RESUMO: O presente artigo abordará o que a doutrina e os Tribunais Internacionais têm reconhecido como o direito ao esquecimento, ou o direito de um indivíduo ter o seu passado preservado de atos que não mais seriam de relevante clamor público. O conflito com os princípios da liberdade de expressão e o direito à informação imporá o limite para aplicação do direito ao esquecimento, sendo que a sua dosagem será diferente para cada país e cultura. Assim, apesar do Direito Brasileiro não ter uma aplicação clara do instituto, será analisada a sua utilização em países como a Inglaterra, dos Estados Unidos e os países da União Europeia para demonstrar a sobreposição entre os princípios da privacidade e da liberdade de expressão.
Palavras-chave: Direito ao Esquecimento, Jurisprudência, Liberdade de Expressão, Direito à Privacidade
RIGHT TO BE FORGOTTEN: DOCTRINAL AND JURISPRUDENTIAL ANALYSIS IN COMPARATIVE LAW
ABSTRACT: This article will address what doctrine and International Courts have recognized as the right to be forgotten, or the right of an individual to have his or her past preserved from acts that would no longer be of relevant public outcry. The conflict with the principles of freedom of speech and the right to be informed will impose the limit for the application of the right to be forgotten, and its dosage will be different for each country and culture. Thus, although Brazilian law does not have a clear application of the institute, it will be analyzed its use in foreign countries such as England, the countries from the European Union and the United States to demonstrate the overlap between the principles of privacy and freedom of expression.
Keywords: Right to be Forgotten, Jurisprudence, Freedom of Expression, Right to Privacy
1.INTRODUÇÃO
O direito ao esquecimento, a cada dia que passa, vem criando cada vez mais importância no mundo jurídico, tendo em vista a ampla dispersão de informação que vivenciamos hoje.
Assim, há que se encontrar um equilíbrio entre o direito à informação, no qual qualquer pessoa teria o direito a procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, e o direito à privacidade, fenômeno contrário, no qual as pessoas deixam de fornecer informações ao conhecimento público, visando a preservação de um mínimo de privacidade e anonimato sobre a sua vida particular[1].
Os efeitos negativos da propagação descontrolada da informação cuja disseminação adquire proporções além do imaginável são capazes de exceder qualquer efeito positivo gerado pela contribuição ao conhecimento sobre determinado fato.
Na medida que este limite é atingido deverá o Estado, através da atuação legislativa e judiciária, impedir a disseminação do fato, fazendo-o se perder na nuvem de conhecimento, e, com isso, evitar qualquer tipo de lesão ao indivíduo prejudicado.
Neste ponto, portanto, veja que o direito ao esquecimento é uma ferramenta utilizada de forma preventiva à lesão aos danos da personalidade (honra, imagem, privacidade etc.).
Como dita o velho provérbio popular: “o seu direito termina onde começa o do outro”.
Assim, o presente trabalho tem como objetivo verificar como este limite é traçado pelos Tribunais, não apenas no Brasil, cuja análise do direito ao esquecimento é muito recente, mas também em âmbito internacional, em especial nas cortes americanas e europeias, onde tal discussão já se dá de forma aprofundada.
Em termos de estruturação, será apresentado, primeiramente, o direito à liberdade de expressão, depois os direitos que visam a sua limitação, os direitos da personalidade, em especial, o direito à privacidade; para, finalmente, adentrar às análises jurisprudenciais referente ao tratamento do confronto entre o direito ao esquecimento e à liberdade de expressão.
2.DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO
A liberdade de expressão é um instituto que está presente nas constituições nacionais desde o período imperial como garantia para combater diferentes tipos de censura.
Obviamente que, devidamente mitigada pela peculiaridade de cada período histórico, a liberdade de expressão não tinha a mesma interpretação que temos hoje, na qual a garantia à manifestação de pensamento, seja por qualquer veículo necessário, é direito fundamental do ser humano, independentemente de sua etnia, cor, sexo, condição social ou posição política.
