RESUMO: O comportamento de retirar a própria vida, problema cada vez mais evidente e que está cada vez mais presente na sociedade. Resta observar qual o tratamento jurídico concebido pelo Código Penal Brasileiro, devido ao surgimento de novos casos. Diante do problema foi investigada hipótese segundo a qual o Código Penal Brasileiro não possui normas que se prestem a punir o arquiteto e criador de jogos e desafios que buscam induzir ou instigar a prática de suicídio ou de automutilação. A pesquisa possuiu como referencial teórico a Constituição da República de 1988 e a compreensão do penalista Guilherme de Souza Nucci, tendo sido executada por meio do método hipotético-dedutivo, primordialmente com levantamento bibliográfico, artigos, teses, dissertações, leis e decisões judiciais. A hipótese inicialmente apresentada foi confirmada.
Palavras-chave: Suicídio. Automutilação. Criador de jogos e desafios. Artigo 122 do Código Penal Brasileiro. Natureza jurídica. Impunidade.
Segundo NUCCI (2019), a sociedade é quem cria o conceito inicial de crime, uma vez que dita quais as condutas altamente reprováveis. Destarte, cabe ao legislador, por meio de lei em sentido estrito, descrever os fatos entendidos como delituosos e determinar a correspondente punição. Outrossim, apesar de algumas condutas possuírem várias características que se amoldam em tipo penal, existe aquela que ainda não constitui o ilícito. Por sua vez, a conduta que de alguma forma coloque em risco o bem que se tutela e gera dano à sociedade, intencionalmente ou não, é indubitavelmente crime.
A Lei nº 13.968, de 26 de dezembro de 2019, apresenta dispositivos que atribuem punição mais severa ao criminoso que induz, instiga ou auxilia outra pessoa ao suicídio ou a automutilar-se, disposição que fora incluída visando proteger também a integridade física.
Dentre as alterações realizadas, haja vista as práticas de suicídio e automutilação vivenciadas atualmente, a redação dada pela Lei 13.968/19, não alcança a previsão de punibilidade da conduta exclusivamente de arquitetar e desenvolver jogos e desafios.
Não sendo suficiente a atual redação atribuída ao art. 122 do Código Penal Brasileiro para inibir todos os atos e atores envolvidos nas práticas destinadas a expor ao perigo a vida ou a incolumidade física ou psíquica executadas por meio cibernético, buscou-se analisar seu alcance, como também, examinar minuciosamente os projetos de lei advindos após a publicação Lei da nº 13.968, de 26 de dezembro de 2019.
Diante do problema supramencionado, partiu-se da hipótese segundo a qual o Código Penal Brasileiro não possui normas que se prestem a punir o arquiteto e criador de jogos e desafios que buscam induzir ou instigar a prática de suicídio ou de automutilação.
Outra hipótese investigada consiste na insuficiência da Lei nº 13.968, de 26 de dezembro de 2019, pois, o elemento do tipo, alguém, limita a abrangência da norma ou possui uma eficácia deficiente não atingindo ao fim a que se destina.
O desenvolvimento teórico e investigativo impresso utilizado na pesquisa compreende o método científico hipotético-dedutivo (método), possuindo como referencial teórico a compreensão de Guilherme de Souza Nucci, anteriormente mencionada.
A pesquisa foi construída em quatro partes. Na primeira foi apresentado um breve relato histórico sobre o suicídio, enquanto na parte seguinte restou dedicada à análise do concurso de pessoas frente ao crime de induzimento, instigação, auxílio a suicídio ou a automutilação. Posteriormente foram empenhados esforços para distinguir a conduta praticada pelo idealizador diante de crimes de dano e de perigo. E por fim, buscou-se apresentar a inefetividade da Lei da nº 13.968, de 26 de dezembro de 2019, que por sua redação falha deixou impune a conduta do agente idealizador.
Para o desenvolvimento do trabalho foi realizado levantamento bibliográfico com consultas a livros, dissertações e artigos científicos, assim como também à legislação pertinente, com a finalidade de contribuir para o desenvolvimento do raciocínio jurídico-científico sobre o tema.
