Resumo: a ocupação dos espaços públicos ainda é capaz de refletir a dificuldade de concretização do princípio da igualdade, mormente a de gênero. Com efeito, a mulher, independentemente do nível de capacitação, ainda não consegue acessar cargos de natureza política com a mesma naturalidade com que o fazem os representantes do sexo masculino. Nesse sentido, sensível à necessidade de minimizar a problemática acima narrada, o Poder Legislativo promoveu mudanças no sistema de cotação das candidaturas permitidas para cada partido político. Por meio do art. 10, §3º, da Lei n. 9.504/97, o legislador estabeleceu regra mínima de participação de cada sexo no processo político. Ocorre que, na prática, os atores do processo político vêm buscando formas de se desvencilhar da obrigatoriedade estabelecida no preceptivo normativo destacado. Para tanto, investem esforços na promoção das tradicionais candidaturas masculinas e utilizam, ilicitamente, as femininas apenas como meio de preenchimento da cota obrigatória por lei. A participação feminina, nesse contexto, mostra-se despedidas do real sentido almejado pela norma e pela Constituição Federal de 1988. O presente estudo, portanto, busca compreender a fraude à cota de gênero como um instrumento do abuso do poder político e as consequências dessa prática no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: Processo político. Fraude à cota de gênero. Supremo Tribunal Federal.
Abstract: The occupation of public spaces is still capable of reflecting the difficulty of implementing the principle of equality, especially that of gender. In fact, women, regardless of their level of training, are still not able to access positions of a political nature with the same naturalness as male representatives. In this sense, sensitive to the need to minimize the problem narrated above, the Legislative Branch promoted changes in the system of quoting the candidacies allowed for each political party. By means of article 10, paragraph 3, of Law No. 9,504/97, the legislator established a minimum rule for the participation of each sex in the political process. It so happens that, in practice, the actors of the political process have been looking for ways to get rid of the obligation established in the normative precept highlighted. To this end, they invest efforts in the promotion of traditional male candidacies and illicitly use female candidacies only as a means of filling the quota required by law. Women's participation, in this context, shows farewell to the real meaning desired by the norm and by the Federal Constitution of 1988. The present study, therefore, seeks to understand gender quota fraud as an instrument of abuse of political power and the consequences of this practice within the scope of the Federal Supreme Court.
Keywords: Political process. Gender quota fraud. Federal Supreme Court.
Sumário: Introdução. 1. Igualdade de gênero e a Lei das Eleições. 2. Igualdade de sexo e igualdade de gênero. 3. Fraude à cota de gênero e o Supremo Tribunal Federal. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Historicamente, as estruturas sociais foram formatadas de modo a delegar à mulher papeis secundários nos espaços de poder. No âmbito político, o quadro de desigualdade é demonstrado pela evidente desproporção de gênero na condição de titular da Presidência da República em todo o histórico dessa citada forma de governo.
Com o intuito de promover a igualdade de gênero e minimizar a falta de representatividade do sexo feminino no espectro político, o legislador promoveu mudanças no âmbito da Lei das Eleições (Lei n.º 9.504/97), nela alterando a redação do §3º do art. 10, nos seguintes termos: “Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”. A leitura do dispositivo, em cotejo com as disposições do próprio “caput”, evidencia a intenção de buscar um maior espaço de participação política para as mulheres. Para tanto, a legislação exige que os partidos políticos envidem esforços no sentido de incentivar o sexo feminino a imergir no processo eleitoral, com vistas a almejar cargos de cunho político.
A medida legal, apesar de bem-intencionada, encontra resistência operacional. Como forma de não se submeter ao cumprimento do mandamento normativo, dirigentes partidários vêm buscando formas de transpor a exigência legal, sem, no entanto, infringi-la. Nessa ordem de ideias, a fraude à cota de gênero tem se tornado uma infeliz realidade processual posta à apreciação pelo Estado-Juiz.
A fraude costuma se manifestar, principalmente, por duas formas: através de candidaturas-laranja, quando a mulher sequer tem conhecimento da sua candidatura, que é providenciada à revelia da autonomia da vontade, ou por meio de candidaturas inexistentes, quando a postulante, apesar de ciente da sua condição, não tem o real interesse de participar do processo eleitoral, evitando realizar atos de campanha e de arrecadação.
