ALCIVANDO FERREIRA DE SOUSA[1]
(orientador).
RESUMO: A sucessão hereditária de bens digitais é um tema atual e pouco difundido no ordenamento jurídico no que concerne a aplicação da legislação ou a criação de leis que resguarde os direitos acerca da transferência desses bens e dos direitos e garantias individuais do de cujus. Este estudo tem por objetivo apresentar a evolução do direito sucessório no Brasil até os tempos atuais, bem como definir e caracterizar os bens digitais e a sua multiaplicabilidade na sociedade contemporânea. Também urge demonstrar acerca das disposições legais e como o ordenamento jurídico brasileiro tem se comportado diante dos desafios da ausência legal que defina de forma clara e concisa a disposição dos bens digitais no que diz respeito ao direito sucessório. Para tanto, a metodologia aplicada a este estudo, o método utilizado foi indutivo e qualitativo, realizada uma revisão de literatura, a pesquisa bibliográfica foi feita através de leituras das leis, da Constituição Federal, de revistas jurídicas, de livros e artigos científicos relacionados ao tema proposto.
Palavras-chave: Direito Sucessório. Bens Digitais. Patrimônio Digital. Direito de Herança.
ABSTRACT: The hereditary succession of digital assets is a current and not very widespread topic in the legal system regarding the application of legislation or the creation of laws that protect the rights regarding the transfer of these assets and the individual rights and guarantees of the deceased. This study aims to present the evolution of inheritance law in Brazil up to the present time, as well as to define and characterize digital assets and their multiple applicability in contemporary society. It is also urgent to demonstrate about the legal provisions and how the Brazilian legal system has behaved in the face of the challenges of the legal absence that clearly and concisely defines the disposition of digital assets with regard to inheritance law. Therefore, the methodology applied to this study, the method used was inductive and qualitative, a literature review was carried out, the bibliographical research was carried out through readings of the laws, the Federal Constitution, legal journals, books and scientific articles related to the proposed topic.
Keywords: Succession Law. Digital Goods. Digital Heritage. Inheritance Right.
1.INTRODUÇÃO
O Direito Sucessório é um ramo do Direito Civil que vem se adaptando ao longo dos anos as alterações da sociedade e a sua evolução. Em se tratando de sucessão de bens patrimoniais, a legislação brasileira é taxativa, no entanto, a divergência está na qualificação dos bens.
Em se tratando de bens digitais, é possível determina-los como todos aqueles conteúdos constantes na web, passíveis ou não de valoração econômica, que proporcionem alguma utilidade para o seu titular, isto é desde as redes sociais a cadernetas de poupanças, bitcoins e outras moedas digitais, espaços no metaverso, etc.
Vale ressaltar que a conceituação de bem digital pouco se destoa do conceito de “bem” que para GOMES (2008, p. 179), compreende:
“A noção jurídica de bem é mais ampla do que a econômica. Compreende toda utilidade, física ou ideal, que possa incidir na faculdade de agir do sujeito. Abrange as coisas propriamente ditas, suscetíveis de apreciação pecuniária, e as que não comportam essa avaliação, as que são materiais ou não.” (GOMES, 2008, p. 179)
Conforme conceituado por GOMES (2008, p.179), o “bem” possui uma valoração pessoal para o seu detentor, seja econômico ou não, material ou não, tal qual o “bem digital” ainda que intangível há um valor que dele se possa exprimir.
Sendo assim, o presente estudo visa unir ambos os institutos, o da sucessão e o do bem digital, para tratar da disponibilidade e o confronto dos direitos de privacidade que a sucessão hereditária poderia trazer para a imagem e moral do de cujus, que apesar do seu falecimento, ainda dispõe de tais direitos fundamentais.
2. METODOLOGIA
A metodologia empregada na construção desse estudo se baseou nos métodos indutivo e qualitativo. Foi realizada uma revisão de literatura, a pesquisa bibliográfica foi feita através de leituras das leis, da Constituição Federal, de revistas jurídicas, de livros e artigos científicos relacionados ao tema proposto.
