RESUMO: O presente artigo traz em sua essência o estudo do princípio da vedação ao retrocesso social, observando o núcleo fundamental dos direitos fundamentais. Em um primeiro momento faremos uma breve evolução história dos direitos fundamentais, apontando em qual geração surgiram os direitos sociais. Passaremos, então, a analisar a proteção aos direitos socias na Constituição Federal de 1988, abordando também o mínimo existencial, a reserva do possível e a ponderação dos princípios constitucionais. Detalharemos no que consiste o princípio da vedação ao retrocesso social, com análise de julgados do Supremo Tribunal Federal, e a sua aplicação no direito da seguridade social.
PALAVRAS-CHAVE: Vedação ao retrocesso social. Princípios constitucionais. Mínimo existencial. Ponderação. Direito da seguridade social.
ABSTRACT: This article contains an analysis of the constitutional principle that inhibits social regression, observing the core of fundamental rights. First, we have a historical evolution of aforementioned rights, including social rights. Then, we will analyze the protection of social rights in the Brazilian Constitution from 1988, also addressing the right to basic conditions of life, the reserve for contingencies, and the weighting of the constitutional principles. We will detail the inhibition of social regression, analyzing former cases judged by the Brazilian Supreme Court, and its application for social security rights.
KEYWORDS: Fence to social regression. Constitutional principles. Minimum for existence. Weighting of principles. Social security laws.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Evolução histórica dos direitos fundamentais. 2. Os direitos sociais na Constituição da República de 1988. 2.1. Mínimo existencial. 2.2. O direito social subjetivo prima facie e a ponderação. 3. Direitos sociais e a reserva do possível. 4. O princípio constitucional da vedação ao retrocesso social. 5. A vedação ao retrocesso social na interpretação do Supremo Tribunal Federal. 6. A aplicação da vedação ao retrocesso no direito da seguridade social. Considerações finais.
INTRODUÇÃO
A proteção social disposta na Constituição Federal de 1988 é resultado de uma evolução histórica e legislativa infraconstitucional que, diante de tamanha relevância, foi inserido no texto da Constituição Cidadã. Um dos motivos da Carta Política ser reconhecida como cidadã deve-se justamente ao fato de incorporar a proteção de direitos sociais, dentre os quais está inserido o direito à Seguridade Social.
Seguridade Social possui um capítulo próprio na Constituição Federal de 1988[1] e é gênero, que possui como espécies a Saúde, a Assistência Social e a Previdência Social. Neste trabalho, faremos uma breve evolução histórica dos direitos fundamentais, até chegarmos nos dias atuais, para apresentarmos a importâncias das conquistas alcançadas ao longo do tempo, e da necessidade de cada vez mais serem efetivados tais direitos, além do dever estatal de não retirar aquilo que já foi incorporado patrimônio jurídico da pessoa.
Com o passar do tempo as sociedades perceberam que além de o Estado precisar exercer função ativa, através das políticas públicas, para serem atingidos os direitos sociais, também deve essa organização abster-se de qualquer ameaça aos direitos que já foram reconhecidos anteriormente.
A vedação ao retrocesso social começou a ganhar força na década de setenta, nas doutrinas alemã e portuguesa. Portanto, trata-se de visão relativamente nova, e que precisa ser adaptada para a realidade brasileira, totalmente diversa daquela vivida nos países europeus citados, mas que já encontra respaldo em posicionamentos dos tribunais superiores de nosso país.
Admitida a possiblidade de utilização da vedação ao retrocesso social como tese válida, carregando consigo a dignidade da pessoa humana, a efetividade estatal e o mínimo existencial, analisaremos como tem sido o posicionamento na Corte Suprema brasileira, e a sua aplicação no Direito da Seguridade Social, mormente após a edição da Emenda Constitucional nº 103/19, que implementou a chamada Nova Previdência.
1 – EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Há quem entenda que os primeiros traços dos direitos fundamentais surgiram ainda na idade antiga, na Grécia, quando se limitou a atuação do Estado com o intuito de garantir o direito do indivíduo. Posteriormente, já na Idade Medieval (entre os séculos V e XV), o poder estava quase em sua totalidade nas mãos da Igreja Católica, e por isso o direito canônico influenciou sobremaneira os direitos dos cidadãos, em um verdadeiro período de inquisição. Nessa época eram comuns as arbitrariedades e a inobservância dos direitos da pessoa como o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal.
Até que em 1215 o Monarca João Sem Terra edita a Magna Carta Libertatum sob ameaça dos Barões de sua retirada do poder, surgindo as primeiras linhas dos direitos fundamentais da pessoa humana, como o devido processo legal e a individualização da pena, que persistem até hoje na sociedade. Nota-se a nítida limitação ao poder do Rei, começando a demonstrar a ideia de abstenção do Estado para trazer liberdade ao cidadão.
Com a Revolução Francesa em 1789, que teve como lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, é que os direitos fundamentais de primeira geração, ou primeira dimensão, são consolidados, fazendo com que o Estado respeite a liberdade de cada ser humano. Nessa época já se falava em irretroatividade da lei penal e na proteção da pessoa em relação a autoridade, tudo com o objetivo de fortalecer os direitos individuais e afastar as arbitrariedades ainda comuns.
Com o surgimento do Iluminismo na Europa a razão passou a ser observada como uma forma de remodelar a sociedade. Nesse momento histórico, Cesare Beccaria escreve o icônico livro Dos Delitos e Das Penas tecendo severas críticas à crueldade das penas aplicadas à época, introduzindo a ideia de proporcionalidade em relação aos delitos cometidos, e que a pena deveria servir para proteção da sociedade e desestímulo de outros delitos, e não simplesmente punição ao delinquente.
