EDUARDO CURY
(orientador)
RESUMO: presente trabalho foi realizado com o objetivo de analisar o reconhecimento e os efeitos jurídicos que a multiparentalidade traz consigo. Pautado no Direito Civil, foi feita uma análise introdutória acerca do conceito e a forma de reconhecimento do instituto. Em sequência, elencou-se os efeitos jurídicos da multiparentalidade, sendo possível notar sua influência em diversas áreas do direito, principalmente no Direito de Família. Tomando cada vez mais espaço na sociedade, a paternidade não está restrita somente ao vínculo biológico, como também ao vínculo afetivo, não havendo qualquer tipo de hierarquização. Ademais, acerca do Recurso Extraordinário nº 898.060-SC, que trouxe a discussão para o Supremo Tribunal Federal acerca da existência ou não de hierarquização no âmbito da filiação biológica e socioafetiva, notou-se relevante repercussão, contando, inclusive, com inúmeros julgados se adequando à decisão. O trabalho foi desenvolvido utilizando-se a revisão de literatura pautada em pesquisas bibliográficas, por meio de pesquisas em sites, doutrinas, artigos e legislações, analisando o entendimento e as consequências sobre a temática.
Palavras-chave: Multiparentalidade. Direito Civil. Efeitos Jurídicos. Hierarquização. Recurso Extraordinário 898.060-SC.
ABSTRACT: The present work was carried out with the objective of analyzing the recognition and legal effects that multiparenthood brings with it. Based on Civil Law, an introductory analysis as made about the concept and form of recognition of the institute. In sequence, the legal effects of multiparenthood were listed, being possible to notice its influence in several of the law, mainly, in the Family Law. Taking more and more space in society, paternity is not restricted exclusively to the biological bond, but also to the affective bond, with no type of hierarchy. In addition, regarding the Extraordinary Appeal nº 898.060-SC, which brought a discussion to the Supreme about the existence or not of hierarchy in the scope of biological and socio-affective affiliation, there was a relevant repercussion, counting, even, with the Court adapting to the decision. The work was using a literature review developed based on bibliographic research, through research on websites, doctrines, articles and legislation, making the understanding and consequences on the subject.
Keywords: Multiparenthood. Civil Law. Legal Effects. Hierarchy. Extraorfinary Appeal nº 898.060-SC.
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa discorrerá acerca da multiparentalidade através da sua forma de reconhecimento e de seus efeitos, haja vista sua enorme repercussão em julgados após ser prolatada decisão do Supremo Tribunal Federal. No mesmo sentido, a escolha do tema, se deu pela alteração constante que ocorre nas famílias brasileiras, procurando esclarecer então as mudanças ocorridas no âmbito jurídico que defende os Direitos da família.
Sabe-se que a multiparentalidade é uma nova forma de entidade familiar, nascida através do vínculo afetivo construído durante a convivência entre dois indivíduos. Estes laços afetivos tornam-se concomitantes com os laços consanguíneos, não havendo qualquer hierarquização entre eles.
Acerca da concomitância, já foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, através do Recurso Extraordinário 898-060-SC, que não deve haver hierarquização entre a paternidade biológica e afetiva.
A partir dessa admissibilidade, houve enorme concentração de julgados deferindo a multiparentalidade. Contudo, de um modo geral, por não haver leis específicas acerca do tema, acaba por gerar dúvidas a respeito da aplicação, o que pode trazer mais malefícios do que benefícios, vez que, sendo reconhecido o instituto, ele se torna irrevogável.
Para o desenvolvimento desta pesquisa, foi tido como base a revisão de literatura pautada em pesquisas bibliográficas, pesquisas em sites, doutrinas, artigos, jurisprudências e legislações.
2 ENTIDADE FAMILIAR
A partir de uma breve introdução, é possível perceber que o avanço da sociedade moderna obriga o Direito a evoluir, exigindo que todos os conceitos sejam revistos em todos os aspectos. O surgimento da entidade familiar perpassa por diversos conceitos, no entanto, no sentido mais amplo, pode-se dizer que seria aquela em que indivíduos estão ligados pelo vínculo da consanguinidade ou da afinidade.
Já no que se refere à acepção lato sensu do vocábulo, refere-se a aquela formada “além dos cônjuges ou companheiros, e de seus filhos, abrangendo os parentes da linha reta ou colateral, bem como os afins” (DINIZ, 2008). Por fim, o sentido restrito, como o próprio nome já remete, restringe a família à comunidade formada pelos pais e a filiação.
