TOMÁS IMBROISI MARTINS[1]
(coautor)
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar a possibilidade da transmudação da natureza creditória na cessão de crédito realizada por securitizadora de créditos imobiliários. Para tanto, analisou-se o instrumento da cessão de crédito, a transmudação propriamente dita, a securitização de recebíveis e a aplicação daquele instrumento de transferência obrigacional a esta, bem como a análise, principalmente, do julgado no Recurso Especial nº 1.570.452/RJ a respeito do tema. Como recursos metodológicos, foi revisitado o estado da arte da doutrina, assim como a jurisprudência corrente, para o desenvolvimento do artigo. Concluiu-se, por fim, que não há a possibilidade de transmudação ante as características particulares desse tipo de crédito e o interesse público envolvido, assim como em virtude da inexistência de vedação legal explícita.
Palavras-chaves: Transmudação; natureza creditória; recebíveis imobiliários.
ABSTRACT: This article aims to analyze the possibility of transmutating the credit nature by credit assignment when carried out by a real estate credit securitization company. For this purpose, the instrument of credit assignment, the transmutation itself, the securitization of receivables and the application of that instrument of credit transfer to it were analyzed, as well as the analysis, mainly, of the judgment in Special Appeal nº. 1.570.452/ RJ about the topic. As methodological resources, the state of the art of the doctrine was revisited, as well as the current jurisprudence, for the development of the article. Finally, it was concluded that there is no possibility of transmutation given the unusual characteristics of this type of credit and the public interest involved, as well as due to the lack of explicit legal prohibition.
Keywords: Transmutation; credit nature; real estate receivables.
1. INTRODUÇÃO
Em 2016, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.526.092/SP, sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio Belizze, o Superior Tribunal de Justiça – STJ tratou sobre a definição da natureza do crédito na hipótese de cessão de créditos, que é modalidade de negócio jurídico na qual uma das partes (a cedente) transfere a sua posição em uma relação obrigacional a um terceiro estranho a essa (cessionário), sem alteração na relação jurídico-negocial, nos termos dos artigos 286 e 287 do Código Civil de 2002 (BRASIL, 2016).
No referido julgado, debateu-se acerca da transmudação da natureza creditória e seus privilégios legalmente instituídos, quando, em falências, há cessão de créditos trabalhistas a cessionário que não ostenta a condição de empregado. O entendimento do órgão julgador, nesse momento, foi pela não transmissão dos direitos acessórios exclusivos do cedente, ressalvada a hipótese de o cessionário ostentar a mesma condição pessoal do cedente.
Nesse cenário, necessário pontuar que tal entendimento pode ser danoso ao próprio cedente trabalhador, tendo em vista que, caso haja a perda das qualidades que lhe são próprias, o mercado perde o interesse na aquisição dos créditos ou, no mínimo, diminui o valor por ele ofertado, aumentando o deságio imposto ao cedente (BRASIL, 2016).
Sobre essa mesma discussão, de manutenção ou não da natureza do crédito cedido, em 2020, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 631.537/RS – Tema 361, o Supremo Tribunal Federal – STF fixou a tese de que “A cessão de crédito alimentício não implica na alteração de sua natureza”. Nesse recurso, analisou-se a possibilidade de transmudação da natureza creditória em cessão de precatórios alimentícios. A Corte concluiu que isso não seria possível, pois não há determinação legal para tanto e, caso ocorresse, seria ao arrepio do credor-cedente, o que termina por prejudicar uma parte legalmente protegida e privilegiada dentro do sistema de pagamentos da Fazenda Pública.
Tendo como base o entendimento exarado pelo STF, o STJ adequou o seu posicionamento, de forma a barrar a transmudação da natureza creditória na transmissão de obrigações, como é o caso do Recurso Especial nº 1.570.452/RJ, sob a relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
Nesse recurso, discutiu-se a possibilidade da mudança da natureza creditória na cessão de crédito condominial a um fundo de direito creditórios, tendo a terceira turma do STJ concluído pela sua impossibilidade, confirmando a adoção da tese firmada pelo Tema 361 no STF. Destrincharam-se, além disso, alguns requisitos para que não seja verificada a transformação da natureza do crédito, quais sejam: (i) prerrogativas ao titular do crédito conferidas por lei; (ii) situação especial do credor-cedente, e (iii) necessidade de proteção desse credor em razão do interesse público.
