RESUMO: O presente trabalho tem como intuito analisar o instituto do nome civil, a regra de sua imutabilidade, bem como a flexibilização promovida pela jurisprudência brasileira e pela Lei n. 14.382/2022, que alterou de forma substancial a Lei de Registros Públicos, no que concerne às hipóteses legais de alteração do prenome e sobrenome.
Palavras-chave: Nome. Imutabilidade. Direito da Personalidade. Flexibilização. Autonomia da vontade. Dignidade da pessoa humana.
ABSTRACT: The present work aims to analyze the institute of the civil name, the rule of its immutability, as well as the flexibility promoted by Brazilian jurisprudence and by Law n. 14,382/2022, which substantially amended the Public Registries Law, with regard to the legal hypotheses of changing the first and last name.
Keywords: Name. Immutability. Personality Right. Flexibilization. Autonomy of the will. Dignity of human person.
1 INTRODUÇÃO
Os direitos da personalidade, protegidos tanto pela Constituição Federal quanto pela legislação infraconstitucional, consistem, segundo a doutrina, em direitos inatos e essenciais à dignidade da pessoa.
Dentre tais direitos se insere o nome civil, protegido pelo Código Civil, a partir do artigo 16, bem como pelo artigo 18 da Convenção Americana de Direitos Humanos, segundo o qual: “Toda pessoa tem direito a um prenome e aos nomes de seus pais ou ao de um destes”.
Além da dimensão pessoal do nome, a vida em sociedade exige sejam respeitadas as regras estabelecidas para registro e alteração dos prenomes e sobrenomes, considerando os princípios da publicidade, da segurança jurídica e da imutabilidade do nome.
Ocorre que, nos últimos anos, tanto a jurisprudência nacional quanto a internacional têm flexibilizado as regras positivadas acerca das hipóteses em que se admite a alteração do nome.
Ademais, em alteração legislativa ocorrida no ano de 2022, a Lei de Registros Públicos passou a contar com diversas possibilidades de modificação, perante os registros civis, e independentemente de decisão judicial, de prenomes e sobrenomes.
O objetivo do presente artigo é analisar as novas previsões dos artigos 56 e 57 da Lei de Registros Públicos, bem como a evolução jurisprudencial dos tribunais superiores, os quais passaram a interpretar a alteração do nome de acordo com as modificações ocorridas na sociedade.
2 DO REGRAMENTO LEGAL DO NOME CIVIL E O PRINCÍPIO DA IMUTABILIDADE
O Código Civil, em seu artigo 16, dispõe que “Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendido o prenome e o sobrenome”. Trata-se de direito fundamental que guarda relação com a identificação da pessoa, permitindo sua individualização e reconhecimento no seio social, além de evitar que seja confundida com outra pessoa.
Ademais, tais elementos facilitam a identificação do estado da pessoa, no viés pessoal e patrimonial, sendo essencial para a segurança jurídica nas relações com terceiros.
O nome e seus acessórios podem ser adquiridos pelo nascimento, pelo casamento, pela adoção, ou mesmo por escolha e, para efeitos de publicidade e de proteção, o ordenamento jurídico brasileiro demanda seja o nome registrado, conforme regulação da Lei n. 6.015/1973.
De acordo com Carlos Alberto Bittar[1], o nome civil possui como características as seguintes:
Dentre as características do nome civil, a par das comuns aos direitos da personalidade, devem ser realçadas: a inestimabilidade (não se pode valorar economicamente, uma vez que inegociável); obrigatoriedade (uso necessário e mesmo contra a vontade do titular); imutabilidade; irrenunciabilidade (não pode ser afastado pelo titular); oponibilidade a terceiro e à família (em face do traço vinculativo, que permite ao interessado exigir o respeito da família e perante estranhos). Alguns temperamentos são admitidos quanto a esses elementos, em especial a respeito da possibilidade de escolha e de modificações em sua textura (assim, com a condição familiar; o filho; a pessoa com nome exótico), pois o casamento, a adoção e a sentença em ação própria (como a de retificação ou de acréscimo de nome) exercem influência decisiva na matéria.
Dentre as características citadas, interessa especialmente ao presente trabalho o princípio da imutabilidade, que decorre de imperativos de ordem pública.