A burla acima tem sido sistematicamente enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal, que, por meio da sua jurisprudência, tem buscado limar a participação política de partidos, candidatos e representantes partidários que se valem do expediente fraudulento para legitimar candidaturas masculinas.
O presente estudo científico, pretende, portanto, analisar a fraude à cota de gênero enquanto realidade que desafia os órgãos de controle, corrompe a possibilidade de se buscar a igualdade de gênero nos espaços de poder e impõe ao Supremo Tribunal Federal o dever de coibir a prática por meio da aplicação de sanções firmes e pedagógicas.
As análises aqui empreendidas se desenvolveram com auxílio de pesquisa bibliográfica e da análise da jurisprudência mais atualizada a respeito da temática discutida.
1 IGUALDADE DE GÊNERO E A LEI DAS ELEIÇÕES
A preocupação com a perspectiva de gênero não é uma novidade inaugurada por meio da reforma eleitoral promovida em 2009, por meio da Lei n.º 12.034/09, responsável pela modificação redacional do §3º do art. 10 da Lei das Eleições. Antes dela, a Lei n.º 9.100/95 instituiu cota mínima de 20% (vinte por cento) para candidaturas do sexo feminino. Com a Lei n.º 9.504/97, esse percentual foi maximizado para 30% (trinta por cento). Na prática, contudo, as previsões legislativas acima não dispuseram de acentuada eficácia, uma vez que o limite a ser preenchido por candidaturas de cada sexo tinha por referência o número máximo de candidaturas a serem registradas abstratamente. A obrigação, nesse contexto, era de reserva de vagas. A lei, pois, não dispunha de um caráter obrigacional, figurando com um viés aparentemente facultativo.
Não fosse suficiente, a ausência de uma conjuntura de aplicação de sanções em face de descumprimento dos percentuais legais reforçava a ideia de que a lei buscava estimular a participação feminina, mas apenas de forma figurativa, sem qualquer compromisso com a modificação de um quadro crônico de desigualdade.
Somente com a edição da Lei n.º 12.034/09 o ordenamento jurídico passa a estimular a participação feminina nos espaços políticos e a tentar controlar de forma mais eficaz os mecanismos de operacionalização dessa regra. Com efeito, por meio do supracitado diploma normativo, conferiu-se nova redação ao art. 10, §3º, da Lei das Eleições, o qual passou a ostentar um comando obrigatório de inscrição de candidaturas de cada sexo nos pleitos eleitorais. Além disso, a reforma retirou a aparente facultatividade do comando, ao utilizar a expressão “preencherá”, em substituição a outrora vigente “deverá reservar”[1].
A Lei das Eleições, atualmente, parte da premissa de que os partidos políticos são obrigados a preencher, no mínimo, 30% (trinta por cento) das vagas destinadas às candidaturas com representantes de cada sexo.
Nesse sentido, CASTRO (2016, p. 122) afirma que:
Com a Lei n. 12.034/2009, a exigência de percentual mínimo de candidaturas de ambos os sexos (reserva de gênero) passou a ser ainda mais incisiva. De fato, o § 3º, do art. 10, da Lei n. 9.504/97, que dantes impunha aos partidos e coligações a reserva das vagas, agora diz que estes preencherão o mínimo de 30% com candidaturas do sexo minoritário. Daí que o partido terá que incluir na sua lista o mínimo de 30% de mulheres, p.ex., não bastando que não ultrapasse os 70% de candidaturas masculinas. A substituição da expressão “deverá reservar” pelo vocábulo “preencherá”, aliada à imposição de aplicação financeira mínima e reserva de tempo no rádio e TV (Lei n. 9.096/95, alterada pela dita Lei n. 12.034/2009), revela nitidamente a vontade do legislador de incluir as mulheres na disputa eleitoral. Esse percentual mínimo (30%) será calculado sempre sobre o número de candidaturas que o partido/coligação efetivamente lançar e não sobre o total que a lei indica como possível (150% ou 200% do número de vagas a preencher). Para uma Câmara Municipal com 15 Vereadores, p.ex., em que a coligação pode lançar até 30 candidatos, se a sua lista, levada a registro, contiver apenas 20 nomes, pelo menos seis devem ser de candidaturas de um sexo e no máximo quatorze do outro. Chegando a lista à Justiça Eleitoral sem observância desse mínimo, ela deve ser devolvida ao partido/coligação, para adequação, o que imporá o acréscimo de candidaturas do sexo minoritário ou a exclusão de candidatos do sexo majoritário, assim alcançando-se os limites mínimo e máximo.