2 BREVE RELATO HISTÓRICO SOBRE O SUÍCIDIO
No ano de 1774, o escritor alemão Goethe publicou “Os Sofrimentos do Jovem Werther” onde relata com detalhes o acontecimento de um suicídio. Devido a isso, alguns jovens que se identificaram com o caso sentiram-se encorajados a pôr fim à própria vida.
O suicídio é um problema evidente e está cada vez mais presente na sociedade[1]. Há algum tempo, devido à tradição e visando não estimular a prática ao suicídio, jornalistas compactuaram por não realizar divulgações de notícias relacionadas a esse assunto. Para eles, a não repercussão desse tipo de notícia nas emissoras de rádio e de televisão é um meio de proteção (GRANDO, 2020, s/p).
A Organização Mundial de Saúde, que é contrária a esse posicionamento dos jornalistas, acredita ser desnecessário abster-se de noticiar os casos de pessoas que tiram a própria vida. Defende que atendendo a determinados princípios é possível divulgar notícias sobre o assunto, por exemplo, referindo-se ao fato como “suicídio consumado”, não como suicídio “bem-sucedido” (BHAZ, 2017).
Independentemente do posicionamento diverso, ambos visam combater o suicídio copiado, pelo fato da exposição alcançar alguém que esteja propício a cometer suicídio e que, porventura, possa acabar realizando os mesmos passos aos quais obteve conhecimento.
Pelos fatores históricos e devido, contemporaneamente, aos corriqueiros casos de suicídios, surgiram algumas propostas de projetos de leis direcionadas ao combate a ações que possam incentivar ou auxiliar a prática suicida.
Na década de setenta observou-se, juntamente com a crescente dificuldade imposta pela vida moderna, o aumento significativo dos casos de suicídio e de tentativa de suicídio.
Segundo o Anuário Estatístico do IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, edição de 1978, a participação dos casos de suicídio nos registros de mortes ocorridas em todo o Território Nacional, era de 8,0 para cada cem mil habitantes.
Considerando o fator histórico, no ano de 1979, o deputado Cardoso Fregapani propôs o projeto de Lei nº 1984 que proibiria, se aprovado, a divulgação dos casos de morte por suicídio. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2019, s/p).
Na época justificou-se a necessidade de propor tal projeto de Lei devido ao aumento de suicídios causados pelas dificuldades enfrentadas pela então vida moderna. Nota-se que o teor da fundamentação desse projeto é bem próximo ao posicionamento adotado pelos jornalistas que optaram pela não veiculação das ocorrências de suicídio visando o não estímulo ao autoextermínio.
Contemporaneamente, devido ao surgimento de novos casos suicidas e a não existência de previsão legal, trouxe à baila novas discussões sobre o assunto, buscando-se na lei penal elementos que se amoldem perfeitamente na criminalização desse tipo de conduta que venha fomentar ao suicídio e a automutilação.
3 CONCURSO DE PESSOAS FRENTE AO CRIME DE INDUZIR, INSTIGAR OU AUXILIAR ALGUÉM À PRÁTICA DE SUICÍDIO
O Crime de induzir, instigar ou auxiliar a prática de suicídio ganhou as mídias no ano de 2018, depois de repetidos casos de atos suicidas e de automutilação entre jovens de todo o mundo. Através da internet, aqueles jovens mais solitários, em tristeza profunda ou até mesmo já se encontrando em situação de depressão, percorriam um caminho tenebroso deparando-se com desafios perigosos como, por exemplo, o “Desafio da Baleia Azul” que se originou na Rússia, e que por meio de rede social, fez centenas de vítimas pelo mundo (SENADO, 2019, s/p).
O Desafio da “Baleia Azul” era uma armadilha onde a presa tinha pouquíssimas chances para escapar, tendo em vista o comum abalo psíquico ao qual normalmente se encontravam as vítimas. A trama era composta por cinquenta desafios que impunham tarefas variadas, desde automutilação, exposição ao perigo gratuito e suicídio. O desafio era guiado por uma espécie de curador, o qual tinha o papel de instruir os participantes a cada etapa e a essas vítimas era dado o nome de Baleia. Para alcançar possíveis vítimas, o curador investigava e filtrava informações em redes sociais e chats. Assim que encontrava sua presa dava início a todo o processo cujo objetivo era o fim trágico de jovens. A vítima, após cada conclusão de um desafio estipulado pelo curador tinha que lhe encaminhar provas de que havia cumprido a etapa (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2019, s/p).