Com previsão no Pacto de San Jose da Costa Rica, em seu artigo 13[2], teve a sua consolidação no Brasil, na Constituição Federal de 1988 no artigo 5º, incisos IV[3], VIII[4] e IX[5], bem como a vedação a qualquer tipo de censura, no artigo 220, parágrafo 2º[6].
Não restam dúvidas, portanto, da consolidação da liberdade de expressão como direito fundamental seja em âmbito nacional, como também internacional, e de que o ser humano é proprietário absoluto de sua consciência, podendo, consequentemente, nutrir e alimentar toda sorte de opiniões.
Este poder inclui aquele de ter sua opinião transmitida através de veículo de comunicação acessível a qualquer tipo de púbico, garantindo-se assim uma outra vertente ao direito da liberdade de expressão, consubstanciado no direito à informação.
O direito à informação também é encontrado na legislação internacional, conforme se constata da leitura do artigo 13 do Pacto de San Jose da Costa Rica, acima mencionado, e na legislação pátria no artigo 5º, inciso XIV, da Constituição Brasileira, cuja redação se reproduz a seguir: Artigo 5º. (...) XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.
Sobre a liberdade de expressão e o direito à informação, escreveu Barbosa Lima Sobrinho:
Entre a 'liberdade de expressão' e o 'direito à informação' há que absorver diferenças, que impõem a coexistência das duas. A liberdade de expressão é um direito de quem a utiliza. O direito à informação alcança e abrange o público a que ele se dirige. Há, entre os dois, a distância que vai de um direito pessoal a um direito coletivo. O direito à informação não se limita ao jornalista que o utiliza. Alcança também o público que dele se serve. Até mesmo porque, em relação ao jornalista, como um locutor, deixa de ser um direito para se converter num dever. Um direito subjetivo por excelência (...). Já o direito de informação abrange todos os meios de comunicação e acompanha de perto a evolução da própria imprensa, que se tornou predominantemente informativa.[7]
Assim, verifica-se que a liberdade de expressão, bem como o direito à informação, cuja origem conceitual se deu com o objetivo de evitar censuras em produções jornalísticas de grandes mídias (jornais, revistas, canais de televisão, rádio, etc.), atualmente assume uma expressão inédita e universal, na medida em que qualquer pessoa munida de acesso à internet é capaz de veicular todo tipo de informação (seja verídica ou não) e a qual alcança uma grande variedade de pessoas.
3.DIREITOS DA PERSONALIDADE
O excesso de informação que predomina na sociedade globalizada que vivemos atualmente acarreta no conflito com outros direitos fundamentais, não menos desimportantes e que exigem a garantia de sua prevalência tanto quanto os outros.
Estamos tratando dos Direitos da Personalidade.
Os Direitos da Personalidade têm amparo no Pacto de San Jose da Costa Rica[8], na Constituição Federal[9] e no Código Civil Brasileiro, nos artigos 11 ao 21.
O respaldo legislativo não é em vão, uma vez que privilegiam a integridade da pessoa humana diante da ameaça de entes externos.
Mas não só.
A legislação civil protege o cidadão de qualquer ameaça à sua integridade física; psíquica e moral[10], fazendo assim prevalecer a proteção máxima garantida pelo Constituição Federal no que se diz respeito à dignidade da pessoa humana.
