Resumo: A responsabilidade civil clássica cede seu lugar para uma nova forma de responsabilidade civil, que envolve novas estratégias para reparar o interesse lesado. A Lei da Ação Civil Pública prevê um fundo federal, com a denominação de Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD). Entretanto, ao longo dos últimos anos, constatou-se que não há um emprego efetivo das receitas do Fundo, comprometendo a reparação integral do dano a interesses transindividuais, tornando o arcabouço da tutela coletiva um aparato jurídico falho e ineficiente. Afastadas as possíveis alegações de que se trataria de um problema de ordem técnica ou de ordem legislativa, por tudo que foi exposto, resta claro que o verdadeiro empecilho para a utilização efetiva dos recursos do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos e Coletivos é de natureza financeira, ou, mais especificamente, de natureza orçamentária.
Palavras-chave: Fundo de Direitos Difusos; Lei da Ação Civil Pública; responsabilidade civil; tutela coletiva; dano moral coletivo.
Abstract: Classic civil liability gives way to a new form of civil liability, which involves new strategies to repair the injured interest. The Public Civil Action Law provides for a federal fund, called the Fund for the Defense of Diffuse Rights (FDD). However, over the last few years, it has been found that there is no effective use of the Fund's revenues, compromising the full repair of the damage to trans-individual interests, making the framework of collective protection a flawed and inefficient legal apparatus. Having excluded the possible allegations that it was a problem of a technical or legislative nature, for all that has been exposed, it is clear that the real obstacle to the effective use of the resources of the Fund for the Defense of Diffuse and Collective Rights is of a financial nature. , or, more specifically, of a budgetary nature.
Keywords: Diffuse Rights Fund; Public Civil Action Law; civil responsability; collective guardianship; collective moral damage.
1.INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como finalidade uma breve análise do tratamento jurídico conferido ao dano extrapatrimonial coletivo no ordenamento jurídico brasileiro, a partir de uma análise da destinação da indenização nos casos de reparação de danos a interesses difusos e coletivos.
É na dignidade da pessoa humana que reside o fundamento jurídico-normativo direto de diversas regras e, até mesmo, de determinados princípios em nosso ordenamento jurídico. Apenas pela concretização de uma sociedade igualitária é que cada pessoa humana usufruirá de uma vida digna. Isso implica em fazer uso de instrumentos jurídicos materiais e processuais aptos a promover a dignidade da pessoa humana em um aspecto coletivo, sem deixar de lado o indivíduo isoladamente considerado. Dessa forma, a chamada tutela coletiva apresenta-se como meio adequado para viabilizar esse objetivo.
A responsabilidade civil clássica cede lugar a uma nova modalidade de tutela diante das mudanças socioeconômicas as quais tornam necessário rever os dogmas rígidos de um modelo de reparação voltado para o escopo individual. Diante do reconhecimento da existência de direitos cuja titularidade recai sobre grupos de indivíduos que, independentemente de serem ou não determináveis, não podem dividir entre si o objeto do direito, sendo possível apenas sua satisfação integral, foi necessário reconhecer que esses direitos transindividuais merecem a proteção jurisdicional concedida pelo nosso ordenamento no âmbito individual, com o devido respeito às particularidades.
Tais interesses de relevância social não serão sempre traduzíveis em termos econômicos, mas, comumente, a reparação o é. Assim, surge um importante desafio, que é o que fazer com o montante reparatório na sentença que determina a reparação pecuniária pela violação de um direito transindividual.
É inegável que a jurisprudência pátria apresenta uma predileção à prestação pecuniária como forma de reparação do dano. O sistema jurídico é estruturado em torno de uma tutela repressiva, no sentido de se visar a recomposição do bem jurídico afetado, analisar o espaço destinado pelo ordenamento jurídico a formas alternativas de tutela de valores fundamentais pertencentes à coletividade.
Não se nega que a opção é feita levando-se em conta o caráter punitivo da reparação, tratando-se de danos extrapatrimoniais coletivos, mas é evidente que a escolha das outras modalidades de obrigação representa uma dificuldade maior ao autor, que deverá delimitar de que modo aquela conduta positiva ou negativa do ofensor irá atender à recomposição do dano sofrido, uma vez que é impossível, pela própria natureza do bem tutelado, que ele volte ao estado anterior ao dano.