Outro desafio semelhante que trouxe preocupação mundial ocorreu em 2019, quando pais foram surpreendidos com o “vídeo da boneca Momo”, que teve origem no México, se espalhou pelo mundo e causou pânico também no Brasil. Tratava-se de edições proporcionadas em desenhos animados disponibilizados na plataforma do YouTube em que, de repente, uma boneca supostamente ensinava crianças a buscar objetos cortantes em casa e a praticar atos suicidas sob a ameaça a seus pais (ESTADÃO, 2019, s/p).
Em ambos os casos citados tem-se que as mídias sociais foram utilizadas como meio para divulgar a proposta idealizada por alguém com a finalidade de praticar atos contra a incolumidade física própria, muitas vezes aproveitado da fragilidade daquele que recebe informações pela rede mundial de computadores.
Ainda que sem dúvida a ação praticada pelo curador dos desafios possa atentar contra bens jurídicos tutelados, resta investigar não só a eventual extensão de sua responsabilidade diante da atual legislação penal brasileira, mas também da pessoa que criou estes tipos de desafios, aqui denominada de “idealizador”.
Tanto no Desafio da Baleia Azul, como no caso da Boneca Momo é evidente a instigação ou o induzimento a automutilação e suicídio promovido por um terceiro, que não executa ou auxilia a execução direta daquilo que propõe, não sendo, ainda, a proposta direcionada a pessoa determinada.
Como forma de resposta às condutas potencialmente à vida e à integridade física, em 26 de dezembro de 2019, foi publicada a Lei nº 13.968 que alterou o art. 122 do CPB. A alteração possuía como finalidade desestimular o surgimento de grupos em redes sociais que incentivassem pessoas determinadas a suicidar-se ou a mutilar-se.
Apesar das alterações promovidas destinarem a incluir no dispositivo penal as condutas direcionadas ao induzimento ou instigação à automutilação, bem como a de prestar auxílio a quem a pratique e, ainda, apresentar aumento de pena a condutas relacionadas, é importante frisar que a estrutura do tipo penal foi mantida quanto à elementar “alguém”. Logo, é necessário que a conduta lesiva praticada seja dirigida a pessoa específica. (GRECO, 2018)
Até 26 de dezembro de 2019, o delito o previsto no artigo 122 do Código Penal, possuía a seguinte redação:
Art. 122 – Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:
Pena – reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave. (grifo nosso)
Com a publicação da Lei nº 13.968, que alterou o art. 122 do CPB, passou a vigorar atualmente, o seguinte teor:
Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe auxílio material para que o faça:
Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.
§ 1º Se da automutilação ou da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, nos termos dos §§ 1º e 2º do art. 129 deste Código:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.
§ 2º Se o suicídio se consuma ou se da automutilação resulta morte:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
§ 3º A pena é duplicada:
I - se o crime é praticado por motivo egoístico, torpe ou fútil;
II - se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência.
§ 4º A pena é aumentada até o dobro se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social ou transmitida em tempo real.
§ 5º Aumenta-se a pena em metade se o agente é líder ou coordenador de grupo ou de rede virtual.
§ 6º Se o crime de que trata o § 1º deste artigo resulta em lesão corporal de natureza gravíssima e é cometido contra menor de 14 (quatorze) anos ou contra quem, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, responde o agente pelo crime descrito no § 2º do art. 129 deste Código.
§ 7º Se o crime de que trata o § 2º deste artigo é cometido contra menor de 14 (quatorze) anos ou contra quem não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, responde o agente pelo crime de homicídio, nos termos do art. 121 deste Código.” (NR) (Grifo nosso).