Nas palavras de Luis Carlos Barroso:
No plano jurídico, o valor intrínseco da pessoa humana impõe a inviolabilidade de sua dignidade e está na origem de uma série de direitos fundamentais. O primeiro deles, em uma ordem natural, é o direito à vida. Em torno dele se estabelecem debates de grande complexidade jurídica e moral, como a pena de morte, o aborto e a morte digna. Em segundo lugar, o direito à igualdade. Todas as pessoas têm o mesmo valor intrínseco e, portanto, merecem igual respeito e consideração, independente de raça, cor, sexo, religião, origem nacional ou social ou qualquer outra condição. Aqui se inclui o tratamento não-discriminatório na lei e perante a lei (igualdade formal), bem como o respeito à diversidade e à identidade de grupos sociais minoritários, como condição para a dignidade individual (igualdade como reconhecimento). Do valor intrínseco resulta, também, o direito à integridade física, aí incluídos a proibição da tortura, do trabalho escravo ou forçado, as penas cruéis e o tráfico de pessoas. Em torno desse direito se desenvolvem discussões e controvérsias envolvendo prisão perpétua, técnicas de interrogatório e regime prisional. E, igualmente, algumas questões situadas no âmbito da bioética, compreendendo pesquisas clínicas, eugenia, comércio de órgãos e clonagem humana. E, por fim, o direito à integridade moral ou psíquica, domínio no qual estão abrangidos o direito de ser reconhecido como pessoa, assim como os direitos ao nome, à privacidade, à honra e à imagem. É também em razão do valor intrínseco que em diversas situações se protege a pessoa contra si mesma, para impedir condutas autorreferentes lesivas à sua dignidade.[11]
A classificação acima abordada dos direitos da personalidade, atribuída ao Prof. Carlos Alberto Bittar[12], é de suma importância para o presente estudo, pois considera a pessoa não só em si mesma, mas também em suas projeções na sociedade.
Deste modo, os Direitos da Personalidade, de onde se extrai também o direito à privacidade, estão embutidos na proteção da pessoa humana, sendo, portanto, princípios fundamentais que devem sempre ser perseguidos pelo Estado.
Especificamente no que se refere ao Direito à Privacidade, sua introdução na doutrina do Direito se deu com o artigo The Right To Privacy[13], cuja principal preocupação se dava com as constantes intrusões por jornalistas na vida pessoa e familiar de terceiros, gerando o que foi denominado como o direito de estar só (right to be let alone).
A doutrina mencionada já demonstrava uma confrontação entre princípios, na medida em que, ao mesmo tempo que sustenta o direito de cada indivíduo de determinar até que ponto seus pensamentos, sentimentos e emoções deveriam ser comunicados a outras pessoas, também concluía que a publicação de fatos de interesse público não poderia ser impedida.
A partir deste ponto, e com a evolução da doutrina ao longo dos anos, estabeleceu-se como proteção à intimidade não só a mera faculdade do indivíduo de se isolar, mas atribuindo ao mesmo o poder de controle sobre as suas informações/dados pessoais.
Com este escopo, a instrução normativa introduzida pelo Código Civil de 2002 realçou os valores dos direitos da personalidade e reivindicou a cada indivíduo o direito de proteção à sua personalidade, no que tange ao seu nome e sua reputação social.
Com seus dizeres, o artigo 17 do citado Código esmiúça a proteção dada e que será foco deste estudo: Art. 17. O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.
O sentido trazido pelo novel artigo introduzido na legislação é muito mais extensivo do que se faz acreditar.
Nas palavras do ilustre jurista Nestor Duarte: Embora o legislador haja tomado o nome como objeto dessa proteção, mais amplo é o sentido, pois alberga a inviolabilidade dos direitos à honra, à intimidade, ao recato e a o segredo pessoal[14].
Assim, vemos aqui a introdução do direito de proteção às informações de cada indivíduo e que será utilizado no presente estudo para amparar ao que hoje é chamado de direito ao esquecimento.
4.DIREITO AO ESQUECIMENTO – ANÁLISE JURISPRUDENCIAL E CONFRONTO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NO DIREITO COMPARADO
No âmbito do Direito é possível perceber uma estrita relação entre este e o tempo, exercendo, o segundo, grande influência sobre o primeiro, como fato jurídico natural.
Desta relação podemos extrair institutos que consolidam o pretérito e atribui previsibilidade ao futuro, tais como a prescrição, a decadência, a usucapião, o perdão, a irretroatividade da lei, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, sempre com olhos na segurança jurídica que deve existir nas relações sociais[15].
Assim, numa sociedade na qual a disponibilidade de informações é quase que ilimitada, ao indivíduo deverá ser assegurado o controle a quais informações a sociedade poderá ter sobre sua pessoa, de modo a evitar que fatos pretéritos não mais atingidos pelo universo jurídico não venham a tolher-lhe outros direitos fundamentais.
O direito ao esquecimento teve a sua notoriedade realçada com a aprovação, pelo Conselho da Justiça Federal (CJF), do enunciado nº 531 na VI Jornada de Direito Civil, que assim se referiu: A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento.