Portanto, a reparação pecuniária é apenas uma das modalidades cabíveis de reparação de danos extrapatrimoniais coletivos. Embora a reparação in natura seja sempre preferível, a depender do interesse violado essa não é uma opção viável, sendo a prestação pecuniária a que melhor atenderá o caráter pedagógico da reparação cível. Trata-se, de fato, de uma verdadeira compensação, ante a impossibilidade de se restaurar o bem jurídico a sua situação anterior.
Após ser fixado um montante adequado e que atenda ao interesse lesado, é relevante atentar para a destinação da reparação. A contrário da reparação de danos individuais, não há destinação direta para as possíveis vítimas, isoladamente consideradas, do dano.
Isso porque o nítido traço metaindividual do interesse em questão impossibilita a veiculação da parcela reparatória a membros da coletividade que, frequentemente, não são passíveis de identificação. Dessa maneira, a solução encontrada pelo legislador infraconstitucional foi veicular o montante pecuniário a um fundo.
Prevê a Lei da Ação Civil Pública prevê um fundo federal, regulamentado pelo Decreto n. 1.306/1994, com a denominação de Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD). Vinculado ao Poder Executivo, mais especificamente ao Ministério da Justiça, o FDD é gerido por um Conselho Federal, que controla a aplicação das condenações pecuniárias em ações de tutela a interesses transindividuais, bem como multas e outras receitas que puderem ser destinadas
O Decreto regulamentador determina, em seu artigo art. 1º, que o referido fundo “tem por finalidade a reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico, por infração à ordem econômica e a outros interesses difusos e coletivos”.
Entretanto, embora a previsão específica de destinação da indenização tenha sido uma importante inovação do ordenamento jurídico para a tutela de interesses difusos e coletivos, há algumas questões relevantes a serem abordadas em relação ao destino dessas verbas, especialmente em virtude de uma necessidade crescente de recomposição específica do interesse violado.
Há expressa previsão legal na LACP, em seu artigo 13, que sendo a condenação em pecúnia, esta será revertida a um fundo federal ou estadual, em que participem obrigatoriamente o Ministério Público e os representantes da comunidade.
O fundo não tem personalidade jurídica, consequentemente não adquire direitos nem contrai obrigações. O fundo previsto na LACP, especificamente, tem natureza de fundo público, ou seja, é um complexo patrimonial administrado pelo Estado, com a destinação de dar suporte financeiro a determinada atividade de relevante interesse público[1].
Em regra, o montante da indenização é revertido ao Fundo, seja no âmbito federal, seja no âmbito estadual. E, a partir de um Conselho Gestor, as indenizações são desvinculadas de sua origem e se destinam a recomposição do bem lesado em sentido amplo, ou à instituição de programas de prevenção, visando a evitar novas lesões.
Entretanto, ao longo dos últimos anos, constatou-se que não há um emprego efetivo das receitas do Fundo, comprometendo a reparação integral do dano a interesses transindividuais, tornando o arcabouço da tutela coletiva um aparato jurídico falho e ineficiente.
2. O Fundo de Defesa dos Direitos Difusos e sua natureza vinculada
Inegavelmente, um dos maiores avanços na proteção de direitos difusos e coletivos foi a criação do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos pelo art. 13 da Lei da Ação Civil Pública e regulamentado pelo Decreto 92.302/96, revogado posteriormente pelo Decreto n. 1.306/94, hoje em vigor.
A existência de um fundo destinado à reconstituição dos valores coletivos lesados, entretanto, já havia sido prevista no Código de Defesa do Consumidor, tanto em seu artigo 57 quanto em seu artigo 100, parágrafo único. Dessa forma, a ideia do fundo partiu da situação específica, ou seja, da proteção à relação de consumo, para em seguida abarcar os demais interesses transindividuais.