A permanência da referida elementar parece manter a necessidade de que a conduta lesiva praticada seja dirigida a pessoa específica, ainda que não mais venha a exigir a efetiva ocorrência de dano, consumando-se o crime pela simples conduta de instigar, induzir ou auxiliar, tratando-se, portanto, de delito comum, formal, instantâneo, unissubjetivo, de forma livre e plurissubsistente.
É nítido que a nova redação propiciou uma punição mais severa, contudo seu alcance limitou-se à daquele que orienta ou instiga a conduta denominada neste trabalho de "curador", não incluindo eventual agente idealizador que porventura além daquele que executa diretamente o induzimento ou instigação ou auxilie qualquer desses atos.
Percebe-se que a conduta deve se dirigir a pessoa determinada ou a pessoas determinadas, caso contrário estar-se-ia diante do delito de incitação ao crime, previsto no artigo 286 do Código Penal. No entanto, em se tratando da conduta praticada pelo idealizador, existe a dificuldade observada quanto à tentativa de subsunção da conduta ao tipo descrito no art. 286 do CPB, cujo nomen iures é incitação ao crime, exige como elementar do tipo que a conduta praticada seja pública e direcionada a alvo indeterminado.
O crime tipificado no referido artigo pretende tutelar a “paz pública, ou seja, o sentimento de tranquilidade, sossego e segurança da coletividade” (DAMÁSIO, 2020), bem jurídico DIVERSO daqueles atingidos pela ação praticada pelo idealizador de crimes voltados ao induzimento ou instigação à automutilação ou ainda o auxílio para que se pratique.
Todavia, observa-se que a publicidade exigida pelo art. 286 do CPB é ampla e, ainda que na conduta do idealizador exista a publicidade pelo meio virtual, a ação criminosa é praticada em âmbito restrito, uma vez que atinge aquele grupo de pessoas, as quais apresentam algum tipo de vulnerabilidade frente ao referido conteúdo divulgado. Fato que afasta a aplicação desse tipo penal ao idealizador e fará com que tão somente o curador responda nos termos do art. 122 CPB.
Reforça-se que referido tipo não seria aplicado ao idealizador de desafios, isso porque, constitui elementar objetivo do tipo previsto no at. 286 do CP a ação comissiva percebida por número indefinido de pessoas e não a uma pessoa especial, o curador, como ocorre nos casos aqui examinados.
Ademais, o idealizador não possui qualquer ligação direta com as vítimas, pois sua conduta é exclusivamente desenvolver jogos e desafios, aos quais várias pessoas terão acesso. Dentre essas pessoas podemos destacar os dois grupos, o Curador e a vítima.
Assim, tem-se por afastada a possibilidade de tipificar a conduta do idealizador frente aos tipos estabelecidos nos art. 122 e 286 do CPB, afastando-se ainda a autonomia das condutas praticadas pelo idealizador e o curador, bem como qualquer concurso de pessoas ainda que presente a pluralidade de condutas e a relevância causal de cada uma das ações, pois evidente a ausência de liame subjetivo entre os agentes; requisito indispensável.
Assim, caso episódios semelhantes aos descritos anteriormente, como o “Desafio da baleia azul” e o da “Boneca Momo”, viessem a ocorrer após a edição da mencionada Lei, no Brasil, não seria possível promover a adequada subsunção dos atos a norma, haja vista que a prática não seria dirigida a alguém específico, sendo forçoso concluir pela atipicidade formal frente ao art. 122 do CPB. De fato, aquele que é o idealizador dos desafios, não os dirige a pessoa determinada, mas a público difuso não necessariamente indeterminado, uma vez que seu dolo é voltado a atingir determinado grupo vulnerável, que compartilha de certas características, como, por exemplo, depressão ou sofrimento mental, sendo, assim, suscetível de ser influenciado.
Observa-se ainda que o crime tipificado no artigo supracitado possui como núcleo verbos destinados não à conduta do autor do ato de autoextermínio ou lesivo próprio, pois, no Brasil não se pune o suicida ou a automutilação[2], ainda que constitua ilícito (NUCCI, 2019, p. 164), mas está direcionado àquele que participa como curador do crime que no caso do art. 122 do CPB será o sujeito ativo do tipo penal.
