RESUMO: O presente artigo tem como objetivo abordar os direitos das mulheres em âmbito internacional, mais precisamente quanto a jurisprudência das Cortes Internacionais de Direitos Humanos. Tal análise perpassa pelos diplomas internacionais e as decisões proferidas tanto no Sistema Global quanto no Sistema Regional Interamericano, que influenciaram de sobremaneira a legislação brasileira quanto a garantia e proteção dos direitos das mulheres.
Palavras- chaves: Direitos das Mulheres. Direitos Internacional dos Direitos Humanos. Sistema Global de Direitos Humanos. Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
1.INTRODUÇÃO
Alguns direitos só conseguem ser compreendidos quando estudados de maneira interdisciplinar, analisando não só o ordenamento jurídico brasileiro como também os tratados de direito internacional e normas de soft law.
Esse intercâmbio entre a normativa brasileira e a jurisprudência internacional dos direitos humanos é essencial para compreender o direito das mulheres, que assim como os direitos de outros grupos minoritários como povos indígenas, refugiados e pessoas LGBTQIA+, só alcançaram o patamar de proteção atual graças ao trabalho árduo e progressista das Cortes Internacionais de Direitos Humanos, que quebraram paradigmas e barreiras estruturais de uma sociedade racista, machista, classista, e patriarcal.
2.JURISPRUDÊNCIA INTERNACIONAL
2.1 SISTEMA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
2.1.1 SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS
2.1.1.1 CASO MARIA DA PENHA MAIA FERNANDES vs. BRASIL
Um dos casos mais conhecidos envolvendo o Brasil no Sistema Interamericano de Direitos Humanos tratou sobre questões relacionadas à violência de gênero, mais especificamente a violência doméstica contra a mulher.
O caso julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos teve início em 1998 com o recebimento de uma denúncia apresentada pela vítima, representada por entidades não governamentais de proteção de direitos das mulheres.
A vítima em questão foi Maria da Penha Maia Fernandes, que morava na cidade de Fortaleza, Ceará. Ela morava com seu então marido, o colombiano Marco Antônio e suas três filhas.
O histórico de agressões começou logo após o nascimento da sua terceira filha, nesse período o casal já vivia de forma conjugal no Brasil, período em que Marco estava aguardando a regularização da sua cidadania brasileira para se estabilizar profissionalmente no país[1].
As agressões físicas e psicológicas contra Maria da Penha e suas filhas se tornaram constantes e foram gradativamente se tornando mais violentas, até que em 1983 Maria sofreu uma tentativa de homicídio perpetrada por seu então marido, que disparou uma arma de fogo em sua direção, enquanto ela dormia.
Durante as investigações, a primeira versão dada por Marco às autoridades policiais foi de que Maria tinha se ferido durante um assalto em sua residência, versão essa descartada posteriormente pela perícia forense.
O tiro que lesionou Maria da Penha enquanto dormia afetou sua coluna vertebral lhe causando paraplegia irreversível.
Como se não bastasse o abalo físico e emocional causado pela paraplegia, após passar 4 meses no hospital, ao retornar para casa Maria sofreu uma nova tentativa de homicídio; seu marido tentou eletrocutá-la enquanto tomava banho.
Essas agressões foram o ápice da violência sofrida por Maria da Penha, que a levaram a pedir divórcio de seu marido e a denunciá-lo criminalmente.
Ocorre que a denúncia contra Marco Antônio foi oferecida no ano de 1984 e após 15 anos da abertura desse processo, a Justiça brasileira ainda não tinha sentenciado o agressor pela violência perpetrada contra Maria da Penha.
Assim, se vendo desamparada pela Justiça nacional, Maria da Penha, representada por ONG’s (organizações não governamentais) de direitos humanos, em 1998 apresentou uma denúncia a Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH.
Em 2010, a CIDH aplicando a Convenção de Belém do Pará responsabilizou o Estado brasileiro pela morosidade da Justiça em solucionar o caso, violando assim inúmeros direitos da vítima como: direito a proteção judicial, direito a razoável duração do processo, além da omissão e tolerância do Estado brasileiro com a violência doméstica sofrida pelas mulheres de todo Brasil, que já era reconhecida internacionalmente.
