RESUMO: O presente artigo busca analisar os fundamentos gerais do direito à liberdade de expressão e os principais elementos que integram a doutrina da posição preferencial, tese que defende o reconhecimento da posição privilegiada da liberdade de expressão em relação a outros direitos fundamentais. Por outro lado, o discurso de ódio ou hate speech, remete a um conceito não unívoco, de limites relativamente imprecisos, e é empregada para designar condutas expressivas muito heterogêneas, que, quando olhadas em conjunto, não apresentam uma essência ou característica definidor. O STF, para usar de exemplo a mais alta corte, tomou decisões importantes para assegurar o direito de manifestação e de comunicação, como ao declarar a inconstitucionalidade da Lei de Imprensa, liberar a publicação de biografias não autorizadas, garantir a exposição de publicações com temas homoafetivos e proteger, em inúmeras oportunidades, o sigilo de fonte dos jornalistas.
Palavras-chave: Liberdade de Expressão. Direito Fundamental. Limites. Discurso de Ódio.
ABSTRACT: This article seeks to analyze the general foundations of the right to freedom of expression and the main elements that make up the doctrine of preferential position, thesis that defends the recognition of the privileged position of freedom of expression in relation to other fundamental rights. On the other hand, hate speech refers to a non-univocal concept, with relatively imprecise limits, and is used to designate very heterogeneous expressive behaviors that, when looked at as a whole, do not have a defining essence or characteristic. The STF, to use the highest court as an example, took important decisions to ensure the right to demonstrate and communicate, such as declaring the unconstitutionality of the Press Law, releasing the publication of unauthorized biographies, guaranteeing the exposure of publications with themes homoaffective people and protect, on numerous occasions, the secrecy of journalists' sources.
Keywords: Freedom of expression. Fundamental right. Limits. Hate Speech.
1 INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 abraçou as liberdades. Dentre uma lista delas, destaca expressamente a proteção à liberdade de manifestação do pensamento, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Assegura o sigilo de fonte aos profissionais da comunicação e veda expressamente a censura.
Em outras palavras, após um longo caminho, consagrou-se no Brasil o direito de expressão como inerente à dignidade humana, à cidadania e como pilar de um Estado plural e democrático. Ao menos no papel, a liberdade de expressão é plena. Cada cidadão pode manifestar quaisquer ideias, por mais absurdas e estúpidas que sejam, dentre as quais até a supressão do regime democrático e da própria liberdade de expressão.
A Constituição garante a liberdade de expressão, com responsabilidade. A liberdade de expressão não pode ser usada para a prática de atividades ilícitas ou para a prática de discursos de ódio, contra a democracia ou contra as instituições.
O Supremo Tribunal Federal (STF), na AP 1044/DF, julgada em 20/04/2022, no Informativo 1051/2022, decidiu que “a liberdade de expressão existe para a manifestação de opiniões contrárias, jocosas, satíricas e até mesmo errôneas, mas não para opiniões criminosas, discurso de ódio ou atentados contra o Estado Democrático de Direito e a democracia” e que “não configura abolitio criminis com relação aos delitos previstos na Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983)”.
Nesse sentido, são inadmissíveis manifestações proferidas em redes sociais que objetivem a abolição do Estado de Direito e o impedimento, com graves ameaças, do livre exercício de seus poderes constituídos e de suas instituições.
Ademais, conforme jurisprudência do STF, a garantia constitucional da imunidade parlamentar incide apenas sobre manifestações proferidas no desempenho da função legislativa ou em razão desta, não sendo possível utilizá-la como escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas.
Não há, contudo, prerrogativas absolutas, na lei ou na vida. A Constituição prevê, ao lado da liberdade de expressão, inúmeros outros direitos, que devem ser exercidos em harmonia, garantindo-se o maior espaço de liberdade possível aos cidadãos. Quando tais direitos colidem, é preciso reduzir o âmbito de existência de cada um, de forma racional e ponderada, para preservar o exercício de ambos.
É o que ocorre, por exemplo, quando a expressão do pensamento afeta a honra, a intimidade ou a vida privada de terceiros, direitos também protegidos pela Constituição Federal.