Já GOMES (2018, p. 413), por sua vez, sintetiza as perspectivas da Lei das Eleições nos seguintes termos:
Por quota eleitoral de gênero compreende-se a ação afirmativa que visa garantir espaço mínimo de participação de homens e mulheres na vida política do país. Seu fundamento encontra-se nos valores atinentes à cidadania, dignidade da pessoa humana e pluralismo político que fundamentam o Estado democrático Brasileiro [...].
A ação afirmativa inaugurada com a multicitada Lei n.º 12.034/09 ampliou, de fato, o âmbito de participação feminina no processo eleitoral, dado o seu caráter cogente, mas não obteve os resultados esperados de incremento efetivo da igualdade entre os gêneros na busca por espaços de poder. Na verdade, o já mencionado caráter coercitivo da legislação impôs aos atores políticos não apenas a observância da lei, mas também o dever de buscar formas de contornar a exigência legal – inclusive por meios fraudulentos –.
2 IGUALDADE DE SEXO E IGUALDADE DE GÊNERO
Sem a pretensão de esgotar as discussões relativas à necessidade de incremento das políticas públicas em prol das mais diversas minorias, vale destacar o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral acerca do preenchimento da cota de gênero e a candidatura do sexo feminino.
Sobre o tema, o então Ministro do Tribunal Superior Eleitoral, Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, no bojo da consulta 0604054-58.2017.6.00.0000[2], firmou entendimento no sentido de que:
A expressão “cada sexo” mencionada no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/97 refere-se ao gênero, e não ao sexo biológico, de forma que tanto os homens como as mulheres transexuais e travestis podem ser contabilizados nas respectivas cotas de candidaturas masculina ou feminina. Para tanto, devem figurar como tal nos requerimentos de alistamento eleitoral, nos termos estabelecidos pelo art. 91, caput, da Lei das Eleições, haja vista que a verificação do gênero para o efeito de registro de candidatura deverá atender aos requisitos previstos na Res.- TSE nº 21.538/2003 e demais normas de regência.
[...]
A despeito de se tratar de regra mais inovadora em relação à anterior, é imperioso reconhecer que o nosso sistema atual ainda se mostra aquém da realidade social e política do país, por não garantir idêntico tratamento às outras categorias de gênero que se apresentam no mundo inteiro, a exemplo das pessoas denominadas transexuais – que já lograram importantes conquistas no âmbito do direito civil e dos direitos fundamentais, e ainda lutam por outras tantas. É preciso, pois, avançar, conferindo-se amplitude máxima ao regime democrático, respeitando-se a diversidade, o pluralismo, a subjetividade e a individualidade como expressão dos direitos fundamentais assegurados no texto constitucional.
[...]
Forte nessas premissas, à primeira indagação, respondo no sentido de que a expressão “cada sexo” mencionada no art. 10, § 3º, da Lei 9.504/97 deve se referir ao gênero, e não ao sexo biológico, de forma que tanto os homens como as mulheres transexuais podem ser contabilizados nas respectivas cotas de candidaturas masculina ou feminina, porquanto a apuração do sexo, para fins eleitorais, constitui, entre outros aspectos, evidente violação da intimidade. É dizer, quem se identifica como mulher, transgênera (incluída a travesti nessa categoria) ou cisgênera, ou como homem, transgênero ou cisgênero, independentemente de sua orientação sexual, deve compor as respectivas cotas, feminina ou masculina, conforme seu autorreconhecimento.
O posicionamento firmado na consulta acima referenciada evidencia que o Tribunal Superior Eleitoral não limita a compreensão da cota de gênero ao sexo biológico, mas, sim, ao autorreconhecimento do candidato/eleitor. Há, pois, uma nítida tendência de valorização das declarações prestadas pelo próprio eleitor ao cadastro eleitoral, em detrimento de quaisquer noções limitantes a caracteres físicos. Pessoas transexuais e travestis, portanto, podem figurar enquanto agentes preenchedores da representação feminina exigida pela cota de gênero, desde que tenham manifestado esse interesse em requerimento de alistamento eleitoral, na forma da Lei das Eleições.