A presente pesquisa foi realizada mediante o levantamento de documentos. Assim, a coleta de dados é resultado de uma busca feita em bases de dados, tais como: Scielo; Google Acadêmico, dentre outros, entre os meses de outubro e novembro de 2022.
3. DIREITO SUCESSÓRIO E SUA EVOLUÇÃO NO ÂMBITO JURÍDICO BRASILEIRO
O Direito Sucessório no Brasil é precedente ao Código Civil de 2002, ainda que as determinações mais esclarecidas e mudanças significativas tenham advindo a partir da sua vigência. No ramo das sucessões, o direito brasileiro evoluiu consideravelmente, compreendendo que a formação da família de forma não tradicional também é suscetível de direito.
Fazendo uma análise temporal da evolução do direito sucessório, precisa-se compreender que a sucessão já era estabelecida implicitamente ainda que não houvesse reconhecimento de propriedade. A forma interposta pela sucessão, segundo MIRANDA (2021, p.11) era por transmissão somente ao filho homem primogênito, conforme se vê:
“Considerava-se como característica do Direito Hereditário na antiguidade, que o herdeiro fosse o filho varão primogênito, que além de assumir as relações jurídicas daria também continuidade ao culto doméstico. No Direito Romano, o direito de herança passava pelo tipo de herdeiro, que poderia ser o destacado na classe dos necessários, que respondia pela continuidade das relações jurídicas e patrimoniais.”
Para o Direito Romano, o Testamento era a forma mais usual de determinar a sucessão de um bem, em especial quando o de cujus não possuía descendentes, já que nele estaria descritas as suas últimas vontades acerca de seu bem, assim, ficaria um responsável para assumir as obrigações e cuidados da casa e da família. Também era comum em famílias que o único varão era o de cujus, familiares ainda que distantes, porém próximos da linha de sucessão assumissem os bens, as responsabilidades e a própria família do de cujus, como sua viúva e suas filhas, uma vez que o costume era de que somente homens sucedessem aos bens e patrimônios.
Ainda era uma exigência do ordenamento jurídico Romano que a sucessão somente era pertinente a homens livres, (GAGLIANO; PAMPOLA FILHO, 2021).
Já em se tratando de sucessão hereditária para o ordenamento jurídico brasileiro, têm-se o seu exercício a partir da Proclamação da Independência, onde até então seguia os preceitos legais do Direito Português. MOREIRA (2016) relata:
“[...] o exercício do Direito no Brasil, mesmo após a Proclamação de Independência, acompanhava o Direito Português, que também tinha créditos no Direito Especial da Colônia, arrastando-se nas terras de Santa Cruz por longo tempo com leves e pequenas mudanças. O atraso na elaboração de leis próprias foi tão grande e evidente, que as Ordenações Filipinas, que já não tinham efeitos em seu país de origem, por ter sido revogada em 1867, permaneceu vigente no Brasil, somente deixando de ser válidas com a entrada em vigor do Código Civil de 1916.” (MOREIRA, 2006)
Consolidados os direitos a sucessão com base na legislação estrangeira até então, o Código Civil de 1916 que trouxe legislação própria acerca do tema, não da forma como conhecemos hoje, mas estabelece uma ordem para a sucessão de bens, RODRIGUES (2007, p.61), determina uma "relação preferencial" da chamada vocação hereditária, que se define pela regra definida pelo legislador como uma ordem de sucessão, onde dispões:
“A ordem da vocação hereditária pelo art. 1.603 do CC 1916 considerava a sucessão legítima na seguinte ordem: I) descendentes; II) ascendentes; III) cônjuge sobrevivente; IV) colaterais; V) Municípios, Distrito Federal ou à União.” (RODRIGUES, 2007, p. 61)
Não se tem definido no Código Civil de 1916 em que grau de colateralidade são disponibilizados os bens do de cujus, e tão pouco se previa a possibilidade do acesso a este bem se tornar um fator violador da intimidade. Suponha-se que o de cujus é um autor, e tenha entre seus bens um diário pessoal, o valor pecuniário poderia ultrapassar o valor sentimental deste bem para o sucessor que o teria adquirido, no entanto, violaria todo e qualquer direito de privacidade do de cujus.