Vejamos o § 55 da decisão da CIDH sobre o caso[2]:
55. A impunidade que gozou e ainda goza o agressor e ex-esposo da Senhora Fernandes é contrária à obrigação internacional voluntariamente assumida por parte do Estado de ratificar a Convenção de Belém do Pará. A falta de julgamento e condenação do responsável nessas circunstâncias constitui um ato de tolerância, por parte do Estado, da violência que Maria da Penha sofreu, e essa omissão dos tribunais de justiça brasileiros agrava as conseqüências diretas das agressões sofridas pela Senhora Maria da Penha Maia Fernandes. Além disso, como foi demonstrado anteriormente, essa tolerância por parte dos órgãos do Estado não é exclusiva deste caso, mas uma pauta sistemática. Trata-se de uma tolerância de todo o sistema, que não faz senão perpetuar as raízes e fatores psicológicos, sociais e históricos que mantêm e alimentam a violência contra a mulher. (grifos meus)
Pelos grifos acima, percebe-se que a CIDH já trata sobre o machismo estrutural arraigado na sociedade brasileira, que não só viola sistematicamente os direitos humanos das mulheres como também descumpre como Estado o dever de proteger as mulheres da violência doméstica.
Dentre tantas recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao Estado brasileiro, a mais impactante foi a de tomar medidas legislativas para que houvesse a responsabilização dos agressores por violência doméstica, o que culminou na edição conhecida Lei Maria da Penha, lei.11340/06, tão fundamental a proteção das mulheres no Brasil.
Para André de Carvalho Ramos[3]:
“Esses inúmeros deveres do Estado foram fundamentais para que o Brasil, finalmente, editasse uma lei específica de combate à violência doméstica, a Lei n° 11.340/2006, também denominada "Lei Maria da Penha". Tal lei criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. De forma progressiva, os Estados devem ainda adotar medidas específicas (art. 8°), inclusive programas para fomentar o conhecimento e a observância do direito da mulher a uma vida livre de violência e o direito da mulher a que se respeitem e protejam seus direitos humanos. Devem adotar programas também para modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres para eliminar preconceitos e costumes e práticas que se baseiem na premissa da inferioridade ou superioridade de qualquer dos gêneros ou nos papéis estereotipados para o homem e a mulher que legitimam ou exacerbam a violência contra a mulher.”
O caso Maria da Penha foi um divisor de águas no assunto violência doméstica no Brasil e na América Latina. Foi neste caso que a Comissão Interamericana e não a Corte IDH, pela primeira vez aplicou a Convenção de Belém do Pará para sustentar a responsabilidade do Estado no que tange ao dever de prevenir, sancionar e erradicar a violência doméstica contra a mulher.
2.1.1.2 CASO PRESÍDIO MIGUEL CASTRO CASTRO vs. PERÚ
Seguindo na exposição dos casos em que houve aplicação da Convenção de Belém do Pará, desta vez aplicada pela Corte IDH, nos deparamos com este caso em que se tratou pela primeira vez expressamente sobre violência de gênero contra a mulher.
Sobre o caso Caio Paiva e Thimotie Aragon pontuam[4]:
Os fatos do presente caso se desenvolveram no marco do conflito armado do peru Entre os dias 6 e 9 de maio de 1992, o Estado peruano executou uma operação chamada "'Remoção 1", cuja presumida finalidade era o traslado de aproximadamente 90 mulheres presas no estabelecimento penal "Miguel Castro Castro" para centros penitenciários femininos. A Polícia Nacional derrubou parte da parede externa do pátio do pavilhão 1A utilizando explosivos. Simultaneamente, os efetivos policiais tomaram o controle dos tetos do presídio abrindo buracos, por dos quais realizaram disparos com armas de fogo) (...) A operação gerou a morte de dezenas de internas, assim como deixou muitos feridos (...) Três das mulheres presas no estabelecimento penal "Miquel Castro Castro" estavam grávidas. Em relação às três mulheres presas que estavam grávidas, a Corte considerou que a violação aos tratados restou agravada, eis que a violência lhes afetou em maior medida."
O país vivia um período político conturbado em que o Presidente Alberto Fujimori, com apoio das forças armadas, tomou o poder, inclusive dissolvendo o Congresso peruano e intervindo no Poder Judiciário, seguindo o modelo clássico e previsível das ditaduras latinoamericanas se instalarem no poder.
Aliado a tomada de poder houve restrição nas comunicações sociais: jornais, emissoras de rádio e televisão foram censuradas, regulando seu conteúdo visando sempre bendizer o atual Governo.
