RESUMO: O presente trabalho apresenta o conceito de racismo ambiental, demonstrando exemplos de como e onde ele está inserido em diversos contextos sociais brasileiros e, utilizando-se da legislação pátria, especialmente a Constituição Federal de 1988, traz à reflexão a responsabilidade civil que o Estado teria em não fiscalizar ou ser omisso em relação a condutas de terceiros que geram danos às minorias atingidas pelas injustiças ambientais.
INTRODUÇÃO
O termo racismo ambiental é recente, ainda que sempre presente em vários segmentos populacionais no Brasil e no mundo, de modo que ainda é tema pouco abrangido por projetos de pesquisa e órgãos oficiais, tanto é verdade que, em rápida busca na ferramenta Google, o que se encontra são sites mantidos por representantes das próprias minorias e por pesquisadores.
O racismo ambiental pode tanto ser enxergado em outras regiões do Brasil quanto no âmbito estadual e local, por exemplo, na região da Grande Dourados, Mato Grosso do Sul, com a questão indígena, cuja retomada do tekoha[1] é notícia recorrente na mídia, em contraste com o aumento da agricultura na região.
Em um primeiro momento, são trazidos conceitos gerais que englobam o tema, como legislação e princípios norteadores do meio ambiente digno a todos. Mais adiante, é apresentado o conceito de racismo ambiental, suas várias vertentes e, então, relacionados alguns casos ocorridos (e ainda ocorrentes) no País. Por fim, fala-se em responsabilidade civil do Estado na compensação dos danos às minorias que sofrem diretamente com essas injustiças.
1 Aspectos gerais e legislação ambiental
Antes de adentrar no tema propriamente dito, cabe trazer à baila o conceito de meio ambiente. Sobre o assunto inicialmente tratado, Milaré (2013, p. 133) aduz que “a expressão ‘meio ambiente’ (milieu ambant) foi, ao que parece, utilizada pela primeira vez pelo naturalista francês Geoffroy de Saint-Hilaire na obra Études progressives d’um naturaliste, de 1835”. Ainda sobre essa linha de abordagem, o Dicionário Larousse (Milaré, p. 134) frisa que o meio ambiente “é o conjunto de elementos naturais ou artificiais que condicionam a vida do homem”.
Soa repetitivo, porém importante mencionar o conceito de meio ambiente na legislação. A respeito do objeto abordado, Machado (2014, p. 59) proclama o seguinte:
Note-se a ausência de definição legal e/ ou regular de meio ambiente até o advento da Lei de Politica Nacional do Meio Ambiente. Conceituou-se meio ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (art. 3º, I)
Destarte, o meio ambiente é considerado como “um patrimônio” público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo” (art. 2º, I).
Feitas estas ponderações, urge salientar que o conceito de meio ambiente, apesar de unitário, permite identificar várias espécies, quais sejam: meio ambiente natural ou físico, meio ambiente cultural, meio ambiente cultural ou humano e meio ambiente do trabalho. Dentre estes, merecem destaque o primeiro e o terceiro, respectivamente.
A respeito do meio ambiente natural, a lei 6.938/81, em seu artigo 3º, I, já supramencionado, descreve com exatidão a sua abrangência. Nesse diapasão, entende-se como meio ambiente físico o solo, água, o ar atmosférico, flora, fauna e tudo aqui que está vinculado a estes meios.
Outrossim, o meio ambiente urbano é tratado por Lenza (2010, p. 936) como: espaço urbano construído, destacando-se as edificações (espaço urbano fechado) e também os equipamentos públicos, como as ruas, espaços livres, parques, áreas verdes, praças, etc.
A partir de então cabe destacar que, independentemente de qual espécie de meio ambiente se trata, é fundamental a manutenção do equilíbrio ecológico. O desenvolvimento não significa apenas crescer industrialmente e financeiramente. A expansão da economia deve ser atrelada a uma manutenção equilibrado do meio ambiente, fator determinante para o bem social.
Além disso, o acesso ao meio ambiente equilibrado é um direito difuso, ou seja, está vinculado a um conjunto de pessoas as quais não se determinam, inclusive àquelas que ainda nem nasceram, sendo, portanto, de extrema importância a preservação do ecossistema.
Todavia, ao longo dos anos, o que se vê é uma série de catástrofes ambientais, interferência humana em habitats que deveriam ser preservados, bem como o avanço das cidades sem um projeto sustentável. Mas isso será exposto mais adiante, quando for abordado o assunto principal deste artigo.
Ingo Sarlet (2013, p. 32) associa de forma muito sábia a preservação do meio ambiente ao desfrute dos demais direitos fundamentais, vejamos:
A abordagem ecológica do Direito Constitucional, conforme já sinalizado em passagem anterior, justifica-se em razão da importância que a qualidade, o equilíbrio e a segurança ambiental têm para o desfrute, a tutela e a promoção dos direitos fundamentais (liberais, sociais e ecológicos) – como, por exemplo, vida, integridade física, propriedade, saúde, educação, moradia, alimentação, saneamento básico -, o que situa a proteção do ambiente – por si só – como um dos valores edificantes do nosso Estado de Direito constituído através da Lei Fundamental de 1988 (art. 225). Assim, cumpre arrolar algumas das “pegadas humanas”, como sinônimo de degradação perpetrada pela ação humana no meio natural, dado que os efeitos negativos de tais práticas resultam, na grande maioria das vezes, em violação direta ou mesmo indireta aos direitos fundamentais do indivíduo, dos grupos sociais e da coletividade como um todo.
