LEANDRO MORAES LEARDINI[1]
(coautor)
Resumo: Análise da modalidade licitatória do diálogo competitivo, instituída pela Lei 14.133/21, sobre as vantagens e expectativas em relação a sua implementação, bem como os riscos e desafios que se apresentam para que tal instituto seja efetivamente aplicado e possa contribuir na eficiência das contratações públicas.
Palavras-Chave: Lei 14.133/21. Modalidade licitatória. Diálogo Competitivo. Eficiência das contratações públicas.
ANALYSIS ON THE INSTITUTE OF COMPETITIVE DIALOGUE: EXPECTATIONS AND CHALLENGES
Abstract: Analysis of the bidding modality of competitive dialogue, established by Law 14.133/21, on the advantages and expectations regarding its implementation, as well as the risks and challenges that arise for such an institute to be effectively applied and to contribute to the efficiency of public procurement.
Keywords: Law 14.133/21. Bidding modality. Competitive dialoque. Efficiency of publica procurement.
Sumário: 1. Introdução; 2. Conceito e natureza jurídica. 2.1. Princípios formadores. 2.2. Pressupostos. 2.3. Procedimento. 3. Expectativas. 4. Desafios. 5. Conclusão. Referências Bibliográficas.
Nos termos do artigo 37, inciso XXI[2] da Constituição Federal, as contratações públicas, sejam elas destinadas à realização de obras, contratação de serviços ou aquisição de produtos deverão ser precedidas de licitação, salvo nos casos especificados em Lei.
Com base nessa imposição prevista na Carta Magna, a Administração Pública, ao longo dos tempos, desenvolveu e se utilizou do processo de licitação, a fim de garantir, de um lado, a ampla competividade entre os licitantes, e, por outro, realizar a contratação que melhor atenda suas necessidades e, consequentemente, o interesse público nela inserido.
Tradicionalmente, o processo de licitação se apresentava como mecanismo unilateral e hierarquizado, com a centralização das informações, na medida em que a Administração Pública detectava a demanda a ela apresentada, colhia as informações necessárias para solucioná-la, e escolhia a alternativa que, em sua análise, melhor atendesse ao problema verificado, com a adoção de todos os procedimentos para o desenvolvimento do processo licitatório, como a elaboração do edital, do contrato administrativo, entre outras medidas. O licitante, nesse cenário, é apenas destinatário do ato unilateralmente produzido pela Administração Pública (edital e contratos) e participa se assim for do seu interesse.
Dessa forma, a licitação tradicional, conduzida de forma unilateral pela Administração Pública, se desenvolve em duas etapas, sendo a primeira voltada à análise do problema, com o levantamento de dados e informações, seguida do cumprimento dos atos formais, como a elaboração do edital e seus anexos, inclusive o contrato administrativo que será celebrado entre aquela e o licitante que se sagrar vencedor do certame; a segunda etapa, por sua vez, cuidará da competição propriamente dita, com a apresentação dos documentos e da proposta comercial exigidos aos licitantes[3].
Embora o modelo tradicional ainda seja o mais utilizado nas contratações públicas, a Administração constatou que, em determinadas hipóteses, não delimitava com precisão o escopo a ser contratado, o que gerava diversos infortúnios, dentre os quais podemos citar: (i) a não resolução da demanda que justificou a contratação; (ii) dispêndio de recursos que, como é de conhecimento geral, são deveras escassos; (iii) inexecução do contrato administrativo, com a litigiosidade da questão, tanto na esfera administrativa quanto na judicial, gerando altos custos para todos os envolvidos.
Diante desse cenário, em atendimento ao princípio da eficiência, também previsto no artigo 37 da Constituição Federal, mas em seu caput, somado à assimetria de informações entre os setores público e privado, observou-se um movimento de aproximação entre eles, com o estabelecimento do diálogo e da troca de experiências, a fim de garantir maior assertividade na contratação e solucionar da melhor forma possível a demanda verificada.
Uma das opções encontradas pela Administração Pública de se aproximar do setor privado, passando a contar com a expertise deste na análise da demanda e definição da solução mais adequada, foi a celebração de termos de cooperação ou a contratação de consultores técnicos. Esta medida não se apresentou razoável, eis que: (i) não deixava de se tratar de uma contratação, ainda que decorrente de inexigibilidade de licitação, com dispêndios significativos do Erário; (ii) não se instaurava a troca de experiência entre as partes, na busca de encontrar a melhor solução, mas simples transferência do problema ao setor privado; e (iii) a solução apontada pelo particular contratado talvez não atendesse a demanda apresentada pelo Poder Público, ou seja, o risco relacionado à baixa assertividade permanecia.
Outra opção encontrada para fomentar a participação do setor privado nas contratações públicas, principalmente na delimitação do escopo, foi a realização de audiências e consultas públicas, especificamente naquelas em que o valor envolvido era expressivo, nos termos do artigo 39 da Lei 8.666/93[4]. A despeito de se tratar de mais um mecanismo de aproximação entre os setores, tal imposição também não solucionou todos os problemas, visto que a sua imposição ocorria em determinada situação e tinha como finalidade mais assegurar o controle social de contratações vultuosas do que aproximar os setores público e privado.
Com o advento da Lei de Concessões (Lei 8.987/95) e, posteriormente, da Lei 11.079/04, que cuida das normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privadas, passou a existir previsão quanto à possibilidade de os estudos de viabilidade técnica, jurídica, econômica e financeira serem desenvolvidos pelo setor privado, por meio de autorização, ou que este pudesse contribuir com o desenvolvimento daquele, através de sugestões.
Regulamentado, primeiramente, por meio do Decreto nº 5.977/2006 e, posteriormente, em 2015, por meio do Decreto nº 8.428, o Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) teve como objetivo aproximar o setor privado, outorgante a este, por sua conta e risco, a realização de estudos, investigações e levantamento de informações, bem como a estruturação de soluções que contribuam para políticas públicas de infraestrutura.
Verifica-se, dessa forma, um movimento por parte da Administração Pública em se aproximar do setor privado, considerando os escassos recursos públicos, bem como a expertise que atores deste setor, via de regra, possuem.
