Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em relação aos motivos que levaram o Estado da Argentina a ser responsabilizado por violência obstétrica e em relação aos argumentos utilizados pela referida Corte para se concluir pela caracterização de violações aos direitos humanos de Brítez Arce e Outros.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Violência Obstétrica. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Medidas Reparadoras.
Abstract: The purpose of this article is to analyze the judgment handed down by the Inter-American Court of Human Rights in relation to the reasons that led the State of Argentina to be held responsible for obstetric violence and in relation to the arguments used by said Court to conclude the characterization of violations to the human rights of Brítez Arce et al.
Keywords: Human Rights. Obstetric Violence. Inter-American Court of Human Rights. Reparative Measures.
Sumário: Introdução. 1. A atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos em casos contenciosos. 2. Os direitos violados no caso Brítez Arce e outros vs. Argentina. 3. Os casos correlatos de violência obstétrica na jurisprudência internacional. 4. As reparações decorrentes da condenação no caso Brítez Arce e outros vs. Argentina. Considerações Finais. Referência bibliográfica.
INTRODUÇÃO
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua função judicial, analisou o caso Brítez Arce e outros vs. Argentina e, em 18 de janeiro de 2023, publicou a sentença em que responsabiliza o Estado da Argentina pelas violações aos direitos humanos de Cristina Brítez Arce e seus filhos, sobretudo os direitos às garantias judiciais, à vida, à integridade pessoal e à saúde.
O presente artigo também versará sobre a violência obstétrica, com fundamento na Convenção Americana de Direitos Humanos ou “Pacto de São José da Costa Rica”, norma recepcionada pelo Brasil com status supralegal, conforme o Supremo Tribunal Federal (RE 464.343/SP).
Em relação ao contexto de reconhecimento da responsabilização pelos danos ocasionados à vítima e a seus familiares, mostra-se importante verificar quais os casos correlatos na jurisprudência internacional e, sobretudo, quais as medidas de reparação constantes na sentença a ser analisada.
1. A atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos em casos contenciosos
A Corte Interamericana de Direitos Humanos é instituição do sistema interamericano de direitos humanos desde a sua implementação em 1979, dez anos após a sua criação pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Ao contrário da Comissão, a Corte não é órgão integrante da Organização dos Estados Americanos, o que não diminui sua importância no sistema interamericano de direitos humanos.
A Corte detém competências consultiva e contenciosa. Ao exercer a competência contenciosa, a Corte pode ser demandada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pelos Estados partes que aderiram à Convenção Americana. No que tange às sentenças proferidas, vale mencionar que são irrecorríveis, apesar de admitir pedido de interpretação no prazo de noventa dias, a contar da notificação das partes, conforme o art. 67 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Ainda sobre o art. 67, consta no item 2 que a decisão da Corte tem força de título executivo extrajudicial que valerá tanto em relação ao dever de pagar quantia certa, quanto em relação à obrigação de fazer ou de não fazer (BELTRAMELLI apud RAMOS, 2021).
A sentença proferida pela Corte vincula o Estado réu a cumprir o dispositivo. Acerca dos demais Estados, a sentença da Corte possui efeito vinculante indireto, sendo capaz de influenciar as decisões jurisdicionais internas em demandas semelhantes.
As sentenças não possuem força de lei, mas exercem um efeito persuasivo sobre os tribunais nacionais e podem ser usadas como fonte de interpretação e aplicação das normas de direitos humanos do sistema interamericano.
O efeito persuasivo das sentenças internacionais foi abordado no caso Gelman vs. Uruguai pela Corte (MAUÉS, 2016), ao prever que todos os órgãos estatais devem realizar o controle de convencionalidade à medida que o exercício do poder estatal requer a adequação das interpretações judicias, administrativas e das garantias judiciais aos princípios estabelecidos na jurisprudência internacional.
Na Opinião Consultiva n. 29, a Corte mencionou a violência obstétrica e reforçou o dever estatal de adoção de abordagem diferenciada no tratamento das gestantes, no período do parto, puerpério e amamentação ou cuidadores primários privados de liberdade. Além disso, tratou sobre prevenção, investigação e erradicação da violência obstétrica no contexto carcerário.
Quanto à aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) no Brasil, o Supremo Tribunal Federal (RE 464.343/SP) já reforçou o caráter supralegal das normas de direitos humanos que não foram recepcionadas pelo país no quórum previsto no art. 5º, §3º, da Constituição Federal.
A doutrina (RAMOS, 2021) direciona a adoção, pelo Brasil, da teoria do duplo estatuto, de modo que os direitos humanos serão garantidos pelo controle de constitucionalidade nacional e pelo controle de convencionalidade internacional.
