WALTER MARTINS MULLER
(orientador)
RESUMO: O presente artigo tem seu objetivo voltado a demonstrar os resultados gerados pela banalização no atual contexto jurídico nacional. O problema está assente na difícil diferenciação entre o dolo eventual e a culpa consciente, que vem gerando posicionamentos diversos acerca da real influência do referido tema em algumas decisões do poder judiciário. A instabilidade acarretada pela falta de concretude conceitual vem fomentando na lesão aos princípios da legalidade, taxatividade e favor-rei. O triste caso da Boate Kiss foi utilizado como exemplo prático, ante a utilização do dolo eventual como base para a condenação dos réus, mesmo não havendo elementos probatórios robustos que traçassem cabal distinção com o instituto da culpa consciente (manifesta). Esse trabalho reputar-se-á, também, em buscar as causas geradoras do referido problema, qual seja: o populismo Penal, ou seja, a banalização dos institutos penais. Foi utilizada a metodologia dedutiva, por meio da análise de inúmeros doutrinadores abalizados no plano (Inter)nacional. Por fim, é necessário imparcialidade dos agentes do poder judiciário ao julgar qualquer processo, mesmo de repercussão nacional ou internacional. Deve haver o estabelecimento de um conceito específico de dolo de natureza eventual e culpa consciente com o animo de evitar desacatos aos preceitos do Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Dolo Eventual. Culpa Consciente. Princípio da legalidade. Banalização. Boate Kiss.
BANALIZATION OF EVENTUAL DOLUS: CASE “BOATE KISS”
ABSTRACT: This article aims to demonstrate the results generated by the trivialization of eventual intent in the Brazilian criminal legal context. The problem is based on the difficult distinction between eventual intent and conscious guilt, which, due to the uncertainty of the terms, has been giving rise to illegitimate decisions based on society's desire for justice. The relevance of the study stems from the rupture with constitutional principles and the restriction of freedom above the necessary limits. The principles of legality, taxation and favor-king are the most affected and contradicted. The deductive methodology was used, through the analysis of numerous experts at the (inter)national level. The sad case of Nightclub Kiss was used as a practical example, given the absurd media influence that permeated the case. Finally, impartiality of the agents of the judiciary is necessary when judging any case, even with national or international repercussion; in the same sense, there must be the establishment of a specific concept of eventual intent and conscious guilt in order to avoid contempt for the precepts of the democratic state of law.
Keywords: Eventual Deceit. Conscious Guilt. Principle of legality. Trivialization. Kiss nightclub.
1 INTRODUÇÃO
A presente obra científica tem o escopo voltado a analisar um grave problema que paira a ciência penal nacional: o tema da banalização do dolo eventual. Sua ocorrência é visível, notadamente, em crimes de trânsito, mas, nos últimos anos, tem incidido nas outras classificações típicas. O dolo eventual, nesse sentido, desfruta de grande incidência por conta da difícil distinção com a noção de culpa consciente.
Desse modo, pretende-se tecer uma breve análise sobre a culpa e o dolo, com foco na banalização dos institutos, que vem gerando manifesta lesão aos princípios constitucionais, penais e processuais essenciais a fluência do Estado Democrático de Direito.
Também, tratar-se-á das principais evidências que nutrem a banalização do dolo eventual. A central está ligada ao populismo penal, no qual a banalização é uma retribuição a pressão exercida pela sociedade contra os sujeitos processuais, que cede aos clamores e cumpre o desejo da sociedade. Quanto mais pena, melhor.
O triste caso do incêndio nos cômodos da Boate Kiss, em 27 de janeiro de 2013, Santa Maria (RS), que gerou a morte de 242 pessoas e deixou cerca de 600 feridos. O Ministério público oferece denúncia contra quatro indivíduos, sob o fundamento de Homicídio qualificado. Já no em 10 de dezembro de 2021, os réus foram condenados pelo pleno do Tribunal do Júri, mantendo o argumento do dolo eventual formulado pela denúncia do Ministério Público.