Nesse sentido, corroborando com o entendimento de Sarlet, a Constituição Federal de 1988 aduz que é direito da população ter acesso a um meio ambiente preservado. Além disso, traz uma série de obrigações ao Poder Público, a fim de manter o equilíbrio ecológico. Fixada essa diretriz, imprescindível observar o texto do artigo 225 da Carta Magna:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; (Regulamento)
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; (Regulamento) (Regulamento)
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; (Regulamento)
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; (Regulamento)
V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. (Regulamento)
§ 2º Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.
§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
§ 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
§ 5º São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.
§ 6º As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.
Convém salientar que do artigo supramencionado surge o princípio do acesso equitativo aos recursos naturais. Como bem estabelece Machado (2014, p. 86-87), não basta explorar os recursos naturais de maneira desproporcionais, mesmo que não escassos. Deve-se avaliar a real necessidade da utilização do meio ambiente e, mesmo após toda a apreciação, é importante tornar o acesso às riquezas da natureza equilibrada.
Destarte, aqueles recursos naturais já citados acima, como, por exemplo, o ar, a água e a terra, devem atender a toda a coletividade de forma razoável. Nesse ritmo argumentativo, há de se ressaltar que “o Direito Ambiental tem a tarefa de estabelecer normas que indiquem como verificar as necessidades de uso dos recursos ambientais” (Machado, 2014, p. 87).
De se acrescentar, portanto, que a disponibilidade a um meio ambiente preservado é um direito que deveria abranger toda a coletividade, sem exceções. Todavia, frisa-se que o acesso a um ecossistema condizente com o que proclama a Constituição Federal de 1988 está estritamente ligado às condições financeiras do conglomerado social.
Em outras palavras, as regiões onde se situam as pessoas com maiores condições econômicas, em regra, possuem um equilíbrio natural muito superior a aquelas localidades em que os integrantes do cerco social são menos favorecidos financeiramente, como exemplo, as favelas. É nesse aspecto que o princípio do acesso equitativo aos recursos naturais busca fazer justiça.
Cabe salientar que, além disso, o homem coloca o desenvolvimento da economia em primeiro plano. Infelizmente, a ideia de preservação do meio ambiente não advém de um raciocínio lógico, espontâneo e humano, pelo contrário, surge da intenção de recuperar uma parte do habitat, para acabar com a outra. As linhas que seguem reforçarão esse raciocínio:
Segundo Guido Fernando Silva Soares, a consciência da necessidade de proteção do meio ambiente decorre:
· Dos problemas advindos com o crescimento caótico das atividades industriais;
· Do consumismo desenfreado em âmbito local e mundial;
· De uma filosofia imediatista pelo desenvolvimento a qualquer preço;
· Da inexistência de uma preocupação inicial com as repercussões causadas ao meio ambiente pela atividade econômica;
· Da assunção de que os recursos naturais seriam infinitos, inesgotáveis e recicláveis por mecanismos automáticos incorporados à natureza (meados do século XIX) – Revolução Industrial; (Lenza, 2010, p. 937).
Entretanto, esse entendimento acaba por violar o artigo 170, caput, VI, da Carta Magna. O citado tipo constitucional proclama que o desenvolvimento econômico deve, dentre outros vários princípios, observar a defesa do meio ambiente. “Inclusive mediante tratamento diferenciado de acordo com o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e interpretação”. (Lenza, 2010, pág. 938)
E mais, a fim de complementar o argumento a cima, cita-se o inciso I, do artigo 4º, da Lei 6938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente: “à compatibilidade do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico”;
Observa-se que ao longo dos anos diversos acontecimentos têm atingido o meio ambiente de modo geral. Não só isso: é notório que a maioria das consequências negativas das catástrofes ambientais atinge uma parcela específica da sociedade. A isso se dá um nome: racismo ambiental.
Nesse contexto apresentado inicialmente, cabe apenas trazer as explicações de Sarlet (2013, p. 62-63):
No caso do Brasil, que registra um dos maiores índices de concentração de renda do mundo, de modo a produzir um quadro de profunda desigualdade e miséria social, o fato de algumas pessoas disporem de alto padrão de consumo – e, portanto, serem grandes poluidoras –, ao passo que outras tantas muito pouco ou nada consomem, também devem ser considerado para aferir sobre quem deve recair o ônus social e ambiental dos danos ocasionados pela mudanças climáticas e pela degradação ambiental em geral. A sujeição de tais indivíduos e grupos sociais aos efeitos negativos da degradação ambiental rá agravar ainda mais a vulnerabilidade das suas condições existenciais, submetendo-as a um quadro de ainda maior indignidade, inclusive de modo a enquadrá-las na situação jurídica de necessidade ambientais ou mesmo refugiados ambientais. As pessoas mais vulneráveis aos efeitos negativos da degradação ambiental são aquelas mais pobres, as quais possuem uma condição de vida precária em termos de bem-estar, desprovidas do acesso aos seus direitos sociais básicos (moradia adequada e segura, saúde básica, saneamento básico e água potável, educação, alimentação adequada etc.).
Convém notar que, geralmente esses grupos mais pobres, com precariedade em direitos básicos, são encontrados nas favelas, regiões que habitam os ribeiros, índios, bem como aquelas pessoas que foram deslocadas de seu local de origem para dar lugar ao agronegócio.
2 Racismo ambiental propriamente dito
O racismo ambiental tem sua origem com movimentos em prol de justiça ambiental nos Estados Unidos nos anos de 1980, promovidos especialmente por comunidades negras e pobres, nas quais imperava a poluição e o lançamento de dejetos pelas indústrias, em maior escala que em outros locais nas cidades.
Ao tempo em que surgiam esses movimentos de justiça ambiental, dentre os quais os relacionados ao Love Canal, em 1978, e Warren County, em 1982, foram realizados estudos pela U.S. General Accounting Office (1983), Comission for Racial Justice (1987), Greenpeace (1991), que demonstraram o que essas pessoas supramencionadas traziam em seus protestos: predominava na raça (negros) o maior destino das injustiças sociais cometidas.