Vale ressaltar que a ala 1A do Presídio Miguel Castro Castro, local em que ficavam as presas políticas, que faziam oposição ao atual Presidente, foi minuciosamente escolhida para ser o local onde a força policial iria adentrar no complexo penitenciário, demonstrando toda sua força bélica contra os opositores do Governo de Fujimori.
A ala onde as presas políticas ficavam foi violentamente invadida com o uso de armas de fogo, granadas com gases tóxicos e explosivos, com o fundamento de que estava havendo um “motim” no complexo penitenciário.
Contudo, o que se percebe da operação comandada pelo Coronel Gabino Cajahuanca, diretor do presídio à época, tendo por base uma interpretação com perspectiva de gênero, é que não houve nenhum protocolo especial de ação para invasão do presídio na parte onde se encontravam as detentas, pelo contrário.
Não houve descuido ou esquecimento da condição natural feminina, de que algumas detentas poderiam estar grávidas ou em estado puerperal, que as deixassem mais vulneráveis física e psicologicamente.
O que houve, a bem da verdade, foi uma demonstração de força do atual governo ditatorial contra seus opositores, perfazendo um verdadeiro massacre orquestrado contra as presas políticas, algumas delas grávidas, sendo duramente torturadas, sofrendo graves violações de seus direitos humanos a pretexto de uma transferência entre presídios.
Se agem assim suas opositoras dentre elas mulheres grávidas, que dirá de seus opositores homens.
Essa operação cruel e violadora de direitos humanos contra as mulheres peruanas, demonstra o quanto a proteção das mulheres ainda deve avançar em termos de reforço das medidas protetivas e coercitivas, pois a violência e o desprezo pelo gênero feminino se perpetua de diversas formas.
2.1.1.3 CASO GONZÁLEZ E OUTROS (CAMPO ALGODOEIRO)
vs. MÉXICO
Outro caso emblemático de violência contra as mulheres, se deu na Ciudad Juarez, no México, uma das maiores metrópoles do país, que fica localizada na fronteira com os Estados Unidos.
A cidade foi classificada, em 2009, como a mais violenta do mundo (chegando a desbancar a cidade de Gaza na Palestina), de acordo com a organização civil mexicana Consejo Ciudadano para la Seguridad Pública (CCSP). Ela é a cidade mais perigosa do México e por este motivo é considerada "Faixa de Gaza mexicana”[5].
Nos anos 2000, casos de desaparecimentos e mortes de mulheres jovens na cidade chamaram a atenção da comunidade nacional e internacional direitos humanos. O número crescente de mortes registrado ao longo da década, as similitudes no perfil das vítimas e a recorrência do modus operandi aplicado aos crimes levaram a que o conceito de feminicídio fosse retomado, ganhando ainda mais destaque. Desde janeiro de 1993 para o ano de 2012, o número estimado de mulheres assassinadas ascendeu para mais de 700.[6]
Em 2001 houve inúmeros desaparecimentos de jovens mulheres em datas muito próximas tendo sido noticiados seus desaparecimentos às autoridades policiais.
Entretanto, as investigações não foram levadas adiante, pois os policiais de forma preconceituosa, prejulgando que as jovens fossem garotas de programa, entenderam à época que elas deveriam estar com seus respectivos namorados ou outros clientes, e por isso não prosseguiram com as investigações, resumindo sua atuação a colocação de cartazes pela cidade.
Há inclusive relatos de que as autoridades que receberam a comunicação dos desaparecimentos verbalizaram comentários pejorativos sobre a vida íntima e sexual das desaparecidas para seus familiares.
Passados meses dos desaparecimentos, os restos mortais das vítimas foram encontrados numa plantação de algodão, apresentando sinais de violência sexual, tendo algumas das vítimas, sinais de que foram privadas de liberdade antes de terem suas vidas ceifadas brutalmente.
Mesmo com a insistência na continuidade das investigações, interposição de recursos e interpelações dos familiares às autoridades, nenhum suspeito apontado ou responsável pelos feminicídios condenado.
A Corte IDH reconheceu que as mortes destas inúmeras jovens foram uma demonstração da violência estrutural de gênero, pois o próprio Estado, na figura das autoridades policiais, agiu com discriminação contra as mulheres, tolerando que fossem violentadas, ao não iniciarem imediatamente uma investigação séria, célere e efetiva, que pudesse evitar suas mortes.