Já com a reformar e o renascimento do Código Civil de 2002, em seu art. 1829 trouxe uma nova ordem, onde os critérios apesar de similares estabeleciam paridade entre os descendentes e o cônjuge sobrevivente. Onde institui o Código Civil de 2002:
“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais.”(BRASIL, Código Civil, 2002)
Assim, somente restaria para a União, Estados, Municipios e Distrito Federal a chamada Herança Vacante, que apesar de ter sua disponibilidade no Código Civil de 1916, o termo só se tornou comum com o advento do novo códex, que se trata da herança que a ninguém é declarada.
O árduo debate que trouxe a anuência do Código Civil de 2002 é a colocação em pé de igualdade dos descentes e do cônjuge, bem como a ordem sucessiva dos ascendentes na linha de sucessão, assim, DINIZ (2003, p. 316) esclarece:
“[...] entre nós, o regime obrigatório é o da separação de bens sem a comunhão dos aquestos, necessário em hipóteses excepcionais (CC, art. 1.641, I a III), quando perdem os noivos a liberdade de escolher o regime matrimonial de sua preferência.” (DINIZ, 2003, p. 316).
É importante esclarecer que a evolução do Direito de Sucessão mais tem a ver com a vocação hereditária do que com os bens que podem ser disponibilizados para a herança. No que concerne a herança digital, que tem sido amplamente debatida no âmbito jurídico, ainda não há lei específica que a regulamente, mas tratando-se de exegese, compreende-se que tratar por analogia e considerar as jurisprudências já existentes têm sido suficiente para proteger os direitos dos de cujus face aos interesse da sucessão.
4. BEM DIGITAL E A SUA MULTIAPLICABILIDADE
Quando se fala em bem digital logo se pensa em bens intangíveis e pouco rentáveis, sejam determinadas por commodities e ações das Bolsas de Valores à criptomoedas e etc.
Mas a caracterização de bens digitais vai além de tais determinações, a sua definição implica na divisão entre (i) bens digitais patrimoniais; (II) bens digitais existenciais e (III) bens digitais híbridos, dos quais serão discorridos.
São definidos como bens digitais patrimoniais aqueles capazes de gerar repercussões econômicas imediatas assim que inseridos em rede, enquanto que os bens digitais existenciais são capazes de gerar repercussões extrapatrimoniais, isto é, repercussão acerca da imagem, da moral e da privacidade do individuo. Já o que diz respeito aos Bens Digitais Híbridos, são aqueles cuja a repercussão tanto pode ser patrimonial, com o valor do produto digital oferecido quanto no âmbito dos direitos de personalidade voltados para o bem, seja personalidade civil ou jurídica.
Para uma conceituação mais clara acerca da multiplicidade dos bens digitais, EDWARDS; HARBINJA( 2013, apud PAIXÃO & KAI, 2020, p. 217) apresentam que:
“Bens Digitais são definidos amplamente e não exclusivamente para incluir a variedade de bens informacionais intangíveis associados com o online ou mundo digital, incluindo: perfis em redes sociais (em plataformas como Facebook, Twitter, Google+ ou LinKedIn); e-mail, tweets, base de dados, etc.; dados virtuais de jogos (ex. itens com-prados, achados ou construídos em mundos como o Second Life, World of Warcraft, Lineage); textos digitalizados, imagens, músicas ou sons (ex.; vídeos, filme, e arquivos de ebook); senhas da várias contas associadas com as provi-sões de bens digitais e serviços, também como consumidor, usuário ou comerciante (ex., do eBay, Amazon, Facebook, YouTube); nome de domínio; segunda ou terceira persona-lidade dimensional relativos a imagens ou icons (como os icons usados no Live Journal ou avatares no Second Life); e a epopeia dos bens digitais que emergem como mercadoria capaz de ser atribuído valor (ex. “zero day exploits” ou erros em softwares cujos antagonismos possam ser explorados). (EDWARDS; HARBINJA, 2013, apud PAIXÃO & KAI, 2020, p.217)”
O que se deve compreender acerca dos bens digitais para a sucessão hereditária é que a sua determinação parte do valor patrimonial ou extrapatrimonial, intangíveis e informacionais, que possuem possibilidade de rentabilidade imediata ou mediata.
