RESUMO: A adoção é um instituto jurídico excepcional e que somente se perfectibiliza por ação judicial, cujo intuito é estabelecer um parentesco civil entre adotante e adotado, advindo da escolha. Por ser tão relevante, social e juridicamente, é permeado por requisitos e procedimentos regulamentados por dispositivos legais. Em meio a isso, o interesse na desistência da adoção pode surgir, apesar de referida possibilidade não estar claramente prevista na legislação, o que está propício a gerar algumas consequências jurídicas. O presente artigo científico, por meio da metodologia da revisão bibliográfica, busca ressaltar a importância do instituto da adoção e refletir sobre as consequências psicossociais e jurídicas que podem advir de uma eventual desistência da adoção, em todas as suas fases. Para tanto, são descritas as supracitadas fases, bem como os efeitos pessoais e patrimoniais da formalização da adoção e os princípios que norteiam o assunto, discorrendo sobre a possibilidade de desistência do instituto, assim como nulidade ou anulação deste, ressaltando-se as repercussões jurídicas plausíveis de serem provenientes da desistência.
Palavras-chave: adoção; desistência; repercussões jurídicas; proteção; responsabilização civil.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 NOÇÕES GERAIS DO INSTITUTO DA ADOÇÃO. 2.1 Fases do Processo de Adoção. 2.2 Efeitos da Adoção. 3 PRINCÍPIOS DE PROTEÇÃO DO ADOTADO. 4 POSSIBILIDADE DE DESISTÊNCIA DA ADOÇÃO. 4.1 Adoção Nula, Anulável ou Passível de Rescisão. 5 REPERCUSSÕES JURÍDICAS DA DESISTÊNCIA. 5.1 Responsabilidade Civil. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
O presente artigo aborda sobre o instituto da adoção, o qual constitui uma forma de filiação formada por sentença judicial, criando um parentesco civil entre adotante e adotado. Nesse contexto, o artigo tratará especificamente acerca da possibilidade de desistência da adoção, nas suas diferentes fases, bem como as repercussões jurídicas provenientes disso.
Embora a eventualidade de uma desistência da adoção não esteja expressamente prevista na legislação, é uma realidade enfrentada por muitos adotandos. Dessa forma, já existem algumas decisões judiciais versando sobre isso, inclusive ponderando acerca de possíveis consequências jurídicas.
Sob o âmbito do melhor interesse e proteção do adotando, é de se ponderar: seria justo que a desistência da adoção, em determinadas fases, não trouxesse qualquer consequência ao adotante, considerando os inúmeros prejuízos que poderia ocasionar ao adotado? É certo que a adoção envolve não somente efeitos jurídicos, mas também está intimamente ligada a questões psicossociais, tanto dos adotandos quanto dos adotantes. Assim, é um instituto muito importante e delicado, que deve ser permeado por seriedade e respeito.
Este trabalho é um artigo de revisão bibliográfica. A metodologia a ser utilizada, quanto a sua finalidade, se dará por pesquisa básica ou pura; quanto ao seu objetivo, será utilizada a pesquisa exploratória; com relação aos procedimentos, empregar-se-á a pesquisa bibliográfica; no que tange a natureza, pesquisa qualitativa; e quanto ao local, pesquisa de campo.
O objetivo deste artigo é refletir acerca das diversas consequências que podem surgir de uma desistência da adoção, nos âmbitos administrativo, penal, civil, bem como psicológico, a fim de ponderar sobre a importância do instituto e a seriedade com a qual este deve ser tratado.
Em síntese, será abordado um pouco sobre o conceito e importância da adoção, assim como as fases que precedem o processo judicial de concessão desse instituto, e seus efeitos, pessoais e patrimoniais; bem como os princípios norteadores da proteção do adotado. Ademais, será analisada a possibilidade de desistência da adoção, em cada fase, assim como viabilidade de nulidade, anulabilidade e rescisão desta. Por fim, serão retratadas as repercussões jurídicas plausíveis de serem derivadas da desistência, inclusive responsabilidade civil.
2 NOÇÕES GERAIS DO INSTITUTO DA ADOÇÃO
A adoção, nas palavras da ilustríssima jurista Maria Helena Diniz, consiste:
A adoção vem a ser o ato jurídico solene pelo qual, observados os requisitos legais, alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de parentesco consanguíneo ou afim, um vínculo fictício de filiação, trazendo para sua família, na condição de filho, pessoa que, geralmente, lhe é estranha. Dá origem, portanto, a uma relação jurídica de parentesco civil entre adotante e adotado. É uma ficção legal que possibilita que se constitua entre o adotante e o adotado um laço de parentesco de 1º grau na linha reta. (DINIZ, 2010, p. 522).
Em complemento, Dias (2021, p. 328-329) aponta ser a adoção um tipo de estado de filiação decorrente de um ato jurídico em sentido estrito, que faz surgir um vínculo por opção. Assim, valida-se, por meio do instituto da adoção, uma paternidade socioafetiva, pautada por um fator sociológico, e não biológico.
Conforme o entendimento de supracitada doutrinadora: “a verdadeira paternidade funda-se no desejo de amar e ser amado. É nesse sentido que o instituto da adoção se apropria da palavra afeto” (DIAS, 2021, p. 329).
Nesse sentido, por configurar a adoção um instituto tão relevante, tanto no âmbito social e intrafamiliar quanto no âmbito jurídico, estão seus requisitos e procedimentos regulamentados por dispositivos legais, mais especificamente na Lei n. 12.010/2009 (conhecida como Lei da Adoção), assim como no Código Civil (CC) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que devem ser rigorosamente respeitados.