Ademais, a Corte IDH tratou expressamente tais assassinatos como feminicídio, entendendo que o Estado mexicano tolerou as violações, o que favorece a perpetuação e aceitação social desse tipo de violência, trazendo tal omissão insegurança para as mulheres e desconfiança no sistema de justiça.
O fenômeno social da violência de gênero contra as mulheres é percebido em grande parte dos países, alguns inclusive permitindo essa prática como algo natural/cultural, pois as mulheres deveriam subserviência aos homens, caso contrário podem puni-las da maneira que bem entenderem.
Contudo essa visão da superioridade androcêntrica está cada vez mais ultrapassada, se mostrando por vezes criminosa quando a violência física e psicológica são utilizadas para subjulgar mulheres as relegando a dependência econômica e social de seus maridos e familiares.
O grande avanço nas medidas legislativas que protegem as mulheres desse tratamento violento e inferiorizante se deu com as decisões das Cortes Internacionais de Direitos Humanos, que por serem formadas por juízes de diversas nacionalidades que atuam a título pessoal, desvinculados de qualquer amarra político-cultural, podem decidir de maneira imparcial e progressista a favor da igualdade de gênero e proteção aos mais vulneráveis.
Notamos essa guinada protetiva na legislação pátria com a inclusão do crime de feminicídio pela lei 13.104/2015, que ampliou o rol do art. 121 §2º do Código Penal, acrescentando o inciso VII com a figura do homicídio qualificado pelo feminicídio – homicídio praticado contra mulher por razões da condição de sexo feminino.
2.1.1.4 CASO VELASQUEZ PAIZ vs. GUATEMALA
Mais um caso de violência contra a mulher em que não houve uma investigação imediata e conclusiva após familiares de uma jovem desaparecida comunicarem seu desaparecimento às autoridades policiais.
O caso Velásquez Paiz resumidamente foi o seguinte:
Claudina Velásquez Paiz era uma jovem de 19 anos, estudante universitária, que após a aula da faculdade foi para uma festa e nunca mais voltou para casa.
Seu último contato telefônico com seus familiares foi por volta da meia noite. Após essa ligação seus pais não conseguiram mais falar com ela e pelo fato dessa ausência de contato ser uma atitude estranha ao comportamento de Claudina, seus pais comunicaram imediatamente a polícia guatemalteca o desaparecimento de sua filha.
As autoridades policiais, por sua vez, disseram que só poderiam formalizar o desaparecimento da jovem após 24 horas de seu último contato. Contudo, após as mesmas 24 horas, o corpo de Claudina foi encontrado com sinais de violência sexual.
Assim, percebemos mais uma vez a inércia da polícia em não dar início imediato às investigações após a notificação de desaparecimento de jovens mulheres, que culminou em suas mortes evitáveis.
Após análise do caso pela Corte IDH, o Estado da Guatemala foi condenado por violação de alguns direitos, quais sejam: direito à vida, à integridade física, direito às garantias judiciais e direito à proteção igualitária perante a lei.
O que mais chamou a atenção nas medidas impostas pela Corte IDH foi que o Estado violador incluísse no Sistema educacional, um programa de educação continuada sobre a necessidade de se erradicar a violência de gênero contra as mulheres e os estereótipos de gênero que as diminuem como pessoas sujeitas de direitos.
A Corte IDH entendeu que as investigações policiais devem ser iniciadas de ofício após a notificação de desaparecimento de mulheres jovens, devendo a investigação ter uma perspectiva de gênero pois esse é o grupo que mais sofre com a violência de gênero, tendo na maioria das vezes desfechos irreversíveis.
A Corte entendeu que além da falha na investigação, as autoridades policiais agiram de forma discriminatória, prejulgando a jovem Claudina pelo jeito que se vestia e sua vida social noturna.
Há que se ressaltar que na decisão da Corte IDH foi trazido expressamente que a maneira de se vestir das mulheres nada mais é do que um meio de se expressar perante a sociedade e que essa liberdade de expressão não só deve ser garantida como protegida pelo Estado.
2.1.1.5 CASO ARTAVIA MURILLO E OUTROS vs. COSTA RICA
O caso Artavia Murillo é bem mais abrangente em termos de violações dos direitos humanos abarcando os direitos à autonomia reprodutiva, à vida privada, à proteção à família de homens e mulheres, mas foi incluído nesse anláise porque há duas partes muito interessantes dessa decisão que se relaciona diretamente com a luta pela conquista dos direitos das mulheres.