Em 1789, também a França promulga a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, um preâmbulo da Constituição Francesa de 1791, onde se positiva a liberdade do indivíduo como a possibilidade de exercer tudo aquilo que quiser, respeitado o limite da liberdade do outro cidadão.
Trazendo para o Brasil, a Constituição de 1824, apontada pela doutrina como uma constituição nominativa por não ser traduzida na prática pela atuação estatal, ainda não se adequava ao contexto mundial de proteção do indivíduo, dos direitos fundamentais de primeira dimensão, uma vez que colocava como Poder do Estado o Poder Moderador, exercido pelo próprio imperador. Com a Constituição de 1891 as primeiras ideias de direitos fundamentais passaram a constar do texto constitucional.
Após a Primeira Guerra Mundial as constituições dos países buscaram proteger o que até então não resguardava, como a proteção da família, da ordem econômica e social, da educação, e da função social da propriedade, apresentando os chamados direitos de segunda geração. Dessa forma, o Estado passa a precisar de uma atuação em relação aos indivíduos para ter esses direitos concretizados, e não mais uma conduta passiva como nos direitos de primeira geração.
A Constituição do México de 1917 e a Constituição de Weimar, de 1919 foram as primeiras a positivarem os direitos sociais, incentivando os demais países a fazerem o mesmo. No Brasil, as Constituições de 1934 e a de 1937 seguiram esse modelo, já trazendo capítulos específicos para os direitos individuais e os direitos sociais. Como destaque está a colocação da Saúde e da Educação como um dever do Estado no texto constitucional.
O conceito de direitos fundamentais teve origem na Declaração Universal dos Direito Humanos de 1948, um macro temporal na proteção dos direitos humanos, que pela primeira vez teve a sua proteção no âmbito internacional. O direito à Seguridade Social, especificamente o direitos Previdenciário, foi colocado pela primeira vez como um direito fundamental, uma garantia do homem na proteção em casos de doença, velhice e viuvez.
Ainda com relação a tratados internacionais, merece destaque o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, realizado com o intuito de dar maior efetividade à Declaração de 1948. Esse foi uma segunda proteção do Direito à Previdência como direito fundamental.
Tivemos ainda a Constituição de 1967, que reduziu os direitos individuas, indo na contramão do resto do mundo, até que em 1988, a Constituição vigente até a atualidade, conhecida como Constituição Cidadã é promulgada, dando alta relevância aos direitos fundamentais.
A Carta Magna de 1988 foi promulgada com a ideia de melhorar a sociedade, principalmente trazendo a busca pela igualdade social, promovendo os direitos do cidadão, e dando-lhe instrumentos para até mesmo fiscalizar o cumprimento do texto constitucional.
O Decreto Legislativo nº 591/1992 internalizou o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ao direito brasileiro, tornando obrigatória a observação pelo Estado da efetivação à proteção do acesso de todos à seguridade social.
São nos direitos de segunda geração que está inserido o direito à seguridade social, que engloba a saúde, a assistência social e a previdência social. E é nesse contexto que iremos explorar a vedação ao retrocesso social neste trabalho.
2 – OS DIREITOS SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988
Como visto, os direitos fundamentais estão espalhados por todo o texto constitucional. Os direitos sociais, especificamente, começam a ser desenhados pelo constituinte originário no artigo 6º, que dispõe sobre os direitos trabalhistas.
Reconhecidos como direito de segunda geração, o Estado precisa atuar para a sua efetivação, ao contrário dos direitos de primeira geração quando a ordem constitucional era de abstenção para que não fossem violados.
Devemos ter atenção de que os direitos sociais, quando não atendidos, devem ser exigidos do Estado, não se caracterizando apenas como uma obrigação moral, mas também uma obrigação reconhecida pelo próprio ente ao assinar diversos tratados internacionais que versam sobre a proteção dos direitos do trabalhador e dos segurados, aplicando o máximo possível dos recursos para essa proteção e efetivação.
Dos ensinamentos de Norberto Bobbio podemos extrair que os direitos fundamentais surgem naturalmente, até que são positivados nas constituições, e por fim serão realizados quando o poder estatal empregar as suas políticas públicas para atingir plenamente esse direito positivo universal. Por isso, os direitos sociais não são meramente normas programáticas, mas contém em si um direito exigível do Estado, seja ele do Poder Executivo, Legislativo, ou na omissão desses dois, do próprio Poder Judiciário.
A Constituição de 1988 trouxe bases sólidas para promover os direitos sociais, com características normativas, ou seja, deixa de ser nominativa, apenas elencando direitos, mas passa a trazer mecanismos de efetivação desses direitos.
Claro que não se resolveram todas as questões sociais pela promulgação da Constituição, mas ela passou a ser mais condizente com a realidade social da época em que foi promulgada, e precisa ser constantemente atualizada para se adequar a realidade social em que vivemos.
Muito se fala da criação do Estado Democrático de Direito pela Constituição Cidadã, mas alguns doutrinadores apontam que na verdade o que se iniciou foi mais do que isso, surgiu um Estado Social e Democrático de Direito. Entre os defensores desse pensamento estão José Afonso da Silva e Paulo Bonavides. Isso proque nos artigos 1º e 3º estão elencados os princípios e objetivos da República que devem ser observados para a efetivação dos direitos sociais, na busca pelo atingimento do bem comum.