Inspirado no sistema de proteção a interesses difusos e coletivos norte-americano, conhecido como fluid recovery, o FDD comporta certa flexibilidade em sua aplicação de recursos, que não precisa, necessariamente, na reparação do mesmo bem lesado[2]. No entanto, como sustentado por Mazzili, essa inspiração reside em elementos básicos do sistema norte-americano, mas com este não se confunde. A ideia de fluid recovery diz respeito a uma distribuição por meio de um sistema de mercado, por redução de preços ou projetos que beneficiarão diretamente os membros de uma determinada classe. Já no modelo brasileiro, a fluidez diz respeito à uma flexibilização na forma de reparação do dano, devendo a recomposição guardar uma relação de pertinência com a lesão sofrida, tendo em vista que a reparação direta é, pela própria natureza do bem, quase sempre impossível[3].
Assim, podemos dizer que o modelo brasileiro possui, sobretudo, uma função social de destaque, predominante reconstitutiva de bens lesados, mas não é essa sua única prioridade[4], contando com uma visão preventiva da tutela transindividual. A recomposição é, de fato, preferível, mas há que se atentar para o fato de que, muitas vezes, é também inviável.
Há que se atentar para o fato de queque há expressa vedação constitucional para a instituição de fundos, independente de sua natureza, sem prévia autorização legislativa, conforme se extrai do artigo 167, inciso IX da Constituição. Diante da necessidade de previsão legislativa, foi promulgada a Lei n. 9.008/95 que, ao tratar da estrutura e organização do Ministério da Justiça, criou o Conselho Federal responsável por gerir os recursos do FDD.
É interessante destacar que há um grande lapso temporal entre a promulgação da Lei da Ação Civil Pública e a regulamentação do Conselho Gestor do Fundo Federal de Defesa dos Direitos Difusos. Cerca de dez anos separam a LACP e a Lei n. 9.008/95 e, nesse período, as indenizações decorrentes das condenações pecuniárias em Ações Civis Públicas não eram geridas por não existir uma entidade de controle desses recursos[5]. Esperava-se, assim, que a regulamentação infraconstitucional permitisse uma gestão e controle eficientes desses recursos, mas pensamos que a atuação do Conselho Gestor ainda é deficiente, não sendo apta a promover a aplicação de recursos do fundo de maneira adequada, pelos motivos que se expõe a seguir.
Inicialmente, há que se atentar para o fato de que as receitas do FDD decorrem das condenações judiciais e das multas relacionadas a violações a direitos transindividuais, bem como rendimentos obtidos por meio da aplicação de recursos do Fundo e doações de pessoas físicas ou jurídicas. Ademais, é previsto ainda eventuais receitas diversas que vierem a ser destinadas ao Fundo, por expressa previsão contida na redação do artigo 2º e seus incisos do Decreto n. 1.306/94 e do artigo 1º, parágrafo 2º da Lei n. 9.008/95, que, ressalte-se, contém idêntica redação.
É interessante que o art. 7º do Decreto 1.306 dispõe que “os recursos arrecadados serão distribuídos para a efetivação das medidas dispostas no artigo anterior e suas aplicações deverão estar relacionadas com a natureza da infração ou de dano causado”, o que impõe claramente uma obrigação ao Conselho Gestor de vincular a condenação a uma destinação específica. Significa que, em tese, a reparação pecuniária deve ser destinada à reparação e prevenção de danos ao mesmo interesse jurídico violado.
Tomemos como exemplo o desastre ocorrido em Mariana. A reparação pecuniária deveria ser destinada à recomposição do ecossistema afetado pelo impacto ambiental sofrido. Como o impacto ambiental é de difícil reparação, há uma série de medidas preventivas que poderiam ser tomadas no âmbito local para evitar que um desastre da mesma natureza viesse a acontecer, como, por exemplo, investir em uma maior fiscalização nas demais barragens de rejeitos na área.
Ocorre que, na prática, a aplicação de recursos não se dá dessa forma. Um fundo é um órgão administrativo. Como tal, quando a reparação pecuniária é destinada a um Fundo, passa a constituir mera receita do mesmo, perdendo sua vinculação.