Aquele que difama, calunia ou injuria outros, pode ser responsabilizado civil ou criminalmente pelas consequências de seus atos, embora nem nessas hipóteses seja admitida censura prévia. A liberdade não é um salvo conduto para a agressão, para a violação da dignidade alheia.
O direito penaliza aqueles que usam da palavra escrita ou verbal para desgastar a honra alheia, abrindo-se uma exceção nas críticas a pessoas públicas —em especial autoridades—, caso em que mesmo declarações ácidas, profundas e impiedosas são admitidas, desde que não resvalem na imputação falsa de crimes, ou em declarações inverídicas sobre fatos desabonadores.
Para além da honra, a liberdade de expressão também encontra limite quando se trata de discursos de ódio, que incitam a violência ou a agressão. Qualquer cidadão pode expressar suas ideias, por mais absurdas e estapafúrdias que sejam, desde que não ameace terceiros.
A medida desse limite é uma opção política, estritamente ligada à cultura e à história de determinada agremiação social. Nos Estados Unidos, por exemplo, se confere um amplo espaço à liberdade de expressão. Lá, a Suprema Corte já reconheceu a queima da bandeira americana (Texas vs. Johnson, 1989), os insultos a minorias ou grupos raciais (Brademburg vs. Ohio, 1969) e até mesmo a queima de cruzes —símbolo da odiosa organização racista Ku Klux Klan (R.A.V. vs Saint Paul, 1992) — como manifestações da liberdade de expressão, quando não acompanhadas de ameaças concretas ou violência.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 A liberdade de expressão e posição preferencial
Sem liberdade de expressão, não há democracia. Ela ocupa o centro nevrálgico de uma estrutura democrática (GARGARELLA, 2011, p. 30) e, por isso, no Brasil1, foi inscrita topograficamente em posição de destaque na Constituição Federal (art. 5o, IX). A liberdade de expressão apresenta a mesma relevância no plano dos tratados internacionais, de forma especial dentro do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, no artigo 13 da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica.
O art. 220 da Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição.
O art. 220 é de instantânea observância quanto ao desfrute das liberdades de pensamento, criação, expressão e informação que, de alguma forma, se veiculem pelos órgãos de comunicação social. Isto sem prejuízo da aplicabilidade dos seguintes incisos do art. 5º da mesma CF: vedação do anonimato (parte final do inciso IV); do direito de resposta (inciso V); direito a indenização por dano material ou moral à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas (inciso X); livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (inciso XIII); direito ao resguardo do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional (inciso XIV). Lógica diretamente constitucional de calibração temporal ou cronológica na empírica incidência desses dois blocos de dispositivos constitucionais (o art. 220 e os mencionados incisos do art. 5º).
Noutros termos, primeiramente, assegura-se o gozo dos "sobredireitos" de personalidade em que se traduz a "livre" e "plena" manifestação do pensamento, da criação e da informação. Somente depois é que se passa a cobrar do titular de tais situações jurídicas ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, ainda que também densificadores da personalidade humana.
Determinação constitucional de momentânea paralisia à inviolabilidade de certas categorias de direitos subjetivos fundamentais, porquanto a cabeça do art. 220 da Constituição veda qualquer cerceio ou restrição à concreta manifestação do pensamento (vedado o anonimato), bem assim todo cerceio ou restrição que tenha por objeto a criação, a expressão e a informação, seja qual for a forma, o processo, ou o veículo de comunicação social.