Pormenorizando, no Love Canal, localizado nas Cataratas do Niágara, o que seria um canal entre a parte alta e baixa do rio transformou-se num depósito de lixo, onde mais tarde seriam construídas residências e escolas e várias pessoas acometidas por problemas, o que resultou numa realocação desses moradores após confirmado o problema e criado um grupo denominado “Movimento pela Justiça Ambiental”; em Warren County, localizada em Carolina do Norte, o governo resolveu criar um depósito de policlorobifenilos, compostos que, por exemplo, podem ser utilizados como fluidos dielétricos em transformadores e condensadores, tintas e lubrificantes hidráulicos (HERCULANO, 2008, p. 3 apud Almeida; Pires; Totti, 2015, p. 6-7).
A United States Environmental Protection Justice apresenta o seguinte conceito para justiça ambiental:
Tratamento justo e envolvimento significativo de todas as pessoas independentemente de raça, cor, nacionalidade ou classe econômica, no que diz respeito ao desenvolvimento, implementação e execução das leis ambientais, regulações e políticas. Por tratamento justo se tem que nenhum grupo de pessoas, inclusive grupos raciais, étnicos ou socioeconômicos, devem suportar uma parcela desproporcional de consequências ambientais negativas provenientes de operações industriais, municipais ou comerciais, ou da execução de programas e políticas federais, estaduais, locais e tribais (BULLARD, 2002, p. 4 apud Almeida e Totti, p. 7).
No Brasil, de acordo com a professora Lara Moutinho-da-Costa, em 2001 nasceu em um seminário a Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA)[2], que chama de injustiça ambiental
o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis [...] Uma lógica que faz com que todos os efeitos nocivos do desenvolvimento recaiam sempre sobre as populações mais vulneráveis (RBJA apud Costa, 2012, p. 108).
Como já dito, a preocupação com justiça ambiental também veio no texto constitucional de 1988, que afirma o direito de todos a um meio ambiente equilibrado, inclusive para as futuras gerações. A realidade que se encontra, no entanto, ainda está longe de ser esta.
Remontando à história do País, a exemplo dos EUA, a raça negra sempre foi vista com inferioridade, mão de obra escrava dos grandes latifúndios e, em que pese a realidade vir se modificando desde a abolição da escravatura, datada de 1888, o fato é que ainda hoje as políticas públicas direcionadas a essas minorias não são completamente efetivas.
Contudo, não só os negros são atingidos pelas injustiças sociais e ambientais. Salta aos olhos a poluição, falta de saneamento básico, falta de políticas públicas, dentre outros problemas, que acometem comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhos, moradores das favelas e outros tantos que vivem marginalizados.
Sobre o tema, na lição de Costa (2012, p. 103),
Foi com a descoberta da América que nasceu, ao mesmo tempo, o racismo e o capitalismo mundial, na medida em que, ideologicamente, os colonizadores europeus usaram artifícios filosóficos, religiosos e legais para justificarem a exploração do trabalho não pago de índios e negros e assim acumularem capital. Nesse contexto, a instituição do racismo, em suas diversas modalidades de expressão, foi fundamental para a consagração do que Quijano (2005) chama de “Colonialidade do Poder”, que para o autor é racista, capitalista e eurocentrada em sua base e continua atuando pelo mundo de maneira globalizada.
Para a autora, existirá o racismo enquanto perdurar a denominada colonialidade do poder, que se faz presente através da opressão, dominação, sistema de privilégios e que tenta justificar a desigualdade e discriminação das minorias (COSTA, 2012, p. 105).
Nesse sentido surge a importância da existência e efetividade da justiça ambiental, visto que na sociedade atual, cada vez mais tem ficado evidente outra forma de discriminação, a que diz respeito às questões territoriais. Muitas vezes, as catástrofes ambientais e os impactos advindos delas afetam diretamente a população mais vulnerável da sociedade, isto é, índios, ribeirinhos, negros, etc.
Grosso modo, um problema ambiental só vira assunto de interesse geral quando afeta uma classe mais favorecida financeiramente ou socialmente. Ou seja, enquanto a questão atingir apenas a comunidade mais carente ou de menor influência, o tema é ignorado. Por isso, necessária a justiça ambiental não só em âmbito científico, mas social, pois o espaço privado sobre o público acarreta dificuldades, invisibilidade para quem vive essa realidade, convive nos arredores de grandes empreendimentos.
Pertinente a lição de Herculano (2008, p. 2 apud Almeida; pires;Totti, 2015, p. 4) de que a injustiça ambiental é “o mecanismo pelo qual sociedades desiguais destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento a grupos sociais de trabalhadores, populações de baixa renda, grupos raciais discriminados, populações marginalizadas e mais vulneráveis”. Para BULLARD (apud Almeida; pires; Totti, 2015, p. 6), no Brasil há uma forma institucionalizada de discriminação.
O professor Henri Acselrad (2010, p. 113 apud Almeida; pires; Totti, 2015, p. 9) ressalta a existência de uma troca de vantagens para que as empresas permaneçam nos locais, forneçam vagas de emprego e muitas vezes levem infraestrutura para aquela região onde estão instaladas, como escolas, postos de saúde, cursos de qualificação, etc.
Como o Estado não consegue chegar a todos os locais e, muitas vezes, investir verbas públicas nesses lugares não é interessante do ponto de vista político, as empresas que se instalam viabilizam oportunidades para uma dada comunidade, mas em troca, “chantageiam” o Estado por incentivos e, desta forma, são capazes de “internalizar a capacidade de desorganizar a sociedade, punindo com a falta de investimentos os espaços mais organizados, e premiando, em contrapartida, com seus recursos, os espaços menos organizados” (ACSELRAD, 2010, p. 113 apud Almeida; pires; Totti, 2015, p.9).
