RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo principal analisar sobre a possibilidade de deserdação por abandono afetivo, uma vez que há na jurisprudência pátria uma valorização do afeto nas relações parentais, através da análise casos concretos e revisão bibliográfica, afim de discutir sobre a possibilidade de atualização do ordenamento jurídico brasileiro frente às transformações sociais que envolvem as instituições como a família, para assegurar que os casos concretos tenham decisões assertivas e que tragam pacificação, prevalecendo à justiça.
Palavras-chave: Afetividade. Deserdação. Família. Sucessões.
SUCCESSION EXCLUSION: THE POSSIBILITY OF DISINRECT DUE TO AFFECTIVE ABANDONMENT
ABSTRACT: The main objective of this work is to analyze the possibility of disinheritance due to affective abandonment, since there is in the homeland jurisprudence an appreciation of affection in parental relationships, through the analysis of concrete cases and bibliographical review, in order to discuss the possibility of updating the Brazilian legal system in the face of social transformations that involve institutions such as the family, to ensure that concrete cases have assertive decisions and that bring peace, prevailing justice.
Keywords: Affectivity. Disinheritance. Family. Successions.
1.CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Hodiernamente, tornou-se assunto na mídia o desejo do repórter aposentado Cid Moreira em deserdar seu filho, Roger Felipe Moreira, por abandono afetivo, já que há um afastamento sentimental entre pai e filho, que travam batalha judicial em uma ação ajuizada por Roger requerendo indenização por danos morais.
Diante disso, o presente trabalho discute o disposto nos artigos 1.814 e 1.962 do Código Civil, a fim de saber se é possível aplicá-lo aos casos de deserdação quando descendentes abandonam seus genitores afetivamente.
Para o desenvolvimento deste tema, apontam-se seus objetivos, dentre os quais analisa a possibilidade de retirar um herdeiro necessário do rol de herdeiros, caso este abandone o autor da herança afetivamente. Objetiva ainda discutir sobre o princípio da solidariedade familiar enquanto princípio constitucional e obrigatório das relações parentais e esclarecer sobre o fato de o afeto ser algo espontânea ou uma obrigação dentro da estrutura familiar.
Ademais, este artigo examinará se o rol de deserdação, presente nos artigos 1.814 e 1.962 do Código Civil, é ou não um rol taxativo e também observará se é necessário ou não que haja uma lei que prevê sobre a possibilidade de deserdação por abandono afetivo ou se o Poder Judiciário poderá analisar caso a caso.
Insta salientar que aplicar-se-á a metodologia de revisão bibliométrica, com o fito de assegurar uma fundamentação teórica consistente, com base em coleta de dados. Alem disso, realizou-se a limitação da pesquisa por meio do título e palavras-chaves.
Deveras, este artigo visa analisar a possibilidade de deserdar um herdeiro em decorrência do abandono afetivo, tendo em vista o descumprimento do dever de família. Para tanto, desenvolveu-se o estudo quanto aos princípios jurídicos relevantes à proteção da pessoa idosa, a análise dos principais prontos do Estatuto do Idoso, bem como se pesquisou sobre a deserdação, latu sensu, e sua aplicação em casos de abandono afetivo de filhos, como modo de otimizar a aplicação dos princípios da afetividade e solidariedade no Direito Sucessório, que são constitucionais e alicerces também do Direito de Família.
2 PRINCÍPIOS DE PROTEÇÃO AO IDOSO
Cediço é que o ordenamento jurídico brasileiro é pautado não apenas na lei positivado, mas também nos princípios gerais do direito. Não obstante, pode-se afirmar que os princípios, geralmente são extraídos da própria lei. Antes mesmo de adentrar aos princípios presentes na lei de proteção ao idoso, é importante destacar aqueles que estão presentes na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88).
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana prevista no artigo 1°, inciso III da Carta Magna (BRASIL, 1988), é um dos princípios basilares do direito, visto que é de extrema relevância que toda e qualquer pessoa, sobretudo aqueles mais vulneráveis, como é o caso do idoso.
Para mais, há também o princípio da Solidariedade familiar, que é um dos principais que regem o direito de Família e Sucessões, é extraído do art. 3º, I, da CRFB/88, com a finalidade de proteger o mais frágil na relação familiar, afinal, um dos objetivos fundamentais da República é construir de uma sociedade livre, justa e solidária (CASSETTARI, 2018)
Há também o princípio da afetividade, que assevera sobre como é relevante que os familiares mantenham relação afetiva próxima, afinal, as famílias não são constituídas apenas e somente de vínculo biológico, muito pelo contrário, um dos principais conexões para e constituição familiar é o afeto entre as pessoas., já que ela se forma quando há vínculo afetivo entre as pessoas (TARTUCE, 2017).