Com a Lei 14.133/21 – nova lei de licitações - não foi diferente. Uma das legislações mais aguardadas pelos operadores do direito foi a nova Lei de Licitações e Contratos, haja vista que respostas para muitos desafios contemporâneos das contratações públicas não estavam sendo concedidas pela legislação que cuidava – e ainda cuida em determinados aspectos – do tema, ou seja, a Lei 8.666/93.
Embora o presente trabalho não busque se debruçar sobre a timidez ou ousadia do legislador quanto às alterações promovidas pela Lei 14.133/21, promulgada no dia 01º de abril de 2021, uma das inovações trazidas foi uma nova modalidade de licitação, o denominado diálogo competitivo.
Com inspiração no ordenamento jurídico da União Europeia – Diretivas 2004/18/UE e 2014/24/UE -, esse novo instituto tem como objetivo possibilitar à Administração Pública de dialogar com o setor privado, em busca de delimitar com precisão as suas necessidades, a fim de que contrate a solução que mais se adeque as suas demandas.
Com efeito, no exercício das suas atividades, mormente na prestação dos serviços públicos, a Administração Pública possui o dever de planejar suas atividades[5], buscando otimizar o dispêndio dos escassos recursos públicos e atingir sua finalidade precípua, qual seja: o interesse público. Contudo, não raras as situações em que o administrador, mesmo conhecedor da demanda que a ele se apresenta, possui dificuldades de selecionar a melhor solução para esta, principalmente em mercados que sofrem com constantes atualizações, como se verifica no campo da tecnologia.
Diante deste cenário, um dos caminhos pensados pelo legislador foi o diálogo competitivo, em que se busca uma maior aproximação entre setores público e privado, a fim de que soluções inovadoras e criativas sejam apresentadas à demanda constatada pela Administração Pública, conferindo maior assertividade na solução escolhida[6] e, consequentemente, maior probabilidade de que o interesse público seja alcançado, com o menor dispêndio de recursos para tal desiderato.
Apesar de mais esse importante passo do ordenamento jurídico na aproximação com o setor privado, possibilitando uma gama de vantagens nas contratações públicas, alguns riscos e desafios se apresentam, os quais poderão fadar ao insucesso essa nova modalidade licitatória.
Afinal, de que forma a Administração Pública coibirá a captura e corrupção de agentes públicos e o direcionamento da licitação ao particular, cuja solução apresentada foi selecionada como a mais adequada para atender a demanda apresentada? De que forma os segredos industriais e autorais dos atores privados serão preservados? Como a Administração Pública incentivará o setor privado a participar desse debate, mesmo não havendo qualquer garantia de que os custos despendidos serão ressarcidos?
Esses, dentre outros, serão alguns dos questionamentos que se buscará responder ao longo do presente trabalho. Além disso, iremos definir o conceito e a natureza jurídica do instituto do diálogo competitivo, apontando os seus princípios informadores. Ademais, serão definidos os pressupostos e procedimentos deste tipo de contratação, bem como serão tratados as vantagens, riscos e desafios que o permearão.
2.Conceito e natureza jurídica
Nos termos do artigo 6º, XLII, diálogo competitivo pode ser definido como “modalidade de licitação para contratação de obras, serviços e compras em que a Administração Pública realiza diálogos com licitantes previamente selecionados mediante critérios objetivos, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades, devendo os licitantes apresentar proposta final após o encerramento dos diálogos.”
Pelo teor do dispositivo acima transcrito, verifica-se que o diálogo competitivo é uma nova modalidade de licitação que, ao lado da concorrência, leilão, pregão e concurso, possibilitam que a Administração contrate obras, serviços e produtos.
A diferença que se verifica entre o diálogo competitivo das demais modalidades, contudo, é a possibilidade de a Administração Pública buscar soluções adequadas às demandas por ela verificadas. É dizer: por meio de uma relação dialógica com o particular[7], a Administração Pública busca soluções inovadoras e que se adequem às demandas que se apresentem.
É uma alternativa ao modelo tradicional de contratação pública, em que a Administração Pública delimita o escopo da obra, serviço ou compra a ser realizada e inicia a competitividade entre os licitantes interessados, culminando em uma contratação por adesão do particular, sem que este participe ativamente da melhor solução a ser adotada no caso concreto.
Considerando que a solução será debatida entre os setores público e privado, mas que a decisão continua sendo de competência da Administração Pública, inclusive no que tange a adoção de mais de uma solução, a depender da demanda que se busca resolver e das conclusões extraídas dos debates, pode-se afirmar que o diálogo seria uma espécie de acordo integrativo entre a Administração e o particular interessado, na medida em que a decisão adotada por aquela será complementada por informações e soluções propostas por este.
A decisão da Administração Pública continua sendo unilateral e imperativa, vez que ela quem decidirá, após a realização do diálogo competitivo, qual a solução que melhor atenda a demanda verificada, mas tal decisão será pautada, complementada, em informações prestadas pelos interessados privados que estabeleceram a relação dialógica com o órgão licitante, o que confere o caráter de acordo integrativo dessa modalidade licitatória[8].
Como visto, o diálogo competitivo é uma nova modalidade de licitação, em que se busca maior interação entre o público e o privado, a fim de conceder melhores condições à Administração Pública na contratação de obras, serviços e produtos.
Trata-se de uma modalidade que denota a alteração da postura da Administração Pública ao longo dos tempos, deixando de lado uma postura mais hierarquizada, consubstanciada em decisões unilaterais, para assumir um comportamento horizontal perante o privado, a partir do diálogo e da troca de experiências, o que veio a ser denominado como governança pública[9].
Pela própria definição, expressa, inclusive, pelo artigo 6º, XLII da Lei 14.133/93, podemos destacar alguns princípios que embasam esse novo instituto, podendo ser destacados ao menos quatro, quais sejam: eficiência, isonomia, competitividade e publicidade.