No entanto, apesar de ser um instituto jurídico protegido constitucionalmente e regulamentado em livro próprio no Código Civil brasileiro, não existe na legislação nacional um conceito expresso do termo “família” e, por tal motivo, esta começou a receber diversas conotações doutrinárias ao longo do tempo. A título de exemplo, Sílvio de Salvo Venosa dispõe (VENOSA, 2010):
A conceituação de família oferece, de plano, um paradoxo para sua compreensão. O Código Civil não a define. Por outro lado, não existe identidade de conceitos para o Direito, para a Sociologia e para a Antropologia. Não bastasse ainda a flutuação de seu conceito, como todo fenômeno social, no tempo e no espaço, a extensão dessa compreensão difere nos diversos ramos do direito.
Ademais, de acordo com Engels, que adota o pensamento de Morgan e de Marx, a família se caracteriza como um elemento ativo, nunca estacionário, passando de uma forma inferior, a uma forma superior, à medida que a sociedade vai evoluindo de um grau mais baixo para um mais elevado, ao contrário do sistema de parentesco que não sofre quaisquer modificações, a não ser que a família já tenha se modificado radicalmente.
Em igual entendimento, se posiciona Farias e Rosenvald ao dizer que as estruturas familiares sofrem alterações e variações no espaço e no tempo, conforme as necessidades e expectativas do homem e da sociedade de cada época.
Contudo, para entendermos a evolução dos diversos conceitos de família, é necessário um rápido estudo histórico do instituto no decorrer da evolução da sociedade. O então modelo familiar adotado no brasil era o chamado família hierárquica, patriarcal e monogâmica, que tinha como finalidade a reprodução e possuía como bem principal o seu patrimônio. Desse modo, entendia-se que a família se tratava de uma unidade econômica, religiosa, política e jurisdicional, onde o patriarca exercia a sua autoridade sobre todos os seus descendentes.
Sendo considerado por muitos um modelo ultrapassado, haja vista a incidência da Constituição Federal de 1988, que dispõe que a família é destinatária de normas crescentemente tutelares, que assegurem a liberdade e igualdade material, os novos arranjos familiares surgiram mostrando uma forte tendência em se distanciar da necessidade de submissão.
A partir da Carta Magna, uma onda de transformação surgiu perante a sociedade, consagrando a proteção à família, podendo ser formada pelo casamento ou pela união de fato, bem como a família natural ou adotiva. A respeito disso, Venosa leciona que em nosso país, a Constituição de 1988 representou, sem dúvidas, um grande divisor de águas do direito privado, especialmente, mas não exclusivamente, nas normas de direito de família (VENOSA, 2010).
Por conseguinte, é diante de tais aspectos que se torna visível a necessidade de adaptação dessa nova realidade, assim como pontua Maria Berenice Dias (DIAS, 2011): (DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.)
O legislador não consegue acompanhar a realidade social, nem contemplar as inquietações da família contemporânea. A sociedade evolui, transforma-se, rompe com tradições e amarras, o que gera necessidade de constante oxigenação de leis.
Assim, conforme dito acima, o ordenamento jurídico não pode continuar se omitindo frente as revoluções ocorridas em sociedade, especialmente no que se refere aos novos padrões familiares, tendo em vista que sua insistência negativa somente acarretará ineficácia no ordenamento jurídico.
3 FILIAÇÃO E SEUS ASPECTOS DETERMINANTES
Acerca do sentido etimológico, a filiação é uma expressão derivada do latim filiatio, termo utilizado para distinguir a relação de parentesco estabelecida entre as pessoas que concederam a vida a um indivíduo. O Código Civil de 1916 até a promulgação da Constituição Federal de 1988 era o único e exclusivo regulador do instituto da filiação. Tal instituto, como já visto, adotava as regras romanas e taxava no dispositivo a proibição do reconhecimento de filhos oriundos de relações extrapatrimoniais.
Dos filhos havidos extrapatrimonialmente, ou seja, de relações em que não houvesse o casamento entre os genitores, eram taxados de ilegítimos, classificando os entes envolvidos em naturais, quando não havia o impedimento para o casamento, e espúrios, quando a lei proibia a união conjugal.
O artigo 227, § 6° da Constituição Federal, extinguindo este entendimento repudioso, vedou qualquer diferenciação entre filhos, sejam eles concebidos dentro ou fora da relação matrimonial, descartando a ocorrência de hierarquização, a seguir: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.” (BRASIL, 1988).