À vista disso, Tartuce (2017) afirma que o princípio da Afetividade fundamenta a teoria do desamor, que originou o questionamento jurídico sobre a responsabilidade afetiva parental, sendo que, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), já decidiu sobre a possibilidade de indenização por dano moral, mesmo que, para muitos, o carinho e afeito não seja algo que pode ser obrigado, mas há sim uma responsabilidade civil para o filho e também para o genitor que abandona afetivamente o seu parente (IBDFAM, 2021).
Por fim, insta elucidar que há, inclusive, um projeto de lei em tramitação desde 2008, PL 4294/2008, que tem por objetivo incluir parágrafo no artigo 1.632 do Código Civil de 2002 e ao art. 3° da Lei nº 10.741, de 1ª de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), que determina a sobre a indenização por dano moral em razão do abandono afetivo (BRASIL, 2008).
1 ESTATUTO DO IDOSO E NORMAS GERAIS DE PROTEÇÃO AO IDOSO
O envelhecimento da população mundial é um fenômeno recente. No Brasil não é diferente. O crescimento da população idosa é assunto relevante, pois vem causando impacto em diversas demandas sociais, que são de responsabilidade do Estado.
Fato é que cabe ao Poder Público o desenvolvimento de ações para que a velhice das pessoas seja digna, com boas condições físicas e mentais. O idoso precisa ser inserido na sociedade e, ao mesmo tempo, protegido de abusos que possa sofrer por sua situação vulnerável.
Para tanto, o Governo Federal instituiu a Lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso) e outras normas que protegem a pessoa idosa. Veja os principais pontos conquistados por esta legislação.
3.1 Garantias de Direitos Fundamentais
O Estatuto do Idoso é uma norma pautada na Constituição Federal, pelos princípios da dignidade da pessoa humana e cidadania, com o fito de assegurar os direitos fundamentais às pessoas idosas.
Salienta-se que “em um mundo competitivo e excludente, o idoso, dadas as limitações naturais de ordem biológica, de regra é visto como portador de um déficit econômico e social, cujo resgate e busca da isonomia passa a ser objetivo da tutela jurídica específica” (INDALENCIO, 2007).
Portanto, o Estado estabeleceu a proteção dos direitos fundamentais, como o Direito à Vida, que trata o envelhecimento como direito personalíssimo, sendo necessário protegê-lo, conforme artigo 1º do Estatuto do Idoso (BRASIL, 2003). Os idosos têm a vida e saúde protegidas pelo Estado, para que seu envelhecimento seja saudável, com qualidade de vida.
Ademais, os idosos contam com liberdade de opinião e expressão, de ir, vir e permanecer em espaços públicos, liberdade de participar na vida política além de participar na vida familiar e comunitária, nos dizeres do artigo 10, caput §1º da Lei 10.741/03 (BRASIL, 2003).
Importante ressaltar o direito ao respeito, que “consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, de valores, ideias e crenças, dos espaços e dos objetos pessoais” (BRASIL, 2003).
De fato, o direito ao respeito é uma garantia fundamental para que o idoso viva em sociedade, isto porque este é necessário até para a convivência familiar, a fim de evitar abusos e abandonos, físico ou emocional, no interior das famílias. Desta forma, o zelo pela dignidade do idoso é resguardado pelo Estado e toda sociedade.
Outro modo de zelar pela pessoa idosa é permitir que lhes sejam prestados alimentos, para que seu sustento esteja garantido. Como explana artigo 12 do Estatuto do Idoso, os alimentos se tratam de uma obrigação solidária, podendo o idoso escolher quem será o prestador desta responsabilidade (BRASIL, 2003). E quem são os prestadores?
A lei impõe aos pais (art. 1.568 c/c art. 1.694) o encargo de prover a mantença da família e, por decorrência jurídica, a eles compete sustentar e educar os filhos. Da mesma forma, aos filhos compete sustentar os pais, na velhice e quando necessitam de auxílio. Por isso, os romanos denominavam a obrigação officium e pietas, expressões que traduzem o fundamento moral do instituto, o dever de mutuamente, se socorrerem os parentes, na necessidade (LEITE, 2005).