Segundo Leonardo Brandelli[2], “Um nome que pudesse mudar ao sabor da livre vontade de seu titular desnaturaria a própria razão de ser desse instituto, uma vez que nem permitiria sua junção à personalidade da pessoa, por poder ser efêmero, nem serviria para identificá-la perante a coletividade”.
Dada a importância do princípio em análise, cuja observância se destina a permitir uma constante individualização das pessoas, a Lei de Registros Públicos, em seu artigo 58, estabelece que “O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios”.
Esta característica, porém, tem sido relativizada pela legislação e pela jurisprudência nacional. Assim, deve-se compreender a imutabilidade do nome como a impossibilidade de sua modificação por mera vaidade, sendo imprescindível a observância do regramento legal a respeito do tema.
Leonardo Brandelli registra, ainda, que a regra abrange tanto o nome de família como o prenome, pois a designação personativa é formada por esses dois elementos que, em conjunto, concorrem para a identificação dos indivíduos.
2.1 DA FLEXIBILIZAÇÃO DA IMUTABILIDADE DO NOME PELA JURISPRUDÊNCIA NACIONAL E INTERNACIONAL E DAS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI N. 14.382/2022
Como uma primeira exceção à regra da imutabilidade do nome, pode-se citar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4275.
Na oportunidade, a Corte Constitucional brasileira firmou o entendimento de que a pessoa transgênero dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamento ao livre desenvolvimento da personalidade.
Interessa salientar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos já havia se manifestado a respeito do tema, por meio da Opinião Consultiva n. 24/2017, em que emitiu parecer no sentido de que:
2. A mudança de nome e, em geral, a adequação dos registros públicos e dos documentos de identidade para que estes sejam conforme a identidade de gênero autopercebida constitui um direito protegido pelos artigos 3°, 7.1, 11.2 e 18 da Convenção Americana, em relação com o 1.1 e 24 do mesmo instrumento, pelo que os Estados estão obrigados a reconhecer, regular e estabelecer os procedimentos adequados para tais fins, nos termos estabelecidos nos pars. 85 a 116. por unanimidade, que:
3. Os Estados devem garantir que as pessoas interessadas na retificação da anotação do gênero ou, se este for o caso, às menções do sexo, em mudar seu nome, adequar sua imagem nos registros e/ou nos documentos de identidade, em conformidade com a sua identidade de gênero autopercebida, possam recorrer a um procedimento ou um trâmite: a) enfocado na adequação integral da identidade de gênero autopercebida; b) baseado unicamente no consentimento livre e informado do requerente, sem exigir requisitos como certificações médicas e/ou psicológicas ou outras que possam ser irrazoáveis ou patológicas; c) deve ser confidencial. Além disso, mudanças, correções ou adequações nos registros e nos documentos de identidade não devem refletir mudanças de acordo com a identidade de gênero; d) deve ser expedito e, na medida do possível, deve ser gratuito, e e) não deve exigir a acreditação de operações cirúrgicas e/ou hormonais. O procedimento que melhor se adapta a estes elementos é o procedimento ou trâmite materialmente administrativo ou cartorial.
Vejamos, ainda, o seguinte julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO ESPECIAL. ALTERAÇÃO DE REGISTRO PÚBLICO. LEI Nº 6.015/1973. PRENOME MASCULINO. ALTERAÇÃO. GÊNERO. TRANSEXUALIDADE. REDESIGNAÇÃO DE SEXO. CIRURGIA. NÃO REALIZAÇÃO. DESNECESSIDADE. DIREITOS DE PERSONALIDADE.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
2. Cinge-se a controvérsia a discutir a possibilidade de transexual alterar o prenome e o designativo de sexo no registro civil independentemente da realização da cirurgia de alteração de sexo.
3. O nome de uma pessoa faz parte da construção de sua própria identidade. Além de denotar um interesse privado, de autorreconhecimento, visto que o nome é um direito de personalidade (art. 16 do Código Civil de 2002), também compreende um interesse público, pois é o modo pelo qual se dá a identificação do indivíduo perante a sociedade.
4. A Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/1973) consagra, como regra, a imutabilidade do prenome, mas permite a sua alteração pelo próprio interessado, desde que solicitada no período de 1 (um) ano após atingir a maioridade, ou mesmo depois desse período, se houver outros motivos para a mudança. Os oficiais de registro civil podem se recusar a registrar nomes que exponham o indivíduo ao ridículo.