Salienta-se que nem mesmo em sede coautoria poderia o idealizador responder em coautoria com o curador de eventual futuro desafio semelhantes aos acima anotados, isso porque, segundo Cezar Roberto Bitencourt, a coautoria estaria presente quando agentes agem conjuntamente para a prática de infração penal, devendo ser entendida como uma espécie de “‘divisão de trabalho’, em que todos tomam parte, atuando em conjunto na execução da ação típica, de tal modo que cada um possa ser chamado verdadeiramente de autor” (BITENCOURT, 2018).
Na coautoria, exige-se a contribuição mais ou menos diferenciada para o resultado típico independentemente de quem tenha sido o efetivo executor do produto final que, por esta razão, é de responsabilidade de todos os coautores (SANTOS, 2020).
Em exame sobre a eventual coautoria entre curador e criador dirigida ao induzimento ou instigação ou auxílio ao suicídio ou automutilação, não seria cabível sua aplicabilidade referente ao idealizador, tendo em vista serem autônomas as condutas, enquanto o curador acompanha sadicamente de forma concreta a execução de atos destinados a lesar bens jurídicos, o idealizador tece de forma abstrata o enredo e regras para a execução por terceiros.
Ainda que a execução pelo curador exija a prévia ação criativa do inventor, sem a qual não seria possível a execução dos atos concretos à lesão ao bem jurídico protegido, é dificultoso o seu enquadramento como coautor do crime previsto no art. 122 do CPB.
4 CRIME DE DANO E DE PERIGO
Compreendendo existir potencial lesivo na conduta praticada pelo idealizador ou arquiteto dos crimes a serem executados por curador em jogos ou desafios capazes de atentar contra bem jurídico protegido, vida e incolumidade física cumpre observar acerca da classificação dos crimes quanto à necessidade de lesão ao bem jurídico para sua consumação.
Leonardo Aguiar (2016) relata que os delitos podem ser classificados quanto à lesividade em crimes de dano e de perigo, a depender da exigência ou não de efetiva lesão ao bem jurídico tutelado. Esta forma de classificação toma como base o resultado jurídico do delito.
O crime de dano para sua configuração exige a efetiva ocorrência de lesão ou de dano ao bem jurídico protegido pela norma penal. Já no crime de perigo para que se considere consumado, exige apenas que o bem tutelado seja exposto a perigo (GRECO, 2017). Sendo assim, a proteção ao bem jurídico não exige necessariamente que ocorra efetivamente o dano, sendo juridicamente plausível afirmar que é possível punir condutas que potencialmente possam causar dano.
Por sua vez, o crime de perigo pode ser comum ou coletivo, concreto ou abstrato. Em relação às espécies, comum ou coletivo, essas se dirigem ao bem ou ao interesse coletivo ou a um número indeterminado de pessoas expostas ao perigo de lesão, por outro lado, o crime de perigo concreto exige a comprovação de sua efetividade por meio de atividade probatória regular, não existindo qualquer presunção legal, sendo indispensável a prova concreta de risco. No que tange ao crime de perigo abstrato, o tipo penal irá se limitar a descrever a conduta, sem qualquer referência a eventual resultado naturalístico, portanto basta a simples prática da conduta típica para configurar o perigo abstrato e a presunção de possibilidade de lesão ao bem jurídico protegido. (GONÇALVES, 2018).
É nítido perceber que no crime de dano o bem jurídico tutelado sofrerá diretamente os impactos viabilizados pela prática delituosa, assim como é notável que nos crimes de perigo o simples fato de se provocar situação de risco com elevado potencial de causar dano ao bem jurídico já é suficiente.
No crime de perigo concreto, ainda que exista a consciência e vontade do agente de expor a vítima a um grave perigo, trata-se de um crime de caráter eminentemente subsidiário que será aplicado caso a conduta praticada não constitua crime mais grave (GRECO, 2017).
Em relação ao crime de perigo comum, o ato praticado pelo agente deve ser capaz de causar perigo à vida, à integridade física ou ao patrimônio de outras pessoas. Diferentemente do perigo concreto, neste não se exige prova do dano e, é possível que seja realizado contra número indeterminado de pessoas, haja vista que para a configuração do crime basta caracterizar situação de perigo comum (PRADO, 2019).