Dentre os tantos direitos violados supracitados, a Corte IDH em sua decisão mencionou que o direito a autonomia reprodutiva está previsto no art. 16.e da Convenção para Eliminação de todas as formas de discriminação contra a Mulher, entendendo que:
§ 146 “a decidir livre e responsavelmente sobre o número de filhos e o intervalo entre os nascimentos e ter acesso à informação, à educação e meios que lhes permita exercer esses direitos. Este direito é vulnerado quando obstaculizam os meios através dos quais uma mulher pode exercer seu direito de controlar sua fecundidade. Assim, a proteção da vida privada inclui o respeito das decisões tanto de converter-se em pai ou mãe, incluindo a decisão do casal em converter-se em pais biológicos”
§ 146 “a decidir libre y responsablemente el número de sus hijos y el intervalo entre los nacimientos y a tener acceso a la información, la educación y los medios que les permitan ejercer estos derechos”. Este derecho es vulnerado cuando se obstaculizan los medios a través de los cuales una mujer puede ejercer el derecho a controlar su fecundidad. Así, la protección a la vida privada incluye el respeto de las decisiones tanto de convertirse en padre o madre, incluyendo la decisión de la pareja de convertirse en padres genéticos.”[7]
Além de mencionar o direito a autonomia reprodutiva como um direito da mulher, outra parte da decisão que merece destaque foi a menção à violação do Princípio da Igualdade em concreto, ocasionando uma discriminação indireta, que por sua vez, gera um impacto desproporcional para um grupo determinado de pessoas, como mulheres inférteis.
A discriminação indireta é um instituto jurídico que vem sendo debatido nos últimos anos por diversas Cortes Internacionais de Direitos Humanos, tendo sido trazido expressamente numa norma internacional de direitos humanos, internalizada ao ordenamento jurídico brasileiro em 2022, com status de emenda constitucional.
A Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto 10.932/2022, aprovado pelo rito qualificado do art. 5º §3º da Constituição Federal.
Essa Convenção de Direitos Humanos trouxe em seu texto, no art.1.2, incorporando uma perspectiva de raça, o conceito de discriminação indireta[8]:
“2. Discriminação racial indireta é aquela que ocorre,
em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando um
dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a
capacidade de acarretar uma desvantagem particular para
pessoas pertencentes a um grupo específico, com base nas
razões estabelecidas no Artigo 1.1 (discriminação racial), ou
as coloca em desvantagem, a menos que esse dispositivo,
prática ou critério tenha um objetivo ou justificativa razoável
e legítima à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos .” (grifos meus)
A Corte IDH em seu §286[9], entendeu que a declaração de inconstitucionalidade da norma que permitia a fertilização in vitro, gerou uma discriminação indireta, pois a proibição dessa forma de reprodução assistida foi tida como critério neutro, que quando posto em prática trouxe uma desvantagem para um certo grupo específico de pessoas como: mulheres com infertilidade e casais que não possuíam condição financeira de custear o tratamento fora do país.
§ 286. O Tribunal sinalizou que o Princípio de direito imperativo de proteção igualitária e efetiva da lei e a não discriminação determina que os Estados devem abster-se de produzir regulações discriminatórias ou que tenham efeitos discriminatórios em diferentes grupos da população o momento de exercer seus direitos. O Comitê de Direitos Humanos, o Comitê contra a Discriminação Racial, o Comitê para a Eliminação da discriminação contra a mulher e o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais tem reconhecido o conceito de discriminação indireta. Este conceito implica numa norma prática aparentemente neutra, que tem repercussões particularmente negativas para uma pessoa ou grupo com determinadas características. É possível que quem haja estabelecido essa norma ou prática não seja consciente dessas consequências práticas e em tal caso, a intenção de discriminar não é essencial e procede uma inversão da carga probatória. (...) Por sua vez, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos também já elaborou um conceito de discriminação indireta, estabelecendo que quando uma política geral ou medida tem um efeito desproporcionalmente prejudicial em um grupo particular, esta política pode ser considerada discriminatória ainda que não seja dirigida especificamente a esse grupo.