Dalmo Dallari conceitua bem comum como “o conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana” (DALLARI, 1998, p. 41)[2]. Logo, para se atingir o bem comum, é imprescindível a efetivação dos direitos fundamentais de segunda geração, caminhando para também serrem atingidos os objetivos da República, e cumpridos os princípios elencados na Constituição Federal.
Diante do Estado Social e Democrático de Direito, o direito brasileiro, sob influência da doutrina alemã, passou a reconhecer uma força normativa à Constituição, o que trouxe uma busca pela maior efetivação dos direitos. Luis Roberto Barroso ensina que as normas constitucionais possuem também uma imperatividade, um comando, e no seu descumprimento, seja por ação ou omissão, é necessária atuação estatal (geralmente pelo Poder Judiciário) para restaurar a ordem constitucional.
Com base na Teoria da Separação dos Poderes de Montesquier, por muito tempo se entendeu que os direitos sociais eram normas programáticas, direcionadas ao Poder Legislativo e ao Executivo, que tinham a opção de cumpri-lo ou não, e qualquer intervenção do Poder Judiciário seria ilegítima, porque o juiz não era eleito pelo povo.
Atualmente não se vislumbra válido tal posicionamento porque, na medida em que a sociedade evolui, as determinações constitucionais também precisam avançar, mas obviamente esta segunda ocorre de forma mais lenta, como resposta a alteração social. E nesse momento é que surge o chamado ativismo judicial para efetivação dos direitos sociais. A justiça proativa tem sido aceita no Brasil, mas também deve respeitar os princípios e normas que constam do texto constitucional.
Quando houver um conflito entre normas com conteúdo de princípios e direitos fundamentais, deverá haver uma ponderação desses princípios, em um fenômeno de elasticidade dessas regras, para que sejam utilizadas até o seu limite, sem violar outra norma ou princípio. Essa ponderação também é fundamental para resolver eventuais conflitos conceituais como o mínimo existencial e a efetivação do direito fundamental.
Os direitos sociais estão por todo o texto da Constituição da República de 1988, como por exemplo, além do artigo 6º já citado, todos aqueles que constam do Capítulo II, que trata justamente dos Direitos e Garantias Fundamentais.
Um dos fundamentos da República é justamente a dignidade humana, que tem por objetivo, conforme previsto no artigo 3º da Constituição de 1988, acabar com a pobreza e reduzir as desigualdades sociais. E os direitos socias existem justamente para garantir essa dignidade, motivo pelo qual estão protegidos como cláusula pétrea.
Por ser um direito fundamental, o direito social tem aplicabilidade imediata, conforme dispõe o parágrafo 1º do artigo 5º. Além disso, pelo mesmo motivo, o seu núcleo é garantido como cláusula pétrea, ou seja, não pode ser objeto de nenhuma alteração tendente a reduzi-lo ou aboli-lo.
A norma que trata de um direito social traz em si a eficácia em favor do cidadão, que pode exigir o seu cumprimento pelo Poder Público, e da mesma forma, um conteúdo programático para o Legislativo e o Executivo implementarem a política pública adequada, que se não acontecer, abre a possiblidade da pessoa buscar o Poder Judiciário para ter atendido o seu direito fundamental, em verdadeira judicialização do direito social.
2.1 – O MÍNIMO EXISTENCIAL
Todo direito fundamental possui um núcleo de prestação obrigatória, um mínimo existencial, que é dever do Estado garantir a sua inviolabilidade. Não pode o Estado se negar a cumprir algum direito fundamental em seu núcleo, nem mesmo sob a alegação de inexistência de recursos, sob pena de esvaziar a razão do direito fundamental.
Esse mínimo existencial, chamado por parte da doutrina de núcleo essencial, está embasado no próprio supraprincípio constitucional da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, III da Constituição Federal/88.
Mínimo existencial pode ser conceituado como uma obrigação mínima, um dever do Estado, não podendo afastar o ser humano da sua condição de humanidade, evitando, assim, a agressão da autonomia e da dignidade humana.
Dessa forma, o sempre suscitado argumento da impossibilidade de efetivação do direito social em razão da reserva do possível, colocando os valores econômicos a frente dos valores sociais, perde a sua validade quando aponta para um sentido que irá deixar de atingir, ou acarretará na redução da proteção, ou até mesmo extinção, do direito social.
O mínimo existencial tem em seu conteúdo o conjunto de prioridades definidas na constituição para atuação do Estado. Deve ser prioridade do Estado alocar os seus recursos para políticas públicas que irão prover o mínimo existencial à sua população. E em caso de judicialização do direito social não implementado pelo Poder Público, visando restabelecer o mínimo existencial do cidadão, o magistrado estaria dispensado de observar o argumento da reserva do possível diante da ponderação entre o direito social e a visão econômica.
2.2 – O DIREITO SOCIAL SUBJETIVO PRIMA FACIE E A PONDERAÇÃO
Além da própria ideia do mínimo existencial, caso não se trate de algo ligado ao núcleo fundamental, o direito social deve ser observado como um direito subjetivo prima facie, aquele que é perceptível como possível, mas pela técnica da ponderação de princípios e regras não se decide pelas extremidades, ou sim ou não.
Esse direito social subjetivo prima facie tem natureza principiológica, e por isso está sujeito a ponderação no caso concreto, devendo ser aplicado com razoabilidade na decisão. Com essa ponderação e a elasticidade dos princípios constitucionais e direitos fundamentais, se protege, de fato, o direito social.