Consagra-se, com tal posição, uma visão macrocósmica da pessoa humana, não revestida de preconceitos e adversidades decorrentes da opinião social.
3 FRAUDE À COTA DE GÊNERO E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Como sedimentado acima, apesar dos esforços do legislador, a participação feminina no âmbito político ainda carece de um maior respaldo prático. Em verdade, a fixação de critérios de imposição obrigatória aos partidos políticos acabou inaugurando um novo contexto abusivo no processo eleitoral: a fraude à cota de gênero.
Visando não se submeter às imposições legais, os atores políticos vêm demonstrando refino no aperfeiçoamento das técnicas de superação e descumprimento do comando que determina a reserva de vagas a candidatas mulheres. Na prática, a fraude à cota de gênero se apresenta, sobretudo, por meio de duas formas: pela veiculação de candidaturas-laranja, por meio das quais os partidos políticos informam à Justiça Eleitoral a existência de proporcionalidade de gênero nas candidaturas pleiteadas, quando, em verdade, as postulantes sequer têm conhecimento da sua condição e potencial participação no processo eleitoral. A fraude também costuma ser publicizada por meio de candidaturas fictícias, por meio de um conluio engendrado pelo partido político, de modo a publicizar a efetiva existência de candidaturas femininas, mas sem qualquer pretensão de efetivá-las na prática.
A fraude à cota de gênero, nesse contexto, enquanto manifesta forma de exercício abusivo do poder político, representa um meio a serviço da desigualdade, já que serve apenas à legitimação da concentração do capital político nas mãos dos representantes do sexo masculino.
Como uma distorção legal, tal modalidade de fraude reclama atuação enérgica dos órgãos de controle, de modo a viabilizar a aplicação de sanções que efetivamente desestimulem a prática e permitam, enfim, algum espaço de atuação feminina na política.
Nessa ordem de ideias, vale destacar a atuação do Supremo Tribunal Federal, que, por meio da sua jurisprudência, vem reafirmando o compromisso com a preservação da normalidade do processo eleitoral, de modo a sancionar gravemente as agremiações partidárias que se utilizam de expedientes fraudulentos em busca do preenchimento dos requisitos impostos por lei.
Por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade de n.º 6.338, do Distrito Federal, o Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de analisar a eventual inconstitucionalidade da regra que define a reserva da cota de gênero no âmbito da lei geral das eleições.
Por meio da supracitada ação de controle concentrado, buscou-se declarar a nulidade da interpretação dada pelo Tribunal Superior Eleitoral[3] às consequências advindas do descumprimento do art. 10, §3º, da Lei das Eleições. Na ótica das partes postulantes, o reconhecimento de candidatura fictícia deveria ensejar a cassação apenas dos responsáveis pela prática abusiva, isentando de sanção candidatas e candidatos eleitos sem vinculação com a fraude. A título de fundamento, sustentou-se que o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral, no sentido de cassar/anular todas as candidaturas do partido envolvido na atividade fraudulenta acabaria por minar o alcance da ação afirmativa estampada na Lei das Eleições, haja vista atingir, igualmente, candidatas do sexo feminino validamente eleitas. Além disso, a punição de forma geral seria responsável por vulnerar o princípio da proporcionalidade, porquanto as sanções ultrapassariam à esfera dos responsáveis pelo ato ilícito.
Em decisão paradigmática, o Supremo Tribunal Federal, por meio do voto condutor da Ministra Rosa Weber[4], definiu que a fraude à cota de gênero representa, inicialmente, violação à cidadania, ao pluralismo político e a isonomia, valores fundamentais consagrados na Constituição Federal de 1988. Para além disso, é ato que compromete a lisura, legitimidade e normalidade das eleições, já que o partido publiciza a existência de candidaturas que, na prática, não são reais, circunstância que permite, inclusive, o lançamento de um número maior de candidaturas masculinas com potencial de arregimentar o eleitorado e alavancar o quociente partidário.
