RESUMO: Neste artigo se realizará uma análise das razões pelas quais hoje predomina o entendimento de que a imunidade recíproca se aplica à parcela das empresas estatais. Para tanto, será feita uma análise histórica da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, em cotejo com a Constituição Federal. Ainda, será analisada também a posição doutrinária sobre o assunto. A imunidade recíproca, como se verá a seguir, é instrumento de defesa do pacto federativo, o que não passa ao largo das estatais prestadoras de serviço público. Ainda que sua modelagem adote as disposições do direito privado, será visto que elas se aproximam muito mais do conceito de Fazenda Pública, pelo que fazem jus à imunidade tributária prevista no texto Constitucional. E síntese, também serão minuciados também os requisitos que os Tribunais pátrios exigem para que seja conferida a benesse às entidades da administração indireta, sem que se ofenda a livre concorrência.
Palavras-chave: Direito Tributário; Imunidade Recíproca; Empresas Estatais:
Abtsract: This article will analyze the reasons why today there is a predominant understanding that reciprocal immunity applies to the portion of state-owned companies. To this end, a historical analysis of the case law of the Federal Supreme Court and the Superior Court of Justice on the subject will be made, in comparison with the Federal Constitution. The doctrinal position on the subject will also be analyzed. Reciprocal immunity, as will be seen below, is an instrument for defending the federative pact, which does not bypass state-owned public service providers. Although their modeling adopts the provisions of private law, it will be seen that they are much closer to the concept of Public Treasury, which is why they are entitled to the tax immunity provided for in the Constitutional text. In summary, the requirements that the Brazilian Courts demand for the benefit to be granted to the indirect administration entities will also be detailed, without offending free competition.
Key words: Tax Law; Reciprocal Immunity; State-owned Companies.
1.INTRODUÇÃO
A imunidade tributária recíproca, como expressão da forma federativa de Estado, abrange tão somente os impostos, nos termos do art. 150, inc. VI, alínea “a”[1], da Constituição Federal. Ademais, ao se analisar o texto frio da Constituição, verifica-se que há uma possibilidade de extensão às autarquias e fundações instituídas pelo poder público.[2] Ocorre que o texto constitucional é silente sobre a sua aplicação às demais entidades da administração indireta, o que não impede a sua aplicação.
Ao longo dos anos, os Tribunais Superiores, alinhados com a doutrina majoritária, construíram o entendimento de que a imunidade recíproca é aplicável às empresas estatais prestadoras de serviço público, que não distribuam lucros, nem tenham ações cotadas em bolsa de valores, bem como em regime não concorrencial.
2.DA NATUREZA JURÍDICA DA IMUNIDADE RECÍPROCA
Antes de mais nada, cumpre examinar a natureza jurídica da imunidade recíproca. Trata-se de espécie do gênero imunidades tributárias, as quais podem ser definidas como hipóteses de não incidência constitucionalmente qualificada[3], como expressão das limitações constitucionais ao poder de tributar do estado. A Constituição Federal, e somente ela, pode dispor sobre delimitações das competências dos entes políticos que compõem a Federação, na medida em que a competência tributária pressupõe a competência legislativa para instituição e disciplina das espécies tributárias.
A imunidade recíproca, por sua vez, revela-se em uma cláusula de preservação do pacto federativo, na medida em que, nos termos do art. 18, caput, da Constituição Federal, “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.” Ademais, trata-se de cláusula pétrea, conforme previsão no art. 60, § 4º, da Constituição Federal[4].
Conforme a doutrina especializada, trata-se de imunidade subjetiva, ontológica, geral, explícita e incondicionada. A propósito, esmiuçando a classificação de ontológica, tem-se que essa imunidade não é fruto de uma opção política do legislador constituinte originário. Ao revés, é tida como uma prerrogativa do ente político[5].
Sua disciplina jurídica está prevista no art. 150, inciso VI, alínea "a", da Constituição Federal de 1988. Essa norma estabelece que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre patrimônio, renda ou serviços uns dos outros. O objetivo dessa imunidade é proteger a autonomia e a independência dos entes federados, evitando que um ente público prejudique o outro por meio da cobrança de tributos.
3.DO REGIME APLICÁVEL ÀS EMPRESAS ESTATAIS
A empresas estatais podem ter a sua criação autorizada em casos de relevante interesse coletivo e de imperativos de segurança nacional[6]. Anote-se que deve ser editada lei do respectivo ente que autorize a sua criação, dependendo posteriormente do seu registro em Junta Comercial ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas[7]. Ademais, conforme consta da Lei nº 13.303/16, as empresas estatais podem ser prestadoras de serviço público e exploradoras de atividade econômica, pouco importando, para tanto, se são sociedades de economia mista ou empresas públicas. Essa diferenciação, exploração de atividade econômica e prestação de serviços públicos, entretanto, é crucial para que se possa conferir à estatal a imunidade recíproca.