Nesses termos, a doutrina penal observa algumas inconformidades dos elementos probatórios constituídos e o dolo eventual utilizado como fundamento para condenar os réus. Muito foi questionado a real dimensão do conceito de dolo eventual e a influência social em todo tramite processual que resultou na sentença de pronúncia. Os doutrinadores de natureza penal analisam o caso, mas outros entender como correto e legitimo.
2 CONSEQUENTE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
O princípio da legalidade (ou Reserva legal), manifesta pela fórmula nullum crimen, nulla poena sine praevia lege ("não há delito sem lei anterior que o defina") conta com abissal importância na construção jurídica dos Estados. As nações cuja democracia permeia seu surgimento tem o princípio da legalidade entre as bases constituidoras e essências da preservação dos direitos individuais e coletivos, além conter as ações abusivas do poder estatal. Logo, tal princípio nutre e consolida as bases institucionais e democráticas do Estado, como explana Zaffaroni (1997 apud CAPEZ, 2019), que interpreta o princípio da legalidade penal como meio de promoção do sentimento de segurança jurídica.
Inúmeros juristas buscaram conceituar o princípio da legalidade, mas obtiveram resultados já esperados. O princípio é tão amplo e movediço que impossibilita a construção de qualquer conceito raso e simplista. Todas as inúmeras transformações históricas e sociais, até o momento, influenciaram no contorno jurídico do referido princípio. Dessa forma, o princípio da Reserva Legal apresenta 3 significados unificados.
Com relação ao primeiro significado, segundo Junqueira e Vanzolini (2019), o princípio da legalidade exerce função de garantia, com o fim de promover a segurança do cidadão contra qualquer ação ilícita ou autoritária. Já no segundo, exerce função constitutiva, em que o princípio é um elo no ato de promover e constituir a pena legal, conforme o texto fundamental de 1988. Em sentido jurídico, o princípio da legalidade se perfaz, como bem diz Nucci (2011), em sentido estrito e sentido amplo. O primeiro sentido (estrito) trata da legalidade na ceara penal, manifestada segundo o artigo 5°, XXXIX, da Constituição Federal. Por derradeiro, em sentido amplo, o princípio torna manifesta a necessidade de um texto pré- constituído prevendo aquilo que o cidadão deve ou não fazer (BRASIL, 1988).
Em relação à função constitutiva, o individuo só é compelido a fazer ou deixar de fazer aquela coisa que a lei previamente estipula como obrigatório (BRASIL, 1988).
Nesse caminho, segundo Roxin (2006 apud CAPEZ, 2019), a previsibilidade da interferência do poder punitivo do Estado corrobora na pacificação e estabilidade social, pois, pela legalidade, o cidadão tem respaldo ao agir e, assim, coordenar suas ações e omissões com vistas às condutas penalmente relevantes, pois lhe é previsível, em qual situação, a repreenda do Estado.
No interior do princípio da reserva legal existe uma fonte de outros princípios que solidificam sua importância, que, logicamente, são essenciais na manutenção do objetivo do princípio central.
Entre estes, o princípio da taxatividade tem vultoso valor para o Estado Democrático de Direito, porquanto impossibilita o surgimento de tipos penais avulsos e, também, impossibilita aplicação de sanções penais sem fundamento. Segundo tal princípio, a lei deve ser clara, precisa, fechada e concisa, ou seja, taxativa. O interprete do direito não deve ter a faculdade de modular o tipo penal segundo seus próprios interesses.
Ensina Luiz Luisi (1996, p.18 apud NUCCI, 2019, p.180):
O postulado em causa expressa a exigência de que as leis penais, especialmente as de natureza incriminadora, sejam claras e o mais possível certas e precisas. Trata-se de um postulado dirigido ao legislador vetando ao mesmo a elaboração de tipos penais com a utilização de expressões ambíguas, equívocas e vagas de modo a ensejar diferentes e mesmo contrastantes entendimentos. O princípio da determinação taxativa preside, portanto, a formulação da lei penal, a exigir qualificação e competência do legislador, e o uso por este de técnica correta e de uma linguagem rigorosa e uniforme.
Nos tópicos posteriores serão analisados os conceitos de culpa consciente e dolo eventual, visto a previsibilidade anterior do legislador, detendo condicionante relação com os presentes princípios.