Delineadas as discussões acima apontadas, ocorridas no âmbito das Cortes Superiores, é de suma importância analisar a transmudação da natureza dos créditos gerada pela cessão de obrigações no âmbito da securitização de recebíveis imobiliários.
A securitização de créditos, no âmbito imobiliário, é angular para o sistema financeiro imobiliário, o qual regula a participação de instituições nas operações de financiamento de imóveis. Exemplo disso é a securitização de créditos oriundos de contratos built to suit ou de incorporações imobiliárias, os quais permitem a alavancagem de capital pelos cedentes. Para tanto, é fundamental que haja a manutenção das qualidades inerentes ao crédito cedido, tendo em vista que elas valorizam o direito creditório, dando-lhe qualidade e aumentando o valor eventualmente ofertado para a sua aquisição (FARIA, 2011).
Assim sendo, para realizar a averiguação da possibilidade ou impossibilidade da transmudação da natureza creditória de recebíveis imobiliários, é preciso observar esse fenômeno por meio de algumas etapas, para melhor entender os diferentes institutos envolvidos no cerne da questão, quais sejam: (i) o crédito propriamente dito; (ii) o crédito imobiliário; (iii) a cessão de crédito; (iv) a transmudação da natureza de créditos; (v) a securitização de recebíveis; (vi) o instituto da cessão de créditos na securitização; e (vii) a impossibilidade da transmudação da natureza de créditos, conforme o REsp nº 1.570.452/RJ.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1 A definição de cessão de crédito
2.1.1 O crédito
Antes de se adentrar no instrumento da cessão de crédito, é imperioso entender, antes, o que é o crédito. O crédito está inserido no campo do direito das obrigações, qual seja, o ramo jurídico do Direito Civil responsável por regular a relação jurídica de dívida de prestação ou dever geral de conduta em um negócio entre pessoas determinadas ou determináveis (LÔBO, 2021). Esse ramo do direito está previsto no Código Civil de 2002 na Parte Especial, Livro I, estendendo-se do art. 233 ao 420.
A obrigação propriamente dita é um dever jurídico, mais especificamente, um dever de prestação. Assim o sendo, a obrigação comporta três elementos essenciais: o elemento subjetivo, o elemento objetivo e o vínculo jurídico (TEPEDINO; SCHREIBER, 2021).
O primeiro elemento refere-se aos sujeitos da relação obrigacional, que são os titulares dos centros de interesse credor e devedor (TEPEDINO; SCHREIBER, 2021). Dentro do polo credor, tem-se o sujeito ativo, que é o beneficiário da obrigação, é aquele o qual detém o direito de exigir o cumprimento da prestação. Por sua vez, dentro do polo devedor, tem-se o sujeito passivo, que é quem assume um dever de cumprir a prestação e que se sujeita ao direito do credor de exigir o cumprimento da obrigação (TARTUCE, 2021). Frisa-se que a expressão “sujeito”, em ambos os casos, deve ser entendida de forma ampla, e não apenas como pessoas físicas ou jurídicas, visto que ambos os polos de interesses podem ser integrados por entes despersonalizados, como a massa falida, sociedades de fato e o espólio (TEPEDINO; SCHREIBER, 2021).
O segundo elemento refere-se ao objeto da relação obrigacional, qual seja, a prestação. Essa pode consistir em uma omissão ou, mais comumente, a uma ação que se pode exigir do devedor pelo credor. Normalmente, a doutrina divide essas ações – ou ausência de ações – em três categorias primordiais: dar, fazer e não-fazer (TEPEDINO; SCHREIBER, 2021). Nesse diapasão, a prestação, que é o comportamento assumido pelo devedor, constitui o objeto da obrigação. Por sua vez, o bem da vida, o qual é o principal interesse na relação jurídica obrigacional em última instância, é o objeto da prestação (LÔBO, 2021).
