RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discutir a incidência do princípio da insignificância nos casos de furto famélico. Para isso, serão apresentados os fundamentos teóricos do princípio da insignificância, assim como as diferentes perspectivas a respeito da sua incidência nos casos de furto famélico. A pesquisa valer-se-á de uma compilação bibliográfica, a qual visa identificar a posição adotada pelos Tribunais e doutrinadores sobre o assunto, delineando seus critérios de aplicação e interpretação em relação à caracterização ou não da atipicidade do furto famélico. A dissertação objetiva indicar a importância do reconhecimento do princípio da insignificância nos casos de furto famélico, sem, contudo, banalizar a conduta criminosa do furto.
Palavras-chave: Furto famélico. Princípio da insignificância. Tipicidade. Atipicidade.
ABSTRACT: The present article aims to discuss the application of the principle of insignificance in cases of famelic theft,. To do so, the theoretical foundations of the principle of insignificance will be presented, as well as different perspectives on its incidence in cases of famelic theft. The research will rely on a bibliographic compilation, which aims to identify the position adopted by courts and scholars on the subject, outlining their criteria for application and interpretation regarding the characterization or not of atypicality of famelic theft. The dissertation aims to indicate the importance of recognizing the principle of insignificance in cases of famelic theft, without, however, trivializing the criminal conduct of theft.
Keywords: Famelic theft. Principle of insignificance. Typicality. Atypicality.
O cerne do Direito Penal tem por desígnio orientar as ações humanas quando estas se revelam prejudiciais à sociedade e, especialmente, quando tais ações contrariam e ameaçam valores fundamentais da existência humana. O Direito Penal não deve ocupar-se com bagatelas, à semelhança de que não podem ser tolerados tipos delitivos que descrevam condutas incapazes de efetivamente lesar o bem jurídico. Consoante essa perspectiva, funda-se o princípio da insignificância.
A preservação da vida tem como desiderato primordial a provisão de sustento alimentar, o qual se apresenta como um elemento indispensável, contudo, verifica-se que no Brasil há uma desarmonia econômica e social e uma grave situação insustentável entre as diversas classes sociais. Furto famélico, é a denominação empregada tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência para descrever o ato de furto em que o sujeito, a fim de aplacar sua voraz fome e garantir a própria sobrevivência, alicerçando, por conseguinte, sua saúde física e bem-estar, subtrai alimentos.
Evidencia-se que o furto famélico se encontra sujeito a abordagens doutrinárias e jurisprudenciais discrepantes, ao contrário de outras problemáticas que são normativamente reguladas pelo Estado. Assim sendo, o presente estudo almeja, por meio de uma pesquisa bibliográfica aprofundada, reunir fundamentos que possibilitem uma análise aprofundada do delito de furto famélico e da aplicabilidade do princípio da insignificância em suas ocorrências.
Nessa empreitada, a questão subjacente ao tópico em questão reside na determinação se o furto famélico pode ser qualificado como um ilícito penal e, ademais, se o indivíduo que o pratica está sujeito a repressão e sanção criminal. Com tal propósito em mente, a pesquisa proposta busca, através da análise de doutrinas, decisões judiciais, artigos, obras literárias e jurisprudências, estabelecer um discernimento claro acerca da natureza jurídica do furto famélico e da aplicabilidade do princípio da insignificância em casos dessa natureza.
2 PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
O princípio da insignificância, atualmente, é objeto de reflexão no tocante à determinação do injusto penal, o que significa dizer, na verdade, que representa um método de exclusão da imputação objetiva. À luz desse princípio, procede-se a uma análise pormenorizada do caso em concreto, mediante uma interpretação orientada do bem jurídico que se pretende proteger.
O aforismo jurídico da bagatela, padece de notável ambiguidade, considerando que o conceito de insignificância é bastante amplo e variável. Por conseguinte, a identificação dessas situações resta subordinada aos ensinamentos doutrinários e à jurisprudência. Para o doutrinador Luiz Regis Prado[1], a solução se avizinha mediante a aplicação do princípio da insignificância, posto que a ínfima monta do objeto subtraído, porventura, seja um fundamento de atipicidade da conduta, em decorrência da insuficiência do dano para configurar a ilicitude do comportamento.