Luis Roberto Barroso aponta que a ponderação verifica, além das normas aplicáveis ao caso concreto, os conjuntos de princípios constitucionais de interpretação, onde estão inseridos o princípio da máxima efetividade, o da razoabilidade e da interpretação conforme a constituição, entre outros. Isso tudo deve ser utilizado para solucionar o caso concreto, interpretando de forma mais apropriada e proporcional o direito que se busca, sem esquecer o mínimo existencial.
Dentro do conflito de direitos fundamentais e princípios, cabe ao intérprete buscar observar o mínimo existencial como motivo suficiente para efetivar o direito social, e de outro lado, quando não se referir ao núcleo fundamental, estaremos diante de um direito subjetivo prima facie, que deve também ser respeitado na ponderação do caso concreto.
Importante consignar também que os direitos fundamentais ainda podem ser interpretados de forma conjunta para dar ainda mais força aos direitos sociais, como no caso das prestações de saúde, onde se complementam o direito à vida e à saúde, protegendo a dignidade da pessoa humana em face de outros direitos.
3 – DIREITOS SOCIAIS E A RESERVA DO POSSÍVEL
Assim como em tudo no mundo moderno, implementar os direitos sociais envolve valores econômicos muitas vezes elevados. Isso quer dizer que além da vontade política, é necessário financiamento, dinheiro. E quando se trata de dinheiro público para implantação das políticas públicas, esses valores devem sempre ser previstos na lei orçamentária.
A ideia da reserva do possível foi pela primeira vez debatida no Brasil em 2004, quando ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 45, o Ministro Relator Celso de Mello elaborou detalhada análise sobre a efetividade dos direitos fundamentais de segunda geração em observância ao mínimo existencial, que faz parte do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, em oposição à reserva do possível.
No mérito, referida ação foi julgada prejudicada em razão da alteração legislativa posterior à distribuição da demanda, mas em seu voto o Decano trouxe ensinamentos de grande relevância para o tema que estamos estudando neste trabalho.
Em um primeiro momento, Celso de Mello pontuou que o Poder Público pode incorrer em inconstitucionalidades tanto por ação quanto por omissão, reconhecendo a competência constitucionalmente atribuída ao Supremo Tribunal Federal para sanar tal vício. Ainda no voto, reconheceu que as políticas públicas necessitam de um aporte financeiro, e que não pode o Poder Público criar obstáculos para frustrar a efetividade do direito social. E textualmente coloca:
“Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.”[3]
O que Celso de Mello consignou em seu brilhante voto é que o Estado não poderá deixar de implementar ações simplesmente alegando a reserva do possível, a ausência de recursos, em razão da obrigação constitucional que recebeu do Constituinte Originário. Mas, se objetivamente comprovada a impossibilidade econômica para realizar uma política pública com o intuito de efetivar direito social, também não poderá se exigir tal conduta estatal, quando será lícito invocar a cláusula da reserva do possível.
Tendo em vista que a Constituição Federal/88 tem como princípio basilar assegurar o bem estar social, o que implicitamente carrega a dignidade da pessoa humana, nos casos em que for alegada a reserva do possível, o intérprete deve, ao menos, observar o mínimo existencial, e assim eleger as prioridades dos gastos públicos. Dessa forma seria possível ponderar o mínimo existencial e a reserva do possível. Mas só depois de assegurado o mínimo existencial é que se pode eleger as prioridades orçamentárias.
Deve haver, então, uma razoabilidade entre a pretensão individual e a proteção social da coletividade. Desta feita surge o binômio que deve ser observado: se por um lado deve haver razoabilidade na pretensão da sociedade em face do Estado, do outro precisa existir a disponibilidade financeira pública para efetivar as prestações reclamadas.
Andreas Joachim Krell, em sua obra Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha, coloca que as normas constitucionais que se referem a direitos sociais devem ter natureza aberta para não carregar consigo a necessidade de atualização periódica e possibilitarem diversas formas de concretizá-los.
O Supremo Tribunal Federal já firmou posicionamento pela impossibilidade de o Estado sustentar a reserva do possível para deixar de cumprir sua obrigação constitucional e assim deixar de efetivar a consagração do direito social, muito menos quando se tratar de algum valor protegido pelo mínimo existência.
A reserva do possível fica limitada ao mínimo existencial, que se constitui da junção de prerrogativas para garantia da dignidade da pessoa humana. O mínimo existencial não pode ser sequer mitigado, devendo permanecer intacto e protegido, mesmo que inexista recurso financeiro capaz de provê-lo.
Assim, deverá o Poder Público, primeiro pelos Poderes Legislativo e Executivo, garantir o mínimo existencial, alocando prioritariamente suas verbas para tanto, e só depois disso, com base na reserva do possível deixar de implementar alguma ação que estaria obrigado, e dessa forma não irá ferir o mínimo existencial.
4 – O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL
Antes mesmo de nos aprofundarmos no princípio objeto do nosso estudo, necessário pontuar sobre o que se entende como princípio constitucional atualmente. Princípio é o centro do sistema jurídico, que possui força normativa, constituindo-se mais do que mera fonte do direito.
Luís Roberto Barroso ensina que o princípio constitucional é “o norte pelo qual deve guiar o operador do direito”[4]. O princípio é mais do que a própria norma, é um instrumento multifuncional, nos dizeres de J.J Canotilho. Segundo Celso Antonio Bandeira de Mello, princípios são proposições de caráter fundamental no sistema, de tal maneira que alcança todos os seus dispositivos, o que redunda que desobedecer a um princípio é mais grave do que desobedecer a uma regra. Wladimir Novaes Martinez aponta que princípios devem ser arguidos e utilizados para aperfeiçoar o entendimento e interpretação do tema, constituindo uma importante ferramenta operacional.