Ainda, a adoção é medida excepcional, ou seja, que somente pode ocorrer caso já tenham sido esgotadas as tentativas de permanência da criança ou adolescente na família natural ou extensa, nos termos do artigo 39, §1º, do ECA. E, nas palavras exatas do artigo 43 do mesmo Estatuto: “será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos.”.
Podem ser adotados tanto crianças e adolescentes, quanto os maiores de 18 anos de idade, ambos por meio de processo judicial, o qual será de competência da Vara da Infância e Juventude no primeiro caso, e da Vara de Família no segundo (GONÇALVES, 2020, p. 488).
Nesse sentido, a adoção é outorgada apenas por meio de ação judicial, sendo perfectibilizada após o trânsito em julgado da sentença que a constitui, momento em que produzirá todos os seus efeitos e será considerada irrevogável, conforme artigo 39, §1º e artigo 47, §7º, ambos do ECA.
2.1 Fases do Processo de Adoção
O processo judicial de concessão da adoção é precedido por algumas fases, as quais são primordiais para dois objetivos fundamentais: a preparação dos adotantes e a proteção dos adotados, em que ambos convergem para a constituição de vínculo e conexão entre as duas partes.
A primeira providência a ser tomada, por aquele que possui todos os requisitos legais para adotar, é solicitar a sua habilitação no Fórum ou Vara da Infância e Juventude de sua cidade ou região. O processo de habilitação de pretendentes à adoção, que está disciplinado nos artigos 197-A a 197-F do ECA, é gratuito e não necessita de advogado (MPPR, 2022).
Basicamente, referido processo consiste na manifestação inicial de interesse na adoção e, para tanto, apresentação de diversos documentos (relacionados com a idoneidade moral dos pretendentes), que serão analisados pelo magistrado e pelo Ministério Público, o qual poderá requerer diligências e documentos complementares. (artigos 197-A e 197-B, do ECA).
Nesse contexto, intervirá no feito uma equipe interprofissional, a qual elaborará estudo psicossocial: “que conterá subsídios que permitam aferir a capacidade e o preparo dos postulantes para o exercício de uma paternidade ou maternidade responsável, à luz dos requisitos e princípios desta Lei” (art. 197-C do ECA).
Ato contínuo, os pretendentes deverão participar de programa de preparação para adoção. Conforme orientações do Conselho Nacional da Justiça:
O programa pretende oferecer aos postulantes o efetivo conhecimento sobre a adoção, tanto do ponto de vista jurídico quanto psicossocial; fornecer informações que possam ajudar os postulantes a decidirem com mais segurança sobre a adoção; preparar os pretendentes para superar possíveis dificuldades que possam haver durante a convivência inicial com a criança/adolescente; orientar e estimular à adoção interracial, de crianças ou de adolescentes com deficiência, com doenças crônicas ou com necessidades específicas de saúde, e de grupos de irmãos. *Sempre que possível e recomendável, a etapa obrigatória da preparação incluirá o contato com crianças e adolescentes em acolhimento familiar ou institucional, a ser realizado sob orientação, supervisão e avaliação da equipe técnica. (CNJ, 2019).
Caso seja deferida a habilitação, a partir da análise de todos os pontos supracitados, os pretendentes serão inscritos no cadastro de pessoas interessadas na adoção, previsto no artigo 50 do ECA (art. 197-E do ECA). A partir disso, “o Judiciário entrará em contato para informar que há crianças ou adolescentes aptos para adoção dentro do perfil do pretendente” (CNJ, 2019).
Assim que for encontrada uma criança ou adolescente dento do perfil eventualmente estabelecido pelos adotantes, caso haja interesse deles, se iniciará o chamado estágio de convivência entre as partes.
No entendimento de Murillo José Digiácomo e Ildeara de Amorim Digiácomo, o estágio de convivência consiste:
Estágio de convivência é o período no qual a criança ou adolescente passa a ter um contato mais intensivo com a(s) pessoa(s) interessada(s) em sua adoção (o fato de a Lei não falar em “guarda provisória” sugere que a aproximação entre os mesmos deve ocorrer de forma gradativa, podendo o “convívio” inicial ocorrer no âmbito da entidade de acolhimento, com saídas no período diurno, passando-se a seguir a pernoites e permanência no lar adotivo por um período mais prolongado - sempre de forma planejada e acompanhada por equipe técnica), para que seja possível avaliar a conveniência da constituição do vínculo paternofilial a partir, inclusive, da análise do relacionamento entre o adotando e os demais integrantes do núcleo familiar, com os quais este irá conviver. (DIGIÁCOMO; DIGIÁCOMO, 2020, p. 87).
Portanto, a duração e o modo de execução de supracitado estágio podem se modificar conforme as especificidades de cada caso (MPPR, 2022). Poderá evoluir, inclusive, para o deferimento de guarda provisória do adotando ao adotante – principalmente quando há o ingresso da ação de adoção (BARRETO; GAGLIANO, 2020) –, em que as partes irão conviver mais profundamente, até que haja a sentença de concessão da adoção e posterior trânsito em julgado.
Em acréscimo, Pereira (2021, p. 751) manifesta-se sobre o supracitado estágio: “é a oportunidade das partes de se conhecerem, formarem seus vínculos, criar e reforçar os laços de afeto, e já se portarem como se pais e filhos fossem. É como se fosse uma ‘pré-adoção’.”.
O estágio de convivência terá duração de até noventa dias (ou de trinta a quarenta e cinco dias, caso trate-se de adoção internacional), podendo ser prorrogado por igual prazo, caso haja determinação judicial. (art. 46, caput e §2º e §3).