Ou seja, preconiza-se a não imposição de sanção penal em relação a uma infração considerada insignificante, e, uma conduta é considerada insignificante quando não há lesividade decorrente do fato típico. Para a aplicação do mencionado princípio, o Supremo Tribunal Federal, diante da ausência de legislação específica, estabeleceu como requisito a presença cumulativa de quatro requisitos: a) mínima ofensividade do comportamento do agente; b) ausência de periculosidade social da ação; c) reduzido grau de reprovabilidade da conduta e; d) inexpressividade da lesão jurídica causada.
A despeito disso, evidencia-se que o princípio da insignificância, por sua vez, opera como uma causa de exclusão da tipicidade, haja vista que a conduta perpetrada pelo agente não ostenta uma lesão de magnitude apreciável ao bem jurídico em questão.
Visando melhor compreender o mencionado entendimento, é importante trazer à baila o conceito de tipicidade, ilicitude e culpabilidade, porém diga-se, em suma, que o princípio da insignificância, também conhecido como princípio da bagatela, objeto de diversos precedentes do Supremo Tribunal Federal, influencia diretamente na tipicidade formal do crime, que se refere à adequação do fato à norma, sendo que sua aplicação configura eventual atipicidade da conduta.
2.1 FATO TÍPICO, ILÍCITO E CULPÁVEL
Delito é todo evento típico, antijurídico e culpável. No entendimento do ilustre estudioso Fernando Capez[2], o fato típico é caracterizado pela materialização de uma conduta que se ajusta de forma integral aos elementos delineados no padrão preconizado pelo ordenamento penal. Sobre o requisito, é imprescindível destacar um excerto do voto proferido pelo eminente ministro do Superior Tribunal Federal, Paulo Medina, que em suas considerações, asseverou:
A tipicidade, classicamente, é vista apenas sob o prisma formal ou, em outras palavras, importa, tão-só, saber se há perfeita adequação da conduta ao tipo penal para concluir sua existência. Contudo, pela função precípua do Direito Penal em proteger interesses e valores relevantes para a sociedade e evitar a sua utilização descomedidamente, posicionamentos doutrinários surgiram para demonstrar a prescindibilidade desse ramo jurídico na regência de certos casos concretos. Para isso, cindiu-se a tipicidade em formal e material. Enquanto aquela representa o conceito clássico de tipicidade, esta é definida como a conduta formalmente típica que causa um ataque intolerável ao objeto jurídico penalmente tutelado.[3]
Dessa forma, a tipicidade surge como um requisito essencial, haja vista que somente se verifica a sua ocorrência quando há uma correspondência perfeita entre a conduta empreendida e o fato disciplinado na legislação penal. Com efeito, a ausência de tal consonância implica a atipicidade da conduta, tornando-a, pois, destituída de interesse para o direito penal.
Por sua vez, a ilicitude, ou antijuridicidade, configura-se quando o agente transgride uma norma, ou seja, há uma contrariedade entre o ordenamento jurídico e a conduta perpetrada pelo agente delitivo. O ilustre jurista Damásio Evangelista de Jesus assevera:
Há um critério negativo de conceituação da antijuridicidade: o fato típico é também antijurídico, salvo se concorre qualquer causa de exclusão da ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito). Diante de um fato penal, a morte de um homem realizada por outro, p. ex., diz-se que há um fato típico. Surge a antijuridicidade se não agiu acobertado por uma excludente da ilicitude. Assim, antijurídico é todo fato descrito em lei penal incriminadora e não protegido por causa de justificação. O sistema negativo conceitua a antijuridicidade como ausência de causas de ilicitude, o que vale dizer que não diz o que é antijurídico, mas sim o que é jurídico, o que constitui paradoxo.[4]
A culpabilidade, por sua vez, alude à culpa imputável ao agente pelo cometimento da infração penal, sendo, portanto, um requisito primordial para a imposição da sanção penal. Trata-se de um conceito individual, haja vista que o ser humano é uma entidade detentora de sua própria identidade, de modo que não há duas entidades exatamente iguais. Cada indivíduo possui peculiaridades que o distinguem dos demais, por conseguinte, no âmbito da culpabilidade, todos os aspectos, tanto internos quanto externos, devem ser levados em conta para se aferir se o agente, diante das circunstâncias em que se encontrava, poderia ter agido de maneira diversa.