Por fim, o regime jurídico aplicável às estatais é majoritariamente de direito privado, visto que são pessoas jurídicas de direito privado e que podem competir com outras empresas privadas no seu ramo negocial. Entretanto, há a presença de alguns institutos do direito público, tais como a regra do concurso público e o princípio licitatório, aplicáveis à todas as entidades da administração pública. Por outro lado, conforme disposto na Lei 13.303/16, há a dispensa de licitação para a contratação cujo objeto seja a atividade fim da empresa estatal, sob pensa de inviabilizar a sua competitividade no mercado.[8]
4.DA APLICAÇÃO DA IMUNIDADE RECÍPROCA ÀS EMPRESAS ESTATAIS
Não obstante a CF limite a extensão da imunidade recíproca às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes, a doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça construíram um entendimento que estendia às empresas estatais i) prestadoras de serviço público; ii) que não possuam intuito lucrativo e não distribuam lucro entre os seus acionistas; e iii) que prestem o serviço em regime de exclusividade.
O primeiro precedente do STF foi o RE 407.099/RS, apreciando a controvérsia acerca da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS: IMUNIDADE TRIBUTÁRIA RECÍPROCA: C.F., art. 150, VI, a. EMPRESA PÚBLICA QUE EXERCE ATIVIDADE ECONÔMICA E EMPRESA PÚBLICA PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO: DISTINÇÃO. I. - As empresas públicas prestadoras de serviço público distinguem-se das que exercem atividade econômica. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos é prestadora de serviço público de prestação obrigatória e exclusiva do Estado, motivo por que está abrangida pela imunidade tributária recíproca: C.F., art. 150, VI, a. II. - R.E. conhecido em parte e, nessa parte, provido. (RE 407099, Relator(a): CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 22/06/2004, DJ 06-08-2004 PP-00029 EMENT VOL-02158-08 PP-01543 RJADCOAS v. 61, 2005, p. 55-60 LEXSTF v. 27, n. 314, 2005, p. 286-297) (grifos nossos).
Naquela oportunidade, o Min. Relator afirmou que:
Vale repetir o que linhas atrás afirmamos: o serviço público prestado pela ECT – serviço postal – é serviço público de prestação obrigatória e exclusiva do Estado: CF, art. 21, X.
A questão, portanto, não está no afirmar se o D.L. 509, de 20.03.69, artigo 12, teria sido recebido ou não pela CF/88. A questão está, sim, no afirmar que a ECT está abrangida pela imunidade tributária do art. 150. VI, a, da CF.
Vê-se, portanto, que no caso da ECT, como posteriormente se confirmou e até hoje se entende, a ECT foi enquadrada como Fazenda Pública, inclusive com aplicação de diversos institutos, como pagamento de débitos por precatório, prazo em dobro nos atos processuais, etc.
Prosseguindo no tempo, outras empresas estatais também foram contempladas pela imunidade recíproca:
1. RE 407.099/PR: Neste caso, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a imunidade recíproca em relação ao ISSQN incidente sobre serviços de saneamento básico prestados pela Companhia de Saneamento do Paraná (SANEPAR). O STF entendeu que a atividade de saneamento básico é essencial ao Estado e, portanto, deve ser beneficiada pela imunidade recíproca.
2. REsp 1.203.397/SC: Neste caso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a imunidade recíproca em relação à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) em relação ao ICMS incidente sobre serviços postais. O STJ entendeu que os serviços postais são atividades típicas de Estado e, portanto, devem ser beneficiados pela imunidade recíproca.
3. REsp 1.235.506/SP: Neste caso, o STJ reconheceu a imunidade recíproca em relação à Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) em relação ao IPTU incidente sobre imóveis utilizados para pesquisa agropecuária. O STJ entendeu que a atividade de pesquisa agropecuária é essencial ao Estado e, portanto, deve ser beneficiada pela imunidade recíproca.
4. REsp 1.460.117/MG: Neste caso, o STJ negou a aplicação da imunidade recíproca em relação à Empresa de Transporte e Trânsito de Belo Horizonte (BHTRANS) em relação ao ISSQN incidente sobre serviços de fiscalização de trânsito. O STJ entendeu que a atividade de fiscalização de trânsito não é típica de Estado e, portanto, não deve ser beneficiada pela imunidade recíproca.
5. REsp 1.384.442/DF: Neste caso, o STJ negou a aplicação da imunidade recíproca em relação à Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (INFRAERO) em relação ao ISSQN incidente sobre serviços de vigilância e segurança patrimonial prestados em seus aeroportos. O STJ entendeu que a atividade de vigilância e segurança patrimonial não é típica de Estado e, portanto, não deve ser beneficiada pela imunidade recíproca.