286. El Tribunal ha señalado que el principio de derecho imperativo de protección igualitaria y efectiva de la ley y no discriminación determina que los Estados deben abstenerse de producir regulaciones discriminatorias o que tengan efectos discriminatorios en los diferentes grupos de una población al momento de ejercer sus derechos. El Comité de Derechos Humanos, el Comité contra la Discriminación Racial, el Comité para la Eliminación de la Discriminación contra la Mujer y el Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales446 han reconocido el concepto de la discriminación indirecta. Este concepto implica que una norma o práctica aparentemente neutra, tiene repercusiones particularmente negativas en una persona o grupo con unas características determinadas. Es posible que quien haya establecido esta norma o práctica no sea consciente de esas consecuencias prácticas y, en tal caso, la intención de discriminar no es lo esencial y procede una inversión de la carga de la prueba. (...) Por su parte, el Tribunal Europeo de Derechos Humanos también ha desarrollado el concepto de discriminación indirecta, estableciendo que cuando una política general o medida tiene un efecto desproporcionadamente prejudicial en un grupo particular, esta puede ser considerado discriminatoria aún si no fue dirigido específicamente a ese grupo.
Há que se ressaltar que essa norma apesar de vir expressa na Convenção que trata sobre discriminação racial, pode ser aplicada para qualquer tipo de intolerância, seja ela de gênero, raça, capacidade física ou econômica, dentre tantos critérios que perpetuam a subjugação de pessoas dentro de uma sociedade capitalista, machista e racista.
2.1.1.6 CASO MÁRCIA BARBOSA DE SOUZA e outros vs. BRASIL
Outro caso envolvendo o Brasil e a luta contra a impunidade dos feminicídios foi julgado em 2019 pela Corte IDH, trata sobre o feminicídio de uma jovem paraibana perpetrado por seu então namorado e sobre fato de à época o acusado ter um cargo político não houve uma condenação célere, dando assim uma sensação de impunidade ao crime.
O caso em tela, teve como vítima Marcia Barbosa de Souza, uma mulher negra, pobre e periférica, perfil típico de vítimas de feminicídio no Brasil.
Não é coincidência que esse seja o perfil das vítimas de violência de gênero no Brasil e no mundo.
Neste caso se mostra nítido o instituto da interseccionalidade, conceito sociológico criado por Kimberlé Crenshaw, teórica feminista e professora estadunidense especializada em questões de raça e gênero, que demonstrou em sua tese que a soma de fatores de discriminação quando combinados, tornam uma pessoa mais suscetível a sofrer violações de direitos.
Em novembro de 1997, a jovem Márcia, à época com 20 anos de idade, começou a se relacionar com o então deputado estadual Aércio Pereira de Lima de 54 anos.
Após meses de relacionamento, no dia 13 de junho de 1998 Márcia foi até a capital paraibana para se encontrar com Aércio e como de costume, se encontraram num local mais reservado, pois o deputado era casado.
Dias após Márcia ter dado entrada no Motel Trevo para encontrar Aércio, um passante viu um corpo sendo removido de um carro e e sendo jogado num terreno baldio. Após notificar a polícia do que viu, o corpo foi encontrado e identificado como sendo de Márcia Barbosa.
O corpo foi encontrado com inúmeros hematomas no pescoço e nas costas, que demonstravam que a causa mortis foi asfixia por sufocamento devido a ação mecânica.
Durante as investigações, chegaram ao indiciamento do então deputado Aércio e mais quatro pessoas que teriam participado da execução do crime.
Contudo, apesar das provas apontarem e os indícios recaírem sobre o Deputado, ele utilizou sua imunidade parlamentar formal para não ser processado por crime estranho a função pública e com isso não pode ser processado durante seu mandato.
Assim, o processo penal contra o parlamentar só foi aberto cinco anos após o crime, mais precisamente em março de 2003, pois o deputado não conseguiu se reeleger e por consequência não teria mais imunidade formal que impedia o processo de prosseguir.
O processo só teve a sentença condenatória prolatada em 2007, tendo sido condenado a 16 anos de reclusão por dois crimes: homicídio qualificado pelo motivo fútil e asfixia e ocultação de cadáver. O condenado recorreu em liberdade e não chegou a cumprir pena pois que faleceu em 2008 enquanto aguardava a apreciação do seu recurso.
Assim, o crime ficou impune, gerando revolta e frustração aos familiares de Márcia Barbosa que tiveram que provocar a Comissão Interamericana de Direitos Humanos para obter algum tipo de reparação pelo feminicídio de Márcia.
A CIDH encaminhou a petição dos familiares de Márcia Barbosa para Corte IDH, que após o devido processamento proferiu sentença no dia 07 de setembro de 2021 condenando o Brasil a reparar integralmente os danos sofridos pelos seus familiares.