5. No caso de transexuais que buscam a alteração de prenome, essa possibilidade deve ser compreendida como uma forma de garantir seu bem-estar e uma vida digna, além de regularizar uma situação de fato.
6. O uso do nome social, embora não altere o registro civil, é uma das maneiras de garantir o respeito às pessoas transexuais, evitando constrangimentos públicos desnecessários, ao permitir a identificação da pessoa por nome adequado ao gênero com o qual ela se identifica. Ele deve ser uma escolha pessoal do indivíduo e aceito por ele como parte de sua identidade.
7. O direito de escolher seu próprio nome, no caso de aquele que consta no assentamento público se revelar incompatível com a identidade sexual do seu portador, é uma decorrência da autonomia da vontade e do direito de se autodeterminar. Quando o indivíduo é obrigado a utilizar um nome que lhe foi imposto por terceiro, não há o respeito pleno à sua personalidade.
8. O Código Civil, em seu artigo 15, estabelece que ninguém pode ser constrangido a se submeter, principalmente se houver risco para sua vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica, caso aplicável à cirurgia de redesignação de sexo.
9. A cirurgia de redefinição de sexo é um procedimento complexo que depende da avaliação de profissionais de variadas áreas médicas acerca de sua adequação.
10. A decisão individual de não se submeter ao procedimento cirúrgico tratado nos autos deve ser respeitada, não podendo impedir o indivíduo de desenvolver sua personalidade.
11. Condicionar a alteração do gênero no assentamento civil e, por consequência, a proteção da dignidade do transexual, à realização de uma intervenção cirúrgica é limitar a autonomia da vontade e o direito de o transexual se autodeterminar. Precedentes.
12. Recurso especial provido.
(REsp n. 1.860.649/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 12/5/2020, DJe de 18/5/2020.) (grifou-se)
Vê-se, portanto, uma construção jurisprudencial que promoveu a ponderação entre os princípios da imutabilidade do nome e da dignidade da pessoa humana, decidindo-se pela prevalência deste último, haja vista caracterizar-se o nome como direito fundamental vinculado à personalidade e identidade da pessoa humana.
Nesse contexto, a Lei n. 14.382/2022 promoveu importantes alterações na Lei de Registros Públicos, flexibilizando as previsões normativas para o fim de autorizar a mudança de prenomes e sobrenomes.
Primeiramente, nota-se que a nova redação do artigo 55 possibilita a inclusão de sobrenome de ascendente, mediante a apresentação de certidões necessárias para comprovar a linha ascendente.
O §1º do artigo 55 mantém a regra de que o oficial de registro não registrará prenomes suscetíveis de expor ao ridículo seus portadores.
A Lei n. 14.382/2022 também inseriu o §4º no artigo 55 da Lei de Registros Públicos, prevendo o cabimento de oposição fundamentada por um dos genitores, ao prenome e sobrenomes indicados pelo declarante.
Ademais, em oposição à redação anterior do artigo 56 da Lei n. 6.075/73, segundo o qual o interessado poderia alterar seu nome, no primeiro ano após atingida a maioridade civil, a alteração legislativa passou a autorizar que a pessoa requeira, após a maioridade, a alteração de seu prenome, de forma imotivada e independente de decisão judicial.
Nota-se, assim, que a partir da Lei n. 14.382/2022, não se faz necessária a observância do prazo fixo de um ano contado da maioridade civil, sendo possível que a pessoa opte pela alteração de seu prenome, a qualquer tempo, desde que atingida a maioridade, independente de motivação.
Nos termos do §1º do artigo 56, contudo, a alteração imotivada pode ser feita apenas uma vez pela via extrajudicial, razão pela qual sua desconstituição dependerá de sentença judicial.
Revela-se de grande importância o teor do §2º do artigo 56, o qual estabelece a necessidade de averbação da alteração do prenome, que conterá, obrigatoriamente, o prenome anterior, os números de documento de identidade, de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, de passaporte e de título de eleitor do registrado, dados esses que deverão constar expressamente de todas as certidões solicitadas.
A previsão se justifica pela necessidade de dar publicidade à alteração do prenome pela via extrajudicial, a fim de proteger as relações jurídicas firmadas com terceiros.