Nesse sentido, pode-se dizer que o racismo ambiental se origina na tomada de decisões e na prática de atividades que beneficiam grupos e setores de camadas mais altas na sociedade, enquanto os grupos mais vulneráveis são prejudicados pelas consequências dessas ações, sem ao menos terem participado das deliberações. Cabe trazer à baila as palavras de Herculano[3], quanto à origem e conceito do termo racismo ambiental:
Racismo ambiental é um tema que surgiu no campo de debates e de estudos sobre justiça ambiental, um clamor inicial do movimento negro estadunidense e que se tornou um programa de ação do governo federal dos Estados Unidos, por meio da EPA Environmental Protection Agency, sua agência federal de proteção ambiental. O conceito diz respeito às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma desproporcional sobre etnias vulnerabilizadas.
Pode-se extrair do texto de Herculano, portanto, que justiça ambiental significa que as consequências ambientais negativas devem ser distribuídas proporcionalmente a toda coletividade, e não à apenas aos grupos marginalizados da sociedade.
Como escreveu Tania Pacheco em blog sobre o tema em questão, ele não se configura apenas por meio de ações que tenham uma intenção racista, mas igualmente por meio de ações que tenham impacto racial, não obstante a intenção que lhes tenha dado origem. “Injustiça ambiental” é definida, complementarmente, como “o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos sociais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis.” (Declaração da Rede Brasileira de Justiça Ambiental).
Em outra oportunidade, Pacheco completa o raciocínio da seguinte forma:
Chamamos de Racismo Ambiental as injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre etnias e populações mais vulneráveis. O Racismo Ambiental não se configura apenas através de ações que tenham uma intenção racista, mas, igualmente, através de ações que tenham impacto “racial”, não obstante a intenção que lhes tenha dado origem[4].
Levando em consideração o pensamento exposto acima, surge a problemática: o acesso ao meio ambiente saudável e equilibrado ocorre de forma igualitária entre os membros da sociedade?
2.1 Racismo ambiental nos diversos contextos sociais
Como assinala Costa (2012, p. 113), no Brasil não há que se falar apenas em racismo ambiental envolvendo negros e índios, mas também “pescadores, caiçaras, caipiras, jangadeiros, populações ribeirinhas, marisqueiros, catadores de coco de babaçu, camponeses, catadores de sementes, extrativistas, entre outras”. Falaremos de alguns casos a título de exemplo.
Hoje o desequilíbrio no parcelamento para suportar as consequências ambientais negativas existe tanto no meio urbano, quanto nas áreas rurais, principalmente nestas. Esse é o entendimento de Pacheco[5], que salienta que “para os quase 32 milhões que permanecem no campo, entretanto, a luta é muito mais difícil. Na grande disputa pela posse e exploração território, são eles as maiores vítimas do que chamamos de Racismo Ambiental”.
Podemos citar entre outros, os casos de superposição entre Terras Indígenas e os Parques Nacionais do Araguaia, no Tocantins, Monte Pascoal, na Bahia, Superagui, no Paraná, Pico da Neblina, no Amazonas, bem como, à nossa volta, os Guarani-Kaiowá, em Mato Grosso do Sul.
De acordo com artigo publicado no Anuário Justiça e Direitos Humanos de 2015 (2016, p. 73-74), apesar de os indígenas terem seus direitos iguais aos demais brasileiros após o advento da CF/88, muitas vezes o Judiciário ainda os vê e os trata como sendo civilmente incapazes.
Diante disso, muitas vezes são relegados a segundo plano, sendo a FUNAI o órgão chamado a responder por eles diante de processos, o que aconteceu com os guarani-kaiowá de Mato Grosso do Sul no Recurso Ordinário em Mandados de Segurança nº 29542 e nº 29087 e com o povo terena do mesmo Estado, quanto ao registro em cartório da aldeia indígena Limão Verde, cujo decreto presidencial que o autorizou foi anulado pelo STF. Adelar Cupsinski, Alessandra Faria, Rafael Modesto dos Santos[6] ressaltam:
O que chama a atenção, nos casos, é o fato de que as comunidades indígenas não foram citadas pelos autores das ações ou de ofício pelo Poder Judiciário para compor as lides, e nem consultadas, nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), norma internalizada pelo Brasil. Para o Judiciário, a Funai é quem representa os indígenas em juízo.
Nesse sentido a lição de Rosane Lacerda (2008), citada no mesmo artigo:
Essa visão dos índios como portadores de uma incapacidade natural, levou a que fossem vistos também como naturalmente sem voz e inativos, sempre necessitando serem representados em seus diversos interesses. Levou a ideia de serem totalmente incapazes de sobreviver frente à suposta superioridade do aparelho “civilizador” não indígena (Lacerda, 2008).
Outro exemplo de injustiça é o dos quilombolas do Rio Trombetas, no norte do Pará. Reportagem feita pelo jornal El Pais em 2014 descreveu a falta de acesso por terra, de rede de esgoto e de energia elétrica, dentre outros. Contudo, a falta de tais comodidades não é a preocupação dessas pessoas: “A vida simples do quilombola, na qual as crianças e bichos correm livres, não ressente da falta de facilidades como energia elétrica, água encanada ou banheiro. A convivência com essas “dificuldades”, do ponto de vista de quem mora na cidade, é natural para eles”[7]. O que os incomoda é a instalação de uma mineradora no local, para exploração de bauxita. Um dos maiores platôs de exploração do minério será o de Cruz Alta e, segundo a reportagem, previsto para iniciar as operações em 2022, o qual se localiza na área quilombola.