Os princípios são carregados de valores enquanto as regras apenas descrevem condutas que devem ser seguidas em determinadas situações. Os princípios são proposições, juízos, valores que a sociedade adota e que se propagam por todo o sistema. O princípio é aplicado observando as regras de ponderação, porque não há princípio absoluto, enquanto a regra se utiliza da subsunção do fato à norma.
O Princípio da Vedação ao Retrocesso Social é amparado por outros princípios constitucionais, como o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o Princípio da Máxima Efetividade (previsto no artigo 5º, parágrafo 1º da Constituição/88), o Princípio do Estado (Social) Democrático de Direito, o Princípio da Segurança Jurídica, da Confiança e da Boa-Fé.
As primeiras linhas da vedação ao retrocesso surgiram na década de 50, na Itália, quando se concluiu que uma vez atingido determinado direito social, ele não poderia ser diminuído, sendo vedado ao legislador retornar ao estado anterior.
Posteriormente, já na década de 70, em Portugal também se aplicou tal princípio em julgado do Tribunal Constitucional em julgamento sobre uma norma que buscava revogar direitos relativos ao Sistema Nacional de Saúde, sendo tal norma declarada inconstitucional com base na vedação ao retrocesso social. O Tribunal Constitucional português colocou como requisitos para aplicação do princípio a norma atingir o mínimo existencial, que é inerente à dignidade da pessoa humana; e a violação de direito adquirido, do princípio da confiança e da segurança jurídica em âmbito social, econômico e cultural.
No Brasil o núcleo dos direitos fundamentais, o mínimo existencial, já é protegido pelas cláusulas pétreas e pelo próprio princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, bastando demonstrar a violação ao segundo requisito para aplicar a vedação ao retrocesso.
A Alemanha também já aplicou a vedação ao retrocesso social, mas com relação ao direito de propriedade, que no entendimento da doutrina germânica é inerente aos direitos individuais, e por consequência protege também os direitos prestacionais.
Quando aplicado em relação ao direito brasileiro, o princípio da vedação ao retrocesso possui diversas expressões com equivalência semântica, como por exemplo princípio da não reversibilidade, princípio da vedação da contrarrevolução social, princípio da vedação à estagnação social e princípio da irreversibilidade dos direitos fundamentais.
Existe discussão doutrinária sobre o princípio em estudo ser implícito ou explícito na Constituição, sendo a maioria defendida pela primeira hipótese. Mas não há dúvidas que existem dispositivos constitucionais que expressamente tratam da proibição de retrocesso como no próprio artigo 3º, II, que coloca como objetivo da República o desenvolvimento social, e o artigo 216-A, parágrafo 1º, XII, inserido no texto constitucional pela Emenda Constitucional nº 71.
Além disso, o texto do Decreto Presidencial nº 676, de 1992, que internalizou o Pacto de San José da Costa Rica ao direito brasileiro previu expressamente o princípio da estagnação à vedação social em seu artigo 26.[5]
Seguindo a doutrina de Ingo Sarlet, o princípio da vedação ao retrocesso social tem como fundamento os princípios do Estado Social e Democrático de Direito e na fundamentabilidade dos direitos constitucionais, principalmente a dignidade da pessoa humana e a segurança jurídica. Um Estado que não confere segurança aos seus cidadãos, fazendo constantes alterações legislativas tendentes e violar um mínimo existencial, perde a sua credibilidade e abala a confiança da população para com esse Estado, trazendo prejuízos sociais e econômicos.
Lenio Streck, em sua obra Hermenêutica Jurídica e(m) Crise[6], trata do princípio em estudo com os seguintes dizeres:
“(...) a Constituição não tem somente a tarefa de apontar para o futuro. Tem, igualmente, a relevante função de proteger os direitos já conquistados. Desse modo, mediante a utilização da principiologia constitucional (explícita ou implícita), é possível combater alterações feitas por maiorias políticas eventuais, que, legislando na contramão da programaticidade constitucional, retiram (ou tentam retirar) conquistas da sociedade. Veja-se, nesse sentido, a importante decisão do Tribunal Contitucional de Portugal, que aplicou a cláusula da “proibição do retrocesso social”, inerente/imanente ao Estado Democrético e Social de Direitos: “... a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numa obrigação positiva, para se transformar ou passara também a ser uma obrigação negativa. O Estado que estava obrigado a atuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social””. (STRECK. 2004, p. 254/255)
Veja que no posicionamento da Corte Constitucional portuguesa, a partir do momento em que o Estado consegue efetivar um direito social, deixa de ter uma obrigação de fazer, e passa a ter uma obrigação de não fazer, que é abster-se de atentar contra esse direito social implementado.
Para Sarlet, o princípio da vedação ao retrocesso social é uma forma de proteger os direitos fundamentais das ações do Poder Público, seja o poder Executivo ou Legislativo, que tenham por objetivo suprimir ou restringir esses direitos.
Dessa forma, não se pode revogar uma lei que trate de direito social sem que uma outra garanta eficácia equivalente, colocando em risco o mínimo existencial de cada indivíduo. Se necessário, deve o operador do direito buscar aplicação efetiva da vedação ao retrocesso. É dever do Estado garantir o equilíbrio, a justiça e o bem estar social, por meio de suas políticas públicas, buscando implementar os direitos fundamentais, e uma vez implementados, deverá se abster de restringi-los, respeitando o direito adquirido dos cidadãos.