Não por outro motivo o §3º do artigo 56 determina que o ofício de registro civil promova, às expensas do requerente, a comunicação do ato aos órgãos expedidores do documento de identidade, do CPF e do passaporte, bem como ao Tribunal Superior Eleitoral, preferencialmente por meio eletrônico.
Em continuação, houve considerável alteração do artigo 57 da Lei de Registros Públicos, o qual previa, em sua redação original, que a alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, seria permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro.
Dependia, portanto, a alteração do nome, de oitiva do órgão ministerial e de decisão judicial.
Vejamos a redação do artigo 57 da Lei n. 6.075/73 após as alterações promovidas pela Lei n. 14.382/2022:
Art. 57. A alteração posterior de sobrenomes poderá ser requerida pessoalmente perante o oficial de registro civil, com a apresentação de certidões e de documentos necessários, e será averbada nos assentos de nascimento e casamento, independentemente de autorização judicial, a fim de;
I - inclusão de sobrenomes familiares;
II - inclusão ou exclusão de sobrenome do cônjuge, na constância do casamento;
III - exclusão de sobrenome do ex-cônjuge, após a dissolução da sociedade conjugal, por qualquer de suas causas;
IV - inclusão e exclusão de sobrenomes em razão de alteração das relações de filiação, inclusive para os descendentes, cônjuge ou companheiro da pessoa que teve seu estado alterado.
§ 1º Poderá, também, ser averbado, nos mesmos termos, o nome abreviado, usado como firma comercial registrada ou em qualquer atividade profissional.
§ 2º Os conviventes em união estável devidamente registrada no registro civil de pessoas naturais poderão requerer a inclusão de sobrenome de seu companheiro, a qualquer tempo, bem como alterar seus sobrenomes nas mesmas hipóteses previstas para as pessoas casadas.
§ 3º (Revogado).
§ 3º-A O retorno ao nome de solteiro ou de solteira do companheiro ou da companheira será realizado por meio da averbação da extinção de união estável em seu registro.
§ 4º (Revogado).
§ 5º (Revogado).
§ 6º (Revogado).
§ 7o Quando a alteração de nome for concedida em razão de fundada coação ou ameaça decorrente de colaboração com a apuração de crime, o juiz competente determinará que haja a averbação no registro de origem de menção da existência de sentença concessiva da alteração, sem a averbação do nome alterado, que somente poderá ser procedida mediante determinação posterior, que levará em consideração a cessação da coação ou ameaça que deu causa à alteração.
§ 8º O enteado ou a enteada, se houver motivo justificável, poderá requerer ao oficial de registro civil que, nos registros de nascimento e de casamento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus sobrenomes de família.
Observa-se que o dispositivo legal agora prevê, de forma expressa, diversas situações em que se permite a alteração de sobrenomes, sem que se faça necessária a movimentação do Poder Judiciário.
Dentre tais opções se incluem a inclusão de sobrenomes familiares, a inclusão ou exclusão de sobrenome do cônjuge, na constância do casamento, a exclusão de sobrenome do ex-cônjuge, após a dissolução da sociedade conjugal, por qualquer de suas causas, e a inclusão e exclusão de sobrenomes em razão de alteração das relações de filiação, inclusive para os descendentes, cônjuge ou companheiro da pessoa que teve seu estado alterado.
Interessante, ainda, a regulação constante do §2º do artigo 57, segundo o qual os conviventes em união estável também estão autorizados pela lei a incluir sobrenomes de seu companheiro, a qualquer tempo, nas mesmas hipóteses previstas para as pessoas casadas.
Ademais, em privilégio aos conceitos ampliados de família atualmente abraçados por nossa legislação, o §8º do artigo 57 dispõe sobre a averbação do nome de família de padrastos e madrastas, pelos enteados, sem prejuízo de sues sobrenomes de família.
Afora as consideráveis mudanças promovidas pela Lei n. 14.382/2022, convém destacar que a jurisprudência dos tribunais superiores já vinha flexibilizando a regra da imutabilidade do nome, em interpretação histórico-evolutiva. Senão vejamos.