O princípio da eficiência[10], insculpido no artigo 37, caput, da Constituição Federal é o principal embasamento principiológico do diálogo competitivo, vez que o intuito de tal modalidade é encontrar a solução que mais se adeque as demandas constatadas pela Administração Pública, mitigando risco de contratações que não atendam aos interesses da coletividade e garantindo o dispêndio de recursos públicos de forma adequada. Com a troca de informações com o particular, o qual, em teoria, possui melhores condições financeiras e profissionais tecnicamente mais preparados, a possibilidade de definir a solução que melhor atenda aos interesses da Administração Pública cresce de forma exponencial, evitando, de um lado, o dispêndio de recursos públicos em soluções que não resolverão a demanda que se apresenta, e, por outro, aumentando as chances de que o problema seja resolvido por meio da solução mais adequada[11].
Essa é a razão de existir do instituto do diálogo competitivo: garantir ou, ao menos, mitigar os riscos de adotar medidas que não atendam a demanda verificada, por meio de uma aproximação com o setor privado que, a princípio, possui maior conhecimento e recursos para propor soluções inovadoras, reduzindo os custos, e garantido, dessa forma, a eficiência no trato com a coisa pública. É a busca de uma maior eficiência que induziu o legislador a prever a modalidade do diálogo competitivo.
O princípio da publicidade também se apresenta como alicerce do diálogo competitivo, na medida em que, a despeito da maior proximidade entre a Administração Pública com o particular, o procedimento previsto pela Lei 14.133/21 busca garantir a transparência desta modalidade, com a publicação do edital contendo suas necessidades e exigências e, inclusive, com a gravação em áudio e vídeo das reuniões realizadas entre o órgão licitante e o particular habilitado.
O atendimento deste princípio, inclusive, é um dos desafios que a modalidade ora estudada terá que superar - como se verá mais detidamente adiante - vez que a aproximação do setor público com o privado, embora possa trazer resultados que atendam com efetividade o interesse público, pode gerar o aumento da corrupção e a captura dos agentes públicos, práticas que devem ser veementemente combatidas.
Na verdade, apenas com a adoção de postura clara e transparente por parte da Administração Pública e dos interessados privados, em atendimento ao princípio da publicidade, é que o diálogo competitivo conseguirá auxiliar a Administração Pública no desenvolvimento de soluções que se amoldem aos problemas detectados. Caso contrário, será apenas mais um expediente para desviar recursos públicos.
O princípio da isonomia, por sua vez, pode ser constatado na modalidade do diálogo competitivo, visto que a Administração Pública deve garantir a participação de todos os interessados em dialogar com ela, desde que preencham os requisitos que deverão ser objetivamente determinados no edital que iniciar o procedimento.
Isso não quer dizer que a Administração Pública possa permitir que qualquer interessado participe da licitação, mesmo que não possua expertise necessária para auxiliá-la no desenvolvimento da melhor solução para a necessidade verificada. Em prol do atendimento ao princípio da isonomia, o órgão licitante não pode deixar de exigir amplo conhecimento técnico dos licitantes, sob pena de tumultuar o diálogo com os particulares interessados, de tornar inócua a medida e, consequentemente, não atingir o resultado almejado. Trata-se, na realidade, da aplicação pura do princípio da isonomia, em que os iguais devem ser tratados igualmente e, os desiguais, desigualmente, na exata medida de suas desigualdades. Isso significa que, a despeito de permitir a participação isonômica dos interessados, estes devem preencher os requisitos objetivamente definidos e possam, com base nas suas qualificações técnicas e operacionais, contribuir com a Administração Pública na resolução da demanda por ela delimitada no edital.
Por fim, podemos apontar como um dos princípios informadores do diálogo competitivo o princípio da competitividade, haja vista que, a despeito de o referido instituto prever uma relação dialógica, com maior aproximação entre o setor público e privado, a escolha da solução que melhor atende a demanda do órgão licitante será precedida de disputa entre os interessados habilitados e que tenham participado das discussões com a Administração Pública.
Nos termos dos dispositivos que cuidam do tema na Nova Lei Geral de Licitações, o diálogo competitivo é dividido em duas etapas, sendo que a primeira cuida dos debates e discussões entre os setores público e privado, enquanto a segunda, cujo início ocorre após o término do diálogo entre as partes e a seleção da melhor ou melhores soluções construídas a partir da interlocução entre elas, cuida da fase concorrencial entre os interessados, que deverão, caso assim desejarem, apresentar suas propostas. Ou seja, o diálogo competitivo é composto por duas etapas, sendo que a segunda é vertida pela concorrência entre os interessados que foram habilitados pelo órgão licitante. Não poderia ser diferente, afinal, trata-se de uma modalidade licitatória.
Contudo, dois aspectos merecem destaque em relação ao princípio da competitividade na seara do diálogo competitivo. O primeiro diz respeito à mitigação do referido princípio, na medida em que apenas os interessados habilitados para dialogarem com a Administração Pública poderão apresentar propostas e serem selecionados para desenvolverem a solução tida como adequada. Ao nosso ver, tal limitação, por um lado, não se apresenta adequada, vez que, uma vez desenvolvida a solução que atenderá a demanda apresentada, outros licitantes que, por qualquer razão, inclusive não possuírem capacidade técnica para contribuir nos debates na fase inicial, poderiam atender às exigências da contratação que a Administração irá realizar. O fato de o ator privado não estar apto para contribuir no desenvolvimento de determinada solução, não obsta que ele possua condições de produzir e entregar a solução escolhida pela Administração Pública. Com essa postura, acaba-se por mitigar a competitividade do certame. Por outro lado, o fato de a competitividade ocorrer apenas entre os licitantes que foram habilitados e dialogaram com a Administração Pública, na busca da melhor solução da demanda posta, pode incentivar a participação do setor privado, visto que o ator privado percebe que a probabilidade de que a sua proposta final seja aceita e contratada aumenta significantemente.
Com efeito, um dos desafios que o diálogo competitivo terá que se desvencilhar é atrair o setor privado para contribuir na construção da melhor solução às necessidades da esfera pública. Contudo, essa não será uma tarefa simples, na medida em que o ator privado contabilizará os riscos de despender recursos financeiros e de pessoal no estabelecimento do diálogo com a Administração Pública, sem a garantia de que, ao final do procedimento, será contratado. Com a limitação da fase concorrencial (segunda etapa da modalidade) aos interessados habilitados para a fase de debates e troca de experiências com a Administração Pública, o número de licitantes legitimados a apresentarem proposta na segunda fase da modalidade é reduzido, o que implica, invariavelmente, no aumento das chances de recuperarem os investimentos realizados.