3 DOLO EVENTUAL
Em decorrência dos sistemas penais – clássico, neoclássico, neokantiana e finalista – o conceito de dolo foi modificado significativamente. Pelo sistema finalista, adotado atualmente, o dolo é caracterizado como todo ato previsível de alcançar determinado objetivo espúrio, tendo seu autor consciência e vontade. Nesse sentido, observa- se que o dolo se fragmenta entre elemento cognitivo (consciência) e elemento volitivo (vontade ou ânimo), que sempre estão unidos quanto da materialização do resultado.
Quando figura consciência e a vontade de concretizar os elementos previstos no tipo legal, haverá dolo. Ou seja, “Dolo é o elemento psicológico da conduta. Conduta é um dos elementos do fato típico. Logo, dolo é um dos elementos do fato típico” (CAPEZ, 2019, p.375).
Segundo Nelson Hungria (1936, p.27) “O nosso direito penal positivo concebe o dolo como intenção criminosa. É o mesmo conceito do dolus malus do direito romano, do böser Vorsatz do Código Penal austríaco, ou da malice da Lei inglesa” (apud NUCCI, 2019, p.544).
Já em âmbito nacional, o dolo é previsto no artigo 18 do Código Penal de 1940 – o que não foge do significado originário de dolo. O dispositivo trata dolo “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”. Deve haver a cumulação entre o querer o resultado e o assumir o risco de sua produção (BRASIL, 1940, n.p.).
O dolo e a culpa, atualmente, estão localizados dentro do conceito analítico de crime, na tipicidade.
Conforme apresentado, o Código Penal brasileiro incorporou a teoria da vontade para o dolo direto e a referida teoria do consentimento para o dolo eventual, equiparando as duas espécies de dolo e diferenciando-as na fase de aplicação da pena. Sob a perspectiva da compreensão finalista da teoria do delito, o dolo é considerado o elemento subjetivo geral do injusto, que implica a consciência e a vontade de conjecturar os elementos objetivos do tipo. (CUNHA, 2016).
Nesse sentido, o dolo é composto por um momento intelectual - o conhecimento do que se deseja - e um momento eminentemente volitivo - a decisão de agir para realizar a conduta desejada. Em outras palavras, é necessária cognição e vontade para que o dolo possa ser caracterizado, apesar das controvérsias em torno de sua identificação, como no caso das teorias cognitivas que propõem o "dolo despsicologizado" ou sem vontade. Além disso, é importante diferenciar o dolo eventual da culpa consciente, uma vez que essa diferenciação pode ter implicações práticas significativas.
Cumpre observar, que todo o tipo penal, em regra, é doloso. Será culposo quando houver previsão. Quando forem imprevisíveis, o dolo e a culpa, em qualquer fato que ensejar um resultado naturalístico, resultara em atipicidade (MARQUES, 1997).
O dolo se fragmenta em várias espécies, mas, por conta da especificidade do presente escrito, será tratado apenas dos essenciais: dolo direito e dolo eventual, ressalvada atenção ao último.
Os institutos nada se dissociam do conceito de dolo produzido anteriormente. A diferença entre o dolo direto e o eventual, em plano geral, esta na medida da ambição na consecução de determinado fim.
No dolo direto – o que mais se aproxima do real conceito de dolo – o agente tem ampla consciência e vontade de fazer nascer algum resultado ilícito de sua conduta. Já no dolo eventual, nos dizeres de Magalhães Noronha (2020 apud NUCCI, 2019) o sujeito prevê o resultado e, não quer atingi-lo, mas não tem nenhuma importância quanto a sua existência.
O dolo eventual, segundo Jundeira (2021) possui certo grau de dificuldade em sua explicação, além da extrema dificuldade em constituir provas. Para melhor compreensão do instituto, o abalizado Nélson Hungria (apud CAPEZ 2019, p.381) lembra a fórmula de Frank (2014, p.289) para explicar o dolo eventual: “Seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir”.