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA REFORMATIO IN PEJUS. SENTENÇA ULTRA PETITA. NULIDADE. EFEITO TRANSLATIVO DA APELAÇÃO. RECONHECIMENTO DE OFÍCIO. INCLUSÃO DO PATRONÍMICO. PRETENSÃO DE SE FAZER HOMENAGEM À AVÓ MATERNA. IMPOSSIBILIDADE. HOMONÍMIA. EXCEPCIONALIDADE CONFIGURADA. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.
1. O princípio da proibição da reformatio in pejus está atrelado ao efeito devolutivo dos recursos e impede que a situação do recorrente seja piorada em decorrência do julgamento de seu próprio recurso.
Nada obstante, tal princípio poderá ser superado em situações excepcionais, como no caso de aplicação do efeito translativo dos recursos, segundo o qual será franqueado ao tribunal o conhecimento de matéria cognoscível de ofício. Assim, a nulidade da sentença ultra petita poderá ser reconhecida, de ofício, pelo Tribunal ad quem.
2. O nome é um dos direitos expressamente previstos no Código Civil como um sinal exterior da personalidade (art. 16 do CC), sendo responsável por individualizar seu portador no âmbito das relações civis e, em razão disso, deve ser registrado civilmente como um modo de garantir a proteção estatal sobre ele.
3. Esta Corte Superior entende que, "conquanto a modificação do nome civil seja qualificada como excepcional e as hipóteses em que se admite a alteração sejam restritivas, esta Corte tem reiteradamente flexibilizado essas regras, interpretando-as de modo histórico-evolutivo para que se amoldem a atual realidade social em que o tema se encontra mais no âmbito da autonomia privada, permitindo-se a modificação se não houver risco à segurança jurídica e a terceiros" (REsp 1.873.918/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 2/3/2021, DJe 4/3/2021).
4. Por se tratar de um procedimento de jurisdição voluntária, o Juiz não é obrigado a observar o critério da legalidade estrita, conforme dispõe o art. 723, parágrafo único, do CPC/2015, podendo adotar no caso concreto a solução que reputar mais conveniente ou oportuna, por meio de um juízo de equidade.
5. A simples pretensão de homenagear um ascendente não constitui fundamento bastante para configurar a excepcionalidade que propicia a modificação do registro. Contudo, uma das reais funções do patronímico é diminuir a possibilidade de homônimos e evitar prejuízos à identificação do sujeito a ponto de lhe causar algum constrangimento, sendo imprescindível a demonstração de que o fato impõe ao sujeito situações vexatórias, humilhantes e constrangedoras, que possam atingir diretamente a sua personalidade e sua dignidade, o que foi devidamente comprovado no caso dos autos.
6. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp n. 1.962.674/MG, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 24/5/2022, DJe de 31/5/2022.)
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. VÍCIO DE FUNDAMENTAÇÃO E OMISSÃO. INOCORRÊNCIA. ACÓRDÃO SUFICIENTE E JURIDICAMENTE MOTIVADO. DIREITO AO NOME. ELEMENTO ESTRUTURANTE DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. MODIFICAÇÃO DO NOME DELINEADA EM HIPÓTESES RESTRITIVAS E EM CARÁTER EXCEPCIONAL. FLEXIBILIZAÇÃO JURISPRUDENCIAL DAS REGRAS. POSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO HISTÓRICO-EVOLUTIVA DO PRINCÍPIO DA INALTERABILIDADE. PREVALÊNCIA DA AUTONOMIA PRIVADA SOPESADA COM A SEGURANÇA JURÍDICA E A SEGURANÇA A TERCEIROS. PARTE QUE SUBSTUTUIU PATRONÍMICO FAMILIAR PELO DO CÔNJUGE NO CASAMENTO E PRETENDE RETOMAR O NOME DE SOLTEIRO AINDA NA CONSTÂNCIA DO VÍNCULO. JUSTIFICATIVAS FAMILIARES, SOCIAIS, PSICOLÓGICAS E EMOCIONAIS PLAUSÍVEIS. PRESERVAÇÃO DA HERANÇA FAMILIAR E DIFICULDADE DE ADAPTAÇÃO EM VIRTUDE DA MODIFICAÇÃO DE SUA IDENTIDADE CIVIL. AUSÊNCIA DE FRIVOLIDADE OU MERA CONVENIÊNCIA. AUSÊNCIA DE RISCOS OU PREJUÍZOS A SEGURANÇA JURÍDICA E A TERCEIROS. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL PREJUDICADO.