De acordo com as doutrinas que versam sobre a culpabilidade, Fernando Capez leciona:
Existem duas correntes doutrinárias no tocante ao fato de a quem se afere a culpabilidade. A primeira faz referência a apontar a culpabilidade ao autor da infração, atribuindo a censura ao caráter do agente, seu estilo de vida, personalidade, antecedentes, conduta social e dos motivos que o levaram a praticar a infração penal. A segunda, que é a mais utilizada, diz que a reprovação é caracterizada pelo fato praticado pelo agente, ou seja, de acordo com o crime praticado, de acordo com a exteriorização da vontade humana, por meio de uma ação ou omissão.[5]
3 FURTO FAMÉLICO
3.1 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O FURTO FAMÉLICO
Conforme as disposições contidas no Artigo 155 do Código Penal pátrio, é possível afirmar que a conduta que se amolda ao delito de furto ocorre quando alguém subtrai coisa móvel que pertença a outrem, seja para si ou para terceiro, cominando-se pena de reclusão que pode variar entre um a quatro anos.
A subtração de gêneros alimentícios em virtude de necessidade premente é conhecida como furto famélico. É a nomenclatura adotada tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência para denominar o delito de furto perpetrado por indivíduo que subtrai mantimentos para satisfazer suas necessidades alimentares e garantir sua subsistência. Cleber Masson traduz:
É a denominação utilizada pela doutrina e pela jurisprudência relativamente ao furto cometido por quem subtrai alimentos em geral para saciar a fome e preservar a saúde ou a vida própria, ou de terceiro, quando comprovada uma situação de extrema penúria. Pode-se citar o exemplo da mãe, enferma e desempregada, que subtrai um pacote de fubá para alimentar sua filha, de pequena idade.[6]
Há autores que sustentam que o furto famélico ostenta uma vertente que afigura tese de exclusão de tipicidade, em face da aplicação do princípio da insignificância; enquanto outros corpos teóricos asserem que a configuração do furto famélico ensejaria uma potencialidade de exclusão de ilicitude (estado de necessidade), e há ainda aqueles que vislumbram no furto famélico, propriamente dito, uma possibilidade de exclusão de culpabilidade (causa de inexigibilidade de conduta diversa).
No tocante à natureza jurídica que permeia o delito de furto famélico, Luiz Flávio Gomes leciona que:
O melhor caminho é, sem equívoco, verificar individualmente caso a caso: quando se tratar de res de valor insignificante, não há dúvida que a solução mais adequada é resolver o problema já no cerne da tipicidade, aplicando o princípio da insignificância, de modo a revelar a atipicidade material da conduta. De outro lado, apenas quando não possível reconhecê-la, é que será analisado se estão presentes os requisitos para a caracterização do estado de necessidade, ou seja, para o afastamento da ilicitude. Há de se entender que essa forma de solucionar o problema não visa privilegiar o réu e a impunidade, mas sim, atender aos valores consagrados por um Estado constitucional e humanitário de Direito.[7]
Consoante às tendências doutrinárias, compreende-se que a essência nuclear da natureza jurídica do furto famélico deve ser analisada sob a ótica singular do caso em exame, tendo em vista que cada situação deve ser avaliada de forma individualizada.
3.2 INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA OU ESTADO DE NECESSIDADE
A respeito da não punibilidade concernente ao delito de furto famélico, mesmo enquanto os Tribunais majoritariamente aplicam o princípio da insignificância em suas decisões, constata-se que doutrina e jurisprudência manifestam opiniões díspares, divergindo no que tange à aplicabilidade da inexigibilidade de conduta diversa ou, ainda, ao estado de necessidade, visto que ambas as correntes suscitam argumentos igualmente plausíveis.
A inexigibilidade de conduta diversa, no âmbito do direito penal, tem por desiderato garantir a segurança jurídica, salvaguardando o agente do ímpeto punitivo estatal decorrente da prática de determinado ato. Trata-se de uma causa supralegal, situada acima da própria lei, que exclui a culpabilidade do agente em duas possibilidades: coação moral irresistível, na qual o indivíduo se vê compelido a obedecer a uma ordem que não pode recusar, conforme previsto no artigo 22 do Código Penal, e obediência hierárquica à ordem não manifestamente ilegal, na qual o agente acata uma ordem de seu superior hierárquico.