Equipe interprofissional acompanhará o referido estágio, apresentando relatórios minuciosos sobre a conveniência do deferimento da adoção, e no final um laudo fundamentado, recomendando ou não a medida (art. 46, §3º e §4º). Com o término desse período o juiz sentenciará acerca da adoção, levando em conta o melhor interesse do adotando.
Assim, no decorrer das fases supracitadas, verifica-se que se busca primeiro a orientação de quem pretende adotar, em todos os âmbitos, assim como a avaliação deste pelo Judiciário, e depois, a tentativa de compatibilização entre adotantes e adotandos, até alcançar efetivamente a sentença de adoção.
Após o efetivo trânsito em julgado da sentença que concede a adoção, tornando-a irrevogável, como já explicitado, surgem alguns efeitos decorrentes disso, tanto pessoais quanto patrimoniais.
Nos termos do artigo 41 do ECA: “A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.”.
Nesse sentido, gera-se um tipo de parentesco, denominado de civil, entre adotante e adotado, que em tudo se equipara ao parentesco consanguíneo. Dessa forma, o adotado receberá os mesmos direitos e deveres que qualquer outro filho, o que é, inclusive, reforçado pelo parágrafo 6º do artigo 227 da Constituição Federal, que proíbe qualquer discriminação fundada na origem da filiação. (GONÇALVES, 2020, p. 510).
No que tange a referidos direitos e deveres, pode-se citar a modificação no assento de nascimento do adotado – excluindo-se qualquer anotação sobre a origem e automaticamente rompendo definitivamente o vínculo com a família de origem –, inclusive sendo possível aderir o nome dos adotantes, conforme artigo 47, caput e parágrafos, do ECA.
Resultante disso, surgem alguns impedimentos, como por exemplo os matrimoniais (que se aplicam até mesmo com relação ao parentesco de origem); além de alguns direitos, como os sucessórios e os alimentares, em total igualdade com os filhos consanguíneos (DINIZ, 2010, p. 540-543).
Também o filho adotivo menor de idade, ficará sujeito ao poder familiar, que será exercido pelos adotantes, decorrendo-se disso todos os direitos e deveres inerentes, como: administração e usufruto de bens dos filhos pelos pais (art. 1.689 do CC); “companhia, guarda, criação, educação, obediência, respeito, consentimento para casamento, nomeação de tutor, representação e assistência (CC, art. 1.690)” (DINIZ, 2010, p. 541).
3 PRINCÍPIOS DE PROTEÇÃO DO ADOTADO
O instituto da adoção, por sua importância tanto no âmbito jurídico quanto psicossocial e intrafamiliar, deve ser sempre alicerçado nos princípios constitucionais, assim como nos princípios aplicados ao direito de família e naqueles que regem a infância e juventude, nos casos em que o adotando é menor. Alguns princípios se fazem pertinentes para a reflexão acerca da possibilidade de desistência da adoção e suas consequências.
Em primeiro lugar está o princípio constitucional da dignidade humana, do qual se originam os demais. No contexto do direito de família, referido princípio tende a garantir o pleno desenvolvimento e a realização pessoal de todos os membros da família. (GONÇALVES, 2020, p. 25).
Em seguimento, há o princípio do melhor interesse da criança ou adolescente, que está intimamente ligado ao princípio da proteção integral. Em suma, referidos preceitos defendem a proteção integral e especial das crianças e adolescentes, por serem sujeitos em desenvolvimento, que devem receber absoluta prioridade sobre os demais. Proteger os interesses dessa classe significa velar por uma boa formação moral, social, assim como preservar a saúde mental e estrutura emocional dos menores de idade. (PEREIRA, 2021, p. 176-179).
Portanto, imperioso é o tratamento das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, sendo dever da família, da sociedade e do Estado assegurar seus direitos fundamentais, conforme estabelece o art. 227 da Constituição Federal.
Sob enfoque específico dos pais, estão os princípios da paternidade responsável, planejamento familiar e responsabilidade, que traduzem a obrigação dos pais pela criação, educação, suporte material e afetivo de seus filhos, conforme art. 229 da CF e 1.634 do CC. Quando esse dever, decorrente do poder familiar, não é exercido, consiste em dano ao direito de personalidade do filho: “abandonar e rejeitar um filho significa violar direitos”. (PEREIRA, 2021, p. 194-197).
Por fim, no que tange ao suporte afetivo, é certo que a afetividade é outro princípio, norteador e constituidor das relações familiares atuais. No entendimento de Diniz:
O afeto é um valor conducente ao reconhecimento da família matrimonial e da entidade familiar, constituindo não só um direito fundamental (individual e social) da pessoa de afeiçoar-se a alguém, como também um direito à integridade da natureza humana, aliado ao dever de ser leal e solidário. (DINIZ, 2010, p. 19).
4 POSSIBILIDADE DE DESISTÊNCIA DA ADOÇÃO
A despeito de não estar previsto na legislação, lamentavelmente o interesse na desistência da adoção pode acontecer, tanto no decorrer das fases pré-adoção, quanto até mesmo após o trânsito em julgado da sentença que a concede. Contudo, deve-se analisar o caso concreto e a etapa em que se encontram os adotantes e o adotado a fim de verificar a conveniência (ou até mesmo a permissibilidade) da desistência.
Enquanto ainda não perfectibilizada a adoção, ou seja, durante a fase de estágio de convivência ou no decorrer do processo de adoção, antes do trânsito em julgado, é perfeitamente possível a desistência por parte dos adotantes.