Diante do que fôra tratado, bem como a amplitude do conceito de filiação e das diversas formas de constituir vínculos filiais, se faz necessária uma análise dos critérios determinantes da filiação, que decorrem um dos outros, sendo: i) critérios da verdade legal; ii) critério da verdade biológica; e iii) critério da verdade afetiva.
3.1 Da verdade legal
Considerado um dos primeiros critérios a respeito da paternidade, o critério da verdade legal é derivado do Direito Romano. A presunção pater is est quem justae nuptiae demonstrant, ou seja, pai é aquele que as núpcias demonstram, consiste na ideia de que os filhos concebidos durante a constância do casamento presumir-se-ão descendentes dos cônjuges.
Farias e Rosenvald lecionam que (FARIAS; ROSENVALD, 2011):
[...] a ciência jurídica vem admitindo a presunção de paternidade dos filhos nascidos de uma relação familiar casamentaria. É um verdadeiro exercício de lógica aplicada: considerando que as pessoas casadas mantêm relações sexuais entre si, bem como admitindo a exclusividade (decorrente da fidelidade existente entre elas) dessas conjunções carnais entre o casal, infere-se que o filho nascido de uma mulher casada, na constância das núpcias, por presunção, é do seu marido.
Com o passar dos tempos, tal critério não mais se caracteriza como absoluto, pois com o surgimento de novos métodos, como o exame de DNA, tal critério passou a ser relativo, e a presunção pater is est, se tornou, então, uma presunção juris tantum, ou seja, admitindo-se agora que se prove o contrário, com fins de determinar a quem incumbe o ônus da prova. A partir desde critério, houve a instauração do denominado critério da verdade biológica, que será tratado a seguir.
3.2 Da verdade biológica
Como se sabe, a filiação biológica possui relação direta com os laços sanguíneos entre pais e filhos. A partir daí, sua comprovação pode se dar cientificamente, por exemplo, pelo exame de DNA, que possibilita revelar a verdade sobre o vínculo existente. Tal método se aproxima inteiramente da eficácia, sendo inclusive reconhecido pelos tribunais como prova de vínculo. Importante ressaltar que, embora seja comprovado o vínculo, não há a exigência de convivência familiar entre as partes.
3.3 Da verdade afetiva
Como último critério, e sendo o mais importante acerca da presente pesquisa, o critério da verdade afetiva constitui que a filiação não deve ser definida só por fatores biológicos, e que além de se levar em conta o interesse do filho, também se deve preservar a dignidade dos pais.
Para a maioria da doutrina, são três os requisitos necessários para caracterizar o estado de filho, são eles: 1) nominativo, que diz respeito ao nome; 2) tractatus, que é ser tratado e educado como filho e; 3) reputatio, que é ter a reputação de filho, ser visto dentro da família e pela sociedade como filho. São requisitos comuns nas relações de filiação que tem como base o amor e o afeto, onde o desenvolvimento do indivíduo está sob a responsabilidade dos pais. O nome, no entanto, não é elemento crucial, sendo suficiente a fama e o trato para efetivar o estado de filiação socioafetiva.
4 CONCEITO E RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE
A multiparentalidade é uma entidade familiar consistente entre uma pessoa e dois indivíduos, sendo um ligado pelo vínculo afetivo e o outro pelo vínculo biológico, ou seja, é a filiação socioafetiva e biológica concomitante.
Considerado como uma evolução no direito moderno, atribui a possibilidade de um indivíduo possuir mais de um pai ou uma mãe. Tal instituto representa uma consolidação da afetividade como princípio em nosso ordenamento, extinguindo a descriminalização com os novos arranjos familiares, seja quanto ao sexo dos seus membros ou quanto a sua origem.
Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves (2017, p. 305): “a multiparentalidade, consiste do filho possuir dois pais ou mães reconhecidas pelo direito, o biológico e o socioafetivo, em função da valorização da filiação socioafetiva.”.
No mesmo sentido, Rodrigues e Teixeira pontuam (TEIXEIRA; RODRIGUES, 2010):
A multiparentalidade é uma alternativa de tutela jurídica para o fenômeno da liberdade de desconstituição familiar e formação de famílias reconstituídas. Assim, caso sejam rompidos os vínculos afetivos ou biológicos, o menor terá mecanismos para garantir seus direitos fundamentais, preservando seu desenvolvimento pleno, gerando os mesmos efeitos do parentesco.