Em seu site oficial, a MRN (Mineração Rio do Norte), que atua na região explorando minérios, cita um programa criado em 2015 de “apoio ao desenvolvimento e melhoria da economia por meio das cadeias produtivas potenciais e desenvolvidas [...], considerando a conservação de áreas protegidas e a preservação de culturas tradicionais”, formada pela população urbana, agricultores, comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas[8].
Já os ribeirinhos, que têm suas moradias à beira dos rios e fazem da pesca seu modo de subsistência, sofrem o racismo ambiental com a construção de hidrelétricas. Dentre eles, os ribeirinhos de Sento Sé, no estado da Bahia, cujas casas deram lugar à represa de Sobradinho, empreendimento da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf).
De acordo com reportagem veiculada no site Envolverde[9] em janeiro de 2017, a hidrelétrica de Sobradinho foi construída nos anos 1970 e tem capacidade “para gerar 1.050 megawatts, graças à represa de 34 bilhões de metros cúbicos em uma área de 4.214 quilômetros quadrados, a maior em superfície e a terceira em volume de água no Brasil”.
Ainda segundo a publicação, foram deslocadas 72 mil pessoas (números apresentados por organizações sociais) ou 59.265 (informações da Chesf). Além da cidade de Sento Sé, também ficaram submersas Casa Nova, Pilão Arcado e Remanso, bem como todos os ribeirinhos que moravam nesses locais.
Em Altamira, estado do Pará, citamos o exemplo da Usina de Belo Monte. O Ministério Público Federal divulgou, em 2015, relatório sobre inspeção realizada com os ribeirinhos atingidos pela remoção compulsória e instalação da hidrelétrica.
O relatório registra que, por ignorar completamente o modo de vida dessas famílias, o processo de remoção viola um dos princípios do Plano Básico Ambiental (o PBA, documento que detalha os programas para a minimização dos impactos negativos do projeto) de Belo Monte, que impõe a necessidade de manutenção do modo de vida das comunidades afetadas em condições no mínimo semelhantes às que detinham antes do impacto.
Entre diversas irregularidades apontadas, o relatório de inspeção destaca que, sem a opção de remoção para assentamentos em áreas próximas do rio, os ribeirinhos acabam sendo coagidos a aceitar indenizações insuficientes para a aquisição de local que permita a recomposição de suas condições de vida, rompendo com ainda um padrão cultural de ocupação do território, que tem como característica essencial a dupla moradia: uma casa nas ilhas, para a pesca e a agricultura, e outra na cidade, para a venda da produção e para acesso à saúde e à educação[10].
As favelas, no meio urbano, são os maiores exemplos de injustiça ambiental, nesse sentido o entendimento de Nelson Inocêncio:
No que concerne ao contexto urbano, entende-se por racismo ambiental todo o processo de alijamento de populações para áreas periféricas, sem saneamento básico e, portanto, insalubres, nas quais os riscos de adquirir doenças e ter reduzida a expectativa de vida são inevitáveis. Ocorre que as pessoas que integram tais contingentes não são seres abstratos; elas possuem características fenotípicas que evidenciam seus pertencimentos a segmentos étnico-raciais, cujas identidades culturais também não devem ser subestimadas[11]
Em agosto de 2016, foi notícia no jornal italiano Avvenire a realidade das favelas cariocas frente à realização das Olimpíadas no Brasil. De acordo com a publicação, traduzida e disponibilizada no site do Instituto Humanitas Unisinos sob o título “Favelas, onde as Olimpíadas são uma realidade distante”[12], veio da Cidade de Deus o primeiro ouro olímpico brasileiro, por Rafaela Silva, atleta oe judô. Para além, o legado das Olimpíadas nada deixou para as denominadas comunidades, que assistiram as competições de longe, do alto dos morros.
Juliana Câmara, responsável pela Action Aid, que nos acompanha entre os becos, explica: "A prefeitura esconde os números verdadeiros para não ser forçada a levar os serviços básicos para a comunidade"; Mas os problemas não podem ser escondidos: "A favela aqui está nas mãos da facção Amigos dos Amigos [...].
"O legado social que esse Jogos vão deixar – continua Juliana – será mínimo. Aqui, falta tudo. Temos apenas quatro escolas primárias e, ao terminar as aulas, esses jovens deixam de estudar. A saúde pública não existe: três ambulatórios para 150.000 pessoas não são nada. As mulheres, as poucas que têm um emprego, quando dão à luz, devem abandonar o trabalho, porque não têm onde deixar os filhos."
O governo, que, em teoria, investiu uma grande atenção aos problemas das favelas, tinha alocado um bilhão de reais em 2006 (300 milhões de euros) para melhorar a segurança e as condições de vida.
"Um dinheiro que nunca foi visto aqui, para obras jamais realizadas ou iniciadas sem terem sido concluídas. A Rocinha processou o Estado do Rio para saber que fim tiveram esses financiamentos, quem os embolsou sobre a pele das pessoas que aqui morrem de fome e de violência. Mas o processo já têm anos e não importa a ninguém...".
Em dissertação de mestrado, Sávio Silva de Almeida, que pesquisou em campo a realidade de favelas em Pernambuco, afirma que pensar em direitos humanos e dignidade humana em meio às favelas Beira Rio e Cabo Gato, na região metropolitana de Recife é pensar em desigualdade social brasileira, sendo que a favela é o padrão de moradia de muitos moradores daquela região.