O terceiro e último elemento é o vínculo jurídico, o qual se define como sendo a ligação imaterial que sujeita o devedor a determinada prestação dirigida ao credor, bem como a deveres jurídicos anexos (TARTUCE, 2021).
Dentro dessa ligação, conforme a teoria dualista da obrigação alemã, existe o débito (Schuld), o qual consiste no dever que o sujeito passivo tem de efetuar a prestação, e a responsabilidade (Haftung), a qual é entendida como a exigibilidade da prestação, ou seja, a faculdade do credor em exigir o cumprimento da prestação, podendo utilizar a máquina estatal e sua força para tanto (TEPEDINO; SCHREIBER, 2021). É nesse contexto em que surge o crédito.
Se de um lado existe o débito e o dever que o sujeito passivo tem de efetuar a prestação, o crédito figura no lado credor, sujeito ativo da relação obrigacional, de forma que é entendido como o direito de exigir (pretensão) um comportamento (prestação) de outra pessoa em razão de um vínculo jurídico válido, o qual é amparado pela tutela jurisdicional. Destarte, pelo fato ser dirigido à obtenção de uma prestação, o qual normalmente tem um bem da vida ou comportamento economicamente quantificável como próprio objeto, o crédito possui um valor patrimonial.
Ademais, é no próprio conceito de crédito que nasce o conceito de lide de Carnelutti, o qual a define como um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida. Nessa toada, o direito de exigir o crédito e sua resistência ao cumprimento do acordado é que dão origem a boa parte dos conflitos de interesses judicializados (LÔBO, 2021).
2.1.2 O Crédito Imobiliário
Especificamente quanto ao crédito imobiliário, a legislação restou silente no tocante a sua definição específica. Exemplo disso é a Lei nº 9.514/1997, a qual cria os certificados de recebíveis imobiliários e determina que sejam lastreados em créditos imobiliários, sem definir o que estes são (BRASIL, 1997). Logo, coube à doutrina e à Comissão de Valores Mobiliários – CVM a sua definição.
Quanto à CVM, destaca-se a análise de seus julgados no tocante à possibilidade de emissão de certificados de recebíveis imobiliários lastreados em direitos creditórios. Mais especificamente, serão citados os processos administrativos mais recentes da Comissão de Valores Mobiliários sobre o tema. Quanto à doutrina, destacam-se os entendimentos dos professores Gladston Mamede e Melhim Namem Chalhub, conforme abaixo.
Chalhub define o crédito imobiliário como sendo o crédito com um vínculo jurídico real, ou seja, como um crédito cuja sua satisfação esteja garantida pelo conteúdo econômico de um imóvel por ocasião da exigência de cumprimento da prestação pelo credor (CHALHUB, 2012). Mamede, no entanto, admite uma interpretação mais restrita, afirmando que os créditos imobiliários são todos aqueles que tem origem em contratos de financiamento de bens imóveis (MAMEDE, 2005).
Outrossim, a CVM tem adotado uma definição de créditos imobiliários ainda mais ampla que a dos autores citados, conforme decisões do seu Colegiado em casos emblemáticos como o da Rede D’or, de 2017 (Processo CVM nº 19957.010578/2017-50) (“Caso Rede D’or”), e o da Barigui (home equity), de 2018 (Processo CVM nº 19957.008927/2017-73) (“Caso Home Equity”).
A partir da análise das decisões desses julgados, observa-se que a Autarquia autoriza a emissão de certificados de recebíveis imobiliários lastreados em créditos: (i) oriundos da exploração ou financiamento de imóvel; (ii) destinados a financiar imóveis; ou (iii) derivados da utilização do proveito econômico de imóvel. Em todos, deve existir obrigatoriamente uma vinculação entre a garantia real sobre coisa imóvel do crédito e a sua satisfação. Ou seja, atualmente, para a Comissão de Valores Móveis, o crédito imobiliário é todo aquele, para fins de securitização, sobre o qual é autorizado o lastro de certificados de recebíveis imobiliários, observando-se que todos devem ser acompanhados de um direito real de garantia sobre coisa imóvel (BRASIL, 2019) (MAMEDE, 2019).