O segundo aspecto cuida da possibilidade da licitação, mormente em sua fase concorrencial (segunda etapa) tornar-se deserta, a depender da escolha realizada pela Administração Pública ao término da fase de diálogos. Isso porque, a Lei nº 14.133/21 possibilita que órgão licitante selecione uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades. Isso significa que a Administração Pública pode fazer uma compilação de soluções extraídas dos debates e discussões realizadas com diferentes atores privados. Tal decisão pode culminar em um produto que (i) pode não ser operacionalmente eficiente; e (ii) não atenda aos interesses dos interessados privados, como o alto custo para o desenvolvimento do produto. Neste cenário, mais uma vez o princípio da competitividade será mitigado, com a desistência de alguns interessados, ou, no pior dos cenários, deixar de existir, com a licitação restando deserta.
Definidos os princípios informadores do instituto do diálogo competitivo, passamos a analisar os pressupostos que devem ser observados em relação à referida modalidade licitatória.
Para que o diálogo competitivo possa ser adotado pela Administração Pública, é necessário que alguns pressupostos sejam por ela observados, sob pena de violação ao princípio da legalidade, de desvio de finalidade e consequente anulação do certame.
Os pressupostos encontram previsão no artigo 32, incisos I e II da Lei 14.133/21, que restringe a adoção do diálogo competitivo às possibilidades elencadas em seus incisos. Neste ponto, temos que nos debruçar sobre o seguinte questionamento: trata-se rol taxativo ou exemplificativo? Em nosso entendimento, embora possa parecer se tratar de rol taxativo, dada a redação do caput do referido dispositivo, que dispõe que “a modalidade diálogo competitivo é restrita”, não nos parece essa ser a melhor interpretação. Isso porque, o inciso II do artigo 32 permite que a Administração Pública utilize o instituto do diálogo competitivo em outras situações que não naquelas definidas em suas alíneas, ao utilizar-se da expressão “com destaque para os seguintes aspectos”. Ora, se o inciso destaca determinados aspectos, é possível inferir que outras situações não foram previstas, mas podem servir de fundamento para a adoção do diálogo competitivo. Tal entendimento não significa, contudo, que a Administração Pública possa se utilizar dessa modalidade de forma indiscriminada. É necessário que ela motive a decisão que optou por essa modalidade de licitação, fundamentando as dificuldades percebidas para que se instaure o diálogo com interessados privados, ao invés de licitar e contratar diretamente.
As duas primeiras hipóteses previstas para a adoção deste tipo de modalidade licitatória são nos casos em que a Administração Pública almeja a contratação cujo escopo demande (i) inovação tecnológica ou técnica; e (ii) a necessidade de que as soluções disponíveis no mercado sejam adequadas às contingências verificadas. A terceira situação que justificaria a adoção do instituto é nos casos em que a Administração Pública não tenha condições de especificar, com a precisão adequada, a solução que busca contratar com a licitação a ser instaurada.
Todas as circunstâncias descritas no parágrafo anterior, de certa forma, definem qual o real propósito do instituto. Isso porque, demonstram que a intenção do legislador ao conceber essa modalidade foi a de propiciar à Administração Pública mais uma ferramenta, um mecanismo, para que ela possa aumentar a assertividade da contratação que será realizada, em atendimento à eficiência que deve pautar suas decisões, com a redução do dispêndio de recursos públicos que, reitera-se, se apresentam cada vez mais escassos.
Sem a aproximação entre os setores público e privado, com o estabelecimento de debates e trocas de experiências que o diálogo competitivo busca implementar, a Administração Pública, não raras as situações, se encontraria na difícil situação de não conseguir delimitar adequadamente as técnicas que possam resolver a demanda a ela apresentada. Da mesma forma, em inúmeras situações, a necessidade verificada pela Administração Pública não seria solucionada sem o desenvolvimento de técnicas e tecnologias que, muitas das vezes, permanecem restritas ao setor privado, dada a alta capacidade do seu corpo técnico e o elevado poder econômico dos atores que o compõe. Outrossim, a despeito de em determinadas situações o mercado fornece algum tipo de solução, a sua adoção não terá a eficácia almejada, correndo o risco desta sequer ser percebida.
O diálogo competitivo também pode ser adotado para propiciar à Administração Pública a possibilidade de definir e identificar, com maior assertividade, os meios e as alternativas que possam satisfazer suas necessidades, em questões que envolvam diferentes soluções e requisitos técnicos necessários à resolução da demanda, bem como definir a estruturação jurídica e financeira do contrato que será celebrado.
Além dos pressupostos materiais que ensejam a adoção do diálogo competitivo, a Lei 14.133/21 determina que alguns pressupostos formais sejam observados.
Um deles é que o diálogo entre Administração Pública e os interessados privados seja conduzido por comissão composta por 3 (três) servidores efetivos ou empregados públicos pertencentes aos quadros permanentes da Administração. Trata-se de uma cautela de fundamental importância, vez que (i) possuem maiores condições de verificar as reais necessidades da Administração Pública, dado o histórico que, teoricamente possuem; (ii) atuarão de forma independente e profissional, sem pressão política, considerando que gozam de estabilidade, buscando assegurar os interesses da Administração Pública.
Nesse aspecto, entendemos que a Lei deveria ter previsto que a comissão, além de ser composta por servidores efetivos ou empregados públicos pertencentes ao quadro efetivo, seja formada por servidores/empregados relacionados, ainda que indiretamente, com a solução que se busca estabelecer e que possuam conhecimentos técnicos para dialogarem com os interessados privados, ainda que tais conhecimentos não sejam suficientes para a escolha da alternativa mais apta sem a aproximação com o setor privado que o instituto do diálogo competitivo busca efetivar.
Caso a comissão seja composta por servidores/empregados que não tenham conhecimento algum do tema ou das especificações técnicas que devem ser consideradas, não será possível verificar, dada a assimetria de informações entre os dialogantes, se a(s) solução(ões) propostas pelos interessados privados atendem à finalidade que ensejou o estabelecimento do diálogo competitivo. Para, ao menos, mitigar essa assimetria de informações técnicas, a Lei 14.133/21 facultou à Administração Pública a contratação de profissional que possa assessorar a comissão na fase dialógica.