J. J. Gomes Canotilho aponta que qualquer medida governamental, seja ela uma lei ou um ato administrativo, que reduza a proteção do mínimo existencial sem criação de alternativa ou compensação, que acarrete em anulação, revogação ou aniquilação desse núcleo essencial, deve ser reconhecida como inconstitucional com base na proibição do retrocesso social. Para ele, uma vez atingido o direito social, ele passa a ser uma garantia constitucional e um direito subjetivo do cidadão, e por isso não pode ser reduzido.
Em seus estudos mais recentes, Canotilho se manifestou sobre a impossibilidade de sustentação do princípio da vedação ao retrocesso diante das crises, principalmente a crise econômica que supostamente poderia levar à falência o sistema previdenciário. Seria possível, então, tolerar certas restrições de direitos sociais já conquistados, em face da crise econômica.
Não nos aprece aceitável, como ordinariamente vem ocorrendo, que a análise econômica do direito seja colocada à frente do próprio direito, principalmente quando se trata de um direito fundamental. É certo que o fator econômico deve ser sopesado, mas somente após a questão jurídica do direito em si ser enfrentada, e não o contrário, como tem sido feito pelo Poder Judiciário atualmente. Na ponderação entre a viabilidade econômica e a efetividade do direito social, sempre deve prevalecer a segunda opção.
É dever do Estado atuar para buscar uma melhora progressiva das condições de vida da população, inclusive consta do artigo 3º como objetivo da República a redução das desigualdades sociais e a construção de uma sociedade mais justa e solidária. Qualquer medida que possa suprimir uma garantia já implementada só pode ser aceita se criado algum outro mecanismo para se chegar ao mesmo direito.
Podemos perceber que o Princípio da Vedação ao Retrocesso Social é um direito constitucional de resistência, que visa proteger dos atos governamentais aquilo que já é de conhecimento da sociedade como direito. Logo, é vedado qualquer ato tendente a mitigar tais conquistas sociais, impedindo que sejam implementados em patamares menores do que os já atingidos.
O princípio em estudo não é um obstáculo para qualquer alteração de um direito social, mas essas alterações devem respeitar aquilo que já foi alcançado pela sociedade. A segurança da intangibilidade do mínimo existencial dos direitos sociais é condição para o atingimento da dignidade da pessoa humana. A certeza jurídica é que vai garantir que as alterações legislativas sobre direitos fundamentais (que são necessárias de acordo com a evolução da sociedade) serão justas e proporcionais.
Não pode o Poder Estatal conceder uma proteção insuficiente dos direitos fundamentais, mas caso seja necessária alteração com relação a proteção desses direitos, ela deverá observar a adequação, a necessidade e a proporcionalidade, e não poderá atingir o mínimo existencial.
Cumpre pontuar, ainda, que o princípio da vedação ao retrocesso social seria oponível até mesmo em face de um poder constituinte originário, que a princípio aparenta ser ilimitado, mas possui limitações nos tratados internacionais de direitos humanos, no núcleo essencial do direito fundamental e nos chamados limites transcendentes, que inclui a vedação ao retrocesso, impedindo o legislador constituinte originário de suprimir ou esvaziar um direito social já consolidado no mundo jurídico.
5 – A VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL NA INTERPRETAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A Suprema Corte brasileira já foi provocada para manifestar-se sobre a aplicação do princípio à vedação do retrocesso social em algumas oportunidades, aplicando tal proibição em alguns casos e afastando tal aplicação em outros. Passemos a analisar os votos emblemáticos que trataram sobre o princípio aqui destacado.
Uma primeira manifestação que merece destaque citou a vedação ao retrocesso social no julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 1.946/DF[7], que tratava da Emenda Constitucional nº 20/98 em relação ao salário-maternidade. Na oportunidade, o Ministro Relator Sidney Sanches apontou em seu voto que o retrocesso em relação a direitos sociais não pode se presumir, precisando da comprovação de que houve violação do mínimo existencial para aplicação do princípio.
Outra manifestação ocorreu em sede de controle difuso de constitucionalidade no julgamento do Agravo Regimental em Recurso Extraordinário nº 639.337[8], que analisou a obrigatoriedade do Município em manter atendimento escolar, por meio de creche, para crianças de até cinco anos de idade. Em acórdão relatado pelo Ministro Celso de Mello, em tópico específico sobre a proibição do retrocesso, reconheceu-se que essa cláusula é um obstáculo constitucional para “desconstituir conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive”. Apontou também que o Estado, uma vez reconhecido o direito de uma prestação, tem o dever não só de tornar esse direito efetivo, como também se abster de frustrar os direitos sociais já concretizados.
Ao julgar improcedente a ADI nº 3.104/DF[9] a relatora Ministra Carmen Lúcia, afastou a aplicação do princípio da vedação ao retrocesso social alegado na petição inicial. No caso, buscava-se o reconhecimento de que as alterações da Emenda Constitucional nº 20/98 teria criado um direito subjetivo de aposentadoria aos servidores com a sua publicação. A maioria do Supremo Tribunal Federal seguiu a relatora, e entendeu não haver inconstitucionalidade porque não foi atingido o direito à aposentadoria em si, houve apenas alteração dos critérios para o novo modelo previdenciário que veio instituir.