Para ele, a forma com a qual a favela é vista pelos entes estatais e empresas não é correta e as políticas públicas, decisões jurídicas, etc, não são feitas para beneficiar essas pessoas:
O mesmo sistema jurídico que tem como proposta reduzir as desigualdades regionais e sociais, proteger a dignidade, proteger e promover o pluralismo político, respeitar e promover os direitos civis, políticos, sociais, culturais, ambientais e ao desenvolvimento, é o mesmo que desprestigia formas de relacionamento que determinadas comunidades humanas adotam nos relacionamentos entre si, com o espaço e com a natureza, em benefício de noções “internacionais e universais” de direitos humanos. Ou seja, o sistema jurídico que se pretende justo, também, é capaz de discriminar com base em “padrões internacionais”, por vezes descolados de diversas realidades histórico-geográficas. Vulnerando a posse das terras e das moradias de quem justamente mais precisa possuí-las e/ou legitimando os, injustificáveis, desapossamentos forçados. Diante de tal contexto, podem-se citar as aqui consideradas soluções locais para o problema da dignidade humana: moradias construídas com “materiais inadequados”; moradias construídas às margens dos rios, sujeitas a enchentes; construção de moradias com ausência de saneamento básico; construção de moradias em locais sem coleta de lixo; construção de moradias com ausência de serviço público de água encanada, etc.
Nesse sentido é que Slavoj Zizek (2012, p. 340) afirma que “Os moradores da favela, por exemplo, são os mortos-vivos do capitalismo global: vivos, mas mortos aos olhos da pólis”.
Muito além dos casos citados é a realidade brasileira quando se fala em racismo e injustiça ambientais. Tânia Pacheco lista uma série de outros exemplos de casos de injustiça ambiental no Brasil, vejamos:
O turismo predatório avança pelo litoral do Nordeste, principalmente, fazendo com que, também no Ceará, o povo Tremembé seja ameaçado pela empresa Nova Atlântida, que pretende transformar as terras indígenas litorâneas numa “Cancún brasileira”, com dezenas de hotéis de luxo e campos de golfe. No Centro-Oeste, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, Coiab, denuncia a contaminação das mulheres Cintas Larga por doenças sexualmente transmissíveis, inclusive pelo HIV. Entre os Kaiowá da terra indígena Tey’ikue, município de Caarapó, Mato Grosso do Sul, os traficantes atuam livremente em sua reserva, estuprando moças e viciando meninos[13].
Dessa forma, surge a necessidade de se criar políticas públicas capazes de diminuir essas desigualdades, sendo que estas se revelam históricas e culturais. Os meios de preservação do meio ambiente (área de preservação ambiental, por exemplo), devem ser ampliados no sentido de evitar não apenas o aumento de contaminação do ecossistema de um modo geral, mas de todo o desdobramento que pode ser causado pelos prejuízos de má exploração, e isso inclui a comunidade mais vulnerável.
Nesse sentido o trecho abaixo, da dissertação de mestrado da autora Francieli Formentini (2010), que aduz:
Independentemente da teoria adotada, constata-se que é unânime entre os autores que a existência de uma crise ecológica e que é preciso construir uma nova relação entre o homem e a natureza, considerando que a continuação da utilização dos recursos naturais da forma avassaladora como tem ocorrido não é mais sustentável, de modo que os conflitos ambientais tendem a piorar com o passar do tempo, tempo que não demora muito a chegar. Ainda, há unanimidade quanto a necessidade de ser alterada a relação do homem com a natureza para que o futuro da presente e das futuras gerações não sejam comprometidos, bem como para que os riscos ambientais não continuem sendo direcionados aos grupos vulneráveis e discriminalizados pela pobreza, local onde vivem, cor, etnia e outros elementos (p. 88).
É importante destacar que o Direito deve atuar na defesa do meio ambiente ao mesmo tempo em que protege todos, inclusive aqueles que são atingidos pelas injustiças ambientais:
Embora o Código de Processo Coletivo seja um projeto pendente de aprovação, há instrumentos jurisdicionais disponíveis do direito brasileiro habilitados para tutelar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e sadio, bem como a cessar ou diminuir a prática de injustiça ambiental e de racismo ambiental, como a ação popular, o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção e, a ação civil pública ambiental, instrumentos dentre os quais o último é o mais utilizado na proteção ambiental (FORMENTINI, 2010, p. 108).
Segundo Pacheco, no Brasil, enquanto não há um direito coletivo codificado, outras são as ferramentas disponíveis para buscar um meio ambiente sadio ao alcance de todos, independentemente de sua posição social:
(…) O conceito de Racismo Ambiental nos desafia a ampliar nossas visões de mundo e a lutar por um novo paradigma civilizatório, por uma sociedade igualitária e justa, na qual democracia plena e cidadania ativa não sejam direitos de poucos privilegiados, independentemente de cor, origem e etnia” (Pacheco: 2007).
Como visto, urge na sociedade atual tutelar os direitos relacionados ao meio ambiente e, desta forma, garantir o acesso ao direito fundamental ao meio ambiente sadio e equilibrado, bem como à dignidade da pessoa humana a todo e qualquer segmento social.
3 Responsabilidade civil nas questões de injustiça ambiental
Em um primeiro momento, é necessário compreender que a conduta de um agente provocou um dano, e as consequências negativas desse ato atingiu um terceiro. Ocorrendo isso, aquele que promoveu, com dolo ou culpa, o sinistro é responsável por reparar ou ressarcir ao prejudicado. Esta é a regra da responsabilidade civil.
Entrando no contexto da responsabilidade civil relacionada ao dano ambiental, é necessário traçar os contornos do que seria esse sinistro ecológico. Assentado fique, então, que “dano ambiental, por sua vez, é toda agressão contra o meio ambiente causada por atividade econômica potencialmente poluidora, por ato comissivo praticado por qualquer pessoa ou por omissão voluntária decorrente de negligência” (Sirvinskas, 2014, p. 259).