1- Ação proposta em 01/11/2017. Recurso especial interposto em 11/03/2019 e atribuído à Relatora em 12/12/2019.
2- Os propósitos recursais consistem em definir: (i) se há vício de fundamentação do acórdão recorrido; (ii) se é admissível o retorno ao nome de solteiro do cônjuge na constância do vínculo conjugal, substituindo-se o patronímico por ele adotado por ocasião do matrimônio.
3- Não há que se falar em vício de fundamentação e em omissão na hipótese em que o acórdão recorrido se encontra suficiente e juridicamente motivado, declinando, ainda que sem referência expressa às disposições legais, as razões jurídicas que levaram à improcedência do pedido.
4- O direito ao nome é um dos elementos estruturantes dos direitos da personalidade e da dignidade da pessoa humana, pois diz respeito à própria identidade pessoal do indivíduo, não apenas em relação a si, como também em ambiente familiar e perante a sociedade.
5- Conquanto a modificação do nome civil seja qualificada como excepcional e as hipóteses em que se admite a alteração sejam restritivas, esta Corte tem reiteradamente flexibilizado essas regras, interpretando-as de modo histórico-evolutivo para que se amoldem a atual realidade social em que o tema se encontra mais no âmbito da autonomia privada, permitindo-se a modificação se não houver risco à segurança jurídica e a terceiros. Precedentes.
6- Na hipótese, a parte, que havia substituído um de seus patronímicos pelo de seu cônjuge por ocasião do matrimônio, fundamentou a sua pretensão de retomada do nome de solteira, ainda na constância do vínculo conjugal, em virtude do sobrenome adotado ter se tornado o protagonista de seu nome civil em detrimento do sobrenome familiar, o que lhe causa dificuldades de adaptação, bem como no fato de a modificação ter lhe causado problemas psicológicos e emocionais, pois sempre foi socialmente conhecida pelo sobrenome do pai e porque os únicos familiares que ainda carregam o patronímico familiar se encontram em grave situação de saúde.
7- Dado que as justificativas apresentadas pela parte não são frívolas, mas, ao revés, demonstram a irresignação de quem vê no horizonte a iminente perda dos seus entes próximos sem que lhe sobre uma das mais palpáveis e significativas recordações - o sobrenome -, deve ser preservada a intimidade, a autonomia da vontade, a vida privada, os valores e as crenças das pessoas, bem como a manutenção e perpetuação da herança familiar, especialmente na hipótese em que a sentença reconheceu a viabilidade, segurança e idoneidade da pretensão mediante exame de fatos e provas não infirmados pelo acórdão recorrido.
8- O provimento do recurso especial por um dos fundamentos torna despiciendo o exame dos demais suscitados pela parte (na hipótese, divergência jurisprudencial). Precedentes.
9- Recurso especial conhecido e parcialmente provido.
(REsp n. 1.873.918/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 2/3/2021, DJe de 4/3/2021.)
Importantes precedentes também foram proferidos acerca do sobrenome adquirido na constância do casamento como direito da personalidade, tanto para fins de sua manutenção, mesmo na ocorrência de divórcio, quanto para o retorno ao nome de solteiro(a), conforme segue.
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE DIVÓRCIO COM PEDIDO DE EXCLUSÃO DE PATRONÍMICO ADOTADO PELA CÔNJUGE POR OCASIÃO DO CASAMENTO. REVELIA. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO QUE NÃO É CONSEQUÊNCIA OBRIGATÓRIA DA AUSÊNCIA DE CONTESTAÇÃO. NECESSIDADE DE EXAME DO ACERVO FÁTICO-PROBATÓRIO. INEXISTÊNCIA DE CONTESTAÇÃO DA QUAL NÃO SE DEDUZ CONCORDÂNCIA COM A PRETENSÃO DE ALTERAÇÃO DO NOME CIVIL. EXIGÊNCIA DE MANIFESTAÇÃO EXPRESSA DA VONTADE A ESSE RESPEITO. PRESUNÇÃO DE VERACIDADE QUE NÃO ABRANGE AS QUESTÕES DE DIREITO. EFEITO DA REVELIA QUE NÃO SE OPERA, ADEMAIS, QUANDO SE TRATAR DE DIREITO INDISPONÍVEL. DIREITO AO NOME, ENQUANTO ATRIBUTO DO DIREITO DA PERSONALIDADE, QUE MERECE PROTEÇÃO, INCLUSIVE EM RAZÃO DO LONGO TEMPO DE USO CONTÍNUO.