2.1.3 A Cessão de Crédito
Assim, no que toca aos objetivos deste artigo, definidos os conceitos de crédito e crédito imobiliário, passamos ao entendimento do que é cessão de crédito. Cessão de crédito nada mais é que uma forma de transmissão de direitos originados de uma obrigação, de forma que a relação jurídica permanece inalterada, alterando-se, somente, um de seus sujeitos, isto é, o polo ativo, credor.
Assim, diz-se que ocorre a cessão de crédito, regrada pelo Código Civil de 2002, em seus artigos 286 a 298 (BRASIL, 2002), quando há a troca do sujeito ativo – caso houvesse a troca do sujeito passivo, estar-se-ia diante da figura de assunção da dívida (LÔBO, 2021).
De mais a mais, é um negócio jurídico bilateral de transmissão do crédito a um terceiro, sendo o transmissor do crédito denominado cedente e o terceiro receptor, cessionário. Há, portanto, a cessão de crédito quando o credor (cedente) transfere a terceiro (cessionário) o seu direito de exigir do devedor a prestação advinda da relação obrigacional, independentemente de anuência deste (TARTUCE, 2021).
Observe-se que há uma sutil, porém, importante diferença em relação à sub-rogação. Essa possui natureza jurídica mista, visto que configura meio de pagamento e de transmissão da situação jurídica ativa, de sorte a gozar tanto de eficácia extintiva, quanto de eficácia translativa, enquanto a cessão de crédito antecede o momento de adimplemento da obrigação, sem a extinguir (DIDIER; BOMFIM, 2020).
Por essa razão, é um instrumento extremamente valioso à securitização de direitos creditórios, visto que é possível imprimir um valor nessa cessão – normalmente, por meio de um deságio imposto ao valor monetário da obrigação a ser adimplida – com base no crédito que está sendo cedido, seus atributos, natureza, garantias e demais qualidades. Nesse sentido, Tepedino e Schereiber (2021) consignam que “a cessão de crédito tem geralmente um propósito especulativo dirigido exclusivamente ao interesse do credor” (TEPEDINO; SCHREIBER, 2021, p. 172).
2.2 A transmudação da natureza de créditos
No direito brasileiro, a cessão de um crédito ocorre consoante o disposto no art. 286 e 287 do Código Civil de 2002, in verbis:
“Art. 286. O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação.
Art. 287. Salvo disposição em contrário, na cessão de um crédito abrangem-se todos os seus acessórios” (BRASIL, 2002) (negrito aditado).
Dessa maneira, em regra geral, aplica-se o princípio da gravitação jurídica à cessão creditória, segundo o qual o acessório segue o principal (TARTUCE, 2021). No entanto, além da hipótese de convenção entre as partes, conforme o artigo supracitado, aqueles acessórios inseparáveis do credor originário e cedente não são transferidos.
Nesse sentido, decidiu o Superior Tribunal de Justiça no momento do julgamento do Recurso Especial nº 1.526.092/SP e Recurso Especial nº 1.266.388/SC. Nos julgados citados, os ministros acordaram que as qualidades acessórias aos créditos não o acompanham, ocorrendo a perda de eventuais benefícios legalmente constituídos. Quanto ao primeiro, foi considerado intransmissível ao cessionário o privilégio do crédito trabalhista na falência e, quanto ao segundo, as prerrogativas processuais do consumidor hipossuficiente (TEPEDINO; SCHREIBER, 2021).
Dentro dos elementos acessórios, cumpre ressaltar as garantias, como as que acompanham o crédito imobiliário, as quais consistem em uma afetação de um determinado bem do patrimônio do devedor – ou até mesmo todo o patrimônio – como forma de assegurar o adimplemento da obrigação. Nessa toada, a garantia confere ao credor a pretensão de obter o pagamento da dívida por meio da alienação ou retenção do bem aplicado a sua satisfação, garantindo o recebimento do que é devido por meio da vinculação de determinado bem ao adimplemento da obrigação (GONÇALVES, 2021).