Outras ações declaratórias de inconstitucionalidade foram propostas em face da Emenda Constitucional nº 41/03, as ADI nº 3.105-8/DF e ADI nº 3.128-7, que impugnavam a criação da contribuição previdenciária do servidor inativo. Nesse caso, ao acompanhar o voto da Ministra Relatora Ellen Gracie, que foi vencido, Celso de Mello pontuou a fundamentabilidade do direito à previdência social, invocando a vedação ao retrocesso para consignar que não poderiam ser desconstituídas as conquistas que já foram alcançadas pela sociedade.
Em seu voto, o Decano ainda ratificou que “a conquista da garantia de não mais contribuir para o regime da previdência com o ato de aposentação não poderia ser suprida para obrigar os aposentados e pensionistas a contribuírem como contribuintes do sistema, sob pena de retrocesso ilegítimo desse direito”[10] (MELLO, 2004).
Mais uma vez em sede de controle concentrado, no julgamento da ADI nº 4.543[11], que buscou a inconstitucionalidade da Lei 12.034/09, que reinstituiu o voto impresso, a Ministra Relatora Carmen Lucia reconheceu a vedação ao retrocesso porque violaria cláusula pétrea do voto secreto.
O que se percebe é que o Supremo tribunal Federal já aplicou o princípio da vedação ao retrocesso social em diversos julgamentos, mas também afastou a aplicação do mesmo princípio em outros tantos. Mesmo nos casos em que a maioria entendeu pela improcedência da ação declaratória de inconstitucionalidade, alguns ministros sustentaram a aplicação do princípio da vedação do retrocesso social nos exatos termos como apresentamos nesse trabalho, não como uma limitação absoluta ao Poder Público, mas sim observando o mínimo existencial, a segurança jurídica, o direito adquirido e a dignidade da pessoa humana.
Possivelmente o Supremo Tribunal Federal irá se manifestar sobre o tema em breve, quando julgar as ações declaratória de inconstitucionalidade ajuizadas em face da Emenda Constitucional nº 103/19, que reformou o sistema previdenciário brasileiro. Grande parte dessas ações possui dentre os seus argumentos pela inconstitucionalidade de alguns dispositivos da referida emenda o princípio da vedação ao retrocesso social. Essas ações ainda estão pendentes de julgamento.
6 – A APLICAÇÃO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO NO DIREITO DA SEGURIDADE SOCIAL
Quando estiverem prontas para serem julgadas as ADIs propostas em face da Reforma da Previdência, muito possivelmente a Suprema Corte brasileira vai analisar a possibilidade de aplicação do princípio em estudo no direito previdenciário. Isso porque uma parcela da doutrina entende que a aplicação desse princípio impediria toda e qualquer reforma do sistema previdenciário, e por isso seria inoponível em face de alterações legislativas com esse tema.
Na verdade, como já mencionado anteriormente, a vedação ao retrocesso não quer engessar o legislador, mas quer garantir que ao menos um mínimo existencial, um núcleo dos direitos sociais, como é o caso do direito à seguridade social, seja preservado e não retome a um status menor do que aquele já conquistado.
No capítulo anterior, quando analisamos algumas decisões do Supremo Tribunal Federal que fundamentou seu posicionamento na proibição do retrocesso, vimos que alguns casos tratavam de temas afetos à seguridade social, como no julgamento dos casos envolvendo salário-maternidade na EC 20/98 e nas contribuições dos inativos previstas na EC 41/03. De fato, ambas as ações foram julgadas improcedentes, decidindo pela constitucionalidade da norma, mas comprova que, ao menos em tese, é possível a aplicação da vedação ao retrocesso social no direito da seguridade social.
Até mesmo porque, trata-se de princípio que vai ao encontro da própria finalidade da seguridade social, qual seja atingir a dignidade da pessoa humana, o bem estar social, reduzindo as desigualdades. Evitar a redução ou extinção de benefícios e serviços previdenciários e assistenciais é um dever do Poder Público, abstendo-se de atuação sobre aquilo que já foi conquistado pela sociedade.
Vale dizer também que algumas ADIs que atacam a Emenda Constitucional nº 103/19 já possuem parecer da Procuradoria Geral de República pela procedência das ações. No caso, por exemplo, da ADI 6.916/DF, o parecer ministerial alega a ausência de razoabilidade e proporcionalidade da nova forma de cálculo da pensão por morte e aposentadoria por incapacidade permanente não decorrente de acidente do trabalho, ferindo também a dignidade da pessoa humana. Veja que o fundamento resvala na vedação ao retrocesso social, apesar de não citar tal princípio textualmente (talvez como estratégia processual diante do posicionamento anteriormente apontado no Supremo Tribunal Federal).
Portanto, apesar da divergência de parte da doutrina, e com base nos próprios julgados do Supremo Tribunal Federal analisados, entendemos pela possibilidade de aplicação do princípio da vedação ao retrocesso social nos casos afetos aos direitos da seguridade social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os direitos sociais são considerados direitos fundamentais de segunda dimensão, e dentro deles estão inseridos o direito à saúde, à educação, à economia, à cultura, à previdência social, entre outros. Enquanto os direitos fundamentais de primeira geração (liberdade, contraditório, ampla defesa, etc) demandavam um não fazer por parte do Estado, os direitos de segunda geração, exigem uma atuação estatal para a sua efetivação, garantia e proteção.
Cumpre ao Poder Público editar leis (por meio do Poder Legislativo) e realizar ações (pelo Poder Executivo) para que o cidadão implemente esses direitos socias que, uma vez atingidos, não poderão sofrer alteração que o leve para um status inferior àquele que foi contemplado. É nisso que consiste o princípio da vedação ao retrocesso social.