Por essas razões, para a Ministra, não há que se falar em punição circunscrita à candidatura fraudulenta, providência essa que redundaria no aumento das candidaturas masculinas efetivas – em franca oposição aos objetivos da cota de gênero –, além de culminar no completo esvaziamento da sanção aplicada, já que a anulação apenas da candidatura fictícia não teria impacto significativo no quociente partidário.
A fraude é promovida justamente como forma de simplificar o registro de candidaturas masculinas capazes de alavancar o quantitativo de votos obtidos; nesse contexto, anular apenas a candidatura inexistente, naturalmente esvaziada, sem representatividade ou soma considerável de votos, representaria um verdadeiro estímulo à prática ilícita, dada a ausência efetiva de punição.
Sobre o tema, igualmente válidos os ensinamentos de HOLL (2019, p. 58-61):
Primeiramente cumpre observar que reservar vagas traz obrigações distintas de efetivamente preencher um determinado número de vagas. Daí que ao observar o número de candidatas à Câmara dos Deputados das eleições de 1998, verificou-se que o número não atingiu os 30%. Na época vigorou o discurso de que as vagas para as candidaturas de mulheres haviam sido reservadas, entretanto não havia um número suficiente de mulheres dispostas a se candidatar. Esse discurso mostra-se extremamente problemático, primeiro por pretender flexibilizar a obrigação dos partidos em incluir mais mulheres em sua estrutura e por negar a solução que é simples, se não há mais mulheres desejando se candidatar por aquele partido, logo deve-se reduzir o número de candidatos homens, de forma a obter as porcentagens legais (interpretação essa que vigora atualmente, após a Lei n. 12.034/2009). Mas também é uma argumentação mesquinha que tenta fortalecer a ideia de que o locus da mulher é o espaço privado e não o espaço público, daí as mulheres não almejarem cargos políticos. O que, por sua vez, desconsidera todos os fatores sociais subjacentes às escolhas das mulheres, que vão desde a jornada dupla que já exercem, à falta de apoio interno nos partidos, perpassando questões das mais diversas, como o acesso a recursos menores para suas campanhas, a falta de apoio familiar ou mesmo as dificuldades que se manifestam após eventual eleição, quando lhes é delegado um papel de coadjuvantes nas casas legislativas. Note-se que a falta de tempo para se dedicar a mais uma atividade é um motivo de destaque quando se considera o afastamento das mulheres da política formal, uma vez elas acabam vivenciando uma jornada dupla de trabalho (BOLOGNESI, 2012. p. 116), visto que são responsáveis pela renda da família tanto quanto os homens, mas diferentemente destes ainda continuam responsáveis pelas atividades domésticas quase com exclusividade. Outros aspectos culturais, como uma maior busca por cargos com estabilidade tornam menor a procura das mulheres pela política formal, sem que hajam incentivos externos para tanto (BOLOGNESI, 2012. p. 116). O que problemas como esses, apresentados a título exemplificativo, demonstram é que a histórica baixa participação das mulheres na política formal brasileira é reflexo de um problema estrutural que precisa ser enfrentado pelos partidos políticos, não bastando que eles se furtem a essa responsabilidade, sob a cortina da falta de interesse, que na verdade tem como único objetivo a preservação do status quo e a manutenção do espaço político dos homens que tradicionalmente o ocuparam . Ademais, nesse momento também houve um aumento da proporção das listas partidárias em relação ao tamanho e população da região em que se dão as eleições. Fato esse que, somado à inexistência de punição para os partidos ou coligações que não registravam efetivamente a porcentagem mínima de mulheres, levou a uma efetividade muito moderada da então Lei de Reserva de Vagas por Sexo. Explicase: como o comando normativo exigia apenas a reserva de um mínimo de 30% das vagas para cada sexo, considerando o máximo de candidatos que o partido ou coligação poderiam apresentar no pleito em questão — cento e cinquenta ou duzentos por cento do número de lugares a serem preenchidos, para os partidos e coligações, respectivamente, nos termos do art. 10 §§1º e 2º da Lei n. 9.504/1997, em sua redação original — caso não fossem alistados 30% de candidaturas de mulheres, o espaço dessas candidaturas, dentro os 150 ou 200% permitidos, não poderiam ser ocupados por candidatos homens. Logo, poderiam ser registrados 70% de homens do total de cento e cinquenta ou