1- Ação distribuída em 23/03/2015. Recurso especial interposto em 03/11/2016 e atribuídos à Relatora em 06/04/2018.
2- O propósito recursal é definir se a revelia da ex-cônjuge na ação de divórcio em que se pleiteia, também, a exclusão do patronímico por ela adotado por ocasião do casamento pode ser interpretada como anuência à retomada do nome de solteira.
3- A decretação da revelia do réu não resulta, necessariamente, em procedência do pedido deduzido pelo autor, sobretudo quando ausente a prova dos fatos constitutivos alegados na petição inicial.
Precedentes.
4- O fato de a ré ter sido revel em ação de divórcio em que se pretende, também, a exclusão do patronímico adotado por ocasião do casamento não significa concordância tácita com a modificação de seu nome civil, quer seja porque o retorno ao nome de solteira após a dissolução do vínculo conjugal exige manifestação expressa nesse sentido, quer seja o efeito da presunção de veracidade decorrente da revelia apenas atinge às questões de fato, quer seja ainda porque os direitos indisponíveis não se submetem ao efeito da presunção da veracidade dos fatos.
5- A pretensão de alteração do nome civil para exclusão do patronímico adotado por cônjuge por ocasião do casamento, por envolver modificação substancial em um direito da personalidade, é inadmissível quando ausentes quaisquer circunstâncias que justifiquem a alteração, especialmente quando o sobrenome se encontra incorporado e consolidado em virtude do uso contínuo do patronímico pela ex-cônjuge por quase 35 anos.
6- Recurso especial conhecido e desprovido.
(REsp n. 1.732.807/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 14/8/2018, DJe de 17/8/2018.)
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE RESTABELECIMENTO DE NOME DE SOLTEIRO. DIREITO AO NOME. ATRIBUTO DA PERSONALIDADE E VETOR DE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. RETORNO AO NOME DE SOLTEIRO APÓS O FALECIMENTO DO CÔNJUGE. POSSIBILIDADE. QUESTÃO SOCIALMENTE MENOS RELEVANTE NA ATUALIDADE. AUTONOMIA DA VONTADE E DA LIBERDADE. PROTEÇÃO DO CÔNJUGE SOBREVIVENTE DE ABALOS EMOCIONAIS, PSICOLÓGICOS OU PROFISSIONAIS. PLAUSIBILIDADE DA JUSTIFICATIVA APRESENTADA. REPARO DE DÍVIDA MORAL COM O PATRIARCA CUJO PATRONÍMICO FOI SUBSTITUÍDO POR OCASIÃO DO CASAMENTO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE COTEJO ANALÍTICO.
1- Ação distribuída em 10/07/2012. Recurso especial interposto em 22/07/2013 e atribuídos à Relatora em 25/08/2016.
2- O propósito recursal é definir se o restabelecimento do nome de solteiro apenas é admissível na hipótese de dissolução do vínculo conjugal por divórcio ou se também seria admissível o restabelecimento na hipótese de dissolução do vínculo conjugal pelo falecimento do cônjuge.
3- O direito ao nome é um dos elementos estruturantes dos direitos da personalidade e da dignidade da pessoa humana, pois diz respeito à propriedade identidade pessoal do indivíduo, não apenas em relação a si, como também em ambiente familiar e perante a sociedade.
4- Impedir a retomada do nome de solteiro na hipótese de falecimento do cônjuge implicaria em grave violação aos direitos da personalidade e à dignidade da pessoa humana após a viuvez, especialmente no momento em que a substituição do patronímico é cada vez menos relevante no âmbito social, quando a questão está, cada dia mais, no âmbito da autonomia da vontade e da liberdade e, ainda, quando a manutenção do nome pode, em tese, acarretar ao cônjuge sobrevivente abalo de natureza emocional, psicológica ou profissional, em descompasso, inclusive, com o que preveem as mais contemporâneas legislações civis.