Como exemplo de dolo eventual: “querer matar X, saber que também matará Y e assumir o risco de que projéteis atinjam terceiros, pois estão em via pública” (ROXIN 1973, p.415 apud NUCCI 2019, p. 548).
Ante todos os fatos, ressalta-se que a situação problema da banalização do dolo eventual não se assenta na igualação do tratamento, mas nos limites descabidos e imprecisos deste instituto em relação á culpa consciente.
4 CULPA CONSCIENTE
A culpa pode decorrer de abstenção de um ato ou em sua execução, em que as consequências geram uma lesão de direito que não foi prevista nem objetivada, mas que podia ter sido visualizada. Ou melhor, o agente ativo não deseja o resultado, mas consegue visualizá-lo, e, mesmo assim, continua (GOYENA, 1928, p.88 apud NUCCI, 2019).
Para auxiliar na interpretação do elemento culpa e, principalmente, dirimir qualquer controvérsia doutrinária ou jurisprudencial que poderia surgir, o artigo 18, inciso II, do Código Penal traça culpa como “quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia” (BRASIL, 1940, n.p.).
No entanto, tal conceito legal é precário, merecendo ressalvas o conceito de culpa que emerge do Código Penal Militar, artigo 33, inciso II, sendo “culposo, quando o agente, deixando de empregar a cautela, atenção, ou diligência ordinária, ou especial, a que estava obrigado em face das circunstâncias, não prevê o resultado que podia prever ou, prevendo-o, supõe levianamente que não se realizaria ou que poderia evitá-lo”. (BRASIL, 1969, n.p.).
Nessa lógica, para alcançar o feitio da culpa é essencial não só a existência de um conceito, mas um juízo de valor sobre a comportamento do indivíduo, traçando um paralelo com a que um homem de prudência média teria na mesma circunstância. Deverá ocorrer, portanto, analise única da fatal ação de um homem médio (normal) e do agente que praticou o fato típico, e, caso observado que qualquer ser humano médio realizaria pratica diversa ao agente do caso, haverá culpa (CAPEZ, 2019).
Finalmente, transcorrida a parte conceitual e específica, é de suma importância explicitar as espécies de culpa, (não todas) mas apenas a culpa consciente e a culpa inconsciente, com ressalvas a última figura.
A interpretação de culpa inconsciente (culpa sem previsão, ou culpa por excelência, ou culpa ex ignorantia) é perfeitamente amoldada à matriz conceito de culpa, na qual o individuo não tem visão do resultado, mas a mera probabilidade de prever. Dessa forma, a ação do agente não é dirigida ao resultado específico, nem antevê o que era visivel, e, em decorrencia disso, acaba por consumá-lo (JUNQUEIRA; VAN, 2019).
Por outro lado, a culpa consciente (culpa com previsão ou culpa ex lascivia) – pivô do problema do presente trabalho científica – seria aquela em que o agente visualiza o resultado danoso que emanara de sua conduta, mas, instado por sua capacidade, acredita ser totalmente capaz de evitar.
Embora prevendo o que possa ocorrer, o sujeito rejeita essa possibilidade. Como exemplo, “se eu continuar dirigindo assim posso matar alguém, mas estou convicto que isso, embora teoricamente possível, não ocorrerá” (CAPEZ, 2019, p.393).
Assim, o próximo tópico será direcionado ao tema da transgressão do princípio do Favor- Rei em razão da banalização do dolo eventual.
5 DIFERENÇA ENTRE DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE E A VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO FAVOR–REI
Por certo, a diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente é sutil e ambos compartilham de uma zona fronteiriça entre si. A principal distinção é que, na culpa tida como consciente, o sujeito não aceita o risco de encaminhar um resultado ilícito, ao contrário do que ocorre no dolo eventual. Na culpa consciente, o agente não tem intenção de produzir o resultado, por outra fase no dolo eventual, o agente age com a consciência de que o resultado lesivo pode ocorrer, mas decide prosseguir mesmo assim, pois o valor de seu ato (ação) é considerado maior que o valor do resultado negativo. Em resumo, a culpa consciente é caracterizada por um excesso de confiança na não produção do resultado, enquanto o dolo eventual é motivado por egoísmo, no qual o agente valoriza mais sua ação do que o resultado que pode ser lesivo.
