FLÁVIA REGINA PORTO DE AZEVEDO[1]
(orientadora)
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo geral demonstrar a possibilidade do ordenamento jurídico brasileiro reconhecer a existência de famílias poliafetivas. Examinando a legislação e jurisprudência brasileiras e os principais princípios que regem o tema, identificando a fundamentação para o impedimento de relações conjugais concomitantes; apontando os prejuízos sofridos pelo não reconhecimento das novas modalidades de família. A pesquisa segue uma metodologia descritivo-analítica, consistindo em revisão bibliográfica e análise de normas jurídicas. A revisão teórica foi desenvolvida por meio da análise documental; esse tipo de abordagem é fundamental para se obter uma compreensão aprofundada do tema estudado, permitindo que sejam feitas análises críticas e conclusões consistentes sobre o tema. A hipótese por trás da pesquisa é a de que como não há um impedimento constitucional para que a legislação inclua esse modelo poliafetivo familiar, há a possibilidade de se englobar essa nova modalidade, tendo em vista a existência do princípio da autonomia privada, da afetividade e da pluralidade familiar.
Palavras-chave: Famílias poliafetivas; Reconhecimento jurídico; Princípios do Direito de Família.
ABSTRACT: This article has the general objective of demonstrating the possibility of the Brazilian legal system to recognize the existence of polyaffective families. Examining Brazilian legislation and jurisprudence and the principles that govern the subject, identifying the grounds for preventing concomitant marital relations; the benefits suffered by the non-recognition of the new family modalities. The research follows a descriptive-analytical methodology, consisting of a bibliographic review and analysis of legal norms. A theoretical review was developed through document analysis; this type of approach is essential to obtain a deep understanding of the subject studied, allowing critical analyzes to be carried out and consistent with the subject. The hypothesis behind the research is that since there is no constitutional impediment for the legislation to include this polyaffective family model, there is the possibility of including this new modality, in view of the existence of the principle of private autonomy, affection and family plurality.
Keywords: Polyaffective families; Legal recognition; Principles of family law.
No ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo, é proibida a existência de casamentos simultâneos, ou seja, caso alguém já casado queira casar com outra pessoa, este deverá se divorciar para então constituir um novo matrimônio. Sobre esta determinação legal, prevista no art. 1.521, VI, do Código Civil (BRASIL, 2002), é possível levantar algumas dúvidas quanto às implicações sociais e familiares decorrentes desse impedimento.
Com o desenrolar das Constituições Federais Brasileiras, que evoluem conforme a nossa sociedade, modificando e criando direitos, podemos verificar que o mesmo se reproduz no que diz respeito ao que se entende por “família”. A CF/88 introduziu uma nova visão para o conceito de família, ampliando e o tornando muito mais abrangente, de forma a se adequar ao aspecto sociológico da família, reconhecendo outras formas existentes que não apenas o casamento (MALUF, 2010, fls. 47-49).
No entanto, ainda que haja uma evolução quanto ao que é considerado uma família propriamente dita, o Direito Brasileiro se demonstra receoso na questão de famílias poliamorosas. O STJ (2022) determinou em suas últimas jurisprudências, no que tange a união estável concomitante ao casamento ou a outra união, que já se consagrou a monogamia no ordenamento jurídico brasileiro.
No entanto, Dias (2010) conclui que ainda que exista a imagem preconceituosa formada, o concubinato já não mais existe como instituto em nossa sociedade e cada vez mais vem se reconhecendo as relações simultâneas e poliafetivas pela justiça.
Verificadas tais pontuações, surge a seguinte problemática: considerando a evolução do conceito de família no ordenamento jurídico brasileiro, há viabilidade legal num possível englobamento dos relacionamentos poliamorosos por esse conceito? Quais seriam as implicações dessa evolução do conceito no direito sucessório? Quais casos de relacionamento poliafetivo podem ser identificados no judiciário e qual o posicionamento majoritário acerca destes?
O Código Civil Brasileiro, em seu art. 1.521 (BRASIL, 2002), apresenta um rol de situações que impedem uma pessoa de contrair matrimônio, sendo um dos impedidos a pessoa que já é casada. Mesmo existindo uma proibição legal, nada impede que uma relação extramatrimonial possa vir a existir, no entanto, essa não terá reconhecimento pelo ordenamento jurídico brasileiro, que considerará a relação como sendo um concubinato.