A atuação do magistrado responsável pela condenação é limitada nesse sentido, pois embora possa destinar à reparação ao FDD, não pode determinar de que maneira o valor será aplicado. Isso porque cabe ao conselho gestor precisar a destinação dos recursos. É um ato administrativo cujo mérito não pode ser invadido pelo Poder Judiciário, inclusive por uma questão pragmática: Em tese, é o Conselho Gestor que melhor teria condições de aferir de que maneira aquele recurso melhor atenderia à recomposição do interesse lesado. Nesse sentido:
[...] se o dano metaindividual é irreparável e a condenação é em pecúnia, tal valor deverá ser revertido ao fundo de reparação, por força de lei. Neste caso, não cabe ao juiz determinar de que forma tal valor deva ser utilizado, posto que o fundo é um órgão administrativo (com receitas próprias, não só advindas de condenações judiciais) totalmente desvinculado do Poder Judiciário. Portanto, não é possível estabelecer qualquer vinculação das receitas do fundo com a ação judicial que determinou a condenação, posto que o dano difuso ou coletivo que deu causa àquela condenação é irreparável (não passível de recomposição “in natura”).[6]
Não obstante o magistrado não possa vincular as receitas do fundo a uma destinação específica, não há impedimento para que cumule a obrigação pecuniária com a obrigação de fazer ou de não fazer, para garantir a máxima efetividade na recomposição do bem jurídico violado. Entretanto, se encerra aí a atividade judiciária.
Nesse sentido, o microssistema da tutela coletiva comporta uma rigidez excessiva. Isso porque, ainda que o magistrado vislumbre uma destinação que permita a recomposição de uma forma mais célere e eficaz, está impedido, por expressa previsão legal, de emprega-la, bem como incorre em violação ao princípio da separação dos Poderes.
A lei confere, portanto, um importante papel ao Conselho Gestor no tocante à administração de recursos, visto que há destinação obrigatória da reparação pecuniária ao Fundo. Estamos diante de uma regra jurídica, portanto não há espaço para o aplicador do direito escolher simplesmente não a aplicar.
Não negamos que, de um ponto de vista técnico, o Conselho Gestor é, de fato, extremamente mais qualificado para determinar uma correta alocação de recursos. Entretanto, uma análise da alocação das receitas do fundo nos últimos anos nos permite concluir que nos últimos anos, o emprego de recursos não atingiu um nível satisfatório.
O problema não parece residir na incapacidade dos gestores dos recursos. O Conselho Gestor do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos é composto por cinco representantes, nos termos do artigo 3º do Decreto Federal n. 1.306/94:
Art. 3º O FDD será gerido pelo Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa de Direitos Difusos (CFDD), órgão colegiado integrante da estrutura organizacional do Ministério da Justiça, com sede em Brasília, e composto pelos seguintes membros:
I - um representante da Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça, que o presidirá;
II - um representante do Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal;
III - um representante do Ministério da Cultura;
IV - um representante do Ministério da Saúde vinculado à área de vigilância sanitária;
V - um representante do Ministério da Fazenda;
VI - um representante do Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE;
VII - um representante do Ministério Público Federal;
VIII - três representantes de entidades civis que atendam aos pressupostos dos incisos I e II, do art. 5º, da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985.
A escolha dos membros, nos termos do artigo 4º do mesmo Decreto cabe ao Ministro da Justiça, enfatizando a vinculação do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos ao referido Ministério. Os representantes são designados pelo prazo de dois anos, sendo permitida uma única recondução a todos os representantes, com exceção do representante do Ministério da Justiça que, como presidente do órgão, pode ser reconduzido mais de uma vez (artigo 4º, Parágrafo Único do Decreto n. 1.306/94). Ademais, cada representante terá ainda um suplente, com indicação seguindo os parâmetros do representante titular (artigo 3º, parágrafo 1º).
Dessa forma, a exigência legal é de uma composição técnica, com representantes de diferentes Ministérios, a fim de que a destinação das receitas do Fundo seja resultado de uma longa deliberação por parte de um corpo especializado. Outrossim, não nos parece que o problema reside na ausência de capacidade técnica dos membros do Conselho Gestor.
O artigo 6º e seus incisos preveem as competências do Conselho Federal. Dentre suas atribuições, compete a ele a aprovação de convênios e contratos, firmados pela Secretaria-Executiva, de forma que atendam as finalidades do Fundo. Há ainda a atribuição de examinar e aprovar projetos de reconstituição dos interesses lesados, englobando a elaboração e promoção de atividades de caráter científico, de pesquisa e educativo. A finalidade do Fundo é, assim, maior do que a mera reparação de danos sofridos a interesses difusos e coletivos. É marcante, nos oito incisos do referido artigo, a promoção de medidas preventivas de danos.