A exigência da multiplicidade destes bens está na possibilidade de crescimento econômico e a sua influência no mercado financeiro a partir da sua existência, ainda que não seja tangível, os seus efeitos são concretos.
Uma preocupação do ordenamento jurídico acerca da disponibilidade dos bens digitais é tê-lo como patrimônio cultural que ainda que seja rentável, venha ferir os direitos do de cujus. Um exemplo disto é o perfil da Cantora Marília Mendonça na plataforma do Instagram.
Na rede social com milhares de seguidores a cantora postava o seu dia a dia, seu trabalho, sua família, mantinha contato com amigos, parceiros profissionais e também trabalhava com publicidade e patrocínios rentáveis. A disposição da monetização que o perfil ainda traz apesar do falecimento da cantora é repassado para o seu herdeiro legal, bem como todo o proveito econômico que suas músicas e videoclipes ainda continuem oferecendo.
Mas em relação ao seu perfil nas redes sociais, até onde o direito de sucessão prevalece acerca do direito de privacidade da cantora?
Até onde é permitido ter acesso as informações do perfil sem que mude a imagem e o caráter da cantora por conversas e trocas de mensagens que venham a ser mal compreendidas?
Para PAIXÃO & KAI (2020, p. 2020), o patrimônio cultural deixado pela cantora não se deve sobressair aos seus direitos de personalidade, pois tem como parâmetro os princípios constitucionais:
“Compreendendo, ainda, o Patrimônio Cultural como conjunto de bens, materiais e imateriais, que congregam significados relevantes para uma comunidade, efetiva e/ou potencialmente; consolidados no tempo; que não contrariam a Constituição e possuem uma noção comum de tute-labilidade, basta que os bens digitais se encaixem nesses elementos. (PAIXÃO & KAI, 2020, p. 2020)”
Ainda que moderna, a Constituição Federal de 1988 não previu a incidência de bens digitais que pudessem entrar em conflito com outros direitos, para que a sua sucessão corresse em pé de normalidade conforme os demais tipos de bens, no entanto, assegurou os direitos de personalidade e as ementas constitucionais e demais legislações, como o Código Civil e até mesmo os julgados têm se adaptado a esta nova realidade e fazendo valer a principal intenção de uma constituição que preza pela privacidade, ainda que não exista lei especifica que a determine.
5. DISPOSIÇÕES LEGAIS ACERCA DA HERANÇA DIGITAL
A Herança no sistema jurídico brasileiro pode ser acionada de duas formas, diante da sucessão legítima ou testamentária. Ambas as modalidades são aproveitadas para compor a sucessão de bens digitais.
Assim como nos bens tangíveis, os bens intangíveis passam pelo processo de levantamento de bens e de dívidas do de cujus, pagamento dos impostos acerca dos bens levantados, a debitação das dívidas e por fim a digital entre os herdeiros em caso de inventário. Quando se trata de disposições testamentárias, pois quando há testamento devem ser convocados todos os interessados, aberto o testamento e lido por um oficial, e assim os bens serão transferidos por cada beneficiado de acordo com a vontade do de cujus.
Sendo assim, servido a disposição legal da sucessão para os bens digitais como para as demais modalidades de bens, é necessário compreender que o bem digital se encaixa na modalidade incorpórea, a qual o direito civil determina com aquele tipo ao qual não é passível de materialidade.