No mais, cabe ressaltar que as relações que regem a sociedade não são um corpo enrijecido, que sempre permanece da mesma maneira, sem mudanças. Com o tempo, a moral se modifica e, o que poderia ser reprovado socialmente no passado, como relações poliamorosas, hoje já não é. (ALVES, 2022, p. 09)
Exposto isto, surge um problema: mesmo existindo famílias poliafetivas, com laços que são de fato conjugais, estas não possuem reconhecimento jurídico. O modelo de família monogâmico, baseado na moral e religiosidade ocidentais, embora consagrado no ordenamento jurídico brasileiro, não é o único existente; o Direito não deve negar o reconhecimento de novos tipos de família tendo como base uma moral que não rege a sociedade como um todo (RÊGO; SOUZA, 2013, p. 190).
A morosidade do Direito em reconhecer essa nova modalidade de família vem gerando prejuízos a quem de fato vive em comunhão de vida, sendo a jurisprudência das Cortes Superiores uníssona em não admitir o reconhecimento de relações simultâneas ou concomitantes, como no REsp 1.157.273/RN - STJ (BRASIL, 2010), que afastou a possibilidade da existência de uniões estáveis múltiplas e simultâneas.
Esta interpretação exercida pela jurisprudência não leva em consideração os laços de afetividade dos envolvidos na relação, o animus de constituir família e o esforço comum na aquisição de patrimônio.
O tema tem grande relevância social, pois cada vez se torna mais comum a existência de relações consensualmente não-monogâmicas, que começam a ter seu reconhecimento garantido em outros países ocidentais em que o princípio da monogamia ainda influencia bastante suas legislações (KLEIN, 2021).
Para que o ordenamento jurídico brasileiro possa de fato acompanhar as mudanças sociais, é necessário uma adequação legislativa e jurisprudencial, visando garantir a estes sujeitos sua dignidade humana e autonomia para que decidam com quem e com quantas pessoas desejam manter uma vida conjugal. Assim, tendo a sua existência reconhecida pelo Estado, para que possam gozar dos direitos que surgem a partir de uma união conjugal.
Por fim, o objeto de análise foi as relações conjugais poliamorosas, não reconhecidas pelo Direito brasileiro e se, para abarcar essa nova modalidade de família, haveria a necessidade de modificar a nossa legislação, seja constitucional ou infraconstitucional, com o debate de que se qualquer tipo de modificação violaria o ordenamento constitucional vigente ou se o impedimento existe meramente por questões religiosas e morais impregnadas na sociedade brasileira que influenciaram na construção do nosso ordenamento jurídico.
Para se atingir o primeiro objetivo, foi realizada uma análise do desenvolvimento do conceito de família, desde a pré-história e formação das primeiras civilizações, passando pelo século XIX, quando os autores passam a cada vez mais estudar a família como um ente da sociedade, e, por fim, chegando à atualidade, com o avançar da legislação brasileira no reconhecimento das novas modalidades de família. Para isso, explore-se as principais teorias que regem o Direito de Família, o estudo dos principais princípios, com a análise da obra de Engels (2019), que discute a forma como a família se relaciona com a propriedade privada e o Estado; Lago, Ñunez, Oliveira e Lago (2021), abordando o conceito de família dos povos originários e as modificações geradas com a colonização portuguesa no Brasil; dentre outros autores.
Em seguida, executou-se uma comparação entre os conceitos e processos históricos apresentados, e o que diz a doutrina e jurisprudência das Cortes Superiores sobre o tema, com especial ênfase no STJ. Quanto à doutrina, a partir do estudo da obra de Dias (2021), autora de grandes críticas à forma como o ordenamento jurídico enxerga o conceito de família, além das obras de Gagliano (2019), Tartuce (2020) e Rosenvald (2016).
Por fim, a fim de se chegar ao objetivo final da pesquisa, e após o estudo do que diz a doutrina e a jurisprudência, avaliou-se a possibilidade de reconhecimento da famílias poliafetivas pelo ordenamento jurídico brasileiro, identificando de que forma, ao haver o conflito entre os princípios do Direito de Família, o princípio da monogamia, não consagrado no texto constitucional, vem se sobrepondo aos demais princípios.
2. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA MONOGAMIA E SUA INFLUÊNCIA NA CONCEPÇÃO DE FAMÍLIA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA.
O ordenamento jurídico brasileiro consagrou o princípio da monogamia nas relações conjugais, conforme disposto no art. 1.521, VI, do Código Civil (BRASIL, 2002). Por esse motivo, qualquer tipo de família que transgrida esse princípio não terá reconhecimento pela legislação brasileira.
Para entender melhor a questão é imprescindível fazer uma análise histórica das mudanças sociais ocorridas ao longo do tempo, que justificam a atual realidade jurídica sobre o tema.
É datado da pré-história as primeiras noções de monogamia, com a redução progressiva do círculo da comunidade conjugal, quer seja pelo número de companheiros simultâneos possível, seja pela criação de critérios mínimos de grau de parentesco permitido para que houvesse o relacionamento conjugal. (ENGELS, 2019)
De acordo com Alves (2022, p. 03), as primeiras relações matrimoniais monogâmicas surgem no Egito Antigo:
com a intenção de obter alianças fortes e indissolúveis que propiciavam (sic) o desenvolvimento econômico estratégico. Esses modelos de parcerias obtiveram maior primazia e regularização com a ascensão dos costumes disciplinadores do Império Romano, quando houve uma considerável interferência do Estado nas relações pessoais.
Portanto, verifica-se que questões econômicas passaram a influenciar o conceito de família, que passou a sofrer interferência do Estado. No entanto, com a ascensão e consolidação do Cristianismo no final da Idade Antiga e início da Idade Média, questões religiosas passaram a influenciar com maior intensidade as relações conjugais, influência essa consolidada pelo Concílio de Trento, que definiu como casamento apenas aquele advindo da relação entre um homem e uma mulher; além disso, a família deixou de ser vista apenas pelo viés patrimonial e consanguíneo, mas também pelo viés afetivo (ANGELUCI; LÔBO, 2012). Essa influência definiu o que seria o casamento pelos séculos seguintes.
Nesse sentido, os vínculos familiares eram reconhecidos a partir do uso de critérios biológicos e matrimoniais, que continuam sendo aplicados, mas passaram a ser acompanhados do valor jurídico conhecido como afeto (SIMÃO, 2014, p. 63). Verifica-se então um ponto de partida na evolução do conceito de família, que passa a ser analisado através de um critério subjetivo.
Destaca-se que a ausência de afeto era uma característica presente nos antigos conceitos de família e, conforme o pensamento social progride, é possível visualizar que a definição desse instituto está em constante modificação, ainda que o Estado não acompanhe o mesmo ritmo (ALVES, 2022, p. 09).
A influência religiosa alcança o Brasil Colonial, sendo perceptível as consequências de sua propagação. Nesse período, era amplamente difundida a poligamia entre os povos originários, todavia tais costumes geraram grande preocupação entre os missionários que aqui aportaram para a evangelização dos indígenas, pois como o matrimônio monogâmico se trata de um dos sacramentos do catolicismo, as relações poligâmicas impediam a conversão dos não cristãos.(MOREIRA, 2018, p. 33)
A moralidade cristã influenciou em demasia o processo colonial pois, segundo esta, as relações familiares indígenas eram uma ameaça visto que “simbolizava para os padres a devassidão moral, a promiscuidade e a perdição” (LAGO, NÚÑEZ E OLIVEIRA, 2021, p. 80).
Com a independência e a implementação de um regime monárquico de governo, naturalmente o Estado adotou uma religião oficial, o Catolicismo Romano, como disposto no art. 5º da Constituição do Império do Brasil (BRASIL, 1824). Portanto, com o Estado brasileiro adotando uma religião oficial, somente as relações familiares decorrentes do matrimônio entre um homem e uma mulher realizado pelo Igreja Católica possuíam reconhecimento jurídico; o Direito brasileiro garantia direitos matrimoniais apenas a uma parcela da sociedade, o que gerava consequências jurídicas diversas, pois famílias fora dos sacramentos católicos não eram reconhecidas (SANTIROCCHI, 2012, p. 82).