A Lei 14.133/21 procurou estabelecer o procedimento a ser seguido pela Administração Pública ao longo da modalidade licitatória em análise, nos termos do parágrafo 1º do seu artigo 32. Vale lembrar, desde já, que o instituto do diálogo competitivo se diferencia das demais modalidades, na medida em que possui duas fases inseridos no mesmo processo. Enquanto a primeira cuida da relação dialógica entre os setores público e privado, a fim de identificar a melhor solução para a demanda verificada pela Administração Pública, a segunda versa sobre a concorrência propriamente dita, com a apresentação de propostas pelos licitantes que foram pré-selecionados na primeira fase.
O início do diálogo competitivo ocorre com a publicação do edital no sítio eletrônico do órgão licitante, contendo, de forma pormenorizada, a demanda verificada e as exigências mínimas que os interessados em dialogar com a Administração Pública deverão considerar, caso queiram participar do certame.
No edital ainda deverão constar o prazo para que os particulares se manifestem quanto ao interesse em participação do diálogo competitivo, sendo que o prazo mínimo previsto em Lei é de 25 (vinte e cinco) dias úteis, bem como os critérios que serão adotados para selecionar os licitantes que demonstrarem interesse em participar da licitação.
Portanto, publicado o edital e transcorrido o prazo previsto no edital, a Administração Pública pré-selecionará os particulares que manifestaram interesse em contribuir com ela na construção da solução que melhor se adeque à demanda verificada, desde que preenchidos os requisitos previamente estabelecidos, instalando-se o diálogo competitivo.
Cabe pontuar que a nova Lei de Licitações não determinou um prazo máximo de diálogo entre a Administração Pública e o interessado privado. Apenas determinou que a Administração poderá permanecer com os debates e discussões até que encontre a solução ou soluções que lhe atendam, desde que decida, nesse sentido, de forma motivada. Este é um aspecto sobre o qual devemos nos debruçar. Por uma perspectiva, faz sentido que o diálogo permaneça até que uma solução seja encontrada, sob pena de as discussões e debates realizados se apresentarem ineficazes, com o dispêndio de recursos públicos e privados, sem a resolução do problema que deu origem ao diálogo.
Ainda, não podemos desconsiderar que os debates envolvem questões complexas que, se de fácil solução fossem, não teria se optado pela modalidade do diálogo competitivo. Por outra perspectiva, contudo, não parece razoável estender indefinidamente o prazo da fase dialógica, pois, se o problema perdurar por muito tempo, pode ser que a solução encontrada não mais consiga resolvê-lo e o interesse público não seja atingido.
A Lei estabelece, ainda, que durante os debates e discussões sobre a solução que melhor se adeque ao problema verificado, o órgão licitante deve observar alguns regramentos, a fim de garantir a legitimidade da modalidade e da contratação que se busca realizar.
A primeira delas diz respeito à vedação que a Administração possui de divulgar informações que possa, de alguma forma, beneficiar determinado licitante. Trata-se de previsão que busca garantir a isonomia entre os licitantes e a ampla competitividade entre eles. Da mesma forma, a fim de garantir segredos industriais e sobre propriedade intelectual, é vedado à Administração revelar soluções e informações apresentadas pelos licitantes, salvo se autorizado por quem as emitiu. Tal regramento não busca apenas preservar direitos industriais e intelectuais do licitante, mas assegurar um ambiente seguro para que o diálogo seja estabelecido, o que acaba por fomentar a maior participação do setor privado e aumenta, consequentemente, a competitividade do certame.
O segundo regramento estabelecido diz respeito à obrigatoriedade que a Administração possui de gravar, em vídeo e áudio, os diálogos realizados com os licitantes pré-selecionados, com o claro intuito de conceber maior transparência à modalidade licitatória e evitar, ou ao menos mitigar, a captura do agente público e que a licitação seja corrompida. Estas gravações, inclusive, deverão ser acostadas aos autos do processo licitatório quando finalizada a fase de diálogo e iniciada a segunda fase da modalidade, qual seja, a fase concorrencial.
Terminada a primeira fase, em que se estabelece a relação dialógica entre as partes, inicia-se a fase concorrencial entre os licitantes que manifestaram interesse em contribuir com a Administração na solução que se apresente mais adequada à demanda verificada.
Antes de abordamos o procedimento desta segunda etapa da licitação, importante tecer uma crítica quanto à mitigação da competitividade entre os licitantes, vez que somente aqueles pré-selecionados podem apresentar propostas na etapa concorrencial. De fato, não vislumbramos razoável justificativa para permitir que apenas aqueles que dialogaram com o Poder Público participem da etapa concorrencial. Pode-se argumentar que se trata de uma forma de incentivar o setor privado a participar da primeira etapa do diálogo competitivo, pois aumentam as chances de ser contratado ao final do certame, mas, ainda assim, a nossa interpretação é que diminui o caráter competitivo do certame, sem razão plausível para tanto.
Mesmo que os atores que participaram da primeira etapa, a princípio, possuam maiores condições de apresentarem propostas mais consistentes, impedir que outros interessados apresentem propostas, quando a solução já tiver sido delimitada pelo órgão licitante acaba por mitigar a competitividade e pode impedir que a melhor contratação seja realizada, considerando não apenas os aspectos técnicos, mas financeiros também.
Não é porque determinado ator privado não tenha manifestado interesse em participar da fase dialógica que ele não tenha condições de atender a contratação que será efetiva. Isso porque, o ator pode não ter participado por diversas razões – não ter tido ciência do edital que iniciou o diálogo competitivo, por exemplo -, que podem não estar relacionadas com a sua condição técnica de agregar ao diálogo estabelecido. Ainda que ele entenda não ter condições técnicas para dialogar com a Administração Pública, isso não significa que não tenha condições para atender a solução definida como ideal.
Feito essa abordagem pontual, passamos a discorrer acerca do procedimento que deve ser observado nessa segunda fase.