No que se refere ao furto famélico, a inexigibilidade de conduta diversa apresenta-se como uma justificativa para a não punibilidade do agente, reconhecida tanto pelo Superior Tribunal de Justiça como pelo Supremo Tribunal Federal, bem como por alguns doutrinadores. Isso porque, segundo entendimento, o agente não teria outra opção senão a prática do ato criminoso, a fim de satisfazer sua necessidade vital, não havendo, assim, a premissa de culpabilidade que enseje sua condenação.
Em contrapartida, grande parte da doutrina, assim como a jurisprudência, tem abraçado a tese de que o furto famélico deve ser considerado como uma hipótese de estado de necessidade. Isto é, o indivíduo subtrai bens em razão de uma real e iminente necessidade de sobrevivência, na medida em que não existem outras alternativas disponíveis para suprir tal carência. Para essa corrente de entendimento Cabette[8] alerta que é preciso observar que o estado de necessidade somente é admitido quando presentes todos os requisitos elencados no artigo 24 do Código Penal, pois a ausência de qualquer um deles configura o ato como ilícito e, consequentemente, punível.
Desse modo, a inferência a que se alcança é que a flagelo da fome agride a própria essência da dignidade humana, e tanto o estado de necessidade quanto a inexigibilidade de conduta diversa podem ser reconhecidos como paradigmas de equidade nos casos de furto famélico, para valendo-se desses fundamentos aplicar o princípio da insignificância.
3.3 POSICIONAMENTOS JURISPRUDENCIAIS
Nas deliberações proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, constata-se que a maneira apropriada de lidar com os casos de furto famélico no Brasil é por meio da aplicação do princípio da insignificância como uma excludente de tipicidade do delito.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em 2015, no mérito de uma Apelação Criminal, reconheceu o furto famélico como motivo para a absolvição do réu. A prova produzida em Juízo demonstra que o furto cometido se enquadra nas condições necessárias para o reconhecimento do furto famélico, que incluem a existência de estado de necessidade e a subtração exclusiva de gêneros alimentícios, além de um cartão assistencial para sua aquisição. O parecer do Ministério Público nesta Corte também se posiciona favoravelmente ao reconhecimento da figura do furto famélico.
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO. FURTO SIMPLES. PRELIMINAR DE NULIDADE REJEITADA. RECONHECIMENTO DE FURTO FAMÉLICO. ABSOLVIÇÃO. Preliminar de nulidade da sentença por ofensa ao art. 212 do CPP. Rejeição. A nova redação do art. 212 do CPP apenas modificou a técnica de inquirição, podendo as partes indagar diretamente ao depoente. Apesar da reforma, o magistrado não está impedido de perguntar ao réu, à vítima e às testemunhas. Absolvição pelo reconhecimento do furto famélico. No caso dos autos, a prova produzida em Juízo demonstra que o furto cometido amolda-se às condições necessárias para o reconhecimento do furto famélico - estado de necessidade e furto exclusivo de gêneros alimentícios e de um cartão assistencial para sua aquisição. Declarações em Juízo tanto da vítima, como do réu, harmonizadas neste sentido. Ausência de prova contraposta. Parecer do MP nesta Corte pelo reconhecimento da figura do furto famélico. Absolvição com base no art. 386, inciso III do Código de Processo Penal. Preliminar rejeitada. No mérito, apelo da Defesa provido.[9]
Diante do exposto, o apelo da defesa no mérito é provido, determinando a absolvição do réu com base no reconhecimento do furto famélico.
Em 2020, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em uma apelação criminal em um caso de furto, também absolveu o réu. No presente caso, ficou evidenciado que a subtração do objeto ocorreu devido à fome e à inadiável necessidade do agente em se alimentar, uma vez que não possuía outros meios para suprir essa necessidade básica.
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - FURTO - ESTADO DE NECESSIDADE - EXCLUDENTE DE ILICITUDE - CONFIGURAÇÃO - "FURTO FAMÉLICO" - PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - INCIDÊNCIA - ABSOLVIÇÃO. - Evidenciado que a subtração do objeto decorreu da fome e da inadiável necessidade de o agente se alimentar, vez que não possuía outros meios para fazê-lo, acolhe-se a excludente de ilicitude do estado de necessidade ("furto famélico"). - O valor da res furtiva (trinta reais), aliado às peculiaridades do caso concreto, justificam a aplicação do princípio da insignificância para fins de absolvição, ainda que reincidente o réu.[10]
Além disso, considerando o valor da coisa furtada, que foi R$30,00, e levando em conta as peculiaridades do caso concreto, justifica-se a aplicação do princípio da insignificância. Mesmo que o réu seja reincidente, as circunstâncias específicas do caso, aliadas ao valor reduzido da res furtiva, justificam a absolvição com base no princípio da insignificância.