Nos casos tratados aqui, desafio da Baleia Azul e Boneca Momo, novamente o tipo penal capitulado no art. 122, do CPB, parece não ser suficiente para impor sanção à conduta praticada pelo idealizador, arquiteto e criador. Nesses desafios apresentados, o tipo penal visa punir o curador, basicamente um sádico, o qual pratica a conduta de induzir, instigar, constranger ou ameaçar vítimas.
Em razão da restrição imposta pelo elementar “Alguém”, contida no referido dispositivo penal, bem como, quanto à lesividade, ainda que não mais se exija a existência de dano concreto, há de ser contra alguém em específico, condição que deixa impune o idealizador de desafios capazes de expor ao perigo a integridade física de pessoas indefinidas além de promover o recrutamento de sádicos para concretizar as práticas criadas com finalidades suicidas.
No crime de perigo comum, o dolo é um elemento subjetivo indispensável e exclusivamente voltado a deixar pessoas em situação de perigo, sendo descaracterizado esse tipo penal cujo dolo seja em face de uma pessoa determinada ou contra número indeterminado de pessoas quando a finalidade não é pôr em risco, mas ceifar vida, conduta a ser enquadrada em tipo penal diverso (PRADO, 2019).
Novamente observando o art. 122 do CPB, tem-se que, à luz da nova redação do dispositivo, dada pela lei 13.968/2019, a conduta praticada por eventual curador de desafio semelhante ao desafio da Baleia Azul é punível, contudo, ainda que o idealizador atue com dolo na criação de jogos de desafios, este não realiza o núcleo do tipo penal, pois sua participação é indireta, não possuindo contato direto com as vítimas, nem mesmo com o curador. O idealizador não age no exercício de controle do ato, nem mesmo coopera para a conduta do curador.
Ainda que, por algum momento, os casos apresentados, possam se situar sob a luz das características dos crimes de perigo concreto ou perigo comum, o crime praticado pelo idealizador dos desafios distingue-se pelo fato deste gerir desde o início um desígnio doloso com objetivo de causar grandes danos a uma gama indeterminada de pessoas.
Desse modo não há o que se presumir, como no caso do crime de perigo abstrato, haja vista a premeditação da infração penal e o eficaz alcance do dano; nem mesmo possibilita tipificar como crime de perigo concreto, visto que inexiste a figura do animus necandi, por mais que exista o dolo, este deve ser peculiarmente voltado a deixar pessoas em situação de perigo. Também não há de dispor-se sobre o crime de perigo comum, já que este possui suas próprias especificidades e não alcança a possibilidade de punir práticas daquele que visa atingir um número imensurável de vítimas por pessoa interposta (curador), veiculando suas criações pelo meio virtual sendo a ideia precípua atingir grandes massas pelo mundo, trazendo problemas de ordem à paz social e a saúde.
Assim, parece que a intenção do legislador em desestimular e punir futuras práticas semelhantes àquelas cometidas em 2018 e 2019, ora sob exame, com a alteração do texto do art. 122, por meio da Lei nº 13.968/2019, não é suficiente por não comportar os elementares a conduta do idealizador restringindo e não alcançando o criador do jogo ou desafio potencialmente lesivo.
5 INEFETIVIDADE DA LEI 13.968/19 FRENTE AO IDEALIZADOR DE JOGOS DE DESAFIOS
Considerando os assuntos dispostos sobre o suicídio, os projetos de leis e a insuficiência da atual redação atribuída ao art. 122 do CPB para inibir práticas destinadas a expor ao perigo a vida ou a incolumidade física ou psíquica, executadas por meio cibernético capaz de alcançar número de pessoas indeterminados, parece ser impostergável a necessidade de criação de tipo penal direcionado a desestimular e punir eventuais condutas como as examinadas em linhas pretéritas.