Nesse sentido TARTUCE (2020a, p. 348, apud SOARES & FARIA, 2022, p.65) dispõem que:
“[...] a classificação de bens corpóreos e bens incorpóreos se refere à materialidade dos bens, assim, os bens corpóreos também são conhecidos como bens tangíveis ou materiais e os bens incorpóreos podem ser chamados de bens intangíveis ou imateriais.” (TARTUCE, 2020a, p. 348, apud SOARES & FARIA, 2022, p.65)
Considerando a intangibilidade dos bens digitais ainda que o Código que rege a sucessão hereditária não possua a disposição especifica em seus artigos acerca dos bens digitais, há, no entanto, legislação de caráter complementar capaz de suplantar tal necessidade.
Uma necessidade da caracterização do bem digital e do emaranhado legal que tenta preencher as suas lacunas é a compreensão de que o bem digital só se faz dessa forma por ser parte do sistema de internet, isto é, dispõem de vinculação com a rede.
Ainda que há certa vacância no Código Civil, o Marco Civil da Internet, que adveio da promulgação da Lei nº 12.965/2014, em seu art. 5º traz as seguintes disposições:
“Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se: I - internet: o sistema constituído do conjunto de protocolos lógicos, estruturado em escala mundial para uso público e irrestrito, com a finalidade de possibilitar a comunicação de dados entre terminais por meio de diferentes redes; [...]” (BRASIL, 2014).
Sendo assim, vale reforçar de que são bens em que só são possíveis de ser encontrados em ambiente virtual, e que apesar da legislação brasileira se ater a contemporaneidade, ainda não é capaz de abranger a todas as suas características, e por isso, legou a necessidade da sua divisão como bens patrimoniais, existenciais e híbridos, como supracitado.
Os ativos digitais como herança não é um tema novo, e ainda assim não possui legislação especifica, ainda que no ano de 2021 a Câmara dos Deputados tenha inserido em suas pautas o debate do Projeto de Lei nº 1689/2021, em que em seu teor busca tratar sobre perfis, páginas, contas, publicações e os dados pessoais de pessoa falecida, incluindo seu tratamento por testamentos e codicilos.
O Projeto de Lei em seus primeiros artigos debatem a alteração do Código Civil para incluir o art. 1.791-A, ao qual discorre:
“Art. 1.791 – A. Incluem-se na herança os direitos autorais, dados pessoais e demais publicações e interações do falecido em provedores de aplicações de internet.
§ 1º O direito de acesso do sucessor à página pessoal do falecido deve ser assegurado pelo provedor de aplicações de internet, mediante apresentação de atestado de óbito, a não ser por disposição contrária do falecido em testamento.
§ 2º Será garantido ao sucessor o direito de, alternativamente, manter e editar as informações digitais do falecido ou de transformar o perfil ou página da internet em memorial.” (BRASIL, 2021).
A necessidade desta adaptação é justificada pelo avanço tecnológico e a acessibilidade das redes em transformar a internet em um ambiente, ainda que virtual, de contato, de memória e até mesmo lugar para criar verdadeiros impérios de informações e patrimônios, até mesmo patrimônio autoral que pode ou não ser aproveitado, ainda que outra pessoa independente da vontade do de cujus tenha acesso a esse patrimônio que pode ser monetizado, mas que ainda assim é íntimo.
“E uma quantidade cada vez maior de pessoas utiliza essas ferramentas. Apenas para ficarmos num exemplo, o Facebook possui, no mundo, mais de 2,7 bilhões de contas ativas, enquanto no Brasil são dezenas de milhões de usuários. Ocorre que há uma dúvida muito grande sobre que destino se dar ao conjunto das opiniões, lembranças, memórias e até segredos do usuário da internet após o seu falecimento. Devem os parentes ter acesso a sua senha? Devem poder editar seus conteúdos? Devem as plataformas simplesmente remover o perfil ou apagar a página do usuário? Este projeto de lei pretende preencher esse vácuo jurídico, trazendo conforto e segurança aos familiares do falecido.”(PL 1.689/2021)
A sucessão hereditária de bens digitais não se restringe ao que já está previamente estabelecido pela legislação, como a ordem da sucessão e o acesso ao bem, mas também se o acesso concedido pela sucessão é capaz de respeitar a vontade e a privacidade do de cujus, seus dados, suas informações, suas criações, sua intimidade.