Dentre as formas de reparação que foram impelidas pela Corte IDH, ressalto as formas reparação de satisfação com publicação e difusão da sentença e medida de reparação com a respectiva assunção de responsabilidade em âmbito internacional, as garantias de não repetição com curso de educação continuada sobre aspectos de gênero e raça para a polícia paraibana, conscientização da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba sobre os impactos que o feminicídio pode causar na sociedade e adoção de um protocolo para investigações em casos de feminicídio. Por último masnão menos importante; o pagamento de indenização por danos morais e materiais aos familiares de Márcia Barbosa.
2.2 SISTEMA GLOBAL DE DIREITOS HUMANOS – ONU
2.2.1 CASO ALYNE PIMENTEL TEIXEIRA vs. BRASIL
No Sistema Global de Direitos Humanos, também chamado de Sistema onusiano, não existe um Tribunal de Direitos humanos com competência semelhante à Corte IDH no sistema regional americano.
No Sistema Global o que existem são os chamados “Comitês”, sendo estes os responsáveis por monitorar a implementação prática dos respectivos tratados. Esse sistema se utiliza de petições individuais, por meio do qual a vítima de determinada violação de direitos humanos, cumprindo certos requisitos, por exemplo esgotamento dos recursos internos e ausência de litispendência internacional pode provocar esse mecanismo de proteção dos comitês.
Vale ressaltar que assim como a competência contenciosa da Corte IDH deve ser aceita expressamente pelos Estados signatários daquele tratado, no Sistema Global a competência dos Comitês também depende de declaração específica/expressa ou de ratificação de um protocolo facultativo.
Em suma, quem responsabilizou o Estado brasileiro nesse caso de violação de direitos humanos foi o Comitê CEDAW, órgão responsável por monitorar e implementar a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a mulher.
Ultrapassando essa explanação inicial sobre a competência dos Comitês, o Caso Alyne Pimentel foi o primeiro caso em que o Brasil foi responsabilizado no Sistema Global, sistema esse entendido como um sistema contencioso quase judicial das Nações Unidas.
O Caso Alyne Pimentel é uma típica situação de violação de direitos de pessoa hipervulnerável pela interseccionalidade, ou seja, a vítima está inserida em mais de um grupo minoritário ou vulnerável que a deixa ainda mais suscetível às violações de direitos dado ao racismo estrutural e a sociedade patriarcal em que vivemos.
Alyne Pimentel era uma mulher negra, periférica, moradora da Baixada Fluminense, no bairro de Belford Roxo, Rio de Janeiro, que veio a óbito após procurar assistência médica na rede pública de saúde do Estado do Rio de Janeiro.
Resumidamente o caso foi o seguinte: Alyne no seu sexto mês de gravidez sofrendo com fortes dores abdominais e náuseas procurou a maternidade onde fazia o pré-natal do seu bebê. Lá, sem que nenhum exame de imagem ou sangue fosse solicitado para investigar o que poderia estar causando as dores, foi medicada com analgésicos e liberada em seguida para ir para casa.
Em casa, tomando os remédios conforme prescrito pelo médico, os sintomas não cessaram, retornando novamente a maternidade, quando só então foi constatada a morte intrauterina do feto.
Assim, Alyne foi submetida a um procedimento cirúrgico de curetagem, que consiste na raspagem da parede uterina para a retirada dos restos mortais do feto e da placenta, mas seu quadro se agravou e teve que ser removida para um hospital público que tivesse maior estrutura para tratar seu caso.
Alyne, que já estava com hemorragia interna, esperou por 24 horas a sua transferência porque a equipe médica não estava encontrando sua ficha médica, o que impossibilitou sua rápida remoção.
Após esse longo e sofrido intervalo ela foi transferida para um hospital público e mesmo tendo sido identificada como caso de emergência devido seu quadro crítico, lá ainda teve que aguardar mais 8 horas até ser operada por falta de leito emergencial.
Ao final, sem que conseguisse o devido atendimento no hospital, Alyne veio a óbito por hemorragia interna ocasionada pelo procedimento de curetagem para retirada do feto com morte intrauterina.
O descaso e a ineficiência no atendimento prestado pela rede pública de saúde fluminense ocasionaram a morte da jovem Alyne Pimentel.
Seu caso foi apresentado ao Comitê CEDAW pelo Centro de Direito Reprodutivo e Advocacia Cidadã pelos direitos humanos, representando a mãe de Alyne, a Sra. Maria de Lourdes da Silva Pimentel[10].