No caso dos créditos em análise, está-se diante de uma garantia real de coisa imóvel, ou seja, a garantia real sobre o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente, nos termos do art. 79 do Código Civil (BRASIL, 2002). Dentro da lógica dualista da obrigação, quando há o surgimento da responsabilidade do devedor, é possível se valer da tutela jurisdicional para o cumprimento da prestação, inclusive por meio da execução judicial da garantia dada pelo devedor, in casu, executar o próprio bem imóvel dado em garantia pelo devedor (TEPEDINO; SCHREIBER, 2021).
Percebe-se, nesse aspecto, a importância da transferência das qualidades acessórias ao crédito, em especial as garantias, para a securitização de recebíveis: ela que é responsável, em última instância, pela “força do crédito”, por fazer valer o direito creditório em face do devedor, garantindo o seu efetivo valor patrimonial, mesmo quando o sujeito passivo da obrigação não cumpre o pactuado espontaneamente.
Nesse tocante, dentre os créditos imobiliários, destacam-se os créditos originários de contratos built to suit, os quais, em função de serem acompanhados por uma garantia de direito real – o próprio imóvel que será alugado.
De maneira simples, contrato built to suit, regulamentado pela Lei nº 12.744, de 19 de dezembro de 2002, refere-se exclusivamente a contratos em que imóveis sujeitos a interesse de locação por uma parte são adquiridos, construídos ou reformados por um terceiro (locador), em conformidade com as especificações da parte interessada, visando a atender suas atividades específicas. Em contrapartida, a parte interessada (locatária) compromete-se a um longo período de aluguel do imóvel, por vezes com a própria alienação do imóvel em seu favor ao final, pagando um preço mais elevado do que seria usualmente pago por um imóvel semelhante (FRANCIOZI; PORTO, 2013)[2].
Dessa maneira, o contrato entre o locador e locatário built to suit gera um direito de crédito imobiliário, conforme análise pela Comissão de Valores Mobiliários citada anteriormente, o qual pode ser explorado no mercado por meio da securitização desses recebíveis futuros justamente em função da confiança depositada pelo mercado em investir em algo avalizado por um direito real. Há, portanto, a angariação de fundos para o cedente e com a consequente emissão de certificados de recebíveis imobiliários pelo cessionário.
Nesse caso, a cessão do crédito pelo locador é primordial para o cessionário poder gozar de suas garantias como locador, a exemplo da cláusula de renúncia ao direito de revisão do valor dos aluguéis, garantia legalmente instituída pela Lei mencionada anteriormente.
2.3 A securitização de recebíveis
Recebíveis, de forma geral, são direitos creditórios ainda não exigíveis, tratando-se, portanto, de um fluxo de caixa futuro (TARTUCE, 2021). Desse modo, os recebíveis constituem uma possibilidade de alavancagem de capital pelo credor, por meio da securitização, por exemplo (TROVO, 2013).
Securitização de recebíveis é uma oportunidade de captação de recursos junto ao público, pois se utiliza de créditos futuros para lastrear valores mobiliários no mercado, os quais são alienados aos investidores, que pagam o preço de forma imediata. Assim, o objetivo da securitização é a conversão dos recebíveis em ativos líquidos presentes e passíveis de aplicação. Ocorre, dessa maneira, uma desmobilização do patrimônio por meio da antecipação de recebíveis (ALCAIRE, 2013).
Toda essa operação de securitização envolve três agentes principais: a originadora, a securitizadora e o investidor. A primeira é a detentora de um direito creditório futuro e interessada na captação imediata de recursos. Assim o sendo, essa transfere ao segundo agente, uma sociedade de propósito específico securitizadora, o seu direito creditório futuro por meio de algum instrumento de cessão de obrigações – mais comumente, é utilizada a cessão de créditos (CHAVES, 2006).
Essa securitizadora utiliza os créditos adquiridos como lastro para a emissão de títulos e valores mobiliários, os quais serão oferecidos ao público em geral, que são os investidores. Com a captação desses recursos, a sociedade de propósito específico paga o preço referente aos recebíveis, com um deságio por ter adiantado o recebimento do valor monetário correspondente aos direitos creditórios pelo originador (CHAVES, 2006). Ainda, no caso de direitos creditórios de natureza imobiliária, os títulos emitidos pela securitizadora são denominados Certificados de Recebíveis Imobiliários – CRIs (TOMAZETTE, 2019).