Compete ainda, elaborar o próprio regimento interno, o que foi feito por meio da Portaria n. 1.488, de 15 de agosto de 2008. Muitos dos artigos da Portaria constituem repetições das disposições contidas na Lei 7.347/85 ou do Decreto n. 1.306/94, mas a Seção II da Portaria disciplina o funcionamento do CFDD, no tocante a suas reuniões e deliberações.
É com fulcro em seu regimento interno que os recursos devem ser identificados com base na natureza do dano causado, nos termos do art. 10, parágrafo único do Decreto Federal n. 1.306/94, de modo a permitir a distribuição de recursos conforme o interesse violado. Contudo, o regimento interno falha em trazer disposições que disciplinem de que maneira os recursos são repassados.
Não há obrigatoriedade em relacionar a condenação pecuniária revertida ao fundo necessariamente a reparação específica de sua ofensa, embora o art. 7º preconize que a reparação deve se relacionar com a natureza do dano. Tampouco há previsão de que os recursos devem ser destinados ao mesmo local do dano, embora inegavelmente deva ser dado preferência ao local em que ocorreu a lesão, especialmente se o interesse lesionado for totalmente ou primariamente local. Por esse motivo, a Instrução Normativa 4/98 da Secretaria do Tesouro Nacional determinou que os valores destinados ao FDD devem conter registro específico de sua origem.
Dessa maneira, podemos concluir que o problema na efetivação da reparação do dano também não reside numa falha de natureza legislativa, tendo em vista que o referido artigo 7º determina que a reparação deve estar no âmbito da natureza do dano, de forma que garante um grau de discricionariedade ao aplicador da norma para destinar a indenização à reparação específica ou a programas de prevenção, a depender da conveniência e oportunidade, o que terá relevância em danos que são irreparáveis e, dotados de grande relevância social, necessitam de investimentos concretos em prevenção.
Para se chegar à origem do problema, deve ser ressaltado, novamente, que o valor revertido ao fundo passa a integrar suas receitas não-tributárias, constituindo o orçamento do fundo. Como tal, é administrado pelo Conselho Gestor, assim como todas as receitas e despesas do FDD.
Ademais, como aduz Arthur Badin, nosso sistema implica em uma formulação de políticas públicas de defesa de interesses difusos e coletivos mais eficiente. Isso porque a alocação de recursos públicos implica em escolher, necessariamente, prioridades, ante a escassez de recursos e bens públicos. Por expressa previsão legal, os membros do Conselho escolhidos dentre os representantes dos Ministérios devem ter conhecimento técnico específico sobre políticas nacionais relativas a sua área de atuação. Assim, há uma estrutura técnica, apoiada por um corpo de servidores públicos dentro da secretaria-executiva, capacitada para a análise e aplicação de recursos públicos, ao contrário dos juízes, que são desprovidos de tal apoio operacional, a menos que utilizem peritos e técnicos dentro de cada ação, o que não é economicamente factível. Por fim, com a centralização das decisões em um único órgão, há também uma maior fiscalização dos projetos criados.[7]
Portanto, o Conselho Gestor do Fundo de Defesa de Direitos Difusos foi concebido como uma forma de centralizar as decisões acerca do emprego dos recursos oriundos das condenações pecuniárias de forma a melhor efetivar a tutela material de direitos difusos e coletivos.
Os recursos do FDD se submetem à Lei Orçamentária Anual (LOA), que define os limites autorizativos de gastos governamentais. Evidentemente, as margens de gasto se sujeitam aos créditos suplementares, autorizados pelo Congresso Nacional, permitindo uma ampliação de tais limites. Contudo, de igual maneira, o FDD se sujeita aos decretos de contingenciamento. É por tal razão que sustentamos que o FDD, por se sujeitar à LOA, falha em atingir o fim máximo da Lei da Ação Civil Pública, ante a possibilidade do Presidente da República contingenciar os recursos do Fundo, de forma que a aplicação de receitas resta impossibilitada, representando a maior objeção ao atual sistema centralizado e administrativo de aplicação das condenações em ações coletivas.[8]
Ademais, o FDD vem sendo alvo de um número crescente de críticas diante da crise financeira que tomou conta do Brasil desde 2014, trazendo impactos econômicos, políticos e jurídicos. Dentre este último, um impacto significativo ao FDD levou o mesmo a sofrer duras críticas. Isso porque, no atual contexto político, a vinculação do FDD ao Ministério da Justiça e a sua submissão à Lei Orçamentária Anual fez com que o Conselho Gestor se encontrasse impossibilitado de aplicar os recursos recebidos.