Todo direito fundamental possui um núcleo fundamental, um mínimo existencial que não pode ser atingido por qualquer lei ou ato administrativo. Por isso, esse mínimo existencial é protegido como cláusula pétrea pelo artigo 60, parágrafo 4º da Constituição da República Federativa do Brasil. É esse mínimo existencial que deve ser priorizado quando da elaboração das leis orçamentárias, com alocação de valores suficientes para a sua garantia, proteção e continuidade de atingimento.
Quando não observado o mínimo existencial, seja por ato omissivo do Estado quando deixar de realizar alguma política pública a que estava constitucionalmente obrigado, seja por ato comissivo, quando altera a legislação par reduzir a proteção do direito social e acaba afetando o mínimo existencial, o Poder Judiciário poderá ser provocado para que seja restabelecida a proteção ao mínimo existencial, o que fará pela ponderação de princípios e regras constitucionais e internacionais.
Ao nosso ver, o mínimo existencial deve prevalecer sobre a cláusula de reserva do possível, sempre suscitada pelos órgãos estatais em juízo e nas exposições de motivos das alterações legislativas. Justamente porque, por meio da ponderação, se observa de um lado o atingimento de um direito social amparado pela Constituição, no intuito de atingir os objetivos e princípios da República previstos nos artigos 1º e 3º da Constituição Federal, entre eles a dignidade da pessoa humana, a segurança jurídica e a redução das desigualdades sociais. E do outro, o interesse econômico, de menor relevância no contexto dos direitos fundamentais.
O argumento da reserva do possível só seria relevante em momento de crise econômica e desde que objetivamente comprovada no caso concreto, como apontou Canotilho em seus mais recentes trabalhos, e Celso de Mello em suas manifestações acerca do princípio da vedação ao retrocesso social. E mesmo comprovada a impossibilidade econômica de realizar alguma política pública, admitindo-se a mitigação da vedação ao retrocesso social, deve ser preservado o mínimo existencial.
A Constituição Cidadã é reconhecidamente principiológica, sendo possível, e até mesmo necessária, a aplicação da vedação ao retrocesso como uma tentativa de inibir o Poder Público a propor qualquer alteração capaz de violar os direitos sociais já conquistados. O princípio da vedação ao retrocesso social deve funcionar como um escudo para proteger os direitos fundamentais, podendo servir como base para se declarar a inconstitucionalidade da norma que infringir tal princípio.
A vedação ao retrocesso não se trata de uma barreira intransponível ao legislador de forma a impossibilitar a atualização do texto constitucional em relação a realidade social, mas sim um direito de razão principiológica que confere segurança à população de um Estado de que aquilo que foi atingido pela sociedade, que passou a fazer parte do seu patrimônio jurídico, não lhe será mais retirado, e nem mesmo diminuído.
Assim, deve ser observado o núcleo essencial dos direitos sociais, podendo outros princípios prevalecer sobre a vedação ao retrocesso social, o que não pode é suprimir pura e simplesmente um direito já concretizado, protegido constitucionalmente, sem que seja criado algum mecanismo equivalente ou de compensação.
O Supremo Tribunal Federal já aplicou o princípio da vedação ao retrocesso social em julgamentos de ações declaratórios de inconstitucionalidade, mas também afastou a sua incidência em julgados sobre reformas previdenciárias anteriores, como nos casos das Emendas Constitucionais 20/98 e 41/03. Mesmos nesses casos em que as ações foram julgadas improcedentes não houve unanimidade, e os ministros que ficaram vencidos acolheram a vedação ao retrocesso como fundamento para reconhecer a impossibilidade do Estado reduzir a proteção previdenciária.
No Brasil, a cada reforma previdenciária, seja ela por medida provisória, por lei, ou por emenda constitucional como a mais recente, as regras ficam cada vez mais rígidas para atingir o direito a aposentação. E mesmo quando atingidos os requisitos, a forma de cálculo reduz sobremaneira o valor dos benefícios previdenciários, sendo esse um dos maiores retrocessos da Emenda Constitucional Reformadora de 2019. Ou seja, dificulta a proteção securitária, e para quem consegue implementá-la, paga-se um valor incapaz de prover nem mesmo o mínimo existencial, que deveria estar protegido por cláusula pétrea.
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[1] CAPÍTULO II DO TÍTULO VIII DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
[2] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria geral do estado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
[4] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009.p. 317.
[5] Artigo 26 - Desenvolvimento progressivo - Os Estados-Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.[...] (grifamos)
[6] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 5. ed. rev. atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004
[7] ADI 1.946-DF, de Relatoria do Min. Sydney Sanches, julgado em 16.5.2003.
[8] (DJe nº 177, publicação em 15.09.2011. AgRg no RE 639.337/SP. 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, Rel. Min. Celso de Mello).
[9] (STF - ADI: 3104 DF, Relator: Min. PRESIDENTE, Data de Julgamento: 05/01/2004, Data de Publicação: DJ 03/02/2004 PP-00005)
[10] (STF - ADI: 3128 DF, Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 18/08/2004, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 18/02/2005
[11] (STF - ADI: 4543 DF, Relator: CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 06/11/2013, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 13/10/2014)
Advogado, Especialista em Direito e Processo Previdenciário, Mestrando da Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FIUZA, Vinicius Soutosa. O princípio da vedação ao retrocesso social na interpretação do Supremo Tribunal Federal e sua aplicação no direito da Seguridade Social Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 set 2022, 04:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/59271/o-princpio-da-vedao-ao-retrocesso-social-na-interpretao-do-supremo-tribunal-federal-e-sua-aplicao-no-direito-da-seguridade-social. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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