Após 1889, com a derrubada da monarquia e a Proclamação da República, houve a separação entre Igreja e Estado; o único casamento reconhecido pelo Direito brasileiro seria o civil, regulado pelo Estado e monopolizado por este (SIMÃO, 2014, p. 65).
É a partir da monopolização do casamento pelo Estado que o ordenamento jurídico brasileiro passa a regular com mais afinco as relações familiares. Entre os institutos oriundos dessa regulação, surge o concubinato. O Código Civil de 1916 (BRASIL, 1916), nos arts. 248 e 1.719, passa a vedar doações e herança para a concubina; além disso, não reconhecia juridicamente as relações existentes entre duas pessoas solteiras, que se enquadram no chamado concubinato puro, quando existe a família de fato, sem detrimento de família legítima (AZEVEDO, 1995, p. 97). Nota-se que tal disposição do Código ainda possuía forte influência moral e religiosa ainda marcantes na sociedade da época.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e o reconhecimento da existência da união estável, o Direito rompe com a forte influência religiosa que ainda definia o que era família, havendo a descaracterização do concubinato puro (RÊGO; SOUZA, 2013, p. 187). Além disso, a nova ordem constitucional abre caminho para o reconhecimento de novas modalidades de família, principalmente pelo disposto no art. 226 da CF (BRASIL, 1988). Porém, mesmo com esse reconhecimento, o concubinato prosseguiu no ordenamento jurídico brasileiro.
O Código Civil de 2002 (BRASIL, 2002) dispõe no art. 1.727 que “as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato”. Verifica-se, com isso, que o Estado ainda buscou se preocupar em atentar pelos efeitos jurídicos do casamento, não reconhecendo relações que violariam os princípios da monogamia e da fidelidade que regem o instituto (RABELO, 2021).
Assim sendo, com as modificações legislativas e constitucionais realizadas nas últimas décadas, cada vez mais a formatação do núcleo familiar se desprende do formalismo matrimonial e reconhece o vínculo afetivo como primordial nas relações familiares; com isso, a família se caracteriza pelo “amor demonstrado pela relação de afeto e cuidado que se desenvolve no seio familiar” (RÊGO; SOUZA, 2013, p. 187).
Com este entendimento, o STF reconheceu a afetividade como um dos princípios norteadores do núcleo familiar, na ADPF nº 132/RJ e ADI nº 4.277/DF, excluindo qualquer interpretação do art. 1.723 do Código Civil que proíba a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Ademais, a Constituição Federal consagra este princípio no art. 227, § 6º, quando afirma que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
A partir da análise histórico-legislativa, podemos considerar que desde as primeiras civilizações ocidentais, houve uma predominância da monogamia, seja por fatores econômicos ou por fatores morais e religiosos. No entanto, ainda que o ordenamento jurídico não reconheça a existência de relações fora dessa predominância, elas existem.
3. A AMPLIAÇÃO DO CONCEITO LEGAL DE FAMÍLIA
Apesar de haver vedação expressa do Código Civil de que pessoas já casadas não podem casar novamente ou manter união estável quando não separados de fato, existem pessoas que vivem juntas, mesmo com esse impedimento, como se casadas fossem. Ainda, existem casos de pessoas que simplesmente vivem em uma relação poliamorosa (CASTRO; TOLEDO, 2017), que não será reconhecida, como já exposto acima, mesmo havendo laços de afetividade e consentimento nessa relação.
Diante do exposto, compete se fazer o seguinte questionamento: considerando que o conceito legal de família teve, ao longo dos tempos, sido ampliado para abarcar diversos outros formatos que surgiam na sociedade, quais os fatores impeditivos para que o Estado não reconheça juridicamente a existência de famílias poliamorosas?
Visando responder a essa questão, é preciso se debruçar sobre os motivos que acarretaram a ampliação do termo “família” e qual a relação dessas novas classificações que surgiram com os relacionamentos poliamorosos.