Os direitos creditórios, ainda, tendo ocorrido a sua transmissão, são de propriedade da própria securitizadora e, indiretamente, dos próprios investidores. Pelo fato de ser uma sociedade de propósito específico, a qual se destina unicamente à atividade de securitização, evita-se a contaminação do lastro quanto a riscos decorrentes de outras atividades, o que caracteriza em uma efetiva segregação dos riscos dos créditos recebidos do originador, que não é adstrito a uma única atividade e está sujeito a diferentes passivos. Em função disso, a qualidade do valor mobiliário decorrente da securitização está intimamente ligada à qualidade do crédito originador (LANZ et al, 2015).
Quanto à segregação de riscos, menciona-se a possibilidade de se instituir um regime de fidúcia no tocante aos recebíveis de propriedade da securitizadora. Outrossim, é possível uma afetação desses créditos, que são lastros de determinados valores mobiliários, para que somente sejam utilizados na liquidação de seus respectivos títulos, custos de administração e obrigações fiscais, protegendo o investidor até mesmo da securitizadora (JÚNIOR, 2019).
Quanto a esse aspecto, não podem os valores mobiliários serem conceituados à parte do direito creditório que os assegura, mas tão somente pela função econômica a que estão vinculados (COELHO, 1999).
Nessa questão, salta aos olhos a securitização de créditos imobiliários. Conquanto já tenha sido segregado o risco inerente ao originador do crédito pela operação de securitização, ainda há o risco de inadimplemento do devedor da relação obrigacional originária.
No entanto, conforme exposto anteriormente, os créditos imobiliários caracterizam-se pela sua garantia real sobre coisa imóvel. Dessa maneira, em caso de inadimplemento, são possíveis a tutela judicial e a execução do próprio imóvel como formas de recebimento do conteúdo monetário da prestação devida (JÚNIOR, 2019).
Apenas a título exemplificativo, prevista no art. 8º da Lei nº 9.514/1997, a securitização de recebíveis imobiliários tem três principais origens de seus créditos que lastreiam a emissão dos CRIs, quais sejam: (i) contrato de compra e venda de imóvel a prazo; (ii) contratos oriundos de locação, arrendamento de imóvel, concessão de direito de superfície ou built to suit; e (iii) contratos de financiamento para a aquisição, incorporação ou reforma de imóveis (JÚNIOR, 2019).
2.4 O instituto da cessão de créditos na securitização
Como forma de transmissão do direito creditório na securitização, dentre as diversas possibilidades encontra-se a cessão de crédito, instrumento esse de transmissão de obrigações. É utilizado na operação de securitização, pois permite a separação dos créditos vincendos do patrimônio do originador/cedente, garantindo segurança à operação em caso de insolvência desse agente (FARIA, 2011). Ainda, pode conter cláusula de recompra à vista dos créditos em caso de falência do devedor, o que confere um adicional de proteção aos investidores (COELHO, 1999).
Nesse diapasão, Tomazette (2019) consigna que:
“A segurança dos investidores é reforçada pela impossibilidade de declaração de ineficácia da cessão, no caso de falência do cedente. O art. 136, § 1º, da Lei n. 11.101/2005 diz expressamente que, ‘na hipótese de securitização de créditos do devedor, não será declarada a ineficácia ou revogado o ato de cessão em prejuízo dos direitos dos portadores de valores mobiliários emitidos pelo securitizador’. Assim sendo, a segregação dos riscos fica bem clara, uma vez que não há risco de prejuízo dos investidores em razão da falência da originadora”. (TOMAZETTE, 2019, p. 456).
A cessão de crédito é etapa anterior à securitização, sendo comumente utilizado nos contratos de aquisição de recebíveis pelas securitizadoras/cessionárias (LANZ et al., 2015). Além disso, com base na classificação de Simões (2011), a cessão referente à securitização é a cessão de créditos futuros, por meio de uma aquisição derivada, tratando-se de uma modificação no elemento subjetivo da relação obrigacional.