Os alimentos devem ser prestados pelos seus familiares, salvo a exceção de não possuírem condições financeiras, quando a responsabilidade passa a ser do Estado, por meio do Benefício de Prestação Continuada (BPC), estabelecido pela Lei 8.742/93 (Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS). A obrigação alimentar decorre do principio da solidariedade entre os parentes, de suma importância para um envelhecimento tranquilo.
3.2 Importantes Medidas de Proteção
Com o fito de proteger os direitos fundamentais reconhecidos aos idosos, o legislador do Estatuto do Idoso determinou que medidas de proteção fossem adotadas sempre que aqueles estejam ameaçados ou violados (BRASIL, 2003).
Os incisos do artigo 43 do Estatuto do Idoso afirmam que tais violações podem decorrer da ação ou omissão da sociedade e Estado, bem como pela ausência, omissão ou abuso da família, curador ou entidade de atendimento, ou ainda em razão de sua condição pessoal (BRASIL, 2003).
Ao aplicar as medidas de proteção, o legislador ressalta a importância de considerar o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários (BRASIL, 2003), podendo aplicar as seguintes penalidades, conforme os incisos do artigo 43 do Estatuto do Idoso:
I - encaminhamento à família ou curador, mediante termo de responsabilidade;
II - orientação, apoio e acompanhamento temporários;
III - requisição para tratamento de sua saúde, em regime ambulatorial, hospitalar ou domiciliar;
IV - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a usuários dependentes de drogas lícitas ou ilícitas, ao próprio idoso ou à pessoa de sua convivência que lhe cause perturbação;
V - abrigo em entidade;
VI - abrigo temporário (BRASIL, 2003).
Assim, quando o Ministério Público ou Poder Judiciário agir, vão considerar o melhor interesse da pessoa idosa. Ressalta-se que o Poder Judiciário é responsável pela efetivação dos direitos da pessoa idosa, que são tutelados pelo Estatuto do Idoso, com o intuito de proteger uma minoria vulnerável.
Cediço é que esta legislação conflita com outras demandas, como as financeiras, sendo necessário que o Judiciário tenha sensibilidade ao aplicar os dispositivos normativos à sociedade. Entretanto, quando o assunto é o Poder Judiciário, “poucos são os estados da Federação que criaram varas especializadas e exclusivas do idoso, e a prioridade na tramitação dos processos continua letra morta” (ALCÂNTARA, 2016). Deste modo, a implantação dos direitos dos idosos não é viabilizada.
De igual relevância, há a atuação do Ministério Público, o qual protege os direitos difusos, coletivos e individuais indisponíveis ou homogêneos. Deve-se enfatizar que:
Tanto os interesses individuais homogêneos como os coletivos originam-se de fatos comuns; entretanto são indeterminados os titulares de interesses difusos, e o objeto seu interesse é indivisível; já nos interesses individuais homogêneos, os titulares são determinados ou determináveis, e o dano ou a responsabilidade se caracterizam por sua extensão divisível ou individualmente variável (MAZZILLI, 1997).
Ora, o Estatuto do Idoso apresenta situações que geram a tutela coletiva, por serem de interesse próprio do idoso, permitindo que o Ministério Público atue por meio de ação civil pública na defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, mesmo que para tanto seja feita a defesa de direito de idoso único. É por isso que em determinadas comarcas há uma promotoria especializada para defesa do idoso, como em Belo Horizonte/MG, com a 22ª Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos do Idoso.
Ocorre que, apesar da necessária atuação dos órgãos públicos, há um claro despreparo da justiça brasileira em atender aos idosos, por falta de treinamentos, excesso de demanda, carência de pessoal e insensibilidade para o tema, o que torna difícil o acesso daqueles que mais precisam da prestação jurisdicional.
2 DESERDAÇÃO
O instituto da Deserdação está disposto no Capítulo X do Código Civil Brasileiro de 2022, no artigo 1.961 e seguintes. Para Pacheco (2018) a inteligência do referido artigo tem como objetivo penalizar o herdeiro, que, por si só, produzem impactos negativos pessoais ao sucessor.
Em síntese, a deserdação é uma decisão de última vontade do legatário, uma vez que o sucessor dar causa a tal atitude. Não há, outrora possibilidade de deserdar um incapaz, uma vez que este não responde por seus próprios comportamentos (PACHECO, 2018).
As causas permitidas para deserdação estão bastante claras nos artigos 1.961 a 1.965, que são:
Art. 1.962. Além das causas mencionadas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos descendentes por seus ascendentes: I - ofensa física; II - injúria grave; III - relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto; IV - desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade.