E ainda, sua problematização tornou-se amplamente discutida quando abordada pelo Superior Tribunal de Justiça em dois julgados realizados na mesma sessão da Quarta Turma do dia 28 de maio de 2013, o REsp 1.334.097 (caso “Chacina da Candelária”) e o REsp 1.335.153 (caso “Aida Curi”).
Ambos os casos têm origem na veiculação de fatos no programa televisivo “Linha Direta”, da Globo Comunicações e Participações S.A (Globo), e, embora com resultados distintos, o STJ entendeu ser juridicamente possível invocar o direito ao esquecimento.[16]
No primeiro caso, para o Ministro Luis Felipe Salomão, não haveria confronto entre os princípios da liberdade de imprensa e à honra do autor, se caso o nome e a fisionomia do ofendido tivessem sido ocultados. Deste modo, estaria privilegiando o acesso da sociedade à informação e, concomitantemente, preservando a figura do ofendido.
No entanto, o próprio relator faz sua ressalva acerca da importância de se reanalisar eventos passados para ganhar uma perspectiva do futuro:
Nessa linha de raciocínio, a recordação de crimes passados pode significar uma análise de como a sociedade - e o próprio ser humano - evolui ou regride, especialmente no que concerne ao respeito por valores éticos e humanos, assim também qual foi a resposta dos aparelhos judiciais ao fato, revelando, de certo modo, para onde está caminhando a humanidade e a criminologia.[17]
Adotando o mesmo raciocínio, no entanto, o mesmo relator entendeu pelo não reconhecimento do direito ao esquecimento no segundo caso, por entender que o cerne do programa foi o crime em si, sendo impraticável a atividade da imprensa ao tratar do caso, sem fazer referência à própria vítima.
Este mesmo último caso (Caso ‘Aida Curi’) foi levado ao crivo do STF, no julgamento do Recurso Extraordinário com repercussão geral, sob nº 1.010.606, confirmando o seu resultado pela Corte Suprema, no entanto, confirmou-se a tese de que inexistiria o direito ao esquecimento sob amparo do ordenamento jurídico brasileiro.
Nas palavras da Suprema Corte, portanto, confirmou-se o entendimento que:
É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.
O entendimento empossado pela Corte não foge do entendimento já adotado no julgamento de outros temas, como o adotado no julgamento da necessidade de autorização de pessoas retratadas em obras bibliográficos[18], no qual prevaleceu o entendimento de prevalência da tutela às liberdades comunicativas em face ao direito da intimidade, privacidade, honra e imagem dos biografados.
Vale observar, no voto proferido pela Ministra Carmen Lucia, neste julgado, a importância dada à preservação do interesse da sociedade em relação ao direito de informação:
Pela biografia, não se escreve apenas a vida do indivíduo, mas o relato de um povo, os caminhos da sociedade. Se o pensar, o investigar, o produzir e o divulgar a história de uma ou de várias pessoas são livres, como se poderia fazer conformar-se à Constituição ao que lhe atinge a essência, o direito de liberdade de pensar e divulgar o pensado, principalmente em se cuidando de produção intelectual decorrente de investigação sobre vida que se impõe como referência à sociedade?
Críticas à parte acerca do entendimento adotado pela Suprema Corte, há de se indagar se a tutela das liberdades pública não teria limites ao violar a intimidade de um indivíduo de forma a causar-lhe danos irreparáveis.
Afinal, na tese adotada pelo Supremo Tribunal Federal, deixou-se de lado a aplicação do princípio da proporcionalidade, o qual será de extrema valia para aplicação ou não do direito ao esquecimento em Cortes Internacionais.
No Direito Comparado, analisando a jurisprudência de outros países envolvendo o direito ao esquecimento, temos formas diversas de tratar os direitos da personalidade quando confrontados com o direito à liberdade de expressão.