Seguindo esse raciocínio, urge frisar que nem todo dano ambiental é possível recuperar o status aquém. Dessa forma, caberá um ressarcimento financeiro por parte do causador do desiquilíbrio do bioma.
De acrescentar-se que a Lei 6938/81 adotou a teoria objetiva para responsabilizar o causador do dano. Em suma, independe de dolo ou culpa do agente, bastando, apenas, que ocorra o dano ambiental e o prejuízo ao bioma. Essa teoria baseia-se que “a pessoa que cria o risco deve reparar os danos de se empreendimento” (Gonçalves, 2012, p. 87).
Com base nessa premissa, destaca-se o §1º, do artigo 14, da lei supramencionada:
§ 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.
Outrossim, cabe trazer à baila que o Estado, além de ser responsável pelos danos que causar diretamente ao meio ambiente, responderá pelos danos causados por terceiros, uma vez que o ente da Federação concedeu o licenciamento ambiental ou foi omisso na fiscalização.
É precisamente nesse sentido que as consequências negativas dos descalabros ao ecossistema devem ter sua responsabilização atrelada ao Poder Público. E não só por isso, o direito ao meio ambiente saudável é constitucionalmente protegido e está no rol de fundamental para o desenvolvimento de todos os seres humanos, inclusive as futuras gerações.
É oportuno aqui sublinhar as palavras de Sarlet (2013, p. 276):
Nesse sentido, uma vez que a proteção do ambiente é alçada ao status constitucional de direito fundamental (além da tarefa e dever do Estado e da sociedade) e o desfrute da qualidade ambiental passa a ser identificado como elemento indispensável ao pleno desenvolvimento da pessoa humana, qualquer “óbice” que interfira na concretização d direito em questão deve ser afastado pelo Estado, seja tal conduta (ou omissão) obras particulares, seja ela oriunda do próprio Poder Público.
Em síntese, mesmo que o Estado não tenha praticado a ação que originou o dano ambiental e, por conseguinte, prejudicou um terceiro, ele tem responsabilidade pelo incidente. Devendo, assim, quando não possível reestabelecer a qualidade do meio ambiente, indenizar, no mínimo, aqueles que foram diretamente atingidos.
É o dever do Estado, portanto, primeiramente fiscalizar e, frente a um dano ocasionado a essas minorias que sofrem injustiças ambientais por uma conduta de terceiro, deve intervir com vistas à reparar esse dano. Esse é o entendimento de Almeida e Totti (2015, p. 4), quando aduzem:
O racismo ambiental enquanto ato não deve ser aferido de forma subjetiva, mas objetiva. Isto é, prescinde-se a existência de dolo ou culpa no que concerne ao ato de racismo ambiental, bastando que se verifique que o mesmo produziu resultado racista na ótica ambiental. Um sistema regulatório que favorece o racismo ambiental se vale da institucionalização da discriminação a fim de manter a maior oferta de bens e serviços em localidades determinadas, sobrepondo a populações de minorias étnicas piores condições de vida.
Nesse contexto de ideias, levando em consideração que é responsabilidade do Estado fornecer o mínimo necessário a cada cidadão para que este tenha uma vida digna, a partir do momento em que direitos fundamentais são suprimidos do indivíduo, é dever do Estado restaurar esse resultado negativo. Outrossim, a garantia ao acesso igualitário ao meio ambiente saudável equipara-se a essencial no ordenamento jurídico brasileiro, ficando, portanto, o Estado obrigado a compensar toda e qualquer forma de racismo ambiental.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apresentados estes contornos, cabe acrescentar que, nos últimos anos, a busca do homem pelo progresso tecnológico e cientifico, tem passado por cima de tudo e todos, inclusive o meio ambiente. A ação do ser humano afeta não só as gerações presentes, mas, principalmente, as futuras.
Além de abordar que a devastação do bioma prejudica a sociedade atual, bem como os descendentes desta, é importante ressaltar que uma parcela do conglomerado social sempre será mais abalada pelas consequências negativas que toda essa problemática traz. Cabe dizer, como já mencionado, aqueles que financeiramente são desfavorecidos suportam um ônus muito maior no conjunto da degradação ambiental.
Deixar de avaliar isso, e acreditar que o único problema a se combater é o crescimento da deterioração da holocenose, é o mesmo que não fazer nada. Em outras palavras, destruir qualquer tipo de ambiente, afeta não somente o habitat em si, mas viola todos os outros direitos fundamentais elencados na Carta Maga de 1988 e que são de extrema importância para todo e qualquer cidadão, mas de forma muito mais extrema para aqueles que são menos desprovidos economicamente.
O racismo ambiental é um problema gigantesco, e a tendência é continuar sendo desprezado e pouco encarado pelo Estado. Rejeitar todos esses fatores já elencados só aumenta a exclusão e marginalização social que já assola não só o nosso país, mas todo o mundo.
Portanto, ignorar que as consequências negativas de um desastre ambiental, ou de um uso desproporcional do meio ambiente recaem, em regra, a um determinado grupo da sociedade, vale destacar, os marginalizados e esquecidos pelas políticas públicas, é um problema tão grave quanto a própria devastação ambiental.
Infelizmente, aqueles que são descriminados ambientalmente não possuem outra saída a não ser buscar uma reparação dos danos já causados. Claro que isso não é o ideal, pois o melhor seria ter todo o conjunto de direitos constitucionais protegidos pelo Estado. Todavia, fica evidente que a única forma de recuperar o mínimo de dignidade, fundamento do nosso ordenamento jurídico, é com uma indenização paga pelo Poder Público.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Daniela dos Santos; PIRES, Thula; TOTTI, Virgínia. Racismo ambiental e a distribuição racialmente desigual dos danos ambientais no Brasil. 2015. 16 f (resumo). Departamento de Direito, Puc-rio, Rio de Janeiro, 2015.