O Ministério Público Federal em Campinas ajuizou a Ação Civil Pública n. 5008138-68.2017.4.03.6105, em face da União Federal, pelo contingenciamento dos recursos do Fundo de Defesa de Direitos Difusos com o evidente intuito de criar uma falsa impressão de superávit. Conforme apontado pelo Procurador da República subscritor, Edilson Vitorelli, desde 2014 é possível verificar, pelos dados trazidos pelo próprio Conselho Gestor, que a arrecadação dos anos anteriores só é efetivamente empregada de forma mínima, indo de encontro ao propósito de arrecadação desses recursos.
O que foi constatado pelo Ministério Público Federal foi que a Lei Orçamentária Anual não destina para o ano subsequente à arrecadação qualquer destinação, fazendo com que exista uma dotação orçamentária que não é efetivamente aplicada por não encontrar expressa previsão na Lei Orçamentária. Em consequência, o Conselho Gestor não pode autorizar novos projetos que utilizem o produto da arrecadação do Fundo.
Em decorrência de tal fato, as condenações judiciais no bojo de Ações Civis Públicas que visem a tutela de interesses transindividuais tornaram-se verdadeira forma de arrecadação primária do Executivo, como se tivessem natureza tributária. No bojo do Inquérito Civil n. 1.34.004.000625/2015-92, o qual originou a ACP, foi constatado que os recursos do FDD são utilizados pela União para reduzir a dívida líquida, de forma a equilibrar as contas públicas, desde o ano de 2006, conforme aduzido pelo ex-presidente do Conselho Gestor do FDD.
Embora a propositura da referida Ação Civil Pública represente um grande avanço no sentido de evitar o contingenciamento das arrecadações do Fundo, ainda que julgada procedente, a Ação ainda não resolve de todo o problema. Afinal, o cerne da questão não reside apenas na utilização dos recursos do Fundo, mas sim da ausência de alternativas ao mesmo para destinar as condenações pecuniárias.
Isso porque o Fundo de Defesa de Direitos Difusos é marcado por um caráter notadamente geral. Podemos observar, pelos dados trazidos pelo Ministério da Justiça (Anexo I) que embora a maioria esmagadora das condenações judiciais que passam a integrar a receita do Fundo sejam decorrentes de danos ambientais e consumeristas, há uma vasta gama de indenizações de outras naturezas, que envolvem o interesse de minorias, crianças e adolescentes, patrimônio cultural, dentre outros diversos. Isso porque o FDD não apresenta limite em relação à natureza do direito transindividual protegido. Consequentemente, o espectro de tutela é amplo.
Se por um lado essa abrangência permite que todos os direitos metaindividuais encontrem respaldo em nosso ordenamento jurídico brasileiro, a abrangência do Fundo impede que a condenação em pecúnia seja, de fato, utilizada para reparar o dano. Assim, há clara dissociação entre o dano sofrido e o a condenação judicial.
Além disso, como mencionado anteriormente, tanto no âmbito federal quanto estadual, o fundo previsto na LACP continua com natureza administrativa. Como dito, esta é a razão pela qual o magistrado responsável pela condenação não pode determinar uma destinação específica para o montante reparatório.
A partir do momento em que o recurso passa a integrar a receita do Fundo, se desvincula do processo judicial e passa a ser gerido pelo órgão responsável pela condução do Fundo, seu Conselho Gestor. Portanto, não é surpreendente que o art. 7º do Decreto Federal 1.306/94 determine que a aplicação dos recursos no local do dano é prioridade, mas não obrigação. Caso houvesse vinculação da indenização ao local do dano, estaria descaracterizada a própria natureza administrativa do Fundo, que permite que seja empregado os recursos da melhor forma possível para garantir a efetividade da reparação.