Analisando a jurisprudência dos EUA acerca do tema, verifica-se naquele País um predomínio pela preservação da liberdade de expressão. Até hoje é de grande relevância para os Tribunais Americanos o caso Sidis v. F-R Publishing Corp (1940), no qual um jovem que, na vida adulta, passou a viver uma vida mais reservada, ingressou com pleito de indenização por danos morais diante de uma matéria que narrava fatos passados da sua vida[19]. A pretensão foi negada, sendo que foi decidido que os fatos do seu passado eram suficientes para tornar o assunto noticiável, ou no inglês, newsworthy[20].
Ainda, verifica-se a mesma predominância deste pensamento em julgados mais recentes proferidos pelas Cortes Americanas, sendo que no ano de 2014 reconheceu-se a inexistência de um direito ao esquecimento no ordenamento americano.
No mencionado caso, Garcia v. Google, a atriz Cindy Lee Garcia foi escalada para uma pequena cena no filme Desert Warrior, no entanto, o filme nunca foi finalizado e os produtores reutilizaram a cena realizada por Cindy em outra produção chamada Innocence of Muslims[21], na qual sua fala original foi retirada e dublada para conter a expressão Is Your Mohammed a child molester? (em português, O seu Mohammed é um abusador de crianças?).
Tanto o filme, como a fala, foram veiculados através do portal de vídeos Youtube, de propriedade do Google, gerando repudia na comunidade islâmica ao redor do mundo, e resultando em ameaças à produção do filme e à Cindy.
Assim, Cindy requereu ao Google a retirada do filme de suas plataformas e, posteriormente, com a resposta negativa, ajuizou uma ação em face da empresa alegando entre outras violações, invasão de privacidade, grave infortúnio e infringência à direitos autorais.
Primeiramente a Corte Federal da California negou o pedido de Cindy, o que foi confirmado pela 9ª Corte do Tribunal de Apelações dos EUA, negando a existência de qualquer direito autoral de Cindy pela imagem transmitida no filme, bem como seu pedido para retirada do material veiculado.
Curioso tomar nota que, ao julgar o caso, a 9ª Corte Americana escreveu que “Unfortunately for Garcia, such a ‘right to be forgotten’, although recently affirmed by the Court of Justice for the European Union, is not recognized in the United States”[22], não reconhecendo, assim, o direito ao esquecimento naquele país.
Outro caso que também demonstra a visão que as cortes americanas possuem no confronto entre o direito ao esquecimento e a liberdade de expressão/direito à informação é o caso Martin v. Hearst Corporation (2015)[23].
Neste caso, Lorraine Martin foi presa, junto com seus dois filhos, por possessão de drogas, no entanto, as acusações foram retiradas, bem como a incidência do evento na sua ficha criminal.
No entanto, a prisão foi noticiada por veículos de mídia na Internet e, mesmo após a liberação da prisão, as matérias permaneceram acessíveis na rede. Após o pedido de Lorraine para retirada do material, diante da recusa, ela processou a empresa responsável pela propagação da matéria por difamação.
O pedido de Lorraine foi negado em primeira instância, e rejeitado também em segunda instância, no que a 2ª Corte do Tribunal de Apelações dos EUA entendeu que a remoção do conteúdo violaria os princípios vinculados pela Primeira Emenda da Constituição Americana (liberdade de expressão e de imprensa).
Vale transcrever aqui o excerto da decisão proferida pelo Tribunal:
In short, the Erasure Statute requires the state to erase certain official records of an arrest and grants the defendant the legal status of one who has not been arrested. But the Erasure Statute's effects end there. The statute creates legal fictions, but it does not and cannot undo historical facts or convert once-true facts into falsehoods. Just as the Erasure Statute does not prevent the government from presenting witness testimony at a later trial that describes the conduct that underlies an erased arrest, Morowitz, 200 Conn. at 448-49, the statute does not render historically accurate news accounts of an arrest tortious merely because the defendant is later deemed as a matter of legal fiction never to have been arrested. (...)
Martin's claims for libel and placing another in a false light fail because the articles do not contain falsehoods. Her claim for negligent infliction of emotional distress fails because there is nothing negligent about publishing a true and newsworthy article. (....) And her claim for invasion of privacy by appropriation fails because a newspaper does not improperly appropriate an individual's name or likeness merely by publishing an article that brings the individual's activities before the public.