Em algumas situações é, inclusive, indicado que não haja continuidade, priorizando sempre o melhor interesse do menor. Todavia, não estão os adotantes desistentes isentos de responsabilização jurídica devido à abdicação, o que dependerá das circunstâncias do caso.
Por outro lado, depois de transitada em julgado a sentença que defere a adoção, “é juridicamente impossível a pretendida ‘devolução’, caracterizando, tal ato, se efetivado, no plano fático, ilícito civil (e, a depender do caso, também, ilícito penal, por abandono de incapaz - art. 133, CP)”, nas palavras de Barreto e Gagliano (2020).
Nesse sentido, Rolf Madaleno complementa:
São plenos e irreversíveis os efeitos da adoção, como inquestionavelmente estabelece o artigo 41 do ECA, mas cuja irrevogabilidade é imprescindível para assegurar a estabilidade dos vínculos de filiação [...] sendo vedada a desconstituição da adoção, porque ela desliga o adotado da sua família de origem (ECA, art. 41), e o poder familiar se extingue com a adoção. (MADALENO, 2022, p. 391).
Isso porque, consoante já explanado, nesse momento a adoção se torna irrevogável, transmitindo ao adotado os mesmos direitos e deveres de um filho consanguíneo, não permitindo a Constituição Federal qualquer distinção. Assim, não se admite a desistência, da mesma forma como não se pode devolver um filho biológico.
Nas palavras de Maria Berenice Dias (2021, p. 340): “A partir do momento em que é constituída pela sentença judicial e retificado o registro de nascimento, o adotado é filho, sem qualquer adjetivação”.
Porém, dito isso, entende-se que, apesar de não ser possível desconstituir a sentença que defere a adoção, poderá ocorrer a destituição do poder familiar do adotante (nos termos do art. 1.638 do CC), assim como ocorreria no vínculo consanguíneo, caso existam as situações expressas em lei. Destarte, ocasionaria a perca do poder familiar, bem como as devidas responsabilizações jurídicas, e a consequente possibilidade de a criança ou adolescente ser adotado por outro (DIAS, 2021, p. 341).
Sobre isso, considerando os interesses do adotado, supracitada jurista ainda aduz: “talvez essa seja a solução que melhor atenda aos seus interesses, pois pode vir a ser adotada por quem de fato a queira.” (DIAS, 2021, p. 341).
4.1 Adoção Nula, Anulável ou Passível de Rescisão
Por fim, cumpre ressaltar que a doutrina majoritária entende que: “a adoção, como qualquer outro ato ou negócio jurídico, fica sujeita a nulidades ou anulabilidades, dentro das regras gerais” (VENOSA, 2020, p. 427).
Dessa forma, caso haja qualquer nulidade ou anulabilidade permeando a adoção, ou caso se amolde às hipóteses legais que autorizem a rescisão da sentença (nos termos do art. 966 do Código de Processo Civil), será possível intentar ação anulatória ou rescisória, sendo legitimados para tanto o adotado, o adotante ou qualquer terceiro interessado (VENOSA, 2020, p. 427).
A esse respeito, na mesma perspectiva, expõem Digiácomo e Digiácomo:
Finalmente, vale o registro de que o fato de a adoção ser irrevogável logicamente não obsta a possibilidade de se propor ação rescisória ou anulatória da sentença que defere a medida, ex vi do disposto no art. 166 e sgts. do CC e art. 966 e sgts. do CPC. (DIGIÁCOMO; DIGIÁCOMO, 2020, p. 77-78)
Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sede de Recurso Especial (n. 1.892.782 – PR), manifestou-se acerca da possibilidade de revogação da sentença que concedeu a adoção. Alegou ser possível, em caráter excepcional, quando, na situação concreta: “verificar-se que a manutenção da medida não apresenta reais vantagens para o adotado, tampouco é apta a satisfazer os princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente.” (BRASIL, 2021).
Importante ressaltar que, no caso em tela, o adotado propôs ação rescisória, fundamentada em prova nova, comprovando que, na realidade, não houve, na época, consentimento do adotando acerca da adoção, consoante ordena o §1º do art. 45 do ECA, o que não se modificou mesmo após a sentença. Demonstrou-se, assim, a ausência de um requisito fundamental para a constituição da adoção, o que possibilitou a rescisão.
De forma perspicaz, quanto à possibilidade de anulação judicial da adoção, Gonçalves (2020, p. 509), disserta: “A adoção pode ser judicialmente anulada, desde que ofendidas as prescrições legais (CC, art. 166, V e VI). Todavia, a natureza benéfica do instituto afasta o extremado rigor no exame das formalidades legais.”.
Em continuidade a esse pensamento, Pereira, de forma mais firme e em contraponto aos demais juristas, defende a impossibilidade de qualquer tipo de reversão à adoção:
Não há hipótese da revogação da adoção, adoção inexistente, nula ou anulável, como se pode dizer na formação de uma família conjugal pela via do casamento. Ademais com o desenvolvimento da teoria da socioafetividade, que tem o princípio da afetividade como norteador de todo o Direito de Família, o procedimento da adoção não pode se submeter a rigidez das formalidades processuais. Se o Direito deve proteger muito mais a essência do que a formalidade que o cerca, nas adoções essa premissa deve ser ainda mais levada a sério. (PEREIRA, 2021, p. 754).
É certo que a adoção é um instituto muito relevante, o qual deve ser manipulado com cuidado, pois está ligado não só com implicações jurídicas, mas também com o âmbito psicossocial das partes. Portanto, ao mesmo tempo que o formalismo se faz essencial, também deve ser analisada a conjuntura completa do pleito na realidade prática, primando sempre pelo respeito e proteção do menor adotado.