Tal entendimento se mantêm atual no âmbito do STF:
EMENTA: Direito administrativo e tributário. Ação cível originária. Empresa pública de Estado-membro. Imunidade recíproca. 1. Ação cível originária ajuizada pela Empresa Mato-grossense de Tecnologia da Informação (MTI) em face da União, na qual postula o reconhecimento de imunidade tributária recíproca quanto ao imposto de renda incidente sobre os rendimentos decorrentes de serviços públicos prestados. 2. Em casos análogos, o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido sua competência, por estar em jogo questão ligada à imunidade tributária recíproca (art. 150, VI, a, da Constituição), indispensável à preservação do pacto federativo. 3. A jurisprudência desta Corte exige três requisitos para a extensão de prerrogativas da Fazenda Pública a sociedades de economia mista e empresas públicas: (i) a prestação de um serviço público, (ii) sem intuito de lucro e (iii) em regime de exclusividade (i.e., sem concorrência). 4. Inexistência de elementos que demonstrem que as atividades exercidas pela MTI estão fora do ambiente concorrencial. 5. Agravo Interno a que se nega provimento. (ACO 3307 AgR, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 06/12/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-022 DIVULG 04-02-2022 PUBLIC 07-02-2022)
Prosseguindo, sob o aspecto doutrinário, a maioria dos doutrinadores entende que a imunidade recíproca deve ser estendida às empresas estatais em determinadas situações.
De forma geral, a doutrina entende que as empresas estatais devem ter direito à imunidade recíproca quando estiverem exercendo atividades típicas de Estado, como segurança pública, saúde e educação. Isso porque essas atividades são consideradas exclusivas do Estado e não podem ser realizadas por entidades privadas.
Por outro lado, também há corrente em sentido contrário, que afirma que pelo fato de as estatais possuírem personalidade jurídica autônoma e de direito privado, bem como exercerem atividades econômicas de maneira independente, deve ser afastada a imunidade.
5. CONCLUSÃO
Portanto, concluindo o presente trabalho, chega-se à conclusão de que a imunidade recíproca é um instituto que visa garantir a autonomia e a preservação do interesse público entre os entes públicos. As empresas públicas e as sociedades de economia mista, por sua vez, somente podem usufruir dessa benesse se preencherem cumulativamente os seguintes requisitos: (i) devem exercer a prestação de um serviço público, (ii) sem intuito de lucro e sem distribuição de lucro a acionistas; (iii) em regime de exclusividade.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS
ALEXANDRE, Ricardo; Direito Tributário. 12ª ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2018.
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2018.
CARRAZA, Roque Antonio; Curso de Direito Tributário Constitucional. 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32ª ed. São Paulo: Atlas, 2018.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de; Curso de Direito Administrativo. 29ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
[1] Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
[...]
VI - instituir impostos sobre: (Vide Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;
[2] § 2º A vedação do inciso VI, "a", é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.
[3] ALEXANDRE, Ricardo; Direito Tributário. 12ª ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2018, p. 204.
[4] CF. Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
[...]
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
[5] Neste trabalho não serão exploradas as nuances acerca da extensão da imunidade recíproca às outras entidades da administração indireta.
[6] CF, Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
[7] CF. Art. 37. XIX – somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação;
XX - depende de autorização legislativa, em cada caso, a criação de subsidiárias das entidades mencionadas no inciso anterior, assim como a participação de qualquer delas em empresa privada;
CC. Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.
[8] Lei 13.303/16. Art. 28. Os contratos com terceiros destinados à prestação de serviços às empresas públicas e às sociedades de economia mista, inclusive de engenharia e de publicidade, à aquisição e à locação de bens, à alienação de bens e ativos integrantes do respectivo patrimônio ou à execução de obras a serem integradas a esse patrimônio, bem como à implementação de ônus real sobre tais bens, serão precedidos de licitação nos termos desta Lei, ressalvadas as hipóteses previstas nos arts. 29 e 30.
§ 1º Aplicam-se às licitações das empresas públicas e das sociedades de economia mista as disposições constantes dos arts. 42 a 49 da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006 .
§ 2º O convênio ou contrato de patrocínio celebrado com pessoas físicas ou jurídicas de que trata o § 3º do art. 27 observará, no que couber, as normas de licitação e contratos desta Lei.
§ 3º São as empresas públicas e as sociedades de economia mista dispensadas da observância dos dispositivos deste Capítulo nas seguintes situações:
I - comercialização, prestação ou execução, de forma direta, pelas empresas mencionadas no caput , de produtos, serviços ou obras especificamente relacionados com seus respectivos objetos sociais;
II - nos casos em que a escolha do parceiro esteja associada a suas características particulares, vinculada a oportunidades de negócio definidas e específicas, justificada a inviabilidade de procedimento competitivo.
§ 4º Consideram-se oportunidades de negócio a que se refere o inciso II do § 3º a formação e a extinção de parcerias e outras formas associativas, societárias ou contratuais, a aquisição e a alienação de participação em sociedades e outras formas associativas, societárias ou contratuais e as operações realizadas no âmbito do mercado de capitais, respeitada a regulação pelo respectivo órgão competente.
Advogado/Pós-Graduando em Direito Administrativo e em Direito Tributário. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAPELLARI, Eduardo Martins. O panorama atual da imunidade recíproca em relação às empresas estatais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jul 2023, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/62022/o-panorama-atual-da-imunidade-recproca-em-relao-s-empresas-estatais. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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