A constituição de provas acerca do dolo eventual e da culpa consciente é atividade, por muitas vezes, penosa e delicada. Ambos os institutos, segundo Nucci (2019, p.572), são quase iguais, ou mais, passiveis de confusão e abertos a interpretações ou modificações conforme as circunstâncias fáticas. Segundo o autor:
Somente penetrando-se na mente do sujeito, o que ainda não é possível no estágio atual da humanidade. Na realidade, tem-se feito a referida distinção com base nas circunstâncias do delito. Visualizando as provas, o julgador forma a sua convicção no sentido de ter havido dolo eventual ou culpa consciente conforme o cenário e seus detalhes. Em verdade, é impossível extrair do pensamento do agente, reconhecendo a sua efetiva vontade, a real situação pertinente ao dolo eventual ou à culpa consciente. Noutros termos, baseia-se na sorte (NUCCI, 2019, p.572).
Inclusive o autor ressalta que a distinção entre culpa consciente e dolo eventual é atividade de pura adivinhação, pois as circunstâncias do delito, quando insuficientes as provas, abre possibilidade para ações abusivas, tendentes a punir o individuo conforme o próprio senso moral e buscando atender aos preceitos positivistas; é evidente a possibilidade de violação aos preceitos principiológicos de ordem constitucional e penal (2019).
O princípio do Favor-Rei (favor libertatis ou in dúbio pro reo), que surge do princípio da presunção de inocência previsto no artigo 5°, LVII, da Constituição Federal, é o mais lesado diante da dúvida entre o dolo eventual e a culpa consciente. Ante o princípio do favo-rei, a dúvida deve ser presumida como favorável ao acusado, devendo ser analisado a título mais benéfico ao sujeito (com base nas provas) (BRASIL, 1988).
O referido princípio do favor rei, também conhecido como princípio in dubio pro reo, se fundamenta na prevalência do direito de liberdade do acusado sobre o direito de punir do Estado. Esse princípio estabelece que, em caso de dúvida, deve-se favorecer o réu. Além disso, ele deve orientar as regras de interpretação, de modo que, diante de duas possibilidades interpretativas, deve-se escolher a que é mais favorável ao acusado (CAPEZ, 2019).
Vale observar o conteúdo do voto do Excelentíssimo ministro Celso Mello, ao julgamento da AP 858/DF (2014):
A absoluta insuficiência da prova penal existente nos autos não pode legitimar a formulação de um juízo de certeza quanto à culpabilidade do réu. Na realidade, em nosso sistema jurídico, como ninguém o desconhece, a situação de dúvida razoável só pode beneficiar o réu, jamais prejudicá-lo, pois esse é um princípio básico que deve sempre prevalecer nos modelos constitucionais que consagram o Estado democrático de Direito. O exame dos elementos constantes destes autos evidencia que o Ministério Público deixou de produzir prova penal lícita que corroborasse o conteúdo da imputação penal deduzida contra o réu, não sendo capaz de cumprir, por isso mesmo, a norma inscrita no art. 156, caput, do CPP, que atribui ao órgão estatal da acusação penal o encargo de provar, para além de qualquer dúvida razoável, a autoria e a materialidade do fato delituoso. Como sabemos, nenhuma acusação penal se presume provada.
No entanto, Flávio Medeiros (2017) diz não ser possível aplicar o princípio do favor-rei dentro da ótica do Ministério Público, pois esse tem a função máxima de acusar. Diante da prova duvidosa, deve denunciar. Ou seja, quando o caso dispor de dois possíveis fins impositivos, um mais robusto e outro mais brando, deve tomar o mais robusto como certo, mesmo diante do princípio do favor-rei.
O próximo tópico será voltado a justificar o motivo do não cumprimento dos princípios básicos do Estado democrático de direito, e apresentar a banalização no direito brasileiro, citando como exemplo o Caso Boate Kiss.