Seu reconhecimento pode ocorrer de forma judicial ou extrajudicial. A primeira se dá a partir de ação declaratória ou ação investigatória de paternidade socioafetiva, enquanto a segunda é realizada pelos oficiais do Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais, desde que observadas as disposições do Provimento 63/2017, com as alterações do Provimento 83/2019, do Conselho Nacional de Justiça. Ato contínuo, ambas averbações ocorrerão na certidão de nascimento do indivíduo.
Na visão de Teixeira e Rodrigues:
O registro deverá adaptar-se a nova demanda multiparental, constando em seu bojo condições para o acréscimo do nome de mais um pai/mãe, a fim de que, a partir do formal registro, surjam todos os demais efeitos da filiação, sobretudo os patrimoniais: alimentos e herança. (TEIXEIRA E RODRIGUES, 2016, p. 205).
Quanto a sua legitimação, deve ser cumprido alguns requisitos, são eles:
I - Requerimento firmado pelo ascendente socioafetivo (nos termos do Anexo VI), testamento ou codicilo (artigo 11, parágrafos 1º e 8º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
II - Documento de identificação com foto do requerente – original e cópia simples ou autenticada (artigo 11 do Provimento 63/2017 do CNJ);
III - Certidão de nascimento atualizada do filho – original e cópia simples ou autenticada (artigo 11 do Provimento 63/2017 do CNJ);
IV – Anuência pessoalmente dos pais biológicos, na hipótese do filho ser menor de 18 anos de idade (artigo 11, parágrafos 3º e 5º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
V – Anuência pessoalmente do filho maior de 12 anos de idade (artigo 11, parágrafos 4º e 5º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
VI - Não poderão ter a filiação socioafetiva reconhecida os irmãos entre si nem os ascendentes (artigo 10, parágrafo 3º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
VII - Entre o requerente e o filho deve haver uma diferença de pelo menos 16 anos de idade (artigo 10, parágrafo 3º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
VIII - Comprovação da posse do estado de filho (artigo 12 do Provimento 63/2017 do CNJ).
Ressalta-se, ainda, que o reconhecimento socioafetivo de filiação é irrevogável e irretratável, tendo a pessoa reconhecida os mesmos direitos como se filho biológico fosse, não havendo hierarquização, resultando, inclusive, na incidência de deveres e obrigações legais.
5 EFEITOS JURÍDICOS
omo se sabe, a isonomia constitucional entre filhos impõe que, uma vez reconhecido o vínculo parental, todos os efeitos jurídicos que emanam da relação serão produzidos, sendo eles de ordem moral ou patrimonial. Na mesma linha, Emanuelle Araújo Correia (2017, p. 80) afirma:
Assim, caberá aos pais socioafetivos tanto quanto os biológicos, em relação aos filhos menores, dirigir-lhes a criação e educação; tê-los em sua companhia e guarda; conceder ou negar a eles consentimento para casar; nomear tutor por testamento o documento autêntico, representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-lo, após essa idade, nos atos em que for parte.
Adiante, nota-se que o reconhecimento da multiparentalidade seria inútil se não viesse a surtir efeitos no mundo jurídico. Muito se questiona também se tal instituto poderia trazer algum prejuízo para a criança, se existe a possibilidade de o menor sofrer algum tipo de dano por possuir dois ou mais genitores em seu registro, já que a grande maioria possui apenas um. Acerca disso, veremos adiante.
5.1 Direito ao nome
Dentre os efeitos jurídicos, tem-se o direito ao nome, direito este que é personalíssimo e irrevogável. Estando configurada a multiparentalidade, o sobrenome dos pais multiparentais é acrescentado ao nome do filho, resultando, inclusive, no direito ao parentesco. Por não haver distinção entre o filho afetivo e o biológico, o vínculo se estenderá a todos os membros da família, sendo eles ascendentes e descendentes.
5.2 Direito a alimentos
Outro importante efeito jurídico é o direito a alimentos. Assegurado por lei, a obrigação do alimentante decorre tanto para os filhos biológicos, quanto para os filhos afetivos, analisando, sempre, o binômio necessidade-possibilidade. Dessa forma, todos aqueles que constarem no registro, serão encarregados desse exercício.
Cassettari (CASSETTARI, 2015) mostra que o artigo 1.698 do Código Civil, pode ser utilizado e diz:
Sendo várias pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, ou seja, se um dos pais pode suportar sozinho a pensão, deverá fazê-lo, pois para o alimentado é ruim fracionar a sua necessidade entre várias pessoas, o que aumenta o risco de inadimplemento. Para a parte final desse artigo, que estabelece a possibilidade de o réu, nesse caso, chamar as outras pessoas também obrigadas a integrar a lide, deve haver prova de que ele, genitor escolhido, não tem condições de arcar, sozinho, com o pagamento da pensão, o que justifica a divisão.