Para dar início a ela, a Administração Pública deve declarar o término do diálogo entre os setores, com a juntada dos registros e gravações que foram produzidos na primeira fase no processo licitatório. A partir destas formalidades, a Administração publica novo edital, onde, ao invés de apontar suas necessidades e exigências, como ocorre na etapa dialógica, aponta a solução que foi construída a partir da interlocução com o setor privado.
Com a delimitação do escopo a ser contratado, a Administração confere prazo para que os interessados que dialogaram com ela apresentem suas propostas – a Lei determina que o prazo não pode ser inferior a 60 (sessenta) dias – e seleciona aquela que se apresente mais vantajosa, a partir de critérios objetivos definidos no edital.
Com a apresentação das propostas, dois caminhos se apresentam para a Administração Pública. O primeiro deles é a faculdade que ela possui de requerer esclarecimentos ou ajustes nas propostas, desde que não haja quebra da impessoalidade, com o beneficiamento de determinado licitante (artigo 32, § 1º, inciso IX). O segundo é, como vimos no parágrafo anterior, a escolha da proposta mais vantajosa, a partir dos critérios objetivos definidos pela Administração Pública, com a adjudicação do objeto ao licitante que se sagrou vencedor.
As expectativas em relação ao diálogo competitivo ainda não podem ser medidas, vez que se trata de modalidade recentemente implementada no ordenamento jurídico brasileiro. Até onde temos notícias, encontra-se em andamento o primeiro diálogo competitivo no Brasil, o qual ainda se apresenta em trâmites iniciais, com a publicação de Portaria (Portaria nº 4.951/21) para a definição da comissão que conduzirá os trabalhos. Trata-se do primeiro caso em que esta modalidade é utilizada, iniciada pela Central de Compras da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, do Ministério da Economia, que busca a contratação de solução para o desenvolvimento de medidas sustentáveis à eficiência energética dos prédios situados na Esplanada dos Ministérios.
Embora não existam dados empíricos que embasem qualquer análise em relação às expectativas e vantagens que o diálogo competitivo atingirá (ou não), podemos visualizar aspectos positivos que podem emergir de tal instituto – o que teria, inclusive, motivado a sua inclusão como modalidade licitatória -, caso ele seja utilizado de forma adequada.
O primeiro aspecto positivo que pode emergir do diálogo competitivo e que, ao final das contas, é a sua essência, é possibilitar que a Administração Pública contrate soluções com maior assertividade, em consonância com o princípio da eficiência. A partir deste cenário, diversos desdobramentos serão, a princípio, observados, quais sejam: (i) aumento do cumprimento integral das obrigações contratuais pelo licitante contratado, vez que participou da construção da solução contratada e sabe exatamente os termos da sua contratação, evitando litígios na esfera administrativa e judicial; (ii) redução do desperdício de recursos públicos, gerando sustentabilidade econômica, considerando a contratação de solução adequada e que busca atender de forma efetiva a demanda verificada.
Além do aumento da eficiência, o diálogo competitivo pode trazer maior legitimidade à solução contratada, visto que a sua contratação será precedida de debates e trocas de experiência, ou seja, os prós e contras serão sopesados pela Administração Pública ao longo do debate instaurado com os interessados privados, o que demonstra maior cautela na adoção de determinada decisão.
O Banco Mundial[12], ao tratar do instituto da PMI, que se assemelha ao instituto do diálogo competitivo no que tange essa aproximação entre os setores público e privado, é categórico ao elencar as vantagens que a participação do particular na estruturação de soluções pode trazer. Vejamos:
“Um procedimento de manifestação de interesse bem projetado pode estimular a inovação, incentivando entidades privadas ou outras organizações a propor novas tecnologias ou soluções. Os fornecedores privados de tecnologia podem ter mais conhecimento sobre possíveis soluções para os desafios de infraestrutura do que os agentes públicos. Permitir que essas entidades apresentem suas ideias pode gerar soluções mais inteligentes, sustentáveis e econômicas.”
Outro aspecto que ainda pode ser salientado do referido instituto é a possibilidade de desenvolver técnica e intelectualmente os servidores que participarem dos diálogos, haja vista que haverá apropriação do conhecimento técnico que o particular dialogante possui, já que o setor demanda constante especialização e atualização dos profissionais que nele atuam, considerando a grande competitividade imposta pelo capitalismo, com a consequente diminuição da assimetria de informações entre os setores público e privado.
Assim, o diálogo competitivo pode possibilitar que a Administração Pública encontre soluções inovadoras, que atendam, de fato, as suas necessidades, possibilitando o atingimento efetivo do interesse público, por meio de contratações eficientes e que atendam as expectativas geradas pela licitação realizada.
A despeito de se tratar de uma tentativa interessante de adequar as dificuldades da Administração Pública de contratar no cenário atual, em que se percebe uma grande escassez de recursos públicos e limitação técnica dos agentes públicos na definição da solução que melhor atenderá ao interesse público, somado as constantes inovações tecnológicas em um mundo globalizado e digital, não serão poucos os desafios e riscos que esse novo instituto encontrará.
O primeiro risco que deverá ser superado cuida da possibilidade de captura do interesse público por interessados particulares ilegítimos[13], que visam atender interesses próprios, ao invés de proporcionar real e efetiva solução à demanda apresentada pela Administração Pública. Isso decorre do instinto inerente ao ator particular que, em regra, busca sempre aumentar a sua lucratividade, sem se preocupar em propiciar a resolução efetiva do problema que ensejou a sua contratação. Tal aspecto pode ser facilitado, inclusive, pela assimetria técnica dos setores público e particular, donde os servidores que compõe a comissão que dialogará com o particular pode não ter conhecimento apurado para impugnar o que está sendo proposto pelo particular, sendo induzido a erro de que a solução apresentada atende adequadamente o interesse público almejado com a contratação.
Outro risco que decorre de tal instituto é a possibilidade de captura do agente público e o aumento da corrupção nas contratações públicas, com o favorecimento de determinado interessado particular, em franca violação aos princípios que norteiam o procedimento licitatório, em especial o da moralidade. Tal risco decorre da maior aproximação entre os setores, com o estabelecimento de debates entre a Administração Pública e o interessado privado[14].
Para que isso não ocorra ou, ao menos, seja mitigado, é necessário que todo o processo seja realizado com o maior grau de transparência e, se possível, com maior controle social, por meio de audiências públicas e motivação acurada de todas as decisões proferidas pela Administração Pública.