Deste modo, entendeu a Corte Americana que, apesar de Lorraine ter tido as acusações afastadas, à época da veiculação da notícia, os fatos eram verdadeiros e noticiáveis, o que impediria a retirada da matéria do acesso ao público em geral.
No caso da União Europeia, por sua vez, encontramos uma maior profundidade na discussão da proteção do indivíduo e seus direitos da personalidade, possibilitando àqueles que sentirem-se invadidos por matérias jornalísticas ou referências passadas conseguirem obter a supressão do material, ou inclusive, a desindexação da matéria em questão dos sites de busca online.
Um dos primeiros julgamentos que ganhou grande repercussão, foi o Caso Lebach[24], julgado pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, em 1973, no qual um condenado e preso pelo homicídio de quatro soldados em Lebach tentou impedir o lançamento de um documentário que narrava o crime e o mencionava, sendo que o autor estaria prestes a ser liberado.
O Tribunal determinou que o programa não fosse exibido sob a alegação de que a tutela dos direitos da personalidade sobrepujava a liberdade de comunicação. Os julgadores mostraram o entendimento de que a veiculação do documentário comprometeria a ressocialização do autor, cuja pena em relação aos crimes já havia sido cumprida[25].
Em 2014, foi estabelecido um precedente importante no Tribunal de Justiça da União Europeia ao analisar o caso M.C.G. v. Google Spain SL e Google Inc.[26]
Naquela ocasião, o Tribunal determinou a exclusão dos resultados de busca do Google referentes à venda de um imóvel em hasta pública, realizada há alguns anos em execução fiscal movida em face do autor.
No entendimento do Tribunal:
Por conseguinte, há que declarar que, ao explorar a Internet de forma automatizada, constante e sistemática, na busca das informações nela publicadas, o operador de um motor de busca «recolhe» esses dados, que «recupera», «regista» e «organiza» posteriormente no âmbito dos seus programas de indexação, «conserva» nos seus servidores e, se for caso disso, «comunica» e «coloca à disposição» dos seus utilizadores, sob a forma de listas de resultados das suas pesquisas. Na medida em que estas operações estão explícita e incondicionalmente referidas no artigo 2.°, alínea b), da Diretiva 95/46, devem ser qualificadas de «tratamento» na aceção desta disposição, independentemente de o operador do motor de busca efetuar as mesmas operações também com outros tipos de informação e não as distinguir dos dados pessoais. (...)
Ora, é o operador do motor de busca que determina as finalidades e os meios dessa atividade e, deste modo, do tratamento de dados pessoais que ele próprio efetua no contexto dessa atividade e que deve, consequentemente, ser considerado «responsável» por esse tratamento por força do referido artigo 2°, alínea d)[27].
No mencionado julgado, é de extrema importância a aplicação pela Corte Julgadora do princípio da proporcionalidade, o qual servirá de norte para todas as decisões a serem tomadas no âmbito da União Europeia.
Vale conferir o trecho de seu decisório:
Atendendo à gravidade potencial desta ingerência, há que declarar que a mesma não pode ser justificada apenas pelo interesse económico do operador de tal motor nesse tratamento. No entanto, na medida em que a supressão de ligações da lista de resultados pode, em função da informação em causa, ter repercussões no interesse legítimo dos internautas potencialmente interessados em ter acesso essa informação, há que procurar, em situações como as que estão em causa no processo principal, um justo equilíbrio, designadamente, entre esse interesse e os direitos fundamentais dessa pessoa nos termos dos artigos 7.° e 8.° da Carta. Embora seja verdade que, regra geral, os direitos da pessoa em causa protegidos por esses artigos prevalecem também sobre o referido interesse dos internautas, este equilíbrio pode, todavia, depender, em determinados casos particulares, da natureza da informação em questão e da sua sensibilidade para a vida privada da pessoa em causa, bem como do interesse do público em dispor dessa informação, que pode variar, designadamente, em função do papel desempenhado por essa pessoa na vida pública
Em 2018, em outro processo envolvendo a mesma empresa de tecnologia, foi julgado pelo corte da Inglaterra os casos NT1 e NT2 v. Google LLC.[28] conjuntamente, em razão de sua similaridade, no entanto, com resultados diversos.