Compreendendo ser insuficiente a atual redação do art. 122 do CPB, o Senador Confúcio Moura (MDB/RO) apresentou projeto de Lei n° 847, de 2019, que objetiva tipificar como crime a “conduta cibernética prejudicial à saúde, à incolumidade física ou psíquica ou à vida de outrem” (SENADO, 2019, s/p).
Embora esse Projeto de Lei, somente refira‐se a punir a quem “induzir, instigar, constranger ou ameaçar alguém, por meio da rede mundial de computadores,” (SENADO, 2019, s/p), não faz menção à imputação de quem realmente deve decorrer, trata‐se de circunstância indispensável à penalização da conduta daquele que cria os desafios, pois por essência deste que se deriva a situação fática descrita na conduta dos outros. Desse modo, o legislador, autor de tal Projeto de Lei deveria abarcar não só aqueles que por meio da rede mundial de computadores venham “induzir, instigar, constranger ou ameaçar alguém para que pratique o ato prejudicial à sua saúde, à sua incolumidade física ou psíquica ou à sua vida”, deveria em decorrência dessa oportunidade desestimular o surgimento de novos desafios que possam advir a partir daqueles que até então vislumbraram a impunidade, pela ausência de um tipo penal que qualifique a conduta de criar desafios objetivando ensinar práticas suicidas e, por conseguinte, divulgar e compartilhar na rede mundial de computadores esses conteúdos inapropriados.
Ainda sobre o tema, foi proposto o Projeto de Lei nº 3632 de 2019 proibindo “... a divulgação e compartilhamento de conteúdo impróprios”; a proposta busca acrescentar ao código penal brasileiro um novo tipo penal instituindo o artigo 154-C.
Art. 154-C. Divulgar, reproduzir, publicar, oferecer, vender, ou difundir em dispositivo ou programa de computador, ou nos provedores de aplicações de internet, ou redes sociais, conteúdos que induzam, instiguem e promovam o suicídio, a automutilação e os assassinatos em massa.
Pena: reclusão de 2 (dois) a 6(seis) anos e multa.
Aumento de pena:
Parágrafo único. A pena é aumentada até o dobro se a prática é divulgada, comercializada, publicada na rede de computadores ou em redes sociais ou transmitida por terceiro em tempo real. (NR)
A proposta de novo artigo apresentado pelo projeto de lei citado acima possui pluralidade de núcleos do tipo, a saber, são eles: divulgar, reproduzir, publicar, oferecer, vender e difundir. Trata-se de proposta que pretende evitar a propagação, na rede mundial de computadores, de assuntos que possam promover a instigação ao suicídio.
A alegação principal do referido projeto é que no Brasil não existem instrumentos capazes de evitar que pessoas que estão passando por um momento de fragilidade emocional venham a aderir à proposta de autoextermínio apresentada por sádicos. Coibindo assim a “divulgação de conteúdos impróprios como suicídio, automutilação e assassinatos em massa que podem desencadear comportamentos suicidas na internet em adolescentes predispostos.” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2019, s/p).
É notável que as teorias fundadas nestes preceitos, sem dúvida, são de suma importância para que causas como estas sejam amenizadas. E por consequência se estabeleça mais um dispositivo de proteção aos bens jurídicos tutelados que possam vir a sofrer algum dano devido a tais práticas delituosas.
Consoante noção cediça, por meio do estudo realizado constatou-se que as teorias existentes evidenciam a impossibilidade de punir a conduta praticada pelo idealizador.
Sendo assim, indubitável é que a alteração procedida no art. 122 do Código Penal, trazida pela lei 13.968/19, não foi capaz de inibir a conduta desse agente desenvolvedor de jogos e desafios, oportunizando de fato, a necessidade de criação de um novo tipo penal capaz de puni-lo.
Cumpre examinarmos, neste passo, que dentre as manifestações da necessidade de criação de um novo tipo, calha lembrar-se da última ratio, princípio pelo qual a lei penal, por meio do Estado de direito se utilize como último recurso, intervindo minimamente, somente no caso em que exista extrema necessidade, situação na qual são afetados os bens jurídicos mais importantes em questão, fazendo-se precisa a intervenção para as devidas resoluções, ou seja, a criação de um novo tipo deve ter seu respaldo de maneira equânime, a [...] “sanção penal reveste-se de especial gravidade (...) a intervenção da lei penal só poderá ocorrer quando for absolutamente necessária para a sobrevivência da comunidade”. (PRADO, 2020).