Inicialmente, verifica-se que temos, legalmente, várias modalidades de família. Dentre elas, a única que possuía reconhecimento pelo Direito brasileiro era a família matrimonial, fruto do casamento. Com a promulgação da Constituição de 1988, o ordenamento jurídico brasileiro passou a reconhecer novos tipos de entidades familiares (DIAS, 2021, p. 70).
De acordo com Tartuce, são admitidas novas modalidades de família, pois:
tem prevalecido, na doutrina e na jurisprudência, especialmente na superior (STF e STJ), o entendimento pelo qual o rol constitucional familiar é exemplificativo (numerus apertus) e não taxativo (numerus clausus) (TARTUCE, 2020, p. 1.777).
Das diversas modalidades é possível citar a família anaparental, reconhecida pela jurisprudência e doutrina, é a “família sem pais” (BARROS, 2010), composta por irmãos que não convivem com os pais ou por avós com seus netos (PEREIRA, 2016, p. 211). Existe ainda a família homoafetiva, constituída pela união de pessoas do mesmo sexo com o animus de constituir família (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 145), reconhecida pelo STF na ADPF nº 132/RJ e na ADI nº 4.277/DF.
O rol ainda inclui a família monoparental, a família mosaico ou pluriparental, a família eudemonista, a família simultânea ou paralela e a família poliafetiva (DIAS, 2021, p. 444-461).
Portanto, como já destacado, a nova ordem constitucional vigente permitiu que vários tipos de realidades familiares passassem a ser discutidas pelos autores especializados, acompanhando as mudanças relacionais da sociedade. Em especial, chama atenção a família paralela.
Famílias paralelas sempre existiram em nossa sociedade, mesmo a legislação coibindo tal modalidade, pois o dever de fidelidade e lealdade são princípios básicos do casamento e união estável, base da família matrimonial (DIAS, 2021, p. 449). Conforme Dias, que tem preferência pela expressão “família simultânea":
Não adianta a determinação legal que impõe o dever de fidelidade no casamento, e o dever de lealdade na união estável. Nada consegue sobrepor-se a uma realidade histórica, fruto de uma sociedade patriarcal e muito machista. Mesmo sendo casados ou tendo uma companheira, homens partem em busca de novas emoções sem abrir mão dos vínculos familiares que já possuem. Somente eles têm habilidade para se desdobrar em dois relacionamentos simultâneos: dividem-se entre duas casas, mantêm duas mulheres e, na maioria das vezes, têm filhos com ambas. Quer se trate de um casamento e uma união estável, quer duas ou até mais uniões estáveis. É o que se chama de famílias simultâneas.
Assim sendo, a família simultânea ou paralela seria o ente familiar fruto do concubinato adulterino. Um homem ou mulher casados, não separados de fato, ou vivendo em união estável, estabelecem um novo núcleo familiar, mesmo impedidos de casar ou manter uniões estáveis simultâneas.
Contudo, o ordenamento jurídico brasileiro não reconhece tal relação como um ente familiar; diante disso, o concubino é excluído dos direitos garantidos ao cônjuge ou ao companheiro (FONSECA, 2011, p. 41). Ainda:
Essa negativa de efeitos jurídicos a um instituto que mesmo sendo antigo, continua presente em nossa sociedade, causa uma insegurança jurídica ímpar a diversas famílias brasileiras uma vez que o outro concubino se encontra em uma situação jurídica real, factual, entretanto não abrangida pelo Direito (ANGELUCI; LÔBO, 2012).
Se assemelhando às famílias paralelas, existe a família poliafetiva que, diferentemente da modalidade anterior, não possui a figura do concubinato.
Relações não-monogâmicas existem há milênios, dentre elas, a família poliafetiva, caracterizada pela união de mais de duas pessoas em um relacionamento íntimo, de forma consentida, baseada no afeto entre todas as partes envolvidas (KNOBLAUCH, 2018, p. 151).
Dias (2016, p. 241) atenta que nas famílias poliafetivas:
Todos moram sob o mesmo teto. Tem-se um verdadeiro casamento, com uma única diferença: o número de integrantes. Isto significa que o tratamento jurídico à poliafetividade deve ser idêntico ao estabelecido às demais entidades familiares reconhecidas pelo direito.