Ainda, em análise acerca do princípio da insignificância, utilizado como excludente de tipicidade do crime de furto famélico, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu sua incidência. Trata-se de um Agravo Regimental interposto contra decisão que reconheceu a incidência do princípio da insignificância em um caso de furto tentado de comida, mesmo diante das qualificadoras do concurso de pessoas e do abuso de confiança.
No presente caso, os réus tentaram furtar alguns pedaços de carne, avaliados em R$ 60,00, quantia consideravelmente inferior a 10% do salário mínimo vigente à época dos fatos. Diante dessa circunstância, verifica-se a atipicidade material da conduta, amparada pelo princípio da insignificância.
PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FURTO TENTADO DE COMIDA. VALOR IRRISÓRIO. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA, APESAR DAS QUALIFICADORAS. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. Os réus tentaram furtar poucos pedaços de carne, no valor de apenas R$ 60,00, em muito inferior a 10% do salário-mínimo vigente à época dos fatos. Atipicidade material da conduta, pelo princípio da insignificância. 2. Tratando-se de um furto evidentemente famélico, a existência das qualificadoras do concurso de pessoas e do abuso de confiança não impede o reconhecimento do princípio da insignificância. 3. Agravo regimental desprovido.[11]
Cabe ressaltar que, mesmo com a existência das qualificadoras mencionadas, que poderiam agravar a pena aplicável aos acusados, o reconhecimento do princípio da insignificância não fica obstado. Isso se deve ao fato de que o furto em questão foi motivado pela extrema necessidade de alimentação, configurando uma situação evidentemente famélica. Assim, considerando a insignificância do valor subtraído, em relação ao salário mínimo vigente, e a natureza peculiar e extrema da situação vivenciada pelos réus, o Agravo Regimental é desprovido, mantendo-se a decisão que reconheceu a aplicação do princípio da insignificância, mesmo com as qualificadoras presentes no caso.
No presente cenário, conforme observado nos julgados referidos, os Tribunais em sua grande maioria têm aplicado o princípio da insignificância nas hipóteses de furto famélico no território brasileiro, visto que, caso o agente não tenha causado prejuízo que efetivamente prejudique o patrimônio da vítima, deve-se acionar o referido princípio, especialmente porque o indivíduo está subtraindo alimento de valor ínfimo e já sofreu violação de sua dignidade humana.
Dessa forma, fica patente que a esfera penal deve ser aplicada apenas subsidiariamente ou como última opção, sendo invocada somente quando não houver outra alternativa para resolver o litígio. Nesse sentido, o princípio da insignificância é um dos pilares fundamentais do Direito Penal, que estabelece que o Direito não deve se preocupar com ações sem relevância, uma vez que o prejuízo causado é tão mínimo que não justifica o início de um processo penal.
3.4 APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS CASOS DE FURTO FAMÉLICO
O Estado se faz presente através de uma colossal estrutura organizacional encarregada da salvaguarda pública. O despendimento decorrente do exercício funcional dessa estrutura somente se justifica quando há possibilidade de uma retribuição séria e fundamentada em relação ao delito cometido, tendo por base a necessidade e proporcionalidade, o que, a priori, não se perfaz no furto famélico. A tipicidade penal demanda uma violação de certa gravidade aos bens jurídicos tutelados, visto que nem sempre qualquer afronta a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o ilícito típico.
É importante ressaltar que a doutrina atualmente majoritaria interpreta o princípcio da insignificância a partir de não tão somente o aspecto formal da tipicidade, mas também do aspecto material da tipicidade, ou seja, àquele que diz respeito à relevância da lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado. De acordo com Carlos Vico Manãs:
O princípio da insignificância é um instrumento de interpretação penal, o qual não deve ser considerado apenas em sua perspectiva formal, mais principalmente na forma material no sentido de lesão ao bem jurídico.[12]
Nesse sentido, é insuficiente a mera existência de uma previsão abstrata à qual a conduta do agente se adeque perfeitamente. É preciso que a conduta não seja fomentada pelo direito penal e que, de fato, represente uma ameaça ao bem jurídico protegido. É necessário, assim, realizar um juízo de valor entre as consequências do delito praticado e a punição a ser aplicada ao agente.