Ao final do processo o Comitê CEDAW condenou o Brasil por violação do direito à saúde, à vida, a não discriminação ao acesso a saúde e que o Estado teria falhado ao não garantir à família de Alyne o acesso efetivo a justiça.
De acordo com a decisão do Comitê da CEDAW, as recomendações ao Brasil foram as seguintes[11];
“[...] Sobre o autor e a família da Sra. da Silva Pimentel Teixeira:
Prestar reparação adequada, incluindo indenização financeira, ao autor e à filha da Sra. da Silva Pimentel Teixeira proporcional à gravidade das violações contra ela;
Disposições Gerais:
A) Assegurar o direito das mulheres à maternidade segura e ao acesso à assistência médica emergencial adequada a preços acessíveis, de acordo com a recomendação geral n° 24 (1999) sobre as mulheres e a saúde;
B) Proporcionar formação profissional adequada para os trabalhadores da área de saúde, especialmente sobre os direitos reprodutivos das mulheres à saúde, incluindo tratamento médico de qualidade durante a gravidez e o parto, bem como assistência obstétrica emergencial adequada;
C) Assegurar o acesso a medidas eficazes nos casos em que os direitos das mulheres à saúde reprodutiva tenham sido violados e prover a formação de pessoal do poder judiciário e responsável pela aplicação da lei;
D) Assegurar que as instalações de assistência médica privada satisfaçam as normas nacionais e internacionais em saúde reprodutiva;
E) Assegurar que as sanções adequadas sejam impostas a profissionais de saúde que violem os direitos de saúde reprodutiva das mulheres, e
F) Reduzir as mortes maternas evitáveis através da implementação do Acordo Nacional pela Redução da Mortalidade Materna nos níveis estadual e municipal, inclusive através da criação de comitês de mortalidade materna em lugares onde tais comitês ainda (não existem, de acordo com as recomendações em suas observações finais para com o Brasil, adotadas em 15 de agosto de 2007.
Pode-se extrair dessas decisões que muito já se caminhou em direção a uma maior proteção das mulheres e seu reconhecimento como sujeitas plenas de direito, mas a sensação que fica é que as condenações internacionais e alterações legislativas nacionais não são suficientes.
A mudança que se espera com essas responsabilizações é estrutural, abarca a sociedade como um todo, buscando reformular o comportamento coletivo de homens e mulheres, que cresceram em uma sociedade machista, para que se perceba que as mulheres são igualmente potentes e capazes de exercer quaisquer funções na sociedade, pois são sujeitas plenas de direito e não devem ter quaisquer de seus direitos violados pelo simples fato de ser mulher.
[1] https://www.institutomariadapenha.org.br/quem-e-maria-da-penha.html
[2] https://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm . Acesso em 17/03/2023.
[3] RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos.– 5 ed. – São Paulo. Saraiva Educação, 2018. p.386/387.
[4] PAIVA, Caio. HEEMANN, Thimotie Aragon. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 3ª Ed. Belo Horizonte. Editora Cei, 2020, p.190.
[5] https://pt.wikipedia.org/wiki/Ciudad_Ju%C3%A1rez . Acesso em 16/03/2023
[6] Brasil, ONU Mulheres (2016). Diretrizes Nacionais Feminicídio. Brasília: [s.n.] pp. 130, p. 21
[7] https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_257_esp.pdf . Acesso em 17/03/2023.
[8] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Decreto/D10932.htm . Acesso em 17/03/2023
[9] https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_257_esp.pdf . Acesso em 17/03/2023.
[10] Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos / Caio Cezar Paiva, Thimotie Aragon Heemann, 2.ed – Belo Horizonte: Editora CEI, 2017. p.760.
[11] Decisão com a tradução juramentada: https://www.mpf.mp.br/pfdc/temas/documentos-diversos/decisao-cedaw-caso-alyne-teixeira-29jul11-portugues.pdf/view Acesso em: 13/03/2023
Graduação: Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pós- Graduação: Universidade Estácio de Sá.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAUNS, Patrícia de Medeiros. Os direitos das mulheres nos sistemas internacionais de direitos humanos e seus reflexos no ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 abr 2023, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61315/os-direitos-das-mulheres-nos-sistemas-internacionais-de-direitos-humanos-e-seus-reflexos-no-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 25 dez 2024.
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