duzentos por cento de lugares disponíveis, e o restante das vagas poderiam ser ocupadas por candidatas ou permanecerem vagas. Na prática verificou-se apenas um teto máximo para o número de candidatos homens, contudo um teto suficientemente distante para não impactar concretamente no espaço político daqueles homens que já estavam inseridos no meio. A esse respeito Bolognesi salienta que: […] onde, implantadas cotas de gênero nas listas partidárias (ou nas coligações eleitorais) no Brasil, pouco alterou a composição social das elites políticas, bem como das candidaturas políticas. O incremento de cotas aliado ao aumento na proporção das listas partidárias em relação à magnitude do distrito e não punição pelo descumprimento das cotas acaba por diluir a competitividade e manter a proporção de indivíduos do sexo masculino estável (BOLOGNESI, 2012. p. 114-115). Esse quadro levou Bolognesi a considerar a política de reserva de vagas por sexo tanto como uma política pública, como uma engenharia eleitoral (BOLOGNESI, 2012. p. 126). Isso, uma vez que “[…] [a]o mesmo tempo em que se intenta aumentar a participação feminina, criam-se mecanismos que retroalimentam o status quo” (BOLOGNESI, 2012. p. 126). Ao mesmo tempo em que a Lei de Reserva de Vagas por Sexo possibilitou um aumento, ainda que moderado, do número de mulheres candidatas e candidatas eleitas, ela foi inserida em conjunto com mecanismos que asseguravam a manutenção do espaço político até então ocupado pelos homens, através do aumento do número de candidaturas passíveis de serem apresentadas por partidos e coligações e da não obrigatoriedade do preenchimento das vagas destinadas às mulheres.
Ainda na percepção do Supremo Tribunal Federal, a anulação de todos os votos dados ao partido responsável pela fraude à cota de gênero é proporcional porque o expediente ilícito precede o próprio registro da candidatura. Com efeito, a análise da legitimidade da reserva de percentuais aos gêneros ocorre por ocasião da aferição de regularidade do Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários – DRAP, razão pela qual, vislumbrada a fraude, impõe-se o indeferimento do próprio DRAP e de todas as candidaturas a ele vinculadas.
Em arremate, a Eminente Relatora destacou que os candidatos atingidos pelo indeferimento do DRAP, com os efeitos daí decorrentes, possuem uma função específica na conjuntura que redunda na fraude à cota de gênero: a de fiscalizar os atos partidários da agremiação a que se encontram vinculados, já que estes podem beneficiar ou prejudicar a todos.
O papel do candidato, portanto, não se limita à condição de espectador do processo eleitoral. A partir de o momento em que se insere na dinâmica política, cabe ao postulante exercer todos os atos com retidão e legitimidade, inclusive no que concerne à higidez dos procedimentos da sua agremiação partidária.
Considerando todo o exposto, especialmente as conclusões lançadas pelo Supremo Tribunal Federal no bojo da ADI de n.º 6.338, infere-se que a fraude à cota de gênero subverte a própria lógica legiferante, já que se criou uma ação afirmativa com a nítida intenção de descumpri-la.
O respeito à distribuição das candidaturas de modo proporcional entre os gêneros representa indiscutível avanço na instrumentalização da isonomia, em um contexto material; representa, inclusive, a própria efetivação dos parâmetros constitucionais de pluralismo político e de plena capacidade de exercício do poder político, por meio de representação legítima dos detentores de mandatos eletivos.
CONCLUSÃO
A equidade de gênero não demanda apenas a edição de textos de lei despidos de eficácia. A concretização do mandamento constitucional que impõe a igualdade entre homens e mulheres demanda a superação de dogmas que delegam à mulher funções secundárias, sem maiores participações nos espaços públicos, mormente no exercício do poder político.
A cota de gênero, delineada no art. 10, §3º, da Lei das Eleições, como imposição e não uma mera faculdade, representa um legítimo esforço do poder legiferante no sentido de minimizar a crônica falta de representação da figura feminina no âmbito político.
Esse caráter de imposição, contudo, acabou por desencadear distorções praticadas por atores do processo político com vistas a contornar a exigência e perpetuar a desigualdade. Por meio de candidaturas-laranja, fictícias, as agremiações passaram a comprometer a normalidade e legitimidade do processo político.
A resposta à prática, enérgica e assertiva, veio, inicialmente, por meio do Tribunal