5.3 Da guarda e da visita
Assim como os anteriores, incidirão os procedimentos da guarda e da visita. Conforme se observa dos julgados, o que se sobressai em relação a guarda é o melhor interesse da criança, seja em casos de filiação biológica ou dentro da multiparentalidade, pois o único critério a ser observado é o afeto.
A única diferença, portanto, no poder/dever de visita na multiparentalidade, é que dentro do instituto, tal direito só se inicia com o registro do pai socioafetivo, diferente da filiação biológica, que surge com o nascimento da criança. Porém, se na certidão constar o nome do pai ou mãe socioafetivos, os pais afetivos irão possuir o poder/dever de visitar, cuidar, educar, assistir, criar e principalmente amar o filho, pois o direito de visitas tem como principal objetivo fortalecer os laços de afeto.
5.4 Direito de sucessão
Por fim, o último efeito, e o mais conflitante em relação a multiparentalidade, é o direito de sucessão, que, em síntese, se o pai afetivo falecesse, o filho afetivo teria o direito de concorrer conjuntamente com os irmãos como herdeiro, ou se for o caso do filho menor falecer, os pais tanto biológicos quanto afetivos terão o direito de concorrer como herdeiros na divisão do patrimônio do filho.
A respeito da sucessão, o artigo 1.788 do Código Civil define herdeiros legítimos como sendo aqueles advindo da descendência, ascendência ou casamento. Desse modo, se a filiação socioafetiva for reconhecida, o herdeiro será considerado legítimo.
Vale salientar que a sucessão somente é considerada legítima, quando derivada de previsão legal, e só é atribuída a pessoas que no momento da abertura da sucessão já nasceram ou já foram ao menos concebidas, e também aos ascendentes do cônjuge, como discorre o artigo 1.845 do Código Civil.
Ainda no Código Civil, os artigos 1.829 a 1.847114, dispõe a ordem de vocação e preferência no direito sucessório, e no caso do instituto da multiparentalidade o direito a sucessão será reconhecido entre os pais ou mães e todos os parentes. Sobre o tema Dias afirma que essa possibilidade, inclusive, há que se refletir nos temas sucessórios. O filho concorrerá na herança de todos os pais que tiver.
Ou seja, o filho socioafetivo concorreria tanto na esfera biológica quanto na afetiva, sendo assim se houvesse a morte de um dos parentes afetivos, o filho seria herdeiro em concorrência com os irmãos, mesmo que estes sejam unilaterais, e o mesmo ocorreria com se houvesse a morte dos pais biológicos.
6 DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 898.060-SC STF
O instituto da multiparentalidade passou a ter reconhecimento maior após o Recurso Extraordinário (RE) nº 898.060-SC firmar o entendimento de que “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais”.
Nessa linha, o STF, por maioria, optou por não afirmar nenhuma superioridade entre as modalidades de vínculo parental, apontando para a possibilidade de coexistência de ambas, afastando qualquer interpretação que enseja na hierarquização dos vínculos.