Gonçalves (2012, p. 612) afirma que a poliafetividade:
Envolve a mútua assistência material, moral e espiritual, a troca e a soma de interesses da vida em conjunto, atenção e gestos de carinho, enfim, a somatória de componentes materiais e espirituais que alicerçam as relações afetivas inerentes à entidade familiar.
Umas das principais diferenças entre a família paralela e a poliafetiva seria que, enquanto na última existe consentimento e boa-fé dos envolvidos, a primeira surge da má-fé e quebra dos princípios da fidelidade e lealdade (PORTO, 2017, p. 178).
Importante frisar que existe uma clara diferença entre o que seria o concubinato adulterino, quando uma pessoa impedida de casar objetiva constituir família com uma terceira pessoa, e a poliafetividade, quando mais de duas pessoas visam constituir família, sendo que cada uma dessas pessoas integraria o mesmo ente familiar, em uma relação consensual e transparente.
A família poligâmica é um tipo de relacionamento que não segue o princípio monogâmico, onde a liberdade individual é valorizada. Nesse modelo, há uma relação conjugal entre mais de duas pessoas em um mesmo núcleo familiar, ao contrário das famílias paralelas e dos concubinos. (POGGIALI; GAMBOGI, 2018, pág. 378).
A poliafetividade seria uma espécie de poliamor enquadrado no conceito de família, quando existe o animus entre os envolvidos na relação de manter estabilidade e objetivos comuns, baseado na afetividade, boa-fé e solidariedade, sendo então uma valorização da pluralidade familiar garantida pela Constituição Federal. (CAMELO, 2019, p. 137)
Sendo assim, entendendo que o relacionamento poliafetivo é consensual entre as partes que o compõem, o que causa a insegurança jurídica desses casais?
Há um desacordo entre a monogamia e o poliamor no que diz respeito ao modelo ideal de felicidade, visto que há uma liberdade no poliamor que não pode ser confundida com vulgaridade. (NASCIMENTO, 2017, p. 19).
O princípio da monogamia é uma das bases do Direito de Família, sendo listado por diversos autores como Flávio Tartuce (2020), Pablo Stolze Gagliano (2019). Este, por si só, é um dos instrumentos utilizados para desvalidar a legalidade das famílias poliafetivas.
A Constituição não menciona explicitamente a monogamia, portanto existe uma discussão se seria um princípio do Direito Brasileiro. Mesmo que seja considerada um princípio, pode entrar em conflito com outros princípios, como igualdade e dignidade, e cabe ao intérprete da legislação ponderar qual princípio deve se sobrepor ao outro. (ANGELUCI; LÔBO, 2012).
Levando em consideração o exposto acima, pode-se concluir que é opção do ordenamento jurídico a preponderância atual do princípio da monogamia sobre os princípios da autonomia privada, afetividade e pluralidade familiar, pois nega às famílias poliafetivas o reconhecimento legal e a segurança jurídica que, em tese, seriam garantidos pela Constituição; a realidade jurídica infraconstitucional, não acompanha a nova ordem constitucional e a realidade social (RÊGO; SOUZA, 2013, p. 71-75).
Reconhecida a existência dessa forma de relação, adentra-se na seguinte questão: Há viabilidade para abarcar essas modalidades de família no nosso ordenamento?
4. A CONSTITUCIONALIDADE DO RECONHECIMENTO DE FAMÍLIAS POLIAFETIVAS
O que se tem visualizado na jurisprudência majoritária brasileira sobre a questão, é a aparente sobreposição da monogamia sobre princípios constitucionais que regem o Direito de Família, colocando à margem do ordenamento modalidades familiares que existem de fato (ALVES, 2022, p. 10), como disposto no acórdão abaixo proferido pelo STJ:
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. RELAÇÃO CONCOMITANTE. DEVER DE FIDELIDADE. INTENÇÃO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. AUSÊNCIA. ARTIGOS ANALISADOS: ARTS. 1º e 2º da Lei 9.278/96. [...] 2. Discussão relativa ao reconhecimento de união estável quando não observado o dever de fidelidade pelo de cujus, que mantinha outro relacionamento estável com terceira. [...] 5. Uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade - que integra o conceito de lealdade e respeito mútuo - para o fim de inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a busca da realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade. [...] 6. Ao analisar as lides que apresentam paralelismo afetivo, deve o juiz, atento às peculiaridades multifacetadas apresentadas em cada caso, decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia (grifos nossos), com os pés fincados no princípio da eticidade. 7. Na hipótese, a recorrente não logrou êxito em demonstrar, nos termos da legislação vigente, a existência da união estável com o recorrido, podendo, no entanto, pleitear, em processo próprio, o reconhecimento de uma eventual uma sociedade de fato entre eles. 8. Recurso especial desprovido. (REsp n. 1.348.458/MG, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 8/5/2014, DJe de 25/6/2014.)