5 REPERCUSSÕES JURÍDICAS DA DESISTÊNCIA
A desistência da adoção, quando acontece antes do trânsito em julgado da sentença de adoção – ou seja, durante o estágio de convivência ou no decorrer do processo – pode ser considerada como lícita, visto que não há norma que a proíba e é direito potestativo dos adotantes (REZENDE, 2014, p. 90-91).
No entanto, é evidente que, a depender do estágio de aproximação entre adotando e adotante e da forma como ocorre, poderá ocasionar inumeráveis prejuízos ao primeiro, os quais, no entendimento da doutrina e jurisprudência dominante, podem e devem ser reparados pelos adotantes.
Isso pois, a adoção, bem como todas as etapas que a precedem, ainda que seja um processo judicial, está intimamente ligada a âmbitos muito mais pessoais e profundos emocionalmente, cujo intuito é constituir um vínculo de filiação para todos os efeitos, formando uma família. Assim, consiste em ato não só jurídico, mas principalmente sentimental, que deve ser tratado com respeito e seriedade.
Nas palavras de Barretto e Gagliano:
Adotar é lançar ao solo sementes de amor, mas esse ato precisa se dar no terreno da responsabilidade e da consciência de que as relações paterno ou materno-filiais, quaisquer que sejam as suas origens, são repletas de arestas que demandam paciência, resiliência e afeto para serem aparadas. (BARRETO; GAGLIANO, 2020).
É certo que o entendimento jurisprudencial sobre o assunto ainda não está consolidado, especialmente por não haver norma legal que trate sobre a possibilidade da desistência, devendo cada situação ser analisada individualmente, em suas particularidades.
Entretanto, o que predomina é o parecer pela responsabilização civil da família substituta em caso de desistência da adoção, mesmo durante o estágio de convivência. No último caso, responsabiliza-se os adotantes nas hipóteses em que estes desistem de forma abrupta de um processo de adoção, sem qualquer fundamentação minimamente razoável, desfazendo vínculos e expectativas já criadas pelo adotando e causando-lhe sofrimento intenso (SOUSA, 2016).
No acertado entendimento de Rezende:
Uma vez iniciado o estágio de convivência, já se acende na criança/adolescente uma expectativa – diga-se de passagem legítima – de que o ato será ultimado. Expectativa esta posteriormente frustrada, com a desistência da medida, que gera o odioso abandono afetivo, perfeitamente compensável pelo dano moral. (REZENDE, 2014, p. 92).
Cumpre enaltecer que a criança ou adolescente encaminhada para o cadastro de adoção já se encontra no papel de vítima da família, da sociedade e do Estado, visto que já sofreu anteriormente violação de seus direitos fundamentais, que o levou a uma primeira destituição do poder familiar. (REZENDE, 2014, p. 81-82).
Portanto, a desistência do estágio de convivência ou processo de adoção naturalmente caracteriza uma violência psicológica e emocional ao adotando, que experimenta novamente uma sensação de abandono e dupla rejeição. (REZENDE, 2014, p. 92).
Nesse sentido, Pereira aduz:
As situações de rompimento de vínculo com as crianças, mesmo no estágio de convivência, cuja função é mesmo de teste, é traumática para quem tinha a expectativa pretendida de ser filho, e perdeu aquela chance de sê-lo. Pode até ser que a criança encontre outra família que será melhor para ela. Mesmo assim ela ficará marcada psiquicamente para sempre, afinal estará diante do pior sentimento que um ser humano pode experimentar: a rejeição. E neste caso, o seu sentimento de desamparo é duplo, pois será a segunda vez que alguém não a quis como filho. (PEREIRA, 2021, p. 751).
Por conseguinte, são inegáveis os prejuízos que podem advir de uma situação como essa ao adotando. Além da automática quebra de expectativa de uma nova chance de inserção familiar, que gera intenso sofrimento emocional e psicológico, a criança ou adolescente ainda teria que lidar com a dificuldade de recolocação em nova família substituta. Primeiro, por ter perdido um tempo valioso (já que quanto mais velha, mais difícil sua inserção familiar); segundo, por carregar consigo sequelas traumáticas irreparáveis, prejudicando sua reaproximação.
Como já explanado, após o trânsito em julgado da sentença que concede a adoção, é juridicamente impossível a desistência. Porém, referida impossibilidade não protege os menores da rejeição e irresponsabilidade dos pais.
Assim, os pais, quando já não desejam mais a adoção concretizada, passam a não cumprirem com os deveres inerentes ao pleno exercício do poder familiar (art. 1.634 do CC), evoluindo para atitudes, como o abandono, que ocasionam a perca daquele (art. 1.638 do CC), e, consequentemente, a destituição do poder familiar, conforme art. 129, X, do ECA.
Nessa ocasião, os pais adotivos estão sujeitos, tanto quanto os pais consanguíneos, à responsabilização civil e administrativa pelo abandono. Referida responsabilização existe tanto pela prática da infração prevista no art. 249 do ECA, quanto pela obrigação civil de indenizar devido aos danos morais ocasionados aos filhos. Inclusive essa última se aplica até mesmo se houver a devolução antes de consumada a adoção. (DIGIÁCOMO; DIGIÁCOMO, 2020, p. 393).
É possível também a responsabilização penal dos pais, caso haja abandono, conforme estabelece o ilícito penal denominado abandono de incapaz, constante do art. 133 do Código Penal. (BARRETO; GAGLIANO, 2020).
