleceria a despeito da vontade unilateral do sócio, convertendo-se a dissolução total em processo de apuração de haveres (dissolução parcial), com o pagamento, ao sócio retirante, do valor da sua quota.
No caso, contudo, foi estabelecido um distiguishing. Considerando as peculiaridades da demanda ora em análise, o STJ decidiu que afigura inviável a singela determinação de retirada de sócio e a consequente dissolução parcial da sociedade com amparo no princípio da preservação da empresa, pois somente a dissolução total terá o condão de atender aos interesses das partes, às deliberações judiciais já tornadas imutáveis, aos fins do extinto acordo de associação e aos ditames do ordenamento jurídico pátrio. No caso, houve uma ruptura lateral do acordo ocorrida através de notificação no ano de 1991. Uma das justificativas trazidas pelo Tribunal foi o fato de que, desde a notificação, datada de 1991, foi revogada a licença para o uso das marcas que veiculavam o próprio objeto social da empresa. Além disso, a sócia majoritária permaneceu inerte na promoção da modificação do estatuto social e apuração de haveres devidos à então sócia retirante, bem como à busca de outro parceiro comercial que pudesse viabilizar a manutenção da sociedade com outro objeto social.
Foi concluído, portanto, estar completamente esvaziada a razão da existência da sociedade, criada para viabilizar o acordo de associação antes existente entre as partes.
Assim, arremata o Ministro Relator que constitui garantia constitucionalmente estabelecida a de que ninguém é obrigado a associar-se ou manter-se associado (artigo 5º, inciso XX da Constituição Federal), razão porque, todo sócio tem o direito de retirar-se da sociedade se for de seu interesse pessoal, não podendo ser compelido a permanecer associado apenas sob a afirmação de prevalência do princípio da preservação da empresa.
CONCLUSÃO
O princípio da preservação da empresa objetiva a compatibilização entre o fim dos laços entre os sócios, que impossibilitam a preservação dos laços contratuais, e a continuidade da empresa explorada.
O princípio, portanto, teve influência direta na criação e desenvolvimento do instituto da dissolução parcial das sociedades.
Inicialmente, a dissolução parcial da sociedade possui completa e direta relação com o princípio em estudo, já que a sua realização, com a retirada dos sócios dissidentes após a apuração de seus haveres, concilia o interesse individual dos sócios ou acionistas com a função social e a utilidade da empresa, a fim de que não haja a necessidade de solução de continuidade da empresa, a qual prosseguirá com os sócios remanescentes.
Ademais, as hipóteses de dissolução da sociedade de morte e retirada dos sócios, antes previstas como causas de dissolução total, atualmente, com fundamento na preservação da empresa, ensejam tão somente a dissolução parcial da sociedade.
Verifica-se, outrossim, que a jurisprudência passou a admitir a dissolução parcial de sociedades anônimas com base no referido princípio, a partir de uma interpretação sistemática e teleológica, em razão da existência de previsão legal apenas acerca da dissolução total da sociedade.
Por fim, nota-se que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça foi mais além no julgamento do Recurso Especial nº 1321263[16], na medida em que decidiu pela possibilidade que sociedade anônima de capital fechado seja dissolvida parcialmente a despeito de não atingir seu fim, consubstanciado no auferimento de lucros e na distribuição de dividendos aos acionistas.
A doutrina e jurisprudência têm dado cada vez aplicabilidade ao princípio da preservação da empresa na matéria de direito societário, e, especificamente, de dissolução parcial da sociedade, o que vai ao encontro da tendência de funcionalização dos institutos de direito privado, que devem ser lidos sob uma perspectiva civil-constitucional, considerando os interesses não só das partes contratantes, mas da coletividade como um todo.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Agravo interno no Pedido de Tutela Provisória nº 3.654 – RS. Relator p/ acórdão: Ministro Luis Felipe Salomão. Julgamento em 15/03/2022.
BRASIL. REsp 111.294 / PR - Recurso Especial (1996/0066757-8). Relator: Ministro Barros Monteiro. Relator para Acórdão: Ministro Cesar Asfor Rocha. Órgão Julgador: Quarta Turma. Data do Julgamento: 19.9.2000.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 507.490 – RJ. Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros. Terceira Turma. Julgado em: 19 de setembro 2006.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. REsp 1321263-PR, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 6/12/2016
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça EREsp 111.294/PR, Rel. Min. Castro Filho, 2.ª Seção, j. 28.06.2006, DJ 10.09.2007.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 419.174 – SP. Terceira Turma. Relator: Carlos Alberto Menezes. Julgado em: 03 de dezembro de 2002.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 613.629/RJ. Relator: Ministra Nancy Andrighi. Julgado em: 26 de setembro de 2006.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 958.116/PR. Relator: Ministro João Otávio de Noronha. Julgado em 22 de maio de 2012.
COELHO, Fabio Ulhoa. Manuel de direito comercial, 28. ed rev. São Paulo: Saraiva.
RAMOS, André Luiz Santa Cruz. 7. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017.
[1] COELHO, Fabio Ulhoa. Manual de Direito Comercial – Direito de Empresa. 28. ed. p. 100.
[2] Ibid., p. 16.
[3] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. 7. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017. p. 57.
[4] BRASIL. Agravo interno no Pedido de Tutela Provisória nº 3.654 – RS. Relator p/ acórdão: Ministro Luis Felipe Salomão. Julgamento em 15/03/2022.
[5] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. 7. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017. p. 57.
[6] Ibid.
[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 613.629/RJ. Relator: Ministra Nancy Andrighi. Julgado em: 26 de setembro de 2006.
[8] COELHO, Fabio Ulhoa. Manuel de direito comercial, 13. ed rev. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 172.
[9] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 958.116/PR. Relator: Ministro João Otávio de Noronha. Julgado em 22 de maio de 2012.
[10] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 419.174 – SP. Terceira Turma. Relator: Carlos Alberto Menezes. Julgado em: 03 de dezembro de 2002.
[11] REsp 111.294 / PR - Recurso Especial (1996/0066757-8). Relator: Ministro Barros Monteiro. Relator para Acórdão: Ministro Cesar Asfor Rocha. Órgão Julgador: Quarta Turma. Data do Julgamento: 19.9.2000.
[12] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 507.490 – RJ. Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros. Terceira Turma. Julgado em: 19 de setembro 2006.
[13] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. 7. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017. p. 484.
[14] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça EREsp 111.294/PR, Rel. Min. Castro Filho, 2.ª Seção, j. 28.06.2006, DJ 10.09.2007.
[15] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. REsp 1321263-PR, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 6/12/2016 (Info 595).
[16] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. REsp 1321263-PR, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 6/12/2016.
Advogada. Graduação na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Pós Graduação em Direito Penal pelo Instituto Damásio de Jesus.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Luisa Lemos. A dissolução parcial das sociedades e o princípio da preservação da empresa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 set 2022, 04:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/59195/a-dissoluo-parcial-das-sociedades-e-o-princpio-da-preservao-da-empresa. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: PATRICIA GONZAGA DE SIQUEIRA
Por: Eduarda Vitorino Ferreira Costa
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: Adriano Henrique Baptista
Por: Alan Carlos Moises
Precisa estar logado para fazer comentários.