Portanto, o Projeto de Lei 1.689/2021 se faz tão necessário, porque em suas adequações, busca suprir o vácuo jurídico e aponta medidas que podem resolver a problemática aqui debatida.
Uma das sugestões da PL é que as redes sociais como bens digitais sejam propostos não só no testamento para interposição da vontade do testamentário, mas também no codicilo sem que isso se torne alvo de debate jurídico, como já ocorre.
6. A DISPOSIÇÃO DE BENS DIGITAIS PARA HERANÇA EM CONFRONTO COM DIREITOS PERSONALÍSSIMOS DO DE CUJUS
Urge estabelecer que em se tratando de direitos personalíssimos é importante determina-los como aqueles são intransmissíveis e irrenunciáveis limitando inclusive a própria ação do seu titular.
Ainda na vigência do Código Civil de 1916, o direito de personalidade, ou direitos personalíssimos já tinham o impacto social e jurídico que possuem hoje, um exemplo disto é a compreensão Orlando Gomes acerca deste, o qual preconiza:
“Sob a denominação de direitos da personalidade, compreendem-se os direitos personalíssimos e os direitos essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana que a doutrina moderna preconiza e disciplina no corpo do Código Civil como direitos absolutos, desprovidos, porém, da faculdade de disposição. Destinam-se a resguardar a eminente dignidade da pessoa humana, preservando-a dos atentados que pode sofrer por parte dos outros indivíduos”.(GOMES, 1996, p. 63)
Já na vigência do Código Civil de 2022, o Capítulo II é instituído e tem como título “Dos Direitos da Personalidade”, que versão os artigos 11 ao 21 e trazem disposições acerca da sua intransmissibilidade e proteção.
“Art.11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.
Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.” (BRASIL, 2002)
Considerando o parágrafo único do art, 12 do Código Civil determina que a proteção do direito de personalidade, seja a privacidade, a honra, a moral, a imagem, a dignidade da pessoa humana, deve ser protegido pelo cônjuge, ou qualquer parente em linha reta ou colateral, para que assim mantenha-se o direito garantido.
Mas no caso da sucessão hereditária dos bens digitais, são justamente aqueles que possuem a tutela de proteção dos direitos do de cujus que são interessados em obter o bem que merece ser tutelado.
Em oportuno, segundo SOMBRA (2019) apud SOARES & FARIA (2022, p. 84), insere na temática Lei Geral de Proteção de Dados, que tem o intuito impedir que os dados sensíveis utilizados para cadastros e contratos não sejam utilizados de forma leviana, assim preconiza:
“[...] a Lei Geral de Proteção de dados prioriza a autonomia e concede ao usuário escolha a finalidade de seus dados, cabendo discutir se o usuário pode dizer o que se deve fazer com seus dados após a sua morte. Assim, poderia o usuário estabelecer o que fazer com as suas contas e os dados seriam passados aos herdeiros, seja por testamento ou outro meio.” (SOMBRA, 2019 apud SOARES & FARIA, 2022, p. 84)
Ainda que se estabeleça que o acesso ao bem digital, como por exemplo, perfis monetizados em plataformas digitais, considerando que apesar de ser acesso público o seu teor é de interesse particular e, portanto, personalíssimo frente as diretrizes e políticas de privacidade interpostas pela contratação da plataforma disponíveis nos termos e condições de usuário, o interesse da sucessão e do poder de continuidade desse bem é discutível.
É corriqueiro afirmar que as contas e perfis de plataformas digitais mesmo com o fim da vida dos seus donos podem continuar monetizando e trazendo lucratividade, e manter estes perfis ativos é uma forma de proteger o patrimônio pecuniário dele advindo.