Sobre isso, Dias complementa:
A jurisprudência vem impondo aos adotantes que desistem da adoção, o dever de pagar alimentos a título de indenização por danos morais e materiais para subsidiar o acompanhamento psicológico de quem teve mais uma perda, até ser novamente adotado. (DIAS, 2021, p. 341).
Por exegese dos artigos 208, §1º, e 210, ambos do ECA, compreende-se que são legitimados concorrentes para intentar ação de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente: o Ministério Público; a União, os estados, os municípios, o Distrito Federal e os territórios; e as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por referida Lei.
E, para além da responsabilização patrimonial, também ficam os adotantes desistentes sujeitos à entraves administrativos, como o expresso no parágrafo 5º do art. 197-E do ECA, in verbis:
Art 197-E [...] § 5º A desistência do pretendente em relação à guarda para fins de adoção ou a devolução da criança ou do adolescente depois do trânsito em julgado da sentença de adoção importará na sua exclusão dos cadastros de adoção e na vedação de renovação da habilitação, salvo decisão judicial fundamentada, sem prejuízo das demais sanções previstas na legislação vigente.
Na mesma perspectiva, o Enunciado 16 do Fórum Nacional da Justiça Protetiva (FONAJUP) dispõe:
No caso de abandono de criança e adolescente, após a sentença de adoção ou desistência no curso do estágio de convivência, deverá o juiz, que acolheu a criança ou o adolescente, fazer ocorrência do fato, no perfil do adotante no Cadastro Nacional de Adoção e comunicar ao juízo da habilitação instruindo com laudo psicossocial, para que sejam apreciadas a reavaliação, a inabilitação do pretendente ou a proibição de renovação da habilitação.
No que tange à responsabilidade civil, esta liga-se à reparação dos danos ou prejuízos causados à vítima, advindos da conduta do agente infrator. Dessa forma, é composta de três elementos: a conduta ilícita, que pode ser uma ação ou omissão; o dano ou prejuízo, que atinja os direitos da personalidade da vítima; e, por fim, o nexo de causalidade entre a conduta e o dano, relacionando-os. (PEREIRA, 2021, p. 109).
Nesse contexto, os artigos 186 e 187 do Código Civil conceituam ato ilícito como uma ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, que viole um direito e cause dano, mesmo que exclusivamente moral, a alguém. Também há ato ilícito quando o titular de um direito, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Em seguimento a esses artigos, está o artigo 927 do mesmo Código, que obriga aquele que, por ato ilícito, causar dano, à reparação obrigatória deste. Também a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso V, assegura a reparação dos danos com o dever de indenizar, protegendo, assim, os direitos individuais.
No âmbito da desistência da adoção antes do trânsito em julgado, com a devolução da criança ou adolescente, principalmente quando já foi estabelecido certo vínculo pelo decurso de tempo, visualiza-se claro abuso de direito (art. 187 do CC). Isso pois, deriva de uma conduta aparentemente legítima, mas pode acontecer de o adotante exercer esse direito de forma irresponsável, lesionando o adotando, “ultrapassando o mero dissabor ou aborrecimento, merecendo a devida reparação” (REZENDE, 2014, p. 94 e 101).
Assim, é cabível a reparação dos danos, configurando-se o dano moral in re ipsa, ou seja, presumido. A responsabilização converge para dois objetivos primordiais: reparar o prejuízo sofrido pelo adotando, evidenciando seu direito ao respeito, à dignidade e à integridade moral; bem como reforçar a seriedade da inscrição para a adoção, desestimulando condutas irresponsáveis. (REZENDE, 2014, p. 98-101).
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sede de Recurso Especial (n. 1.981.131 - MS 2022/0009399-0), deliberou sobre a imposição de responsabilização civil de um casal de adotantes que desistiram da adoção no curso do estágio de convivência, após quase oito anos de convivência com o adotando:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RESPONSABILIDADE CIVIL. DESISTÊNCIA DE ADOÇÃO DEPOIS DE LONGO PERÍODO DE CONVIVÊNCIA. RUPTURA ABRUPTA DO VÍNCULO AFETIVO. DANO MORAL CONFIGURADO. REVISÃO DO "QUANTUM" COMPENSATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. VALOR QUE NÃO É EXORBITANTE. SÚMULA 07/STJ. 1. Controvérsia acerca do cabimento da responsabilização civil de casal de adotantes que desistiram da adoção no curso do estágio de convivência pelo dano moral causado ao adotando. [...]. 5. Hipótese dos autos em que o adotando passou a conviver com os pretensos adotantes aos quatro anos de idade, permanecendo sob a guarda destes por quase oito anos, quando foi devolvido a uma instituição acolhedora. 6. Indubitável constituição, a partir do longo período de convivência, de sólido vínculo afetivo, há muito tempo reconhecido como valor jurídico pelo ordenamento. 7. Possibilidade de desistência da adoção durante o estágio de convivência, prevista no art. 46, da Lei n.º 8.069/90, que não exime os adotantes de agirem em conformidade com a finalidade social deste direito subjetivo, sob pena de restar configurado o abuso, uma vez que assumiram voluntariamente os riscos e as dificuldades inerentes à adoção. 8. Desistência tardia que causou ao adotando dor, angústia e sentimento de abandono, sobretudo porque já havia construído uma identidade em relação ao casal de adotantes e estava bem adaptado ao ambiente familiar, possuindo a legítima expectativa de que não haveria ruptura da convivência com estes, como reconhecido no acórdão recorrido. 9. Conduta dos adotantes que faz consubstanciado o dano moral indenizável, com respaldo na orientação jurisprudencial desta Corte Superior, que tem reconhecido o direito a indenização nos casos de abandono afetivo. 10. Razoabilidade do montante indenizatório arbitrado em 50 salários-mínimos, ante as peculiaridades da causa, que a diferenciam dos casos semelhantes que costumam ser jugados por esta Corte, notadamente em razão de o adolescente ter sido abandonado por ambos os pais socioafetivos. (BRASIL, 2022).