5- Na hipótese, a justificativa apresentada pela parte - reparação de uma dívida moral com o genitor, que foi contrário à assunção do patronímico do cônjuge, e com isso atingir a sua paz interior - é mais do que suficiente para autorizar a retomada do nome de solteiro pelo cônjuge sobrevivente.
6- Não se conhece do recurso especial interposto ao fundamento de dissídio jurisprudencial se ausente o cotejo analítico dos julgados supostamente divergentes.
7- Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, provido.
(REsp n. 1.724.718/MG, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 22/5/2018, DJe de 29/5/2018.)
Observa-se que o Superior Tribunal de Justiça entendeu não ser possível o retorno da requerida ao nome de solteira, após dissolução do vínculo conjugal, sem que houvesse manifestação expressa nesse sentido.
Ademais, decidiu pela possibilidade de retomada do nome de solteiro na hipótese de falecimento de cônjuge, argumentando ser o nome um dos elementos estruturantes dos direitos da personalidade e da dignidade da pessoa humana, pois diz respeito à identidade do indivíduo.
É evidente, portanto, após o estudo realizado, que as alterações promovidas pela Lei n. 14.382/2022, especialmente na Lei de Registros Públicos, positivou o entendimento moderno dos tribunais superiores, cujos julgados já vinham privilegiando a autonomia privada e a disposição do próprio nome, desde que considerados outros princípios essenciais como o da segurança jurídica.
Isto posto, tem-se que o princípio da imutabilidade do nome foi relativizado pela legislação brasileira, na medida em que a Lei de Registros Públicos passa a contar com diversas hipóteses em que se autoriza a alteração de prenomes e sobrenomes.
Tais inovações legislativas vão ao encontro da autonomia privada dos cidadãos brasileiros, bem como possibilita uma diminuição das demandas judiciais, deixando a cargo dos oficiais de registro a averiguação do preenchimento dos requisitos legais para a modificação extrajudicial do nome.
3 CONCLUSÃO
Conforme restou demonstrado, a Lei n. 14.382/2022 alterou de forma substancial a regulação do nome civil constante da Lei de Registros Públicos, flexibilizando a regra da imutabilidade do nome.
Não obstante ainda se faça necessária a observância das hipóteses previstas na legislação para que se proceda à modificação e prenomes e sobrenome, é evidente que o legislador pátrio buscou acrescer à lei diversas hipóteses em que ficará a cargo do oficial de registro a realização extrajudicial da alteração do nome.
Privilegia-se, nesse sentido, a autonomia da vontade, bem como positiva-se a evolução do entendimento jurisprudencial, no sentido de possibilitar ao cidadão a disposição de um dos direitos da personalidade.
Além da alteração legislativa citada, a jurisprudência pátria e internacional já haviam firmado entendimento no sentido de que a pessoa transgênero, independentemente de procedimento cirúrgico, poderá alterar seu prenome a classificação de gênero no registro civil, tanto pela via administrativa quanto pela via judicial.
A fundamentação principal para tal conclusão perpassa pela análise da identidade de gênero como manifestação da própria personalidade da pessoa humana, pelo que cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la e não de constituí-la.
Feito o estudo das mudanças legislativas e jurisprudenciais, é certo que a flexibilização promovida não prejudica a segurança jurídica, vez que a alteração dos nomes e sobrenomes, nos termos dos artigos 56 e 57 da Lei de Registros Públicos, será dotada de ampla publicidade.
Assim, possibilita-se ao cidadão que, de forma imotivada, proceda à alteração de seu prenome ou sobrenome, dentro das hipóteses legais, sem necessitar movimentar a já congestionada Justiça brasileira.
REFERÊNCIAS
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OLIVEIRA, Carlos E. Elias de, João Costa-Neto. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense; MÉTODO, 2022.
Bacharela em Direito pela Fundação Universidade Federal de Rondônia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SEIXAS, Mayra Carvalho Torres. O nome como direito da personalidade e as alterações promovidas pela Lei n. 14.382/2022 na Lei de Registros Públicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 mar 2023, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61233/o-nome-como-direito-da-personalidade-e-as-alteraes-promovidas-pela-lei-n-14-382-2022-na-lei-de-registros-pblicos. Acesso em: 23 dez 2024.
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