Com o que a Lei Fundamental do Brasil veicula o mais democrático e civilizado regime da livre e plena circulação das ideias e opiniões, assim como das notícias e informações, mas sem deixar de prescrever o direito de resposta e todo um regime de responsabilidades civis, penais e administrativas. Direito de resposta e responsabilidades que, mesmo atuando a posteriori, infletem sobre as causas para inibir abusos no desfrute da plenitude de liberdade de imprensa. (...) Incompatibilidade material insuperável entre a Lei 5.250/1967 e a Constituição de 1988. Impossibilidade de conciliação que, sobre ser do tipo material ou de substância (vertical), contamina toda a Lei de Imprensa: a) quanto ao seu entrelace de comandos, a serviço da prestidigitadora lógica de que para cada regra geral afirmativa da liberdade é aberto um leque de exceções que praticamente tudo desfaz; b) quanto ao seu inescondível efeito prático de ir além de um simples projeto de governo para alcançar a realização de um projeto de poder, este a se eternizar no tempo e a sufocar todo pensamento crítico no País. [ADPF 130, rel. min. Ayres Britto, j. 30-4-2009, P, DJE de 6-11-2009.]
A liberdade de expressão no Brasil viveu uma história acidentada. Apesar de prevista expressamente em todas as Constituições, desde 1824, ela é marcada pelo desencontro entre o discurso oficial e o comportamento do Poder Público, pela distância entre intenção e gesto. O Supremo Tribunal Federal STF- na RECLAMAÇÃO 22.328, que teve como relator, o Ministro Roberto Barroso, entendeu que a liberdade de expressão desfruta de uma posição preferencial no Estado democrático brasileiro, por ser uma pré-condição para o exercício esclarecido dos demais direitos e liberdades e que eventual uso abusivo da liberdade de expressão deve ser reparado, preferencialmente, por meio de retificação, direito de resposta ou indenização.
Veja-se a fundamentação da reclamação:
A liberdade de expressão no Brasil viveu uma história acidentada. Apesar de prevista expressamente em todas as Constituições, desde 1824, ela é marcada pelo desencontro entre o discurso oficial e o comportamento do Poder Público, pela distância entre intenção e gesto. Em nome da religião, da segurança pública, do anticomunismo, da moral, da família, dos bons costumes e outros pretextos, a história brasileira na matéria tem sido assinalada pela intolerância, pela perseguição e pelo cerceamento da liberdade. Entre nós, como em quase todo o mundo, a censura oscila entre o arbítrio, o capricho, o preconceito e o ridículo. Assim é porque sempre foi.
Para registrar apenas a experiência brasileira mais recente, ao longo do regime militar: a) na imprensa escrita, os jornais eram submetidos a censura prévia e, diante dos cortes dos censores, viam-se na contingência de deixar espaços em branco ou de publicar poesias e receitas de bolo; b) no cinema, filmes eram proibidos, exibidos com cortes ou projetados com tarjas que perseguiam seios e órgãos genitais, transformando drama em comédia (e.g., “A Laranja Mecânica”); c) nas artes, o Balé Bolshoi foi impedido de dançar no Brasil, por constituir propaganda comunista; d) na música, havia artistas malditos, que não podiam gravar nem aparecer na TV; e outros que só conseguiam aprovar suas músicas no Departamento de Censura mediante pseudônimo; e) na televisão, programas foram retirados do ar, suspensos ou simplesmente tiveram sua exibição vetada, em alguns casos com muitos capítulos gravados, como ocorreu com a novela Roque Santeiro. f) o ápice do obscurantismo foi a proibição de divulgação de um surto de meningite, para não comprometer a imagem do Brasil Grande.
Como o passado condenava, a Constituição de 1988 foi obsessiva na proteção da liberdade de expressão, nas suas diversas formas de manifestação, aí incluídas a liberdade de informação, de imprensa e de manifestação do pensamento em geral: intelectual, artístico, científico etc.
Veja-se, a propósito, o que dispõe o art. 5º, IV, IX e XIV, bem como art. 220, §§ 1º e 2º, da Constituição:
“Art. 5º. (...) IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (...)
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica ou de comunicação, independentemente de censura ou licença;
(...) XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;”
“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
Como se constata dos dispositivos referidos, a Constituição proíbe, expressamente, a censura – isto é, a possibilidade de o Estado interferir no conteúdo da manifestação do pensamento – e a licença prévia, bem como protege o sigilo da fonte. 11.A Carta de 88 incorporou um sistema de proteção reforçado às liberdades de expressão, informação e imprensa, reconhecendo uma prioridade prima facie destas liberdades públicas na colisão com outros interesses juridicamente tutelados, inclusive com os direitos da personalidade. Assim, embora não haja hierarquia entre direitos fundamentais, tais liberdades possuem uma posição preferencial (preferred position), o que significa dizer que seu afastamento é excepcional, e o ônus argumentativo é de quem sustenta o direito oposto. Consequentemente, deve haver forte suspeição e necessidade de escrutínio rigoroso de todas as medidas restritivas de liberdade de expressão.