Art. 1.963. Além das causas enumeradas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos ascendentes pelos descendentes: I - ofensa física; II - injúria grave; III - relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta; IV - desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade (BRASIL, 2002).
Os artigos falam apenas da deserdação do ascendente pelos descendentes, não trazendo a previsibilidade da deserdação dos ascendentes, que em muitos casos herdam de seus filhos (BRASIL, 2002).
Tartuce assevera que a deserdação é um ato de última vontade que afasta herdeiro necessário, sendo necessário a confirmação por sentença. Por isso é que a deserdação é tratada pelo CC/2002 no capítulo próprio da sucessão testamentária (TARTUCE, 2017). Nesse sentido o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu (SÃO PAULO, 2023):
APELAÇÃO – Ação de deserdação – Irmão do de cujus pretende excluir a esposa do falecido alegando prática de maus tratos contra o cônjuge antes de sua morte – Não acolhimento pelo d. iJuízo a quo – Acerto – Irresignação do autor – Descabimento – A deserdação deve constar expressamente em testamento – A inexistência de disposição testamentária excluindo o herdeiro necessário impede a configuração de hipótese de deserdação – Legitimidade para ajuizar a ação restrita àqueles que se beneficiam pelo afastamento do excluído – RECURSO IMPROVIDO. (TJSP, Apelação Cível nº 1010464-16.2021.8.26.0007, 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator Desembargador Fernando Reverendo Vidal Akaoui, Julgado em 01/03/2023).
Desse modo, se faz necessário que o autor da herança deixe expresso em testamento sua vontade de declarar indigno o seu herdeiro necessário e qual motivo, daqueles dentre os já previstos em lei.
É importante destacar que ser faz necessário o ajuizamento da ação de deserdação para que seja analisado pelo judiciário, com vistas ao Ministério Público (MP) quando há casos que envolvam menores, idosos e pessoas com deficiência e demais tutelados pelo MP. Mesmo os casos em que o herdeiro aceite a exclusão da herança, é necessário que haja a judicialização da ação de deserdação sucessória (IBDFAM, 2017)
3 DESERDAÇÃO POR ABANDONO AFETIVO DO FILHO
Como supra explanado, a deserdação é uma penalidade civil aplicada ao herdeiro necessário por meio do testamento. Deste modo, pode o pai realizar um testamento que deixe seu filho sem nenhum patrimônio, na ocasião de sua morte.
Fato é que as causas que autorizam aos ascendentes a excluírem os descendentes de sua herança estão prescritas pelos artigos 1814 e 1963 do Código Civil, os quais apresentam rol taxativo e não incluem a deserdação por abandono afetivo.
Contudo, é possível considerar o abandono afetivo como causa de deserdação e excluir o descendente? Para responder tal questão é preciso compreender o que é abandono afetivo, afinal é o cerne da exclusão do filho, por meio do testamento.
3.1 Abandono Afetivo
O afeto é resultado da afeição, que por sua vez significa um sentimento de amor, simpatia, amizade e pendor para alguém ou alguma coisa, como dispõe o Nôvo Dicionário Brasileiro Melhoramentos (1970).
Todas as relações familiares devem ser pautadas no principio da afetividade, que regem o direito de família.
O afeto é o novel princípio do direito de família. Embora não esteja expresso no texto constitucional, decorre naturalmente da valorização constante da dignidade da pessoa através da externalização dos sentimentos em suas relações (VESENTINI, 2013).
Logo, família não é relacionada apenas aos laços sanguíneos, mas sim ao sentimento, com fulcro no amor, amizade, solidariedade e afeto. É necessário haver uma real interação, presença e cuidado do outro para que haja uma socioafetividade, indo além do mero cumprimento dos deveres familiares e assistência mútua.
Quando não há afetividade na relação parental, ocorre o abandono afetivo, ocasião em que estão ausentes os deveres de proteção e cuidado, os quais devem ser cumpridos por pais e filhos. Assim, o afeto passa a ser um dever jurídico.
Ressalta-se que “o abandono afetivo diferencia-se do abandono material, uma vez que este último está pautado na falta de assistência em relação às questões econômicas e materiais” (VIEIRA, 2021).
O abandono afetivo trata-se de um distanciamento emocional, que inviabiliza a intimidade dentro do núcleo familiar e causa danos maiores do que a falta de prestação assistencial. Pode-se dizer que “a falta de afeto fere diretamente os sentimentos, o que pode levar anos ou até nunca cicatrizar” (BOIN, 2016).