Os casos tratavam de dois empresários, NT1 e NT2, condenados criminalmente no passado e que buscavam a remoção do conteúdo no site de busca do Google. Não obstante, NT2 teve a sua desindexação autorizada pelo Tribunal, enquanto que o pleito de NT1 foi negado.
O Tribunal constatou que NT2 assumiu o seu erro à época dos fatos, bem como demonstrara arrependimento, motivo que levou à decisão favorável ao seu pedido. Além disso, verificou-se que o empresário não atuava mais no mesmo ramo em que fora cometida a infração.
No caso do NT1, por outro lado, não foi constatado o arrependimento e o empresário mantinha sua atuação no mesmo ramo de atividade, sendo pessoa pública, assim, entendeu o Tribunal, que os fatos seriam de relevante interesse público.
Por fim, um último caso de relevante repercussão na esfera internacional, foi o julgamento que não reconheceu o direito ao esquecimento de dois irmãos condenados pelo assassinato de um ator na década de 90 e que foram colocados em liberdade em meados de 2000[29].
No caso, o julgamento que ocorreu em junho de 2018, a Corte Europeia de Direitos Humanos foi acionada pelos dois irmãos após perderem o seu pleito, nas instâncias superiores de Hamburgo, para que seja impedida uma emissora de rádio alemã de veicular um programa sobre o crime às vésperas da liberação condicional dos autores.
A CEDH, no entanto, manteve a decisão dos Tribunais, entendendo que:
The Court observed that the Federal Court of Justice, while recognising that M.L. and W.W. had a considerable interest in no longer being confronted with their convictions, had emphasised that the public had an interest in being informed about a topical event, and also in being able to conduct research into past events. The Federal Court had also reiterated that one of the media’s tasks was to participate in creating democratic opinion, by making available to the public old news items that were preserved in their archives. The Court agreed entirely with this conclusion.[30]
Deste modo, verifica-se que os Tribunais Europeus já vêm enfrentando diversos casos no tema de direito ao esquecimento e, mesmo assim, até hoje não foi possível estabelecer um entendimento majoritário para sua aplicação e até onde este pode limitar o direito à liberdade de expressão e informação.
5.CONCLUSÃO
Como é possível verificar, é nítido o confronto existente entre o direito ao esquecimento e à liberdade de expressão.
Nas doutrinas mais conceituadas verificamos que os direitos da personalidade são preferenciais aos direitos de liberdade, normalmente funcionando como limitadores destes.
Assim, fica evidente a utilização do princípio da proporcionalidade para verificar quando aplicar-se-á um em detrimento do outro, sempre visando a melhor prevalência do princípio à dignidade humana.
No entanto, ao tratar do direito ao esquecimento, os Tribunais ficam muito divididos quanto à mitigação dos direitos à liberdade, sendo que o direito ao esquecimento ainda apenas é concedido em casos excepcionais.
Verifica-se, não obstante, quanto mais a sociedade se adentra em novas tecnologias de informação, mais relevante torna-se a proteção aos direitos da personalidade.
Em contraponto, deve-se tomar cuidado para que o controle sobre estas informações não se demude em uma forma de se apagar registros históricos de interesse público, o que fomentaria uma censura velada e resultaria em uma afronta à liberdade de expressão.
Assim, não só deve ser analisar os casos de aplicação ao direito ao esquecimento caso a caso, na análise fática da situação a que se sujeita o suposto agente violado, como também deve-se tentar dar prevalência a outros meios de tutela do direito ao esquecimento que não apenas a simples não veiculação da matéria informativa.
Meios como a anonimização, mantendo a publicação, mas ocultando o nome ou qualquer referência à pessoa envolvida, bem como a possibilidade de simples atualização dos dados da matéria, com redução ou edição do conteúdo da matéria informativa, são métodos ainda timidamente utilizados pela jurisprudência, tanto nacional como internacional, mas que podem ser verdadeiros aliados para que se proteja os direitos da personalidade, sem ferir os direitos à liberdade de expressão e informação.