Este lugar privilegiado que a liberdade de expressão ocupa nas ordens interna e internacional tem a sua razão de ser. Ele decorre dos próprios fundamentos filosóficos ou teóricos da sua proteção, entre os quais se destacam cinco principais: (i) a função essencial que desempenha para a democracia, ao assegurar um livre fluxo de informações e a formação de um debate público robusto e irrestrito, condições essenciais para a tomada de decisões da coletividade e para o autogoverno democrático; (ii) a dignidade humana, ao permitir que indivíduos possam exprimir de forma desinibida suas ideias, preferências e visões de mundo, bem como terem acesso às dos demais indivíduos, fatores essenciais ao desenvolvimento da personalidade, à autonomia e à realização existencial; (iii) a busca da verdade, ao contribuir para que ideias só possam ser consideradas ruins ou incorretas após o confronto com outras ideias; (iv) a função instrumental ao gozo de outros direitos fundamentais, como o de participar do debate público, o de reunir-se, de associar-se, e o de exercer direitos políticos, dentre outros; e, conforme destacado anteriormente (v) a preservação da cultura e da história da sociedade, por se tratar de condição para a criação e o avanço do conhecimento e para a formação e preservação do patrimônio cultural de uma nação.”.
Não obstante, a mera preferência da liberdade de expressão (ao invés de sua prevalência) decorre do fato de que nenhum direito constitucional é absoluto, tendo em vista que a própria Constituição impõe alguns limites ou algumas qualificações à liberdade de expressão, como por exemplo:
a) vedação do anonimato (art. 5º, IV);
b) direito de resposta (art. 5º, V);
c) restrições à propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos e terapias (art. 220, § 4º);
d) classificação indicativa (art. 21, XVI); e
e) dever de respeitar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art. 5º, X) 1
Isso conduz ao tema dos direitos da personalidade e sua ponderação com os direitos ligados à liberdade de expressão.
“Direitos da personalidade" é uma expressão de uso relativamente recente no direito brasileiro, tendo sido desenvolvida pela doutrina contemporânea até ingressar no Código Civil, que abriu para o tema um capítulo específico, logo no Título I. É possível conceituar os direitos da personalidade, inerentes a toda pessoa humana, como a versão privada dos direitos fundamentais, e sua aplicação às relações com outros indivíduos como regra geral.
Os direitos da personalidade costumam ser divididos pela doutrina civilista em dois grandes grupos: (i) direitos à integridade física, que englobam o direito à vida, o direito ao próprio corpo e o direito ao cadáver; e (ii) direitos à integridade moral, rubrica sob a qual se abrigam, entre outros, os já mencionados direitos à honra, à imagem, à privacidade e o direito moral do autor.
Tanto a liberdade de expressão como os direitos de privacidade, honra e imagem têm estatura constitucional. Vale dizer: entre eles não há hierarquia. De modo que não é possível estabelecer, em abstrato, qual deve prevalecer.
Em caso de conflito entre normas dessa natureza, impõe-se a necessidade de ponderação, que, como se sabe, é uma técnica de decisão que se desenvolve em três etapas: (i) na primeira, verificam-se as normas que postulam incidência ao caso; (ii) na segunda, selecionam-se os fatos relevantes; (iii) e, por fim, testam-se as soluções possíveis para verificar, em concreto, qual delas melhor realiza a vontade constitucional. Idealmente, a ponderação deve procurar fazer concessões recíprocas, preservando o máximo possível dos direitos em disputa.
No limite, porém, fazem-se escolhas. Todo esse processo intelectual tem como fio condutor o princípio instrumental da proporcionalidade ou razoabilidade.