O idoso que é abandonado por seus filhos podem desenvolver quadros psiquiátricos, como depressão, ou doenças psicossomáticas. Isto porque, independente da idade, qualquer pessoa precisa de afeto para sobreviver.
Diante das graves consequências que o abandono afetivo gera, parece razoável que o ordenamento jurídico permita que uma dura sanção seja aplicada, para educar e esclarecer como as pessoas devem agir, a fim de não se beneficiar de sua rudeza em âmbito familiar. Esta consequência adentraria o campo da responsabilidade civil, haja vista a falta de normatização do Direito das Sucessões.
3.2 Projeto de Lei nº 3.145
O Projeto de Lei nº 3.145 foi apresentado no Plenário da Câmara Federal, em 29 de setembro de 2015, pelo Deputado Vicentinho Júnior (PSB-TO), com o interesse de alterar os artigos 1.962 e 1.963 do Código Civil, de modo a permitir a deserdação nas hipóteses de abandono (BRASIL, 2015).
Como justificativa, o referido deputado alega que há o crescimento do número de idosos no país, com grande parte sendo sujeita ao abandono material e afetivo. Segundo Vicentinho Júnior, alguns descendentes não têm cumprido com seus ascendentes o dever de proteção e zelo (BRASIL, 2015). Por isso, julgou necessário criar um dispositivo de proteção.
Há um claro desrespeito à Constituição Federal, que estabelece a obrigação de amparo na velhice, enfermidades ou em períodos de enfermidade, conforme artigo 229 da Constituição Federal, assegurando o direito à vida (BRASIL, 1988). De fato, o grupo que mais enfrenta esse desarrimo são pessoas idosas, na fase que estão vulneráveis e mais precisam de cuidados.
Ao redigir o referido projeto de lei, incluiu-se o inciso V nos artigos que possibilitam a deserdação na seguinte hipótese: “abandono em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência ou congêneres” (BRASIL, 2015). Observa-se que o Projeto de Lei nº 3.145 não possui o termo idoso, para garantir maior amplitude à aplicação da futura legislação, contudo lembra-se que a maioria dos casos de abandono acontece com pessoas idosas.
Diante da relevância do tema, o Projeto de Lei nº 3.145 foi submetido à Comissão de Defesa de Direitos da Pessoa Idosa, na Câmara dos Deputados, a qual aduziu que:
Em linha com essas disposições constitucionais, o Estatuto do Idoso estabelece, em seu art. 98, que constitui crime punível com penas de detenção de 6 (seis) meses a 3 (três) anos e multa abandonar o idoso em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência ou congêneres.
Mas, de outra parte, o ordenamento jurídico ainda não prevê a possibilidade de deserdação de filho ou outro descendente que abandonar o idoso em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência ou congêneres, referindo-se neste aspecto o Código Civil apenas à possibilidade de deserdação em hipóteses de desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade.
Ou seja, reconhece-se que há considerável potencial de lesividade nas condutas aludidas de abandono de idoso, uma vez que a lei as qualifica como crime, porém, apesar disso, não é erigido óbice legal expresso apto a impedir que o autor desse fato penalmente tipificado possa se beneficiar, na condição de herdeiro necessário, da sucessão dos bens deixados em virtude do falecimento daquele contra o qual foi praticado o abandono (BRASIL, 2015).
Assim, entendendo que acrescer o abandono em hospitais e entidades de saúde como hipótese de deserdação é uma maneira de proteger a pessoa idosa, a Comissão de Defesa de Direitos da Pessoa Idosa votou pela aprovação do Projeto de Lei nº 3.145.
Após esta aprovação, este projeto de lei foi encaminhado a Comissão de Constituição e Justiça, para analisar sua constitucionalidade. Estando conforme os padrões constitucionais, a Câmara remeteu o Projeto ao Senado, recebendo a seguinte numeração “Projeto de Lei 6.548/2019” e aguardando a nomeação de relator para prosseguimento da tramitação, segundo a atividade legislativa (BRASIL, 2023).
Por se tratar de assunto relevante, resta a sociedade aguardar o desenrolar das negociações políticas em Brasília para que os artigos 1.962 e 1.963 do Código Civil sejam alterados e tutelem o abandono como causa de deserdação.