O site do G1 realizou uma reportagem em que declarava:
“Não há uma regra sobre como as redes de pessoas públicas que morreram devem ser geridas. Se no caso de Reginaldo Rossi foi criada uma ‘persona’ bem-humorada que usa até a primeira pessoa nas mensagens, outros perfis utilizam o espaço mais para a divulgação de ações, produtos e mensagens saudosas. Morta em 2012, a apresentadora Hebe Camargo também tem suas páginas oficiais atualizadas. Entre os posts, vídeos com momentos memoráveis da carreira e também divulgação da cinebiografia da artista, lançada nos cinemas em 2019. No caso do ator Domingos Montagner, da Rede Globo, morto em 2016 após um afogamento no Rio São Francisco, em Sergipe, os perfis são utilizados para divulgar ações do instituto que leva o seu nome. A Casa Domingos Montagner, que tem o propósito de levar oportunidades educativas aos jovens por meio do circo e do teatro, busca financiamento para iniciar ações culturais em 2020.”
Não é comum na cultura brasileira a que se tenha a abertura de inventário ou a escrita de codicilo para divisão e disposição da vontade do individuo que venha a falecer, de tal modo não é comum o pensamento de que as redes sociais como fonte de renda e de riqueza ultrapasse a finalidade de diversão que ela tem.
É possível que dada a ausência destes hábitos tenham levado a incongruência da legislação brasileira no que tange a problemática da sucessão hereditária de bens digitais. Neste sentido COSTA FILHO (2016), discorre:
“É plausível dizer que o indivíduo possui uma grande autonomia no que se refere à destinação de seus dados. Mas, a dignidade da pessoa humana é o princípio basilar de todo sistema normativo brasileiro, não podendo a autonomia privada ser superior a ela. Assim o autor observa que a essa autodeterminação da finalidade dos dados é relativa. Assim sendo, o titular do acervo digital não pode, por exemplo, deixar este para seus herdeiros sem a devida proteção ao direito da personalidade de terceiros, bem como os sucessores não podem acessar o acervo digital do de cujus sem sua permissão anterior.” (COSTA FILHO, 2016).
Na análise do âmbito digital sob o contexto do art. 5° da Constituição Federal da República de 1988, BARRETO &NERY NETO (2016), preconiza:
“No âmbito digital, alguns direitos ganham novas interpretações e contextos, havendo uma grande necessidade de se analisar, compreender e adaptar essas regras já normativizadas no âmbito digital e as consequências dessa adaptação até então desconhecidas.” (BARRETO &NERY NETO 2016).
Cabe elencar que o impasse acerca do acesso aos bens digitais não se restringe as redes sociais e plataformas similares, mas também aos sistemas de armazenamento de fotos como a nuvem e o i-cloud, já que pelo valor sentimental do conteúdo que seja fotos e vídeos, são alvos de ações judiciais para conceder o acesso.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu em 2021, pelo não provimento da Apelação Civil que buscava a transformação do perfil de uma jovem falecida em um memorial, onde a mãe queria o acesso ao perfil da jovem para que os dados e arquivos não fossem apagados, uma vez que havia valor sentimental, conforme vê-se:
“AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA – EXCLUSÃO DE PERFIL DA FILHA DA AUTORA DE REDE SOCIAL (FACEBOOK) APÓS SUA MORTE – QUESTÃO DISCIPLINADA PELOS TERMOS DE USO DA PLATAFORMA, AOS QUAIS A USUÁRIA ADERIU EM VIDA – TERMOS DE SERVIÇO QUE NÃO PADECEM DE QUALQUER ILEGALIDADE OU ABUSIVIDADE NOS PONTOS ANALISADOS – POSSIBILIDADE DO USUÁRIO OPTAR PELO APAGAMENTO DOS DADOS OU POR TRANSFORMAR O PERFIL EM "MEMORIAL", TRANSMITINDO OU NÃO A SUA GESTÃO A TERCEIROS – INVIABILIDADE, CONTUDO, DE MANUTENÇÃO DO ACESSO REGULAR PELOS FAMILIARES ATRAVÉS DE USUÁRIO E SENHA DA TITULAR FALECIDA, POIS A HIPÓTESE É VEDADA PELA PLATAFORMA – DIREITO PERSONALÍSSIMO DO USUÁRIO, NÃO SE TRANSMITINDO POR HERANÇA NO CASO DOS AUTOS, EIS QUE AUSENTE QUALQUER CONTEÚDO PATRIMONIAL DELE ORIUNDO – AUSÊNCIA DE ILICITUDE NA CONDUTA DA APELADA A ENSEJAR RESPONSABILIZAÇÃO OU DANO MORAL INDENIZÁVEL - MANUTENÇÃO DA SENTENÇA – RECURSO NÃO PROVIDO. (TJ-SP - AC: XXXXX20198260100 SP XXXXX-66.2019.8.26.0100, Relator: Francisco Casconi, Data de Julgamento: 09/03/2021, 31ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 11/03/2021)”