ALMEIDA, Sávio Silva de. Direitos humanos e justiça ambiental em comunidades perifluviais urbanas / Sávio Silva de Almeida. – Recife: O autor, 2014. Repositório Institucional da UFPE. Disponível em: http://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/12428. Acesso em 4 de fevereiro de 2017.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>. Acesso em 12 de janeiro de 2017.
BRASIL. Lei 6938/81. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6938.htm. Acesso em 12 de janeiro de 2017.
COSTA, Lara Moutinho da. Territorialidade e racismo ambiental: elementos para se pensar a educação ambiental crítica em unidades de conservação. Pesquisa em Educação Ambiental, [S.l.], v. 6, n. 1, p. 101-122, julho 2012. ISSN 2177-580X. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/pea/article/view/55936>. Acesso em: 07 fev. 2017.
FILHO, Antonio Sergio Escrivão; PIVATO, Luciana Cristina Furquim; XIMENES, Salomão Barros (organizadores). Justiça e direitos humanos: olhares críticos sobre o judiciário em 2015. Curitiba: Terra de Direitos, 2016.
FORMENTINI, Francieli. Racismo ambiental: ação civil pública e tutelas de urgência como alternativas de minimização das consequências ambientais negativas. Ijuí, 2010. Dissertação de mestrado – Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ.
LENZA, Pedro – Direito Constitucional Esquematizado.14. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2010.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 22 ed. rev. ampl., e atual. – São Paulo, 2014.
MILARÉ, Édis – Direito do Ambiente. 8. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
PACHECO, Tania. Racismo Ambiental: expropriação do território e negação da cidadania. Tania Pacheco SRH (org.). Justiça pelas Águas: enfrentamento ao Racismo Ambiental. Salvador: Superintendência de Recursos Hídricos, 2008. p.11-23.
SARLET, Ingo Wolfgant. Direito Constitucional Ambiental: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente/ Ingo Wolfgant Sarlet, Tiago Fensterseifer. 3. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de Direito Ambiental. 12 ed. – São Paulo: Saraiva 2014.
ŽIŽEK, S. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo: 2012.
[1] Conforme o site Povos Indígenas do Brasil, “o tekoha é, assim, o lugar físico – terra, mato, campo, águas, animais, plantas, remédios etc. – onde se realiza o teko, o “modo de ser”, o estado de vida guarani. Engloba a efetivação de relações sociais de grupos macro familiares que vivem e se relacionam em um espaço físico determinado”. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-kaiowa/552. Acesso em 8 de fevereiro de 2017.
[2] Vide: https://redejusticaambiental.wordpress.com/
[3] RACISMO AMBIENTAL, O QUE É ISSO? Disponível em: http://www.professores.uff.br/seleneherculano/images/Racismo_3_ambiental.pdf. Acesso em 5 de dezembro de 2016.
[4] Referência no mesmo artigo citado anteriormente.
[5] Racismo Ambiental: expropriação do território e negação da cidadania. Disponível em http://racismoambiental.net.br/textos-e-artigos/racismo-ambiental-expropriacao-do-territorio-e-negacao-da-cidadania-2/. Acesso em 5 de dezembro de 2016.
[6] São autores do referido artigo e assessores jurídicos do CIMI (Conselho Indigenista Missionário). Vide referências.
[7] EL PAIS. As comunidades quilombolas que resistem em Oriximiná. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/28/sociedad/1396039867_792085.html. Acesso em 4 de fevereiro de 2017.
[8] MRN. Programa Territórios Sustentáveis. Disponível em http://www.mrn.com.br/pt-BR/Sustentabilidade/Relacoes-com-Comunidade/Paginas/programa-territorios-sustentaveis.aspx, Acesso em 4 de fevereiro de 2017.
[9] Hidrelétricas desterram ribeirinhos. Disponível em: http://www.envolverde.com.br/opiniao/hidreletricas-desterram-ribeirinhos/. Acesso em 4 de fevereiro de 2017.
[10] MPF divulga relatório sobre remoção de ribeirinhos pela hidrelétrica de Belo Monte. Disponível em: http://www.prpa.mpf.mp.br/news/2015/mpf-divulga-relatorio-sobre-remocao-de-ribeirinhos-pela-hidreletrica-de-belo-monte. Acesso em 4 de fevereiro de 2017.
[11] INOCÊNCIO, Nelson. Racismo ambiental: derivação de um problema histórico. Disponível em: http://www3.ethos.org.br/cedoc/racismo-ambiental-derivacao-de-um-problema-historico/#.WHpj51MrLIU. Acesso em 15 de janeiro de 2017.
[12] Favelas, onde as Olimpíadas são uma realidade distante. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/558765-favelas-onde-as-olimpiadas-sao-uma-realidade-distante. Acesso em 4 de fevereiro de 2017.
[13] Racismo Ambiental: expropriação do território e negação da cidadania. Disponível em: http://racismoambiental.net.br/textos-e-artigos/racismo-ambiental-expropriacao-do-territorio-e-negacao-da-cidadania-2/. Acesso em 4 de fevereiro de 2017. Originalmente publicado em Publicado em: SRH (org.). Justiça pelas Águas: enfrentamento ao Racismo Ambiental. Salvador: Superintendência de Recursos Hídricos, 2008. p.11-23.
Bacharel em Direito pelo Centro Universitário da Grande Dourados (UNIGRAN) e especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CRUZ, Felipe Augusto da. Racismo ambiental: aspectos gerais e contribuição jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 abr 2023, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61328/racismo-ambiental-aspectos-gerais-e-contribuio-jurdica. Acesso em: 23 dez 2024.
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