Ainda seguindo a premissa de Carlos Vico Manãs:
O princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção de fato à norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, o que consagra o postulado da fragmentariedade do direito penal.[13]
Nesse sentido, se a ação do agente não atinge ou ofende o bem jurídico tutelado, não causando nenhum dano ou, quando muito, um dano de ínfima importância, não há fato a punir, pois inexiste tipicidade. Deste modo, impõe-se a adoção do princípio da insignificância, e somente as condutas mais gravosas e mais perigosas perpetradas contra bens jurídicos verdadeiramente relevantes carecem da severidade das leis penais.
Convém ressaltar que a aplicação do princípio da insignificância não é ilimitada, não bastando, por exemplo, a irrelevância do valor do bem subtraído. Os Tribunais Superiores estabelecem alguns requisitos imprescindíveis para a invocação da insignificância da conduta, tais como: a mínima ofensividade do comportamento do agente, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade da conduta e, por fim, a inexpressividade da lesão jurídica causada.
Pela ótica da incidência do princípio da insignificância nos casos de furto famélico no Brasil, infere-se que sua aplicabilidade encontra-se condicionada à análise meticulosa de todos os aspectos do caso concreto, a fim de averiguar se a conduta do agente ocasionou lesão significativa ao bem jurídico tutelado e qual a extensão dessa lesão. Dessa forma, a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social do agente, sua personalidade, os motivos que o levaram a perpetrar o delito e suas consequências devem ser considerados de maneira conjunta.
No que tange especificamente à incidência do princípio da insignificância nos casos de furto famélico no Brasil, é perceptível a negativa dos Tribunais em sua aplicação quando o agente é reincidente ou subtrai alimentos de valor elevado, ultrapassando os requisitos para sua aplicação. Por outro lado, verifica-se que, caso o agente seja primário, a excludente de tipicidade é aplicável, afastando a tipicidade material por meio do princípio da insignificância, o qual exclui do tipo penal condutas de mínima perturbação social, em que o alto custo social e processual não seriam justificáveis.
Assim sendo, é de suma importância a discussão acerca do princípio da insignificância, pois além de ser a diretriz norteadora para parte da doutrina, é também o princípio adotado na maioria dos Tribunais brasileiros para solucionar casos de furto famélico no país. Portanto, sua incidência é a melhor forma de adequação à sua natureza jurídica.
4 ANÁLISE DE CASO CONCRETO
Considerando as premissas dos raciocínios abordados, para o estudo faz-se necessária a análise de um caso específico em que os fundamentos do princípio da insignificância em furtos famélicos foram aplicados da maneira possivelmente não mais razoável.
Segundo narram os autos, em 06 de fevereiro de 2020, por volta das 10:25 horas, no Mercado da Cássia, situado na Rua Luiz Antônio nº 2, Bairro Santa Terezinha, em Passa-Quatro, o apelante, morador de rua, furtou 02 barras de chocolate e 01 embalagem de linguiça calabresa pertencentes ao estabelecimento comercial mencionado.
A defesa postulou pedido de absolvição pelo reconhecimento do furto famélico, porém, o Tribunal entendeu por não conceder, culminando na seguinte ementa:
Ementa Oficial: APELAÇÃO CRIMINAL - FURTO - ABSOLVIÇÃO - ESTADO DE NECESSIDADE - FURTO FAMÉLICO OU APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - INADMISSIBILIDADE - REQUISITOS NÃO PREENCHIDOS - RECURSO DESPROVIDO. 1. Inviável é a absolvição do delito de furto pelo reconhecimento da excludente de ilicitude de estado de necessidade, sob a alegada configuração de furto famélico ou pela aplicação do princípio da insignificância, eis que, não preenchidos os requisitos necessários. 2. Recurso desprovido.[14]
A recusa do Tribunal foi fundamentada sob o seguinte:
Observa-se dos autos que o apelante além da embalagem de linguiça, subtraiu duas barras de chocolate, não evidenciando que o furto ocorreu para saciar sua fome em situação de extrema necessidade. As alegações da defesa, portanto, no sentido do apelante ser pobre e morador de rua, por si só, sem maiores elementos probatórios, não induzem à absolvição pelo reconhecimento do furto famélico. Assim, diante da inexistência de elementos a comprovar a excludente de ilicitude de estado de necessidade, impossível o seu reconhecimento. Afasto, portanto, o rogo defensivo.[15]
Ora, diante da interpretação o delito realizado não consumou-se para saciar a fome. Porém, há de se mencionar que tal fundamentação é subjetiva, além de que pode-se objetivamente reconhecer que o furto de 02 barras e chocolate e 01 embalagem de linguiça calabresa não configuram o desejo de obtenção de vantagem econômica.