Em virtude dessas considerações, não obstante, a ausência de vítima determinada, àquele que cria, arquiteta, disponibiliza ou divulga mecanismos, jogos ou desafios que incentivem a prática de suicídio ou de autolesão, dever-se-ia impingir as mesmas penas previstas no art. 122 do CPB.
O suicídio e automutilação hodiernamente apresentados constituem resultado de longa evolução tanto social como jurídica, não sendo atualmente conceituados da forma que deveriam e tampouco se tem seus elementos classificados de maneira que se amoldem perfeitamente na criminalização da conduta praticada por terceiro que venha fomentá-los.
Diante da necessidade de efetividade do direito de proteção à vítima de suicídio, salienta-se que ainda que a execução pelo curador exija a prévia ação criativa do idealizador, sem qual não seria possível a execução dos atos concretos e efetiva lesão ao bem jurídico protegido, é dificultoso o seu enquadramento como coautor do crime previsto no atual art. 122 do CPB.
Assim, parece que a intenção do legislador em desestimular e punir futuras práticas semelhantes àquelas cometidas em 2017, 2018 e 2019, ora analisadas, com a alteração do texto do art. 122, por meio da Lei nº 13.968/2019, não foi suficiente, tendo em vista, não abordar a conduta do idealizador, restringindo-se a atores diversos do criador do jogo ou desafio potencialmente lesivo.
Portanto, ao final do estudo sobre a conduta praticada pelo idealizador de jogos de desafios que buscam induzir ou instigar a prática de suicídio ou de automutilação, foi possível constatar que de fato, as normas existentes e previstas no Código Penal Brasileiro não preveem sua punibilidade. À vista disso, não foi conveniente o fato de os legisladores terem deixado de fora do texto dos referidos Projetos de Lei condutas que possam ser tipificadas conjuntamente com as quais já se almeja punir, deste modo sugere-se a criação de um novo tipo penal capaz de inibir a conduta desse agente idealizador.
Por exemplo: Aquele, ainda que sem visar vítima determinada, cria, arquiteta, disponibiliza ou divulga mecanismos, jogos ou desafios que incentivem a prática de suicídio ou de autolesão, incorre nas mesmas penas prevista no art. 122 do CPB.
7 REFERÊNCIAS
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AGUIAR, LEONARDO. Princípio da ofensividade. Disponível em https://leonardoaaaguiar.jusbrasil.com.br/artigos/333123759/principio-da-ofensividade. Acesso em 23 de março de 2020
BRASIL. Lei nº 13.968, de 26 de dezembro de 2019. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13968.htm. Acesso: 28 mar. 2020.
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[1] Para enfrentar a crescente onda de suicídios, em 2014, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e criou a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) criaram conjuntamente a setembro Amarelo no Brasil com a finalidade de expor o problema, salvar vidas por meio de debates e prestar auxílio profissional (ABP, 2020, s/p).
[2] Segundo o art. 171, §2º, V do CP automutilação pode ser punida se o fim visado é o recebimento de indenização ou valor do seguro. De acordo com Celso Delmanto, o dano realizado pelo próprio agente a de ser imprescindivelmente idôneo, caso contrário, estar-se-á diante de crime impossível.
Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Instituto Brasil de Ensino - IBRA (2019-2021); graduado em Investigação Forense e Perícia Criminal pela Universidade Estácio de Sá (2016-2019); Bacharel em Direito pelo Centro Universitário UNA (2018-2022).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JAQUES, Anderson Luiz de Souza. A alteração procedida no art. 122 do Código Penal pela Lei 13.968/19 permite a punição da conduta do desenvolvedor de jogos e desafios? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jan 2023, 04:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/60771/a-alterao-procedida-no-art-122-do-cdigo-penal-pela-lei-13-968-19-permite-a-punio-da-conduta-do-desenvolvedor-de-jogos-e-desafios. Acesso em: 25 dez 2024.
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