Existindo conflito dos princípios que regem o Direito de Família, a jurisprudência pátria tem conferido primazia ao princípio da monogamia em detrimento da afetividade, busca da felicidade e liberdade.
De acordo com Angeluci e Lôbo (2012):
O Direito passou a abarcar, seja com dispositivos ou através dos princípios constitucionais, diversas formas de arranjo familiar. Tendo como exemplos dessas famílias plurais a família anaparental (aquela caracterizada pela inexistência de pais, mas de uma convivência entre pessoas e/ou parentes, sem conotação sexual); família monoparental (aquela constituída por um genitor e sua prole); família homoafetiva (casal formado por duas pessoas de mesmo sexo e orientação homossexual); união estável (aquela entre homem e mulher em uma convivência pública, contínua e duradoura); família pluriparental e outras; somadas à tradicional família matrimonial.
Não existe dispositivo constitucional que limite as formas de constituição de família; o art. 226 da CF/88 (BRASIL, 1988) apenas apresenta um rol exemplificativo, de acordo com a própria jurisprudência que limita o reconhecimento pleno de novas modalidades de família (SIMÃO, 2014).
Portanto, verifica-se em um primeiro momento, que não existe óbice constitucional para o impedimento de se reconhecer famílias poliafetivas, contudo a legislação infraconstitucional e a jurisprudência vêm negando direitos a estes núcleos familiares existentes na sociedade que são garantidos às famílias derivadas de relações monogâmicas.
Em conclusão, é possível afirmar que a legislação brasileira não reconhece as famílias poliafetivas, o que pode gerar diversos prejuízos para essas famílias, como a falta de proteção jurídica em questões como herança, guarda de filhos, direito à previdência social, entre outras. No entanto, a análise dos princípios que regem o Direito de Família, bem como a ausência de impedimento constitucional, indicam que há espaço para o reconhecimento dessas novas modalidades de família.
É importante ressaltar que o reconhecimento das famílias poliafetivas não implica em uma desvalorização ou desrespeito às famílias monogâmicas, mas sim em uma ampliação do conceito de família, que deve ser entendida como uma unidade de afeto e solidariedade, independentemente de sua forma de constituição.
Para tanto, é necessário que haja uma mudança no entendimento da sobreposição do princípio da monogamia, que atualmente é o principal obstáculo para o reconhecimento das famílias poliafetivas. Cabe aos intérpretes da legislação e ao legislador acompanhar as mudanças sociais e atualizar o regramento jurídico, garantindo assim a segurança jurídica para as famílias poliafetivas e a proteção de seus direitos.
Portanto, é fundamental que se continue a discutir e pesquisar sobre o tema, a fim de conscientizar a sociedade e as autoridades jurídicas sobre a importância do reconhecimento das famílias poliafetivas como uma forma legítima de constituição familiar, garantindo a efetivação dos princípios constitucionais e a proteção dos direitos de todos os cidadãos.
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[1] Orientadora. Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGE da Faculdade de Educação da Universidade do Amazonas, Pós-Graduada em Direito Penal e Processual pela Universidade Federal do Amazonas. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Amazonas. Professora Assistente da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas.
Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOYOLA, João Pedro Prudente Costa. Reconhecimento de famílias poliafetivas no ordenamento jurídico brasileiro: a (im)possibilidade de alteração legal e jurisprudencial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jun 2023, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61581/reconhecimento-de-famlias-poliafetivas-no-ordenamento-jurdico-brasileiro-a-im-possibilidade-de-alterao-legal-e-jurisprudencial. Acesso em: 26 dez 2024.
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