Além de que, resta evidente que o montante do valor subtraído não ultrapassa 10% do salário mínimo vigente à época dos fatos, e, coadunando a decisão com demais Tribunais, deveria ser reconhecido o princípio da insignificância em decorrência da inexpressividade da lesão jurídica.
Assim, preenchidos os requisitos da mínima ofensividade do comportamento do agente, ausência de periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade da conduta e inexpressividade da lesão jurídica causada, deveria o Tribunal ter decidido no sentido de reconhecer a absolvição do apelante.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo teve por escopo principal a busca pela essência jurídica do furto famélico, com o fito de averiguar a incidência do princípio da insignificância nesses casos, além de compreender outras possibilidades que doutrinadores e jurisprudência norteiam.
Primeiramente buscou-se conceituar o instituto do princípio da insignificância, analisando sua aplicabilidade, bem como particularidades e anseios. Evidenciou-se os critérios adotados pelos Tribunais para seu reconhecimento. Por conseguinte, delimitou-se acerca da identificação de um delito como um fato típico, ilícito e culpável, a fim de melhor compreender o estudo do instituto, e, de como este infere no reconhecimento da atipicidade.
Posteriormente, adentrou-se no âmbito do furto famélico. Em suas breves considerações, restou evidente que a intenção do agente infringente não é acrescer seu patrimônio, tampouco prejudicar a vítima, mas sim suprir sua premente necessidade de saciar a fome própria ou de outrem, em um contexto social onde os direitos fundamentais de sobrevivência não são garantidos pela família, sociedade ou Estado.
Além disso, verificou-se que no que diz respeito à não punibilidade relacionada ao crime de furto famélico, embora os Tribunais apliquem em sua maioria o princípio da insignificância em suas decisões, observa-se que tanto a doutrina quanto a jurisprudência expressam opiniões divergentes, discordando sobre a aplicação da inexigibilidade de conduta diversa ou, ainda, do estado de necessidade. Evidenciou-se que, a Corte Superior fundamenta-se nesses e em outros pilares para justificar o princípio da insignificância, uma vez que a conduta perpetrada não suscita dano suficiente para conferir-lhe relevância penal.
Durante a pesquisa empreendida, quando consultada acerca do posicionamento jurisprudencial acerca do tema, constatou-se que, em sua maioria, a jurisprudência tem abraçado o princípio da insignificância nos casos de furto famélico. Isso se deve ao fato de que se entende que o valor subtraído é ínfimo, não afetando, de maneira relevante, o bem jurídico tutelado.
Realizou-se uma análise de caso concreto onde a decisão fora desfavorável ao reconhecimento do princípio da insignificância em um furto famélico. Pode-se observar que, embora extenso posicionamento jurisprudencial considere a fundamentação, alguns magistrados ainda relutam em observá-la. Todo caso restou configurado que, ante os requisitos e precedentes reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal para qualificação, é possível postular pela sua capitulação.
Concluiu-se, pois, que a problemática em análise é de grande relevância para os operadores do direito, demandando do Poder Judiciário uma apreciação minuciosa do caso em sua plenitude, a fim de que, frente a eventuais conflitos entre princípios, se opte pela alternativa que inflige o menor prejuízo ao indivíduo, sem, no entanto, banalizar a conduta criminosa do furto. Desse modo, urge a aplicação do princípio da insignificância, cuja relevância e abrangência são incontestáveis, afastando-se a tipicidade do delito de furto famélico de maneira ideal, harmonizando-se com o ordenamento jurídico brasileiro.