6 BANALIZAÇÃO DO DIREITO NACIONAL E O CASO “BOATE KISS”
A banalização decorre do termo banalidade, alcunho ao direito banal, dos senhores absolutistas, ante o poder de constranger os súditos ou vassalos a mandamentos pré- moldados e constituídos a partir de necessidades próprias relativas à perpetuação do poder. Todas as disposições decorriam do juízo de valor do senhor absolutista. O direito era direcionado as suas necessidades e não as do povo. A existência de punições repugnantes, ríspidas e cruéis para todo e qualquer ato interpretado como ilícito, mesmo de pequena repercussão, dispunha de uma das várias características da época. (PLÁCIO; SILVA, 2014).
O populismo penal, que significa aplicação de um direito penal culminante e mais intransigente, tem corroborado no desenvolvimento da antiga versão da banalização presente nas sociedades rudimentares e que esta aflorando na atual sistêmica jurídica nacional, segundo a locução latina: ubi jus ibi societas e ubi societas ibis jus (“onde há direito, há sociedade e onde há sociedade, há direito”) (PLÁCIO; SILVA, 2014, p. 253).
Segundo Luiz Flávio Gomes, a característica preponderante do populismo penal está ligada ao desenvolvimento de inúmeros tipos penais voltados a suprir as demandas positivistas:
Os atores políticos (governantes e legisladores) prometem o fim da impunidade generalizada e para isso aprovam aumento de penas, endurecimento da execução penal, acenam com a diminuição da idade da imputabilidade penal, criam regimes prisionais duríssimos, etc. Todas essas medidas, no final, resultam pouco operantes para reduzir a criminalidade. Com o passar do tempo surgem novas demandas e outras leis são aprovadas, formando-se um círculo vicioso (2012, n.p.)
Tal prática permeia inúmeras ações da classe política nacional. Isso é visível pela produção de normas penais com sanções extremas, como, por exemplo, a Lei 14.344 de 2022 (Lei Henry Borel) que alterou o texto do inciso II, do §7°, do artigo 121 ou a lei de crimes Hediondos e outros inúmeros dispositivos legais que buscam cuidar dos efeitos e não das causas do problema. Outros exemplos são visíveis nas práticas do poder judiciário, por meio da imposição de sanções descabidas ou na modulação de tipos penais
A sociedade, nos dizeres de John Pratt (apud GAIO, 2011, p.4), conferem os criminosos “como favorecidos às expensas das vítimas de crimes e, em particular, daqueles que seguem as leis em geral. Isto alimenta as expressões de raiva, desencantamento e desilusão com o sistema criminal vigente”
Em decorrência dessa visão vingativa, a sociedade faz surgir à ideia do direito penal absoluto. Quanto mais pena melhor; mais presos melhor; mais lei melhor.
Desse modo, é importante observar que o direito penal nunca solucionou nenhum problema, fincando a história intuída de deixar isso claro, como nos diz Magalhães:
Mais controle, mais punição, mais direito penal. É claro que isto não resolverá o problema enquanto não respondermos outras perguntas que passam pela questão cultural, estrutural (socioeconômica) e simbólica de nossa sociedade. De repente o direito penal, o processo penal ganhou centralidade: todas as soluções passam por leis mais duras, mais penas, cadeia, punição. É a repetição com uma outra roupa do que já foi feito várias vezes e nunca funcionou. Estão nos fazendo de bobos, de novo: o direito penal não resolverá problema algum. (SILVA; ARAUJO, 2015, p.51 apud MAGALHÃES, 2012, n.p.).
Cumpre salientar que o tema da banalização do dolo eventual tem total relação com o populismo penal, ante a manifestação de um direito penal total que ganha espaço no contexto jurídico nacional. O abissal problema está na renegação das bases científicas do direito penal que iguala e equivale a abandoná-lo; e deixá-lo significa regredir a barbárie.
6.1 Caso Boate Kiss
No dia 27 de janeiro de 2013, as 3 horas da manhã, um incêndio ocorreu nas dependências do clube noturno Boate Kiss, localizada em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Acabou por incorrer na morte de 242 pessoas (segundo os dados recentes) e mais de 600 feridos.