2. Os direitos violados no caso Brítez Arce e outros vs. Argentina
Cristina Brítez Arce estava grávida em 1992, quando morreu por falha do serviço de saúde de um hospital público, na Argentina. A vítima de trinta e oito anos precisou ser internada para induzir o parto do feto que se encontrava morto após a quadragésima semana de gestação. Em decorrência da negligência no atendimento médico, Cristina faleceu.
A sentença declarou que houve violação aos direitos das garantias judiciais, à vida (art. 4.1, CADH), à integridade pessoal (art. 5.1, CADH) e à saúde (art. 26, CADH).
A Corte também verificou falha das instâncias nacionais na reparação da violação de direitos humanos, tendo a sentença condenatória sido publicada em 18 de janeiro de 2023.
A importância do caso decorre, também, do fato de ser a primeira vez que a Corte trata do tema violência obstétrica em um caso contencioso em que houve a condenação do Estado e o reconhecimento responsabilidade internacional do Chile pela violação aos direitos humanos da vítima.
A Corte mencionou ter havido ofensa ao art. 7º da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ou “Convenção de Belém do Pará”, em prejuízo dos filhos de Brítez Arce e consequente violação aos direitos de proteção à família, direitos da criança e proteção judicial de Ezequiel Martín e Vanina Verónica Avaro.
A mencionada Convenção, portanto, considera que o Estado deve abster-se de práticas violentas contra a mulher, além de velar para que as instituições cumpram essa obrigação. Deve o Estado, inclusive, incluir medidas legislativas, administrativas e jurídicas para abolir a violência contra a mulher (RAMOS, 2021).
Em diálogo com outras normativas, a Corte citou o art. 2º da Convenção de Belém do Pará, em que prevê que a violência contra a mulher pode ser física, sexual ou psicológica, abrangendo, entre outras, a ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, “incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local”.
Conforme os dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), explanados na sentença, estima-se que entre 88% a 98% das mortes maternas são preveníveis.
O julgamento abordou que o dever estatal inclui a informação plena das pessoas grávidas, em pós-parto ou lactantes, sobre a sua condição médica e sobre a saúde reprodutiva, com base em evidências científicas, sem preconceitos, estereótipos e discriminação.
A violência obstétrica trata-se de:
[…] apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, por meio do tratamento desumanizado, abuso da medicação e patologização dos processos naturais, causando a perda da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres (ARAGON HEEMANN, 2020).
Desse modo, conforme o julgado em análise, o conceito de violência obstétrica abrange a falta de acesso ao serviço adequado de saúde, a violência moral ou psíquica, bem como o desrespeito durante ou após o parto. Outrossim, é incluído como maneiras de violência exercida pelos responsáveis nos cuidados da saúde, o abuso ou a negligência no tratamento, as intervenções médicas com uso de força ou coação, a patologização de processos naturais ou manifestações que geram ameaças.
O conceito, portanto, faz o recorte da violação aos direitos humanos de um grupo minoritário, uma vez que considera a violência obstétrica como espécie de violência de gênero.
3. Os casos correlatos de violência obstétrica na jurisprudência internacional
A Corte entendeu que a violência exercida contra a mulher durante a gravidez e no parto ou no pós-parto constitui uma forma de violência de gênero denominada “violência obstétrica”.
O denominado universalismo jurisprudencial garante que o sistema global dialogue com os sistemas regionais, inclusive o sistema interamericano (PAIVA, 2023).
Neste sentido, o caso analisado possui consonância com os entendimentos adotados pelo Comitê da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, 1979), no caso Alyne da Silva Pimentel Teixeira vs. Brasil (2011) e no caso N.A.E vs. Espanha (2022).
No caso Alyne Pimentel, o Comitê CEDAW recomendou que o Brasil, dentre outros pontos, indenizasse financeiramente a família da vítima, assegurasse o direito das mulheres à maternidade segura e ao acesso à assistência médica emergencial adequada. Além disso, foi recomendado o dever de proporcionar a formação profissional adequada aos trabalhadores da área de saúde (ARAGON HEEMANN, 2020).
No caso N.A.E vs. Espanha (2022), o Comitê CEDAW constou, em sua decisão, que a violência obstétrica inclui os atos e condutas que desumanizam e menosprezam as mulheres durante as fases da gestação, do parto e da etapa posterior ao parto, por meio de maus-tratos físicos e verbais, humilhações, falta de informação e de consentimento, abuso de medicação e patologizaçāo dos processos naturais, tendo como consequência a perda de liberdade, autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e sua sexualidade (ARAS, 2023).
Em relação aos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Comunidade Indígena Xákmak Kásek vs. Paraguai, a Corte estabeleceu o dever do Estado em oferecer políticas de saúde adequadas à prevenção da mortalidade materna (PAIVA, 2023).