2.2 O discurso de ódio: o preconceito, a discriminação e a intolerância
Com os avanços da sociedade moderna, na era da informação, o mundo está completamente conectado, dessa forma, em tempo real, diferentes pessoas podem se comunicar, estabelecer relações comerciais, as notícias e os acontecimentos chegam aos mais diversos lares através de diferentes meios de comunicação, em especial a internet.
As diferentes mídias sociais são responsáveis por quase toda a interação na internet, no entanto, eventualmente, as pessoas utilizam esta ferramenta de maneira ofensiva. Com isso, surgem os discursos discriminatórios, também denominados Discursos de Ódio ou Hate Speech, que consiste em uma expressão de pensamento de maneira depreciativa voltado a um determinado grupo da sociedade, com o intuito de desqualificar, menosprezar e humilhar indivíduos. Frente aos abusos da liberdade de expressão, os discursos de incitação ao ódio às minorias sociais ultrapassam os limites
O discurso de ódio está dirigido a estigmatizar, escolher e marcar um inimigo, manter ou alterar um estado de coisas, baseando-se numa segregação. Para isso, entoa uma fala articulada, sedutora para um determinado grupo, que articula meios de opressão. Os que não se enquadram no modelo dominante de “sujeito social nada abstrato: masculino, europeu, cristão, heterossexual, burguês e proprietário” (RIOS, 2008, p. 82) são os potenciais inimigos. Rosenfeld (2001) realiza importante distinção do ponto de vista conceitual, cingindo o fenômeno em hate speech in form e hate speech in substance.
O hate speech in form são aquelas manifestações explicitamente odiosas, ao passo que o hate speech in substance se refere à modalidade velada do discurso do ódio.
O hate speech in substance pode apresentar--se disfarçado por argumentos de proteção moral e social, o que, no contexto de uma democracia em fase de consolidação, que ainda sofre com as reminiscências de uma ditadura recente, pode provocar agressões a grupos não dominantes. Ele produz violência moral, preconceito, discriminação e ódio contra grupos vulneráveis e intenciona articuladamente a sua segregação. Quanto aos envolvidos, especialmente no tocante aos grupos atingidos pelo discurso do ódio, de fato, o discurso invariavelmente é direcionado a sujeitos e grupos em condições de vulnerabilidade, que tratamos como grupo não dominante, dentro da perspectiva fornecida pelo Direito da Antidiscriminação, o que torna importante analisar a perspectiva fornecida pela Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância.
Conforme Silva et al. (2011), o discurso de ódio caracteriza-se pelo conteúdo segregacionista, fundado na dicotomia da superioridade do emissor e na inferioridade do atingido (a discriminação), e pela externalidade, ou seja, existirá apenas quando for dado a conhecer a outrem, que não o próprio emissor.
Ao salientar a discriminação preconceituosa, Zimmer (2001 apud BRUGGER, 2007, p. 118) afirma que: “[...] discurso do ódio refere-se a palavras que tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnia, nacionalidade, sexo ou religião, ou que têm a capacidade de instigar violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas”. Dessa maneira, o Hate Speech ou Discursos de Ódio, encontram-se na divulgação de conteúdo que estimulam o ódio racial, a homotransfobia, a xenofobia, a intolerância religiosa, a misoginia, e outras formas de aversão, baseada na intolerância as diferenças que confrontam os padrões éticos estabelecidos pelo grupo que se sente “superior”, com o objetivo de justificar a privação da liberdade desses grupos tidos como “inferiores”.
Os discursos de ódio de cunho racista e discriminatório migraram para um novo ambiente em ascensão, a internet. Indivíduos que aparentemente sentem-se protegidos por uma concepção de anonimato aproveitam esta ferramenta para espalhar discursos racistas e discriminatórios pelas mídias sociais, proferindo de modo ofensivo a integralidade da pessoa humana, com palavras, mensagens e diferentes outros meios de conteúdo que denigrem e ofendem a determinados grupos da sociedade.