De acordo com os peritos responsáveis pelo caso, o fogo de artifício "Chuva de Prata 6" (conhecido popularmente como Sputnik), que era destinado para uso externo, foi utilizado indevidamente pela banda "Gurizada Fandangueira" dentro da boate, e acabou causando um incêndio. Os fogos tiveram contato com uma esponja constituída de poliuretano que revestia parcialmente a estrutura da boate. A queima dessas esponjas liberou moléculas de monóxido de carbono (CO), que foram inaladas pelas pessoas presentes na boate. O monóxido de carbono impossibilita a condução de oxigênio pelo sangue, causando a morte por asfixia. É importante salientar que a interpretação da causa do incêndio é baseada nos laudos dos peritos, que concluíram que o uso indevido do fogo de artifício foi a causa do incidente. (FERNANDES, 2021).
Além dos referidos problemas, a área da boate também foi, segundo o perito, causa para o grande número de óbitos, pois se tratava de um local restrito e fechado, o que facilitou a ação do monóxido de carbono.
Quanto aos acusados, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul apresentou uma denúncia contra Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffman, os proprietários da casa noturna; e Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão, respectivamente vocalista e produtor da banda Gurizada Fandangueira. Todos eles foram acusados de cometer homicídios intencionais, com base na alegação de dolo eventual (FERNANDES, 2021).
Já no transcorrer da persecução penal, o Ministério Público do Rio Grande do Sul ofereceu denúncia, no seguinte molde:
Os denunciados assumir o risco de produzir mortes das pessoas que estavam na boate revelando total indiferença e desprezo pela segurança e pela vida das vítimas, pois, mesmo prevendo a possibilidade de matar pessoas em razão da falta de segurança, não tinham nenhum controle sobre o risco criado pelas diversas [...] (SILVA; ARAÚJO, 2016, p.53 apud MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, 2012).
Vale ressaltar que nas hipóteses de dolo eventual ou culpa consciente existe a previsibilidade de um resultado não aceito sem que o indivíduo tenha comando acerca do risco criado. Logo, o “controle do risco” não tem condão de aferir se uma conduta será dolosa ou culposa, como já foi apresentado no decorrer da presente obra.
O primeiro argumento presente na denúncia merece atenção:
Uma vez que houve previsão das mortes, cumpre também afastar a hipótese de culpa consciente, porque esta pressupõe a adoção de cautelas que permitam confiar, ainda que levianamente, no controle do risco criado, como no caso do atirador da elite que, mesmo conhecendo o risco de seu comportamento, acredita estar no controle da situação, com base em sua expertise no emprego da arma (SILVA; ARAÚJO, 2016, p.53 apud MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, 2012).
Como já concerto, na culpa consciente o individuo atua por excesso de confiança, e, como trata Silva e Araújo (2016), por confiar totalmente na não ocorrência do resultado, não se acautela como necessário. Nesse ponto, a culpa consciente é inversamente ao tratado na denúncia, relacionada mais pelo desleixo do que pela cautela. Ou seja, excesso de confiança é voltado ao descuido e não o contrário.
O outro argumento utilizado pelo Ministério Público foi:
Anote-se, ainda, que o DireitoPenal adota o princípio da excepcionalidade do crime culposo, na forma do parágrafo único do art. 18 do Código Penal, devendo-se partir do dolo como premissa. Assim, numa criteriosa análise técnica, conclui-se pelo dolo eventual, haja vista que, se não tinham controle do risco criado e nada em que confiar, os agentes agiram com indiferença, aceitando e, portanto, assumindo o risco de matar. (SILVA; ARAÚJO, 2016, p.53 apud MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, 2012, n.p.).
O MP disse que quando houver divergência na imputação de dolo ou culpa, deve imperar a modalidade dolosa. Evidente contorcionismo conceitual. Já foi tratado na presente obra acerca do princípio do Favor-Rei – além da AP 858/ DF -, no qual a dúvida deve surtir efeito benéfico ao acusado, por meio da desclassificação do fato típico ou no deslocamento para a culpa consciente.