À luz desse avanço, qual seja, o reconhecimento da multiparentalidade, já é possível contemplar julgados que adotam o entendimento:
RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE. MODIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. PATERNIDADE BIOLÓGICA. DNA. RECONHECIMENTO CONCOMITANTE DA PATERNIDADE BIOLÓGICA E SOCIOAFETIVA. 1. A paternidade não pode ser vista apenas sob enfoque biológico, pois é relevante o aspecto socioafetivo da relação tida entre pai e filha. 2. As provas dos autos demonstram que o apelante estabeleceu forte vínculo com a menor, tanto que, com o divórcio dos genitores, a guarda e o lar de referência é o paterno. 3. A tese de multiparentalidade foi julgada pelo STF em sede de repercussão geral e decidiu que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseado na origem biológica com os efeitos jurídicos próprios. 4. Ante a existência dos dois vínculos paterno-filiais, que não podem ser desconstituídos, a orientação que melhor atende aos interesses das partes, notadamente o da menor, é o reconhecimento de ambos os vínculos paternos: o biológico e o socioafetivo, com as devidas anotações no seu registro civil. (Acórdão 1066380, 20160210014256APC, Relatora: MARIA DE LOURDES ABREU, 3ª Turma Cível, data de julgamento: 16/11/2017, publicado no DJe: 13/12/2017) (grifo nosso)
Ademais, outro ponto crucial para que seja reconhecida a multiparentalidade, é a prevalência do direito da criança e do adolescente, colocando-os em primeiro plano, pautando sempre nos princípios da afetividade, solidariedade e parentalidade responsável. Nesse sentido, em que o reconhecimento não seria favorável, são os acórdãos:
[...] 2. A prevalência dos interesses da criança é o sentimento que deve nortear a condução do processo em que se discute, de um lado, o direito à manutenção da verdade biológica e, de outro, o direito ao reconhecimento dos vínculos que se estabeleceram, cotidianamente, a partir de uma relação de cuidado e afeto, representada pela posse do estado de filho. 3. A possibilidade de se estabelecer a concomitância das parentalidades socioafetiva e biológica não é uma regra, mas uma casuística, passível de rejeição nas hipóteses em que as circunstâncias fáticas demonstrem não ser a melhor opção para a criança, em vista dos princípios da afetividade, da solidariedade e da parentalidade responsável. 4. Se, no caso concreto, resta comprovado o vínculo socioafetivo com a família adotante, ao passo que não se observou o cumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar pela mãe biológica, sobre quem, inclusive, o menor, com 13 (treze) anos de idade, expressou seu desejo de não mais visitá-la, nem ao restante da família, age com acerto o MM. Juiz que decidiu pela destituição do poder familiar da mãe biológica e pela impossibilidade do registro multiparental, em vista do melhor interesse da criança. (Acórdão 1126458, 00050337220148070013, Relator: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA, 7ª Turma Cível, data de julgamento: 26/9/2018, publicado no PJe: 28/9/2018) (grifo nosso)
7 CONCLUSÃO
A família se apresenta como a unidade social mais antiga da História, passando por inúmeras transformações ao longo do tempo, deixando, deste modo, de ser uma família patriarcal, que tinha como base apenas o interesse patrimonial, e tornando-se um instituto constituído principalmente por vínculos afetivos, com a finalidade do pleno desenvolvimento da personalidade de todos os seus membros, ganhando assim, espaço na sociedade contemporânea que antes, reconhecia para registro civil apenas o vínculo biológico, ou seja, advindos da consanguinidade, passando agora a também reconhecer os vínculos socioafetivo.
Nesse sentido, o princípio condicionado à igualdade não permite qualquer distinção entre pais afetivos e biológicos, isto é, não há possibilidade de hierarquização, tendo em vista que configuraria uma violação constitucional.
Inúmeros foram os avanços que o instituto da multiparentalidade trouxe consigo. Deixou-se de lado a ideia de que somente se considera “família” a ligação da consanguinidade, marcando, sem qualquer forma de hierarquização, a afetividade, que é tão importante quanto o fator biológico. O direito para obtenção deste instituto pode partir tanto dos pais quanto dos filhos, bastando para tanto, o afeto voluntário e o consenso mútuo, vez que a partir da concessão, os efeitos serão irretratáveis na forma da lei.
Decorrente do reconhecimento do estado de multiparentalidade, existe o dever legal de solidariedade familiar, em que carrega consigo os efeitos jurídicos, são eles: o dever de prestar alimentos, dever de guarda, direito de visitas, direito ao nome e, por fim, o direito sucessório.
No entanto, embora marcante a repercussão do julgamento no STF do Recurso Extraordinário nº 898.060-SC, podemos perceber que ainda há uma lacuna a ser preenchida na legislação, ou seja, não existem leis que tratam diretamente do assunto, acabando por dificultar sua aplicação na prática. Há a necessidade de se criar normas regulamentadoras, haja vista que os efeitos da multiparentalidade alcançam diversas áreas do direito.
Por todo o exposto, conclui-se que, sendo o direito um ramo que está em constante evolução, e que possui como objetivo resguardar e proteger a sociedade, necessita-se de um complemento legislativo acerca da temática, com as devidas adequações, de modo que o ordenamento jurídico não pode continuar se omitindo frente as evoluções ocorridas em sociedade, especialmente no que se refere aos novos padrões familiares.
REFERÊNCIAS
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VENOSA, Sílvio da Salvo. Direito Civil: parte geral. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2010.
Graduanda em Direito pelo Centro Universitário de Santa Fé do Sul/SP – UNIFUNEC
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JULIANO, Maria Luisa. Multiparentalidade: reconhecimento e efeitos jurídicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 set 2023, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63131/multiparentalidade-reconhecimento-e-efeitos-jurdicos. Acesso em: 25 dez 2024.
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