O não provimento do recurso é justificado pela assinatura dos termos de uso que a jovem concordou ao criar a conta na plataforma, onde teria a opção de transmitir o perfil a outrem para que permanecesse ativo na plataforma, porém a jovem não utilizou esta opção.
Dada a intransmissibilidade do direito personalíssimo e da preservação da vontade e da intimidade da jovem, o Tribunal de Justiça negou provimento a ação que visava danos morais bem como o acesso a plataforma.
Ainda que a legislação específica do Código Civil ainda não verse sobre tal disponibilidade, outros modos podem levar a consideração do direito ou não de sucessão do bem digital quando confrontados os direitos de personalidade humana.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Sucessão Hereditária é um tema já estabelecido pelo Código Civil, no entanto, os bens aos quais a ela é destinado ainda é uma incógnita, vez que apesar da sua amplitude de conceituação, não é capaz de abranger todos os tipos existentes, um exemplo disto são os bens digitais.
É possível estabelecer a natureza dos bens digitais, mas a legitimidade da sua sucessão é conflitante aos direitos de personalidade quando não há a expressa vontade do de cujus sobre eles.
É importante destacar que a anuência de novas leis que versam sobre bens digitais ainda não suficientemente determinantes para que dispense o cuidadoso debate acerca da disponibilidade do bem para sucessão.
Ainda que exista um vácuo jurídico no que tange aos bens digitais e os conflitos da proteção da privacidade, honra, imagem e dos dados do de cujus, o ordenamento jurídico têm se adaptado caso a caso para que possa tomar a melhor decisão e trazer inconstitucionalidade e ilicitude para as suas decisões.
O caminho percorrido para que haja o reconhecimento do bem digital como passível de sucessão tem se mostrado árduo, no entanto, os fatos e fatores que o levaram ao âmago do debate jurídico se fazem esclarecedores para que possa pautar o posicionamento jurídico.
O avanço tecnológico é uma realidade presente e a ideia de ter-se a sua alteração dia- a- dia, não traz conforto para a legislação tal qual para a doutrina. Embora muitos doutrinadores defendam que somente devem ser passíveis de sucessão os bens patrimoniais ou mistos, a legislação deve apoiar-se no caso concreto para fazer valer o direito de sucessão hereditária dos bens digitais.
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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COSTA FILHO, Marco Aurélio de Farias. Patrimônio digital: Reconhecimento e Herança. Recife: Nossa Livraria, 2016.
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TJ-SP - AC: XXXXX20198260100 SP XXXXX-66.2019.8.26.0100, Relator: Francisco Casconi, Data de Julgamento: 09/03/2021, 31ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 11/03/2021.
Bacharelanda em Direito pela Universidade de Gurupi – UnirG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, WESLAINE ASEVÊDO. A sucessão hereditária de bens digitais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 nov 2022, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/60238/a-sucesso-hereditria-de-bens-digitais. Acesso em: 28 dez 2024.
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