2.5 A impossibilidade da transmudação da natureza de créditos, conforme o REsp nº 1.570.452/RJ
Inicialmente, quando a questão da transmudação da natureza creditória chegou à Corte Cidadã, entendeu-se que as qualidades acessórias do crédito de natureza personalíssima não seriam transmitidas ao cessionário, caso esse não ostentasse as mesmas qualidades pessoais do cedente. Isso porque se entendeu que os privilégios legais estariam ligados à qualidade do credor e não ao crédito em si, nos termos do acórdão do Recurso Especial 1.526.092/SP (BRASIL, 2016).
Entretanto, após o julgamento do Recurso Extraordinário 631.537/RS pelo Supremo Tribunal Federal, o entendimento modificou-se. Nesse caso, tratava-se de transmudação da natureza alimentícia de um precatório quando de sua cessão a terceiro. Consignou-se que, sendo permitida a cessão do precatório, incluindo de seus acessórios, nos termos do 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias c/c art. 287 do Código Civil de 2002, o crédito permanece com a mesma natureza antes da ocorrência da cessão (BRASIL, 2020).
Assim não o fosse, caso houvesse a perda da qualidade do crédito pela cessão, perder-se-ia o interesse em sua aquisição ou a diminuição de seu valor, aumentando ainda mais o deságio, o que, em última instância, prejudicaria o próprio cedente, o qual foi privilegiado legalmente e deve ter suas proteções garantidas. (BRASIL, 2020).
Nessa senda, quando a matéria retornou ao STJ para discussão, agora sobre a forma de transmudação de créditos condominiais, a terceira turma aplicou a mesma ratio decidendi da Suprema Corte à cessão de créditos de origem condominial, visto que:
“Semelhante situação ocorre na hipótese dos autos, haja vista que a transmutação da natureza do crédito cedido viria em prejuízo dos próprios condomínios, que se valem da cessão de seus créditos como meio de obtenção de recursos financeiros necessários ao custeio das despesas de conservação da coisa, desonerando, assim, os demais condôminos que mantêm as suas obrigações em dia. Ainda que as prerrogativas concedidas ao detentor de crédito alimentar contra a Fazenda Pública sejam inerentes à natureza da dívida, visam elas proteger, em última análise, a pessoa do credor, à semelhança das preferências legais conferidas aos detentores de crédito trabalhista ou condominial, a justificar, desse modo, a aplicação da mesma tese jurídica” (REsp nº 1.570.452/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 22.09.2020).
Para tanto, o Ministro Relator identificou que não há vedação legal à transmissão das qualidades acessórias do crédito condominial na cessão de crédito, consignando que são justamente essas qualidades que tornam o crédito atrativo. Nesse diapasão, o Ministro Relator ratificou que o cessionário no caso era uma Fundo de Investimento em Direitos Creditórios, que opera normalmente por meio da securitização de recebíveis, conforme elucidado anteriormente.
Dessa forma, é a qualidade do crédito cedido que o torna atrativo para a securitizadora, tornando-o objeto de uma operação de securitização e privilegiando o cedente detentor dos privilégios legais (BRASIL, 2020).
Por fim, o relator afirmou em seu voto que ainda há a possibilidade de transmudação da natureza creditória no ordenamento jurídico, visto que o é permitido pelo Código Civil, e que o legislador o faz de forma expressa quando assim pretende, a exemplo dos créditos trabalhistas, em razão de falência, cedidos a terceiros, que passam a ser quirografários (BRASIL, 2020).
3. CONCLUSÃO
Embora até o momento não tenha o Poder Judiciário pronunciado-se acerca da transmudação da natureza creditória de recebíveis imobiliários, é de se esperar que o entendimento inaugurado pela Suprema Corte, no caso dos créditos alimentícios, seja seguido, assim como a ratio decidendi adotada pela Corte Cidadão no julgamento do Recurso Especial nº 1.570.452/RJ, o qual tratou especificamente dos créditos condominiais securitizados por Fundo Creditório.