Paralelo a esse risco, outro desafio que a Administração Pública terá que superar é atrair o setor privado para que com ela dialogue e colabore no desenvolvimento de solução que atenda adequadamente a demanda verificada, já que há, invariavelmente, o dispêndio de tempo e recursos na realização dos debates, sem que haja qualquer garantia de que, ao final do diálogo, a sua proposta será declarada vencedora da etapa concorrencial do certame licitatório.
Esse é um dos aspectos severamente criticados pela doutrina em relação ao Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI). Tal desafio é exponencialmente majorado pela ausência de limitação temporal para que o diálogo se encerre, dispondo a lei que o mesmo perdurará até que a Administração Pública encontre a solução mais adequada à demanda que busca solucionar. Isto é, até que ponto o particular se sentirá atraído a dialogar com a Administração Pública, sem saber com precisão o tempo que esse processo perdurará e de que será, ao final, contratado para desenvolver a solução escolhida?
Aliás, a questão da ausência de previsão de tempo para o término da fase dialógica não impacta apenas na atratividade do setor privado. A Administração Pública também terá que analisar o custo de alocar servidores por prazo indeterminado para dialogar com o setor privado, em prejuízo de outras atribuições que lhes competem. Ainda, a seleção de proposta depois de largo prazo pode impactar no resultado prático de implementar determinada solução, pois a demanda que a justificou pode ter se modificado ou deixado de existir.
Outro desafio que a Administração Pública enfrentará na implementação do diálogo competitivo, o qual está diretamente atrelado ao desafio de garantir atratividade aos particulares da modalidade ora analisada, é em garantir ao particular de que serão resguardados os segredos industriais e a propriedade intelectual que, porventura, sejam apresentados ao longo dos diálogos estabelecidos entre os setores.
A despeito de a Lei, especificamente em seu artigo 32, § 1º, inciso IV, impor à Administração Pública que não divulgue os segredos industriais revelados pelos interessados particulares, estes devem ter plena confiança de que tal vedação será cumprida integralmente por aquela, sob pena de afastá-los a contribuir com o desenvolvimento da solução que melhor atenda aos interesses da coletividade. Até porque, se não houver observância de tal obrigação, pode haver riscos imensuráveis ao particular, inclusive com o comprometimento de sua atividade, não bastando a simples indenização pelos danos experimentados.
Ademais, a Administração terá que superar algumas barreiras de cunho orçamentário, visto que a solução selecionada ao final do diálogo competitivo pode apresentar custo muito superior à dotação orçamentária que disponha. Para não incorrer em crime de responsabilidade fiscal, será necessário que este aspecto seja detalhadamente analisado e regulamentado, sob pena de selecionar a proposta que melhor lhe atenda, sem que disponha dos recursos financeiros necessários.
Assim, mesmo que se trate de uma ferramenta que pode trazer benefícios à Administração Pública, alguns desafios e riscos se apresentam e terão que ser superados, sob pena do instituto se tornar letra morta na Lei.
A aproximação entre os setores público e privado é um movimento que há algum tempo se observa, cujos impactos podem trazer inúmeros benefícios à Administração Pública, principalmente por contar com contribuições de ordem técnica e intelectual de profissionais que, em regra, apresentam maior conhecimento sobre determinado seguimento do mercado.
Nesse sentido, a Lei 14.133/21 trouxe uma nova modalidade licitatória, com inspiração em modelo da União Europeia, denominado diálogo competitivo, que busca estabelecer interações dialógicas entre os setores público e privado, a fim de que a Administração Pública contrate a solução que mais se adeque à demanda verificada.
Trata-se de instituto que pode contribuir com a eficiência da Administração Pública nas contratações que realizará, com a redução de desperdício do dinheiro público, principalmente em um cenário em que a sua escassez é evidente, trazendo soluções inovadoras às demandas que se constatam, bem como proporcionando desenvolvimento técnico e intelectual dos servidores públicos, com a redução da assimetria de informações que se verifica entre os setores.
Todavia, riscos e desafios terão que ser superados para que a modalidade seja pouco ou, o que é mais grave, mal utilizada, com destaque para os riscos de corrupção e captura dos agentes públicos, dada a aproximação entre os setores, assim como garantir que haja dotação orçamentária para realizar a contratação da solução selecionada ao final do certame. A Administração Pública também terá que se certificar que o interessado privado não está buscando apenas garantir interesses próprios, especificamente o lucro, ao invés de contribuir no desenvolvimento de uma solução que efetivamente atenda às suas necessidades.
Para que esses riscos e desafios não minem a eficácia da modalidade do diálogo competitivo, será necessário que a Administração se planeje adequadamente (governança), assim como adote todas as cautelas necessárias e atue de forma transparente, conferindo legitimidade à relação com o setor privado e à contratação que decorrerá desses debates e trocas de experiências.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 30ª Ed.
DAL POZZO, Augusto, et al. Parcerias Público-Privadas: teoria geral e aplicação nos setores de infraestrutura. Belo Horizonte, Fórum, 2014.p. 51-69.
FILHO, Marçal Justen, SCHWIND, Rafael Wallbach (coord.). Parcerias Público Privadas: reflexões sobre os 10 anos da Lei 11.079/2014. 1ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2015. p. 113 - 207.
SUNDFELD, Carlos Ari, JURKSAITIS, Guilherme Jardim (coord.). Contratos Públicos e Direito Administrativo. São Paulo, Malheiros, 2015. p. 170 -188.
TAFUR, Diego Jacome Valois, JURKSAITIS, Guilherme Jardim, ISSA, Rafael Hamze (coord.). Experiências Práticas em Concessões e PPP: estudos em homenagem aos 25 anos da Lei de Concessões. São Paulo, Quartier Latin, 2021.p. 137 - 158
[1] Mestrando em direito administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em direito público pela Escola Paulista da Magistratura (EPM). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Itu (Faditu). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo Sancionador (Idasan) e do Centro para Estudos Empírico-Jurídicos (CEEJ). E-mail: [email protected]
[2] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(...)