Da mesma forma, após o trânsito em julgado da sentença que concede a adoção, caso haja a destituição do poder familiar, devido ao abandono do adotado pelos pais adotivos, também caberá a responsabilidade civil dos últimos.
Isso porque, aos pais cabem diversos deveres relacionados ao pleno exercício do poder familiar sobre os filhos. E o descumprimento desses deveres é tido como infração administrativa pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, sujeito à multa, conforme o art. 249 de supracitada norma.
Nos dizeres de Maria Berenice Dias, sobre a responsabilização civil dos pais frente ao abandono de seus filhos:
A possibilidade de reparação por danos, por meio da responsabilidade civil, se dá pelo descumprimento do dever objetivo de cuidado [...] A ausência do cuidado, o abandono moral, violam a integridade psicofísica dos filhos, bem como o princípio da solidariedade familiar, valores protegidos constitucionalmente. Esse tipo de violação configura dano moral. E quem causa dano é obrigado a indenizar. O valor deve ser suficiente para cobrir as despesas necessárias para que o filho possa amenizar as sequelas psicológicas. (DIAS, 2021, p. 405).
Da mesma forma, Sousa brilhantemente exprime:
O instituto da adoção tem um caráter protetivo e visa garantir em primeira mão o bem-estar absoluto da criança ou adolescente e a de que o ato de adotar não pode ser reduzido indignamente a uma espécie de “test drive” parental, no qual o que predomina é um sentimento pueril de diversão caprichosa, e não o senso zeloso da responsabilidade, da ética, do cuidado e do amor incondicional. (SOUSA, 2016).
É importante salientar que, após a concretização da adoção, os adotados se tornam filhos, legítimos, que demandam atenção, cuidados, e naturalmente referida constituição familiar trará adversidades, assim como qualquer outra. Não se pode permitir a devolução ou arrependimento, simplesmente devido à frustração de adotantes despreparados e irresponsáveis.
Indiscutivelmente, o instituto da adoção envolve sentimentos e consequências muito mais profundas: “a adoção significa muito mais a busca de uma família para uma criança do que a busca de uma criança para uma família.” (DIAS, 2021, p. 332). Precipuamente, deve ser buscado o melhor interesse da criança ou adolescente, bem como sua proteção integral.
Nesse seguimento está o Recurso Especial do STJ (n. 1.698.728 MS 2017/0155097-5), em que pais adotivos foram destituídos de seu poder familiar por abandono afetivo da adotada, ocasionando a imposição de reparação de danos morais, bem como prestação alimentícia:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. ADOÇÃO. DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR E ABANDONO AFETIVO. CABIMENTO. EXAME DAS ESPECÍFICAS CIRCUNSTÂNCIAS FÁTICAS DA HIPÓTESE. [...] CONDENAÇÃO DOS ADOTANTES A REPARAR OS DANOS MORAIS CAUSADOS À CRIANÇA. POSSIBILIDADE. CULPA CONFIGURADA. IMPOSSIBILIDADE DE EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL. [...] DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. CONDENAÇÃO DOS PAIS DESTITUÍDOS A PAGAR ALIMENTOS. POSSIBILIDADE. ROMPIMENTO DO PODER DE GESTÃO DA VIDA DO FILHO, MAS NÃO DO VÍNCULO DE PARENTESCO. [...] 8- Na hipótese, fiel aos fatos apurados e às provas produzidas nas instâncias ordinárias, é possível inferir a existência de dano moral à criança em decorrência dos atos praticados pelos pais adotivos que culminaram com a sua reinserção no sistema de acolhimento institucional após a adoção, de modo que a falha estatal no processo de adoção deve ser levada em consideração tão somente para aferir o grau de culpa dos pais, mas não para excluir a responsabilização civil destes. 9- A formação de uma família a partir da adoção de uma criança é um ato que exige, dos pais adotivos, elevado senso de responsabilidade parental, diante da necessidade de considerar as diferenças de personalidade, as idiossincrasias da pessoa humana e, especialmente, a vida pregressa da criança adotada, pois o filho decorrente da adoção não é uma espécie de produto que se escolhe na prateleira e que pode ser devolvido se se constatar a existência de vícios ocultos. [...]11- Mesmo quando houver a destituição do poder familiar, não há correlatamente a desobrigação de prestação de assistência material ao filho, uma vez que a destituição do poder familiar apenas retira dos pais o poder que lhes é conferido para gerir a vida da prole, mas, ao revés, não rompe o vínculo de parentesco. [...]. (BRASIL, 2021).
Destarte, a rejeição e o abandono do filho adotivo devem ser indenizados com danos morais, inclusive impondo-se a obrigação alimentar, caso haja os requisitos legais. Ademais, não se pode ignorar o dano material proveniente da teoria da responsabilidade pela perda de uma chance, já que a criança ou adolescente foi privada da oportunidade de ter uma família. (SOUZA, 2021).
Sobre a teoria da perca de uma chance, o jurista Rodrigo da Cunha Pereira (2021, p. 111) a conceitua: “é uma modalidade autônoma de dano, na qual se indeniza a subtração da chance séria e real de se alcançar, futuramente, um benefício ou de evitar ou diminuir uma situação de risco”.