Por fim, no caso Artavia Murillo e outros vs. Costa Rica, a Corte também estabeleceu que o Estado tem o dever de garantir que as mulheres tenham acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva de qualidade, respeitando a autonomia e a integridade física e psicológica da mulher (ARAGON HEEMANN, 2020). Além disso, previu a violência obstétrica como discriminação de gênero.
4. As reparações decorrentes da condenação no caso Brítez Arce e outros vs. Argentina
A condenação em análise obriga o Estado da Argentina a agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher; e a incorporar na sua legislação interna normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, bem como adotar as medidas administrativas adequadas que forem aplicáveis.
Neste sentido, a Corte anotou em seu Comunicado CP-02/2023:
o pagamento de uma soma aos filhos da senhora Brítez Arce para despesas de tratamento psicológico e/ou psiquiátrico; a publicação do resumo oficial da Sentença no diário oficial e um meio de comunicação de grande circulação nacional, e a publicação da Sentença nos sites oficiais de autoridades estatais. Como garantias de não repetição ordenou ao Estado a concepção de uma campanha publicitária destinada a sensibilização aos direitos relacionados à gravidez, o trabalho de parto e pós-parto, as situações que podem constituir casos de violência obstétrica, e o direito das gestantes a receberem cuidados de saúde humanizados. Finalmente, ordenou o pagamento de indemnizações por danos materiais e não-materiais e o pagamento de custos e despesas.
Conforme visto acima, a sentença condenatória abordou o dever de indenizar material e moralmente os familiares da vítima e pagar um valor apto a cobrir despesas de tratamento psicológico e psiquiátrico.
Constou, também, a medida reparatória de criar campanha de esclarecimento sobre os direitos relacionados à gravidez, ao trabalho de parto e pós-parto e as situações que possam configurar casos de violência obstétrica.
Ao final, após as mencionadas medidas reparatórias arbitradas, a última fase do procedimento perante a Corte será a supervisão do cumprimento da sentença proferida, conforme o art. 69 do Regulamento da Corte, momento no qual é possível a apresentação de relatórios estatais, pedido de perícia pela Corte, bem como convocação para audiência do Estado e dos representantes da vítima, além das demais medidas previstas no regulamento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A condenação internacional analisada tem fundamental importância à medida que aborda a violência obstétrica como violência de gênero a ser combatida pelo Estado.
Em razão da vinculação indireta e caráter persuasivo da sentença, a importância desse julgado para o Brasil dialoga com o caso Alyne Pimentel julgado pelo Comitê CEDAW e reforça a importância de o Estado brasileiro adotar medidas para efetivar o controle de convencionalidade no âmbito legislativo, judicial e na Administração Pública por meio de políticas públicas que garantam os direitos das grávidas, parturientes e cuidadoras primárias de crianças.
Sendo assim, conforme foi analisado no presente ensaio, perseguir os meios para coibir a violência obstétrica aproxima a vivência social da equidade de gênero e do respeito aos direitos humanos.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ARAGON HEEMANN, Thimotie. PAIVA, Caio. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 3.ed., editora CEI, 2020.
ARAS, Vladimir. A violência obstétrica no direito internacional dos direitos humanos: o caso Britez Arce vs. Argentina (2023). Disponível em <https://vladimiraras.blog/2023/01/19/a-violencia-obstetrica-no-direito-internacional-dos-direitos-humanos-o-caso-britez-arce-vs-argentina-2023/> Acesso em 27.mar.2023.
BELTRAMELLI NETO, Silvio. Curso de Direitos Humanos. 6.ed., São Paulo: Atlas, 2021.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 464.343/SP. Relator: Min. Cezar Peluso. Brasília, DF, 03 de dezembro de 2008. Disponível em <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444>. Acesso em 28.mar.2023.
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MAUÉS, Antonio Moreira. MAGALHÃES, Breno Baía. A recepção dos tratados de direitos humanos pelos tribunais nacionais: sentenças paradigmáticas de Colômbia, Argentina e Brasil. Disponível em <https://www.corteidh.or.cr/tablas/r38606.pdf>. Acesso em 28.mar.2023.
PAIVA, Caio. Caso Comentado: Brítez Arce vs. Argentina. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=WIr_J2C_AgE>. Acesso em 28.mar.2023.
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 8.ed., São Paulo: editora Saraiva Educação, 2021.
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Rondônia. Possui especialização em sentido amplo em Direito Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá. Técnica Judiciária no Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Ana Carolina de Leles. A condenação por violência obstétrica pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos no caso Brítez Arce e outros vs. Argentina Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 abr 2023, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61310/a-condenao-por-violncia-obsttrica-pela-corte-interamericana-dos-direitos-humanos-no-caso-brtez-arce-e-outros-vs-argentina. Acesso em: 25 dez 2024.
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