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
[3] Não será desenvolvido melhor o tema, pois não se trata do escopo do presente trabalho e as modalidades licitatórias possuem especificidades que alteram os procedimentos nelas adotados, inclusive com a inversão de fases em que os licitantes devem apresentar documentos de qualificação e as propostas comerciais. Nos ateremos a um panorama geral, com o objetivo de garantir que a narrativa tenha maior fluidez e possa ser melhor compreendia pelo leitor.
[4] Art. 39. Sempre que o valor estimado para uma licitação ou para um conjunto de licitações simultâneas ou sucessivas for superior a 100 (cem) vezes o limite previsto no art. 23, inciso I, alínea "c" desta Lei, o processo licitatório será iniciado, obrigatoriamente, com uma audiência pública concedida pela autoridade responsável com antecedência mínima de 15 (quinze) dias úteis da data prevista para a publicação do edital, e divulgada, com a antecedência mínima de 10 (dez) dias úteis de sua realização, pelos mesmos meios previstos para a publicidade da licitação, à qual terão acesso e direito a todas as informações pertinentes e a se manifestar todos os interessados.
[5] Nesse sentido são os ensinados de Augusto Neves Dal Pozzo, ao asseverar que “é nítido que a atividade de planejamento é um dever do Estado, que, antes de tudo, deve primar por diagnosticar as necessidades daquilo que se ressente o interesse público sob sua tutela e propor metas e expectativas e se antecipar, tanto quanto possível, às conjunturas futuras para que não haja solução de continuidade na prestação dos serviços sob seu encargo.” (Parecerias Público-Privadas: teoria geral e aplicação nos setores de infraestrutura, p. 56)
[6] Segundo a lição do professor Celso Antônio Bandeira de Melo, da qual nos filiamos, a dialeticidade efetiva entre Administração Público e Administrado no processo administrativo “concorre para uma decisão mais bem-informada, mais consequente, mais responsável, auxiliando, assim, a eleição da melhor solução para os interesses públicos em causa, pois a Administração não se faz de costas para os interessados, mas, pelo contrário, toma em conta aspectos relevantes por eles salientados e que, de outro modo, não seriam, talvez sequer vislumbrados.” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 30ª Ed. p. 506.
[7] Ao tratar sobre as PMIs, Luís Felipe Valerim Pinheiro e Clara Araúdo Coutinho são assertivos ao afirmarem que “a iniciativa privada especializada, com a criatividade inerente ao ambiente de liberdade, consiste no melhor polo irradiador de soluções, inclusive para os projetos em parceria com o Poder Público.” in Experiências Práticas em Concessões e PPP. Estudo em homenagem aos 25 anos da Lei de Concessões. Vol. I – Estruturação e Arbitragem. São Paulo: Quartier Latin, 2021. p. 153
[8] Sobre acordos substitutivos e integrativos, consultar Juliana Bonacorsi de Palma na obra Sanção e Acordo na Administração Pública, Editora Malheiros.
[9] “Conjunto de relacionamento negociados. Esta concepção alternativa de elaboração de políticas, implementação e enforcement é dinâmica, não hierarquizada e descentralizada, objetivando se promover entre atores públicos e privados.” FREEMAN, Jody, Collaborative Governance in the Administrative State, 1997-1998, p. 22-33., apud in Juliana Bonacorsi Palma, p. 116
[10] Ao tratar do instituto da PMI, Augusto Dal Pozzo, reconhece que este serve para majorar a eficiência da decisão administrativa, vez que “propicia-se o recebimento de elementos de ordem jurídica, econômica e técnica extremamente relevantes ao aperfeiçoamento de seus termos.” DAL POZZO, Augusto Neves. Procedimento de manifestação de interesse e o planejamento estatal da infraestrutura. In: DAL POZZO, Augusto Neves; VALIM, Rafael; AURÉLIO, Bruno; FREIRE, André Luiz (Coord.). Parcerias Público-Privadas: teoria geral e aplicação nos setores de infraestrutura. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 61
[11] Como leciona Juliana Bonacorsi Palma, “os resultados devem ser satisfeitos da melhor forma possível considerando a melhor tecnologia disponível e a reserva orçamentária pública, sem perder de conta a implantação das políticas públicas relacionadas.”
[12] in Experiências Práticas em Concessões e PPP. Estudo em homenagem aos 25 anos da Lei de Concessões. Vol. I – Estruturação e Arbitragem. São Paulo: Quartier Latin, 2021. p. 153
[13] Dinorá Adelaide Musetti Grotti e Mário Saadi, ao tratar do Procedimento de Manifestação de Interesse, instituto que se assemelha em diversos aspectos à modalidade analisada no presente estudo afirmam que a aproximação entre os setores público e privado “envolve uma série de cautelas e eventuais riscos (inclusive o de captura do interesse público por interesses privados ilegítimos), que não podem ser olvidados, sob pena de promover a ineficiência econômica ou a inobservância de princípios basilares do direito administrativo.” in Parcerias público privadas: reflexões sobre os 10 anos da Lei 11.079/2004 / Marçal Justen Filho, Rafael Wallbach Schwind, coordenadores – 1ª ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 154
[14] Interessante argumento trazido por Guilherme F. Dias Reisdorfer é de que os debates entre os setores sempre ocorreram e que a institucionalização de tal prática, ao invés de aumentar a corrupção e a captura, torna-a mais transparente e legítima, a partir de um controle social mais incisivo. Vejamos: “Afinal e como a experiência revela, essa interação não depende de vias institucionalizadas para existir – aliás, é a ausência dessas vias que propicia conversações informais e tendencialmente imunes ao controle. Portanto, a institucionalização de vias de diálogo serve não para “privatizar” ou “capturar” o desempenho das atividade estatais, mas para tornar transparentes esses contatos.” in Parcerias público privadas: reflexões sobre os 10 anos da Lei 11.079/2004 / Marçal Justen Filho, Rafael Wallbach Schwind, coordenadores – 1ª ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 190
Mestrando em direito administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (COGEAE). Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BERTOLDI, Luiz Henrique Alves. Análise sobre o instituto do diálogo competitivo: expectativas e desafios Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 abr 2023, 04:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61330/anlise-sobre-o-instituto-do-dilogo-competitivo-expectativas-e-desafios. Acesso em: 25 dez 2024.
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