Ocorre que assim, caberia ao Conselho Gestor direcionar a condenação ao dano que lhe originou, sem qualquer óbice para destinar a condenação pecuniária no âmbito do dano sofrido, tendo em vista que, embora não seja obrigatório que a aplicação do recurso se dê no local do dano, há expressa previsão da origem daquele recurso para possibilitar que assim se dê, conforme a Instrução Normativa 4/1998.
Há autores que defendem, com propriedade, que os recursos obtidos pela condenação judicial devem permanecer na localidade do bem, diminuindo a margem de escolha do Conselho Gestor. Nesse sentido:
[...]Assim, se um bem jurídico coletivo foi lesado numa comarca do interior, e o Ministério Público daquela comarca, através de ação civil pública de natureza condenatória, obtém a indenização pecuniária, não se pode admitir sejam tais recursos destinados à reparação de bens lesados na comarca da Capital, por exemplo. E mais: se por qualquer razão se demonstrar impossível a reparação, os valores que a esta seriam destinados deverão reverter, preferencialmente, para a reparação de outros bens de mesma natureza.
Para que isto possa ocorrer, no entanto, seria necessário alterar-se o disposto no art. 7.º, e parágrafo único, do Decreto Federal 1.306/94, com vistas a impor-se a obrigatoriedade da vinculação da aplicação dos recursos no mesmo local em que se deu o dano, e não apenas prioritariamente, como dispõe o art. 7.º, do referido Decreto. Igualmente, deve ser inserta norma que disponha acerca da destinação daqueles recursos, por ordem de preferência, na impossibilidade total da reparação.[9]
Embora tal solução ajude a tornar o Fundo de Defesa de Direitos Difusos e Coletivos mais efetivo na reparação das lesões sofridas, ainda é insuficiente para enfrentar o verdadeiro problema: O caráter obrigatório da destinação das condenações judiciais ao FDD.
Por expressa previsão legal no art. 13 da Lei 7.347/85, a indenização reverterá ao Fundo Federal regulamentado por decreto ou seu Fundo Estadual correspondente. Portanto, estamos diante de uma regra a qual não comporta escolha do operador do direito em aplica-la ou não. Não há nenhuma margem dada pelo legislador infraconstitucional para que se interprete a norma no sentido de que a destinação ao Fundo é uma mera opção.
Assim, obrigatoriamente, no bojo de uma Ação Civil Pública, a condenação em dinheiro reverterá para o fundo previsto no art. 13, seja estadual ou federal, a depender do âmbito de abrangência do interesse violado.
O que aparentemente foi uma escolha deliberada do legislador com o intuito de reverter de forma segura as condenações judiciais para um meio de utilizá-las efetivamente, contudo, não vem se mostrando a melhor maneira de empregar os recursos arrecadados em sede judicial. O problema reside no fato de que a discricionariedade conferida ao Conselho Gestor do FDD é o que leva à ausência de devida aplicação com o intuito de reparar os danos sofridos. Na verdade, chamar de discricionariedade é, na verdade, um termo impróprio, pois estamos diante de uma verdadeira arbitrariedade sancionada por lei.
Estamos diante, portanto, de clara violação ao princípio da reparação integral. Tal princípio constitui o mandamento reitor da responsabilidade civil, e o caráter não patrimonial do interesse violado não pode ser utilizado como escusa para que se deixe de reparar, ao máximo possível o dano sofrido, porque é a partir da função punitiva da indenização por danos extrapatrimoniais que se deve garantir a eficácia do princípio da dignidade humana e da reparação integral[10].
3. CONCLUSÃO
Não se discute os méritos do sistema brasileiro no tocante a destinação das condenações pecuniárias. O nosso sistema confere um grau de transparência muito maior em relação ao sistema norte-americano, tendo em vista que o Conselho Gestor se submete ao controle do Tribunal de Contas e demais mecanismos de fiscalização de recursos públicos.
Possui, ainda, maior aproximação com a sociedade na medida em que o Conselho é formado por membros da coletividade, o que implica que, em tese, a sociedade tem participação direta, por meio de seus representantes no Conselho, no tocante à aplicação dos recursos, o que não seria o caso se a decisão coubesse unicamente ao magistrado.
Entretanto, vemos claramente que os recursos não vêm sendo utilizados de maneira eficiente. Afastadas as possíveis alegações de que se trataria de um problema de ordem técnica ou de ordem legislativa, por tudo que foi exposto, resta claro que o verdadeiro empecilho para a utilização efetiva dos recursos do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos e Coletivos é de natureza financeira, ou, mais especificamente, de natureza orçamentária.