No julgamento da ADO 26, em seu voto o Ministro Relator Celso de Mello, ao tomar como base a CF e a Lei 7.716/1989, qualificou as práticas homotransfóbicas como pertencentes ao gênero racismo, o que também envolve a dimensão de racismo social, uma vez em que essas condutas provocam a segregação e procuram inferiorizar. Dessa maneira, tais práticas de homotransfobia enquadram-se como atos de discriminação e de ofensa, ferindo direitos e liberdades fundamentais dos membros do grupo LGBTQIA+. Até meados de 2019 a LGTIfobia não possuía previsão legal, porém com as decisões recentes do STF, a criminalização das condutas discriminatórias, mesmo em ambiente virtual, passaram a ser penalizadas pela Lei 7.716/1989, assim, os atos de segregação que inferiorizam membros integrantes do grupo LGBTQIA+, em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero, são agora puníveis em ração de atos discriminatórios e de ofensa a direitos e liberdades fundamentais.
A xenofobia é uma categoria de preconceito ou ódio, hostilidade e repúdio aos estrangeiros ou nacionais no mesmo território, trata-se de um problema social e possui fundamentos em diversos fatores desde culturais, históricos e até mesmo religiosos. Esse crime é baseado na intolerância e discriminação frente a nacionalidades e culturas diferentes, gerando violência entre as nações do mundo, guerras generalizadas e tratamento cruel entre os indivíduos (LEFKOWITZ, 2010 apud MEJÍA, 2019). Destaca-se que a humanidade experimentou as piores espécies de violências a partir de campanhas de ódio em nome da dominação de grupos, tendo o Hate Speech como ferramenta de aniquilação, esses discursos se difundem entre as nações gerando constrangimentos e aversão entre os povos (BRUGGER, 2007).
Intolerância religiosa é a discriminação contra as pessoas e grupos com diferentes crenças ou religiões, sendo marcada principalmente por atitudes agressivas e ofensivas. O Brasil adotou o sistema laico, não possuindo nenhuma religião ou crença oficial, assim o direito de exercer as suas próprias crenças e cultos deve ser protegida pelo Estado como fonte de direito de primeira geração. O Art. 5°, VI, da Constituição Federal, assegura a liberdade de consciência e crença religiosa. Nas palavras de Moraes (2003, p. 56), “a liberdade de consciência constitui o núcleo básico de onde derivam as demais liberdades do pensamento. (...) cujo exercício regular não pode gerar restrição aos direitos de seu titular”. A função do Direito, através da Constituição, é garantir a inviolabilidade ao direito de consciência, ou seja, assegurar o exercício da crença e da manifestação da consciência, bem como o de não possuir nenhuma crença religiosa, protegendo, assim, também os ateus e agnósticos
A liberdade de expressão funciona como condição de tutela efetiva da liberdade religiosa, assegurando-se, em tal medida, a explicitação de compreensões religiosas do indivíduo e atuações conforme a crença. Caso contrário, ao invés de verdadeira liberdade, ter-se-ia mera indiferença religiosa, o que não se conforma com a envergadura constitucional da matéria. 6. Por outro lado, a liberdade religiosa, como é próprio dos direitos e garantias fundamentais, não ostenta caráter absoluto, devendo ser exercitada de acordo com a delimitação precisada pela própria Constituição, forte no Princípio da Convivência das Liberdades Públicas. Nesse sentido, observa Ada Pellegrini Grinover que as liberdades públicas:
"(…) têm sempre feitio e finalidades éticas, não podendo proteger abusos nem acobertar violações. (…) as liberdades públicas não podem ser entendidas em sentido absoluto, em face da natural restrição resultante do princípio da convivência das liberdades, pelo que nenhuma delas pode ser exercida de modo danoso à ordem pública e às liberdades alheias" (GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal, São Paulo, Ed. RT, 1982, p. 251, grifei).
Nessa perspectiva, cumpre assinalar que o repúdio ao racismo figura como um dos princípios que regem a República Federativa do Brasil em suas relações internacionais (art. 4°, VIII), a denotar a relevância, sob o ângulo constitucional, da matéria.