3.3 Precedentes de deserdação
Enquanto o Poder Legislativo não encerra a questão, permitindo ou não a deserdação por abandono afetivo, cabe ao Poder Judiciário analisar cada caso concreto, para viabilizar ou não a deserdação. Portanto, não há consenso nas decisões judiciais.
Ressalta-se que decisões que prezam pela afetividade nas relações familiares se tornam constantes nos tribunais. Tanto é verdade que há decisões que julgam procedente a compensação pelo abandono afetivo, por meio de indenização por danos morais. É como decide o Egrégio Superior Tribunal de Justiça:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO.COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. Sucessão testamentária: o abandono afetivo como causa de deserdação. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido (STJ, Recurso Especial nº 1.159.242, 3ª Turma, Relator: Ministra Nancy Andrighi, Julgado em:24/04/2012)
Vale lembrar que a atuação proativa do Judiciário somente acontece porque há uma lacuna na atualização legislativa, que atrapalha a aplicação do principio da afetividade ao Direito das Sucessões, na questão da deserdação.
Destarte, há decisões em sentido a aplicar a deserdação pelo abandono afetivo. Observe este julgado do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP:
AÇÃO DE INDIGNIDADE – DESERDAÇÃO DE ASCENDENTE - Pedido de exclusão da sucessão da genitora do falecido – De cujus que era interditado, tendo como curador, seu irmão – Destituição do poder familiar da genitora averbada na certidão de nascimento - Genitora que não cumpriu seu dever de amparo, sustento, não somente financeiro, mas psicológico, afetivo e físico – Desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade - Aplicação do artigo 1814, 1.815 e 1.963, IV do Código Civil - Hipótese de declaração de indignidade – Ausência de deserdação por testamento - Autor da herança civilmente incapaz que não poderia dispor através de testamento sobre seus bens – Hipótese afeta à causa de indignidade –– Exclusão de sucessão da herança por sentença judicial - Sentença mantida – RECURSO DESPROVIDO (TJSP, Apelação Cível nº 1000127-70.2014.8.26.0602, 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Relatora: Desembargadora Maria Salete Corrêa Dias, Julgado em:12/09/2018).
Apesar de se tratar da deserdação de uma ascendente, a genitora, vê-se que foi permitido a sua exclusão da herança, tendo em vista que não prestou amparo psicológico e afetivo. A exclusão de sucessão da herança ocorreu por decisão judicial de Primeira Instância que foi mantida em Segunda Instância.
Neste diapasão, cediço é que o rol das hipóteses ensejadoras da deserdação foi tratado como exemplificativo pelo TJSP, incluindo o abandono como causa de exclusão hereditária. Esta decisão corrobora à aprovação do Projeto de Lei 3.145, pois uma alteração legislativa se adequaria a nova situação social, que preza pela afetividade.
Desta feita, há que se considerar a possibilidade de deserdação em casos de abandono afetivo, já tendo entendimentos jurisprudenciais para fundamentar a decisão e a tramitação de uma atualização legislativa, que dará fim definitivamente à questão.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como visto, apesar de parecer que o caso do Cid Moreira era algo incomum, na prática, esse assunto já vem sendo discutido no judiciário há algum tempo. Por óbvio que a notoriedade pela mídia veio através desse caso, por se tratar de uma pessoa famosa, mas isso já vem sendo motivo de grandes discussões.
Ademais, viu-se que a proteção ao idoso é algo imprescindível do ponto de vista Legal e Constitucional, uma vez que estamos diante de pessoas que precisam de um tratamento diferenciado, haja vista as suas limitações naturais trazidas pelo tempo e idade. Ora, se é dever do pai cuida, demostrar afeito e carinho para com seus filhos, sejam eles biológicos ou não, então também deve ser aplicado essa lógica dos filhos para com os pais, já que estas tornam-se crianças crescidas depois de um tempo.
Assim, é plenamente possível, a partir do presente estudo, perceber que deve ser aplicado aos casos concretos a possibilidade de deserdação por abandono afetivo, sendo, evidentemente, analisado caso a caso de forma individualizada como já vêm sendo feito.
Para mais, se trata-se de uma manifestação de vontade do autor da herança cabível em outros casos de abandono ou desamparo, há c
5 REFERÊNCIAS
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOURA, Adriele Silva de. Exclusão sucessória: a possibilidade da deserdação por abandono afetivo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 maio 2023, 04:18. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61535/excluso-sucessria-a-possibilidade-da-deserdao-por-abandono-afetivo. Acesso em: 27 dez 2024.
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