Silva e Araújo (2016, p.59) observam que os princípios basilares do direito – não-culpabilidade e do Favor-Rei - devem ser analisados com respeito e protegidos:
Os princípios da não-culpabilidade e do Favor-Rei, devemos sempre empregar o direito penal no sentido a beneficiar o sancionado e não o contrário. Preferir dolo à culpa implica em aquiescer que determinada pessoa é culpada sem que, antes, se prove o oposto. Ceder a esse entendimento é voltar à barbárie e entregar muito poder ao Estado.
O argumento utilizado pelo Ministério Público e aceitos pelo poder judiciário apresentam vários fatores ambíguos, que, segundo os princípios penais e processuais, além da doutrina mais abalizada, visa corroborar para outras necessidades externas a cadeia processual. A banalização do direito penal é uma das principais causas do surgimento da respetiva controvérsia, ante os argumentos desenvolvidos no transcorrer do presente trabalho.
8 CONCLUSÃO
De início, o presente trabalho expôs o conceito ligado ao princípio da legalidade e sua importância para o equilíbrio do sistema jurídico nacional, pois dele surge muitos outros princípios, em especial, o princípio da taxatividade e do direito Favor-Rei, previstos na constituição federal de 1988. Os seguintes princípios, como foi exposto, estão sofrendo grave violação, ante a Banalização presente atualmente no sistema jurídico penal, como exemplo, o dolo eventual.
Tendo em vista a problemática da presente obra científica, foram tracejados os conceitos de culpa consciente e dolo eventual. Alcançou-se a conclusão de que ambos os institutos são de difícil distinção no plano concreto.
Tornar-se manifesta que a vulgarização do dolo eventual existe, ponderando a influência social que leva os agentes da persecução penal a tomarem decisões baseadas em ódio e retribucionismo inquisitório proveniente da sociedade. Mesmo quando não existam provas cabais acerca da real caracterização do dolo eventual e da culpa consciente, algumas decisões acatam o argumento mais prejudicial ao acusado, afetando e renegando os princípios da legalidade, taxatividade e favor-rei.
O triste caso da Boate Kiss é um exemplo claro da banalização do dolo pelos agentes processuais. No caso, o Ministério Público construiu um conceito simplista de dolo eventual, decorrente de ínfima base probatória, mas que foi absurdamente explorada pelos meios midiáticos. Isso influenciou a sociedade a iniciar manifestações críticas contra os envolvidos no caso, e, principalmente, contra os agentes do processo. O Ministério Público e o poder judiciário foram intuídos da missão de levar uma resposta para a sociedade. A maior pena possível. Por meio do dolo.
O presente artigo não tem a finalidade de contraditar o conceito de dolo ou de culpa previstos no Código Penal, mas manifestar a existência de ações ruinosas ao sistema democrático: a banalização do direito penal.
Por termo, os argumentos utilizados pelo MP foram direcionados “finalissimamente” para acalmar os ânimos da sociedade, caracterizando cabal violação dos princípios normativos e aviventando a atual discussão da banalização do dolo eventual. As terminologias utilizadas no corpo da denúncia fogem das regras doutrinárias e legais básicas que tão base ao direito penal, e, principalmente, ao Estado Democrático de Direito.
A solução para o respetivo problema se assenta na construção de um conceito mais assertivo e específico do que seria dolo eventual e culpa consciente, com o fim de impossibilitar interpretações abertas. Deve existir mais ponderação do poder judiciário sobre decisões desenvolvidas sobre a arrima da dúvida acerca de conceitos similares.
A observância dos princípios penais-constitucionais é fundamental em um Estado Procedimental, em especial os da Legalidade Penal, da não-culpabilidade e do Favor-Rei. Esses princípios são essenciais para proteger nossa Constituição e nossa sociedade contra discursos demagógicos e incoerentes.
REFERÊNCIAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 7. Edição. São Paulo: saraivajus, 2012.
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graduando em Direito do UNIFUNEC - Centro Universitário de Santa Fé do Sul-SP .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, BEN-HUR PEREIRA DA. Banalização do dolo eventual: caso “Boate Kiss” Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jun 2023, 04:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61595/banalizao-do-dolo-eventual-caso-boate-kiss. Acesso em: 26 dez 2024.
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