A característica plural da Constituição impõe que interesses de tal jaez, na hipótese em que colidentes, sejam contrastados a fim de alcançar a máxima efetividade de ambos. Com efeito, as nuanças da sociedade brasileira impõem, como condição de vida em comunidade, que as posições divergentes sejam mutuamente respeitadas, reclamando-se tolerância em relação ao diferente. Isso não significa, à obviedade, que se exija concordância ou persuasão. As normas de bem viver, na realidade, guardam pertinência com condutas de consideração recíproca, verdadeira regra de ouro de comportamento. Vale ressaltar que os limites de discursos religiosos não coincidem, necessariamente, com explicitações atinentes aos demais elementos normativos do tipo, quais sejam, raça, cor, etnia ou procedência nacional. Considerando que “a mensagem religiosa não pode ser tratada exatamente da mesma forma que qualquer mensagem não religiosa” (MACHADO, Jônatas. Liberdade Religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. p 226), passo a perquirir os limites do exercício da liberdade de expressão religiosa de acordo com as particularidades de explicitações dessa natureza.
3 CONCLUSÃO
O estatuto constitucional das liberdades públicas, bem por isso, ao delinear o regime jurídico a que elas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa –, permite que sobre tais prerrogativas incidam limitações de ordem jurídica destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, ainda que integrantes de grupos minoritários. Cabe referir, por oportuno, julgamento emanado da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, proferido em 07/04/2003, no exame do caso Virginia v. Black et al., quando essa Alta Corte concluiu que não é incompatível com a Primeira Emenda (que protege a liberdade de expressão naquele país) a lei penal que pune, como delito, o ato de queimar uma cruz (“cross burning”) com a intenção de intimidar, eis que o gesto de queimar uma cruz, com tal intuito, representa, no meio social em que praticado, um iniludível símbolo de ódio destinado a transmitir àqueles a quem se dirige tal mensagem o propósito criminoso de ameaçar. Em tal julgamento, a Suprema Corte dos Estados Unidos da América – cuja jurisprudência em torno da Primeira Emenda orienta-se no sentido de reconhecer, quase incondicionalmente, a prevalência da liberdade de expressão (adotando, por isso mesmo, o critério da “preferred position”) – proclamou, não obstante, que essa proteção constitucional não é absoluta, sendo lícito ao Estado punir certas manifestações do pensamento cuja exteriorização traduza comportamentos que veiculem propósitos criminosos.
É inquestionável que o exercício concreto da liberdade de expressão pode fazer instaurar situações de tensão dialética entre valores essenciais igualmente protegidos pelo ordenamento constitucional, dando causa ao surgimento de verdadeiro estado de colisão de direitos, caracterizado pelo confronto de liberdades revestidas de idêntica estatura jurídica, a reclamar solução, tal seja o contexto em que se delineie, que torne possível conferir primazia a uma das prerrogativas básicas, em relação de antagonismo com determinado interesse fundado em cláusula inscrita na própria Constituição.
Admitir a difusão do ódio, a defesa da violência, a incitação ao crime é, paradoxalmente, um atentado à própria liberdade de expressão. Se permitirmos que alguém ameace publicamente a integridade de quem defende ou ataca, por exemplo, o aborto ou o uso de drogas, acabaremos por impedir o debate, cercear a discussão e negar a liberdade de expressão àqueles que são objeto das intimidações.
O direito à livre manifestação é pleno, desde que não afete a garantia de terceiros de exercer o mesmo direito. O ódio não é proibido, mas sim sua expressão na forma de violência ou ameaça. O rancor pode ser propalado, desde que não acompanhado da incitação à agressão de quem quer que seja.
O direito salvaguarda a propagação de qualquer ideia, mesmo da estupidez, como forma legítima de manifestação humana, desde que resguardada a integridade dos demais integrantes da sociedade.
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Bacharel em Direito e Analista Jurídica na Defensoria Pública do Amazonas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Taisa Emiliano da. A posição preferencial da liberdade de expressão e o discurso de ódio Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jun 2023, 04:13. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61616/a-posio-preferencial-da-liberdade-de-expresso-e-o-discurso-de-dio. Acesso em: 26 dez 2024.
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