Por fim, no que se refere à quantificação da indenização, é algo complexo e que deve envolver uma análise completa das circunstâncias e especificidades do caso, como por exemplo: o tempo em que o adotando ficou sob os cuidados dos adotantes; a gravidade e os efeitos ocasionados pela desistência, levando em consideração as consequências emocionais derivadas da rejeição e do abandono, além, é claro, das condições financeiras dos adotantes e seu grau de instrução. (REZENDE, 2014, p. 99).
A adoção é um instituto jurídico muito relevante, que constitui filiação entre adotado e adotante. Portanto, não traz apenas efeitos jurídicos, mas também psicossociais, modificando consideravelmente a vida de todos os envolvidos. À vista disso, a problemática de uma possível desistência da adoção, tanto nas fases que antecedem a sentença que a constitui, quanto pós trânsito em julgado desta, deve ser analisada cuidadosamente, caso a caso.
Não é em vão que todo o procedimento que precede a adoção é permeado por burocracia e estudos, no intuito de realmente preparar os envolvidos, bem como analisar a compatibilidade entre as partes. Isso porque, a adoção deve ser pautada pelo melhor interesse e proteção do adotando, somente sendo deferida quando apresentar reais vantagens para este.
Nesse sentido, embora a desistência da adoção – antes da sentença que a defere tornar-se definitiva – seja um direito do adotante, e, por vezes, até mesmo benéfico para o adotando (cujos interesses serão mais protegidos dessa forma), não deve ser algo ileso de consequências. Da mesma forma, qualquer flexibilização na irrevogabilidade da adoção já transitada em julgado seria indubitavelmente prejudicial em diversos fatores, devendo o adotante ser punido pelo abandono de seu filho com a destituição do poder familiar e todas as decorrências jurídicas disso.
Conforme o entendimento majoritário do Poder Judiciário, bem como a crescente tese adotada pela maioria dos doutrinadores, os adotantes devem ser responsabilizados pela desistência da adoção, ou pela destituição do poder familiar, a depender das especificidades e circunstâncias do caso concreto, visto que são inúmeras as repercussões negativas que podem surgir ao adotando, o qual já possui traumas passados relacionados com o abandono.
Entretanto, apesar de a metodologia de revisão bibliográfica ter sido fundamental para a análise dos entendimentos predominantes e das repercussões jurídicas e psicossociais da desistência, é certo que ainda há muito a ser discutido pela jurisprudência e por estudiosos acerca do assunto, o qual é muito complexo e envolve diversas variáveis, além de não ser previsto expressamente pela legislação.
Destarte, não se pode perder de vista que o instituto da adoção é um ato jurídico formal e que modifica consideravelmente a vida de uma pessoa que já está fragilizada e só deseja receber amor e cuidados. Necessita, portanto, ser tratado com seriedade e respeito, e qualquer ato do adotante que se esquive disso deve ser combatido por meio das responsabilizações jurídicas disponíveis de serem aplicadas, sempre pautado pelo objetivo primordial do melhor interesse e proteção do adotando.
BARRETTO, Fernanda Carvalho Leão; GAGLIANO, Pablo Stolze. Responsabilidade civil pela desistência na adoção. IBDFAM, 2020. Disponível em: <https://ibdfam.org.br/artigos/1513/Responsabilidade+civil+pela+desist%C3%AAncia+na+ado%C3%A7%C3%A3o#:~:text=Se%20a%20desist%C3%AAncia%20ocorre%2C%20contudo,da%C3%AD%20emergindo%20a%20responsabilidade%20civil.>. Acesso em: 25 abr. 2023.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 5 de out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 27 abr. 2023.
BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Rio de Janeiro, RJ, 7 de dez. 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 27 abr. 2023.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF, 10 de jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 27 abr. 2023.
BRASIL. Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e dá outras providências. Brasília, DF, 3 de ago. 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12010.htm>. Acesso em: 27 abr. 2023.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF, 16 de mar. 2015. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 25 abr. 2023.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF, 13 de jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 27 abr. 2023.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3 Turma). Recurso Especial nº 1.698.728 - MS (2017/0155097-5). Relator: Ministro Moura Ribeiro. Data de Julgamento: 04/05/2021. Data de Publicação: 13/05/2021. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1207027719/inteiro-teor-1207027776.> Acesso em: 27 abr. 2023.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Turma). Recurso Especial nº 1.892.782 - PR (2020/0222398-3). Relator: Ministra Nancy Andrighi. Data de Julgamento: 06/04/2021. Data de Publicação: DJe 15/04/2021. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1205705547/inteiro-teor-1205705610>. Acesso em 25 abr. 2023.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3 Turma). Recurso Especial nº 1.981.131 - MS (2022/0009399-0). Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Data de Julgamento: 08/11/2022. Data de Publicação: DJe 16/11/2022. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1686276721.> Acesso em: 27 abr. 2023.
CNJ. Passo a passo da adoção: sistema nacional de adoção e acolhimento. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/adocao/passo-a-passo-da-adocao/>. Acesso em: 24 abr. 2023.
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SOUZA, Caroline Megiani de. A Responsabilidade Civil em Caso de Desistência da Adoção. Núcleo do Conhecimento, 2021. Disponível em: <https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/desistencia-da-adocao.> Acesso em 26 abr. 2023.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Família e Sucessões. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2020. v. 5. 1274 p.
Advogada, pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões na Faculdade Legale.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIANA, Carolina Ferraz. O instituto da adoção e a possibilidade de desistência: repercussões jurídicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 ago 2023, 04:59. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/62820/o-instituto-da-adoo-e-a-possibilidade-de-desistncia-repercusses-jurdicas. Acesso em: 26 dez 2024.
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