Isso, porque os créditos imobiliários reúnem as características identificáveis em ambos os julgados para fazer prevalecer a sua natureza, quais sejam: (i) prerrogativas ao titular do crédito conferidas por lei; (ii) situação especial do credor-cedente, à semelhança do condomínio no REsp em comento, definida como necessidade de obtenção de recursos financeiros para desempenho de suas atividades como incorporador, empresa responsável por contratos built to suit, gestão de alugueres ou financiamento imobiliário do tipo home equity, etc; e (iii) necessidade de proteção desse credor em razão do interesse público (BRASIL, 2020).
Outrossim, tendo em vista que a securitização de recebíveis é parte integrante do sistema financeiro e utilizada para financiamento de projetos built to suit, habitacionais e incorporações, acredita-se que há necessidade de proteção da natureza dos créditos do Sistema Financeiro Imobiliário (HIRATA; TARTAGLIA, 2018). Além disso, não há nenhuma vedação legal à transmissão dos acessórios na cessão, como ocorreu no exemplo consignado pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva em seu voto.
Por fim, as garantias reais que acompanham o crédito imobiliário são o que diferenciam a sua securitização das demais, visto que são elas o que garantem a confiança do investidor em as adquirir, indiretamente, por meio dos Certificados de Recebíveis Imobiliários.
Ademais, como relatado, em função da impossibilidade de os valores mobiliários serem conceituados a parte do direito creditório que os assegura, mas tão somente pela função econômica a que estão vinculados, eventual transmudação abalaria a segurança jurídica nesses investimentos. Consequentemente, todo o Sistema Financeiro Imobiliário seria afetado, visto que a securitização compõe grande parte dos recursos deste, o que poderia acarretar na perda de seu propósito de promoção do financiamento imobiliário.
Assim, acredita-se que, quando a questão da transmudação ou não da natureza creditória de recebíveis imobiliários cedidos a securitizadoras de direitos creditórios vier a debate no Superior Tribunal de Justiça – ou até mesmo no Supremo Tribunal Federal –, será mantido o atual entendimento, qual seja, o da não ocorrência da mudança na natureza do crédito, à semelhança do decidido quanto aos créditos condominiais e alimentares.
Referências Bibliográficas
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[1] Assessor de Ministro do Superior Tribunal de Justiça. Servidor Público do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Pós-graduado em Ciências Jurídicas com ênfase em Atividades da Magistratura. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília.
[2] O contrato built to suit é muito utilizado por Fundos de Investimento Imobiliários que constroem imóveis para grandes empresas inquilinas sob encomenda. Um contrato built to suit conhecido, por exemplo, é do prédio da Cervejaria AMBEV, construído pelo GGRC11, um fundo de investimento imobiliário. O último contrato celebrado entre esses foi de uma promessa de compra e venda de imóvel, em 13 de maio de 2021, cujo objeto foi a aquisição de imóvel, em Guarulhos/SP, pelo valor total de cento e doze milhões de reais. Nesse contrato, a vendedora, Gaiolli Empreendimento Imobiliários SPE LTDA, foi responsável pela construção e posterior locação do imóvel à AMBEV, pelo prazo de quinze anos a partir de 19.07.2012, pelo valor de aluguel mensal de R$ 384.444,99, corrigidos anualmente de acordo com o IPCA. Estando o imóvel já construído, o fundo assumiu o restante do contrato built to suit pelo prazo restante da referida locação até 19.07.2027, recebendo mensalmente o aluguel de R$ 644.647,00. Para mais informações, ver https://ggrc11.com.br/wp-content/uploads/2021/05/GGR-COVEPI-Renda-FII-Fato-Relevante-Aquisição-de-Imóvel-AMBEV-GRU.pdf.
Servidor Público. Secretário-Adjunto da Secretaria de Consultoria Jurídica do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília. Foi colaborador em Gabinete de Ministro do Supremo Tribunal Federal e voluntário no Projeto Ajuda Legal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Vítor Imbroisi. A transmudação da natureza creditória na cessão de crédito realizada por securitizadoras de créditos imobiliários: uma análise a partir do Recurso Especial nº 1.570.452/RJ Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 jun 2023, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61765/a-transmudao-da-natureza-creditria-na-cesso-de-crdito-realizada-por-securitizadoras-de-crditos-imobilirios-uma-anlise-a-partir-do-recurso-especial-n-1-570-452-rj. Acesso em: 24 dez 2024.
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