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[1] LISBOA, Roberto Senise. A inviolabilidade de correspondência na internet. In: LUCCA, Newton De e SIMÃO FILHO, Adalberto (coords). Direito e Internet-aspectos jurídicos relevantes. Bauru, SP: EDIPRO, 1ª reimp., 2001, p. 469.
[2] Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.
[3] IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.
[4] VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
[5] IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.
[6] Art. 220 A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. (...)§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
[7] LIMA SOBRINHO, Barbosa. "Direito de informação", R. Inf. Leg., n. 67, jul./set. 1980.
[8] Artigo 11 - Proteção da honra e da dignidade1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.
[9] Artigo 5º. : (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
[10] Bittar, Carlos Alberto, Os Direitos da Personalidade, Rio 1989, p. 62 a 64.
[11] A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público. Mimeografado, dezembro de 2010
[12] Os Direitos da Personalidade. Rio 1989, p. 62 a 64
[13] WARREN, S.; BRANDEIS, L. The right to privacy. Harvard Law Review, vol. IV, nº. 5, 15 december, 1890.
[14] Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. Coor. Cezar Peluso. 6ª ed. Barueri, SP: Manole, 2012.
[15] AMORIM, Hêica Souza. O Reconhecimento Do Direito Ao Esquecimento Na Sociedade Da Informação. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos) - Universidade de Tiradentes, 2016.
[16] MONCAU, Luiz Fernando Marrey. Direito ao Esquecimento. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020
[17] REsp 1736803/RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 28/04/2020, DJe 04/05/2020
[18] ADI 4.815, Rel. Min. Carmen Lúcia, j. 10.06.2015.
[19] COELHO, Julia Costa de Oliveira. Direito ao Esquecimento e seus mecanismos de Tutela na Internet. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020.
[20] O termo newsworthy é um dos pontos de partida para definir quando o interesse público ao direito de informação deve preponderar sobre o direito daquele indivíduo que estaria sendo violado com a exposição de sua intimidade. A autora MEG LETA JONES faz uma reflexão sobre o tema observando que “a deferência ao jornalismo para determinar o que é noticiável e a certeza de que o longo rastro da internet cria uma audiência para tudo proporciona uma noção bastante complicada do que deve ser considerado digno de notícia enquanto padrão para a disseminação adequada e contínua de informações privadas (CTRL+Z: the right to be forgotten. Nova Iorque: New York University Press, 2016);
[21] https://pt.wikipedia.org/wiki/Innocence_of_Muslims, acessado em 03/02/2021, às 6h37.
[22] https://h2o.law.harvard.edu/collages/34510, acesso em 25/01/2021, às 23h40
[23] https://scholar.google.com/scholar_case?case=17020447715187840855&hl=en&as_sdt=6&as_vis=1&oi=scholarr, acesso em 26/01/2021, às 00h01.
[24] 35 BVerfGE 202 (1973)
[25] COELHO, Julia Costa de Oliveira. Ob, cit. p. 14.
[26] Caso C-131/12, Grande Seção do Tribunal de Justiça da União Europeia.
[27] In http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=152065&doclang=PT, acessado em 18/10/2020, às 18h24.
[28] NT1 & NT2 v. Google LLC. [2018] EWHC799 (QB) Mr. Justice Warby
[29] M.L. e W.W. vs. Germany (CE: ECHR: 2018:0628JUD006079810, ECLI: CE: ECHR: 2018: 0628JUD006079810 [2018] ECHR 554
[30] In https://hudoc.echr.coe.int/eng/#{%22itemid%22:[%22003-6128897-7918743%22]}, acessado em 18/10/2020, às 19h33.
Formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e estudante do Mestrado em Direito Civil Comparado, na mesma instituição, endereço de e-mail: [email protected].
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Sergio Baptista Pereira de Almeida. Direito ao esquecimento: análise doutrinária e jurisprudencial no direito comparado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 mar 2023, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61184/direito-ao-esquecimento-anlise-doutrinria-e-jurisprudencial-no-direito-comparado. Acesso em: 23 dez 2024.
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