Ao tratar o Fundo de Defesa de Direitos Difusos e Coletivos como instrumento apto a garantir as manobras orçamentárias do Poder Executivo, nos deparamos com um número considerável de indenizações que, após serem incorporadas ao referido Fundo, restam esquecidas, não sendo utilizadas para recomposição específica no local do dano, tampouco em ações de prevenção. Dessa forma, para solucionar o problema, devemos considera-lo sob dois aspectos.
No âmbito interno, ou seja, dentro do Fundo de Defesa De Direitos Difusos e Coletivos, faz-se necessário que seja previsto na Lei Orçamentária Anual vinculação específica da receita do Fundo, de forma que o orçamento abarque de forma concreta a utilização dessas dotações orçamentárias correspondentes.
Já no âmbito externo, devemos considerar que a Lei da Ação Civil Pública permite a cumulação de obrigações, de forma que nos parece adequado que o magistrado, ao proferir a sentença, priorize a obrigação de fazer específica para o agente ofensor, e, a título de punitive damages, determine o pagamento de um valor significativo a ser destinado ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos, a fim de que o referido Fundo seja cada vez mais voltado a ações preventivas, ficando a reparação propriamente dita centralizada em ações específicas determinadas pelo julgador.
Ainda, a Lei da Ação Civil Pública deve ser alterada de forma que a destinação ao Fundo seja uma faculdade, para, a cargo do magistrado, de forma devidamente fundamentada, seja possível a destinação específica da indenização, a fim de se atingir a máxima da reparação integral do dano, seja pela recomposição específica, seja pela determinação de ações preventivas.
REFERÊNCIAS
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[1] CARVALHO FILHO. José dos Santos. Ação Civil Pública: Comentários por artigo (Lei nº. 7.347, de 24/7/85). 8ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 389.
[2] MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo: Meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 432.
[3] MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo: Meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 604.
[4] FILHO, Humberto João Carneiro. Estrutura, funcionamento e evolução do fundo de defesa dos direitos difusos – FDDD. In Revista Jurídica da Seção Judiciária de Pernambuco. Disponível em <https://revista.jfpe.jus.br/index.php/RJSJPE/article/view/25>. Acesso em 15 de janeiro de 2019.
[5] CASAGRANDE, Aline. O Fundo de Reparação de Interesses Difusos Lesados Como Instrumento Democrático de Recomposição dos Danos à Coletividade. Disponível em < https://repositorio.ufsm.br/bitstream/handle/1/1685/Casagrande_Aline.pdf?sequence=1>. Acesso em 17 de janeiro de 2022.
[6] MEDEIROS NETO, Xisto Tiago. Dano moral coletivo. 2 ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 187.
[7] BADIN, Arthur. O fundo de defesa de direitos difusos. In Revista de Direito do Consumidor, vol. 67/2008, Recife: Revista dos Tribunais, p. 62-99, Jul-Set. 2008.
[8] BADIN, Arthur. O fundo de defesa de direitos difusos. In Revista de Direito do Consumidor, vol. 67/2008, Recife: Revista dos Tribunais, p. 62-99, Jul-Set. 2008.
[9] LEITE, José Rubens Morato. Algumas considerações acerca do fundo para reconstituição dos bens lesados. Revista dos Tribunais, vol. 726, p. 71, abril, 1996, p. 71- 84.
[10] SOARES, Roberto Oleiro. A indenização punitiva e a função punitiva da indenização por danos extrapatrimoniais e a questão da eficácia do princípio da reparação integral na defesa do consumidor. In Revista de Direito do Consumidor, vol. 108/2016, nov.-dez./2016, p. 89-117.
Advogada. Graduada em Direito pela UFAL. Pós-graduanda em Direitos Humanos pelo Círculo de Estudos pela Internet (CEI).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARRETO, Camila Pereira. A reparação pecuniária na tutela de interesses transindividuais e sua destinação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 set 2022, 04:29. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/59208/a-reparao-pecuniria-na-tutela-de-interesses-transindividuais-e-sua-destinao. Acesso em: 23 dez 2024.
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