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PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico Penal e Constituição. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
STJ. AgRg no AREsp n. 2.216.975/RN. Relator Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, Julgamento 04/02/2023, Publicação 17/2/2023.
STJ. Habeas Corpus nº 41.638 – MS (2005/0019248-7). Relator Ministro Paulo Medina, 6ª Turma, Julgamento 07/04/2006, Publicação 17/04/2006. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=200500192487&dt_publicacao=17/04/2006. Acesso em 10/05/2023.
TJMG. Apelação Criminal 1.0024.16.145244-6/001. Relatora Desembargadora Luziene Barbosa Lima (JD Convocada), 8ª Câmara Criminal, Julgamento 21/05/2020, Publicação 25/05/2020.
TJMG. Apelação Criminal 1.0476.20.000069-5/001. Relator Desembargador Pedro Vergara, 5ª CÂMARA CRIMINAL, Julgamento 19/07/2022, Publicação 27/07/2022.
TJRS. Apelação Crime, Nº 70063013643. 6ª Câmara Criminal, Relator Ícaro Carvalho de Bem Osório, Julgamento 08/10/2015, Publicação 13/11/2015.
[1] PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico Penal e Constituição. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 109-111.
[2] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 103.
[3] STJ. Habeas Corpus nº 41.638 – MS (2005/0019248-7). Relator Ministro Paulo Medina, 6ª Turma, Julgamento 07/04/2006, Publicação 17/04/2006. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=200500192487&dt_publicacao=17/04/2006. Acesso em 10/05/2023.
[4] JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal: parte geral. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 352.
[5] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 300.
[6] MASSON, Cléber. Direito Penal Esquematizado. vol. 2. Parte Especial. 4. ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Método, 2012, p. 315.
[7] GOMES, Luiz Flávio, 2007 apud BARBOSA, Gabriely Silva; PONTES, Bruno Alves da Silva. Furto famélico: análise crítica acerca dos princípios processuais. 2021, p. 12. Disponível em: https://www.unirv.edu.br/conteudos/fckfiles/files/FURTO%20FAM%C3%89LICO_%20AN%C3%81LISE%20CR%C3%8DTICA%20ACERCA%20DOS%20PRINCIPIOS%20%20PROCESSUAIS.pdf. Acesso em: 10/05/2023.
[8] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Furto famélico: estado de necessidade ou inexigibilidade de conduta diversa supra legal? 2001. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-penal/furto-famelico-estado-de-necessidade-ou-inexigibilidade-de-conduta-diversa-supralegal/. Acesso em: 10/05/2023.
[9] TJRS. Apelação Crime, Nº 70063013643. 6ª Câmara Criminal, Relator Ícaro Carvalho de Bem Osório, Julgamento 08/10/2015, Publicação 13/11/2015.
[10] TJMG. Apelação Criminal 1.0024.16.145244-6/001. Relatora Desembargadora Luziene Barbosa Lima (JD Convocada), 8ª Câmara Criminal, Julgamento 21/05/2020, Publicação 25/05/2020.
[11] STJ. AgRg no AREsp n. 2.216.975/RN. Relator Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, Julgamento 04/02/2023, Publicação 17/2/2023.
[12] MANÃS, Carlos Vico. O Princípio da Insignificância Como Excludente da Tipicidade do Direito Penal. São Paulo, 1994, p. 15.
[13] MANÃS, Carlos Vico. O Princípio da Insignificância Como Excludente da Tipicidade do Direito Penal. São Paulo, 1994, p. 22.
[14] TJMG. Apelação Criminal 1.0476.20.000069-5/001. Relator Desembargador Pedro Vergara, 5ª CÂMARA CRIMINAL, Julgamento 19/07/2022, Publicação 27/07/2022.
[15] TJMG. Apelação Criminal 1.0476.20.000069-5/001. Relator Desembargador Pedro Vergara, 5ª CÂMARA CRIMINAL, Julgamento 19/07/2022, Publicação 27/07/2022.
graduando em Direito pela Universidade Brasil. Campus Fernandópolis.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Flávio Matheus Oliveira Melo de. Princípio da insignificância e a sua incidência nos casos de furto famélico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jul 2023, 04:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/62211/princpio-da-insignificncia-e-a-sua-incidncia-nos-casos-de-furto-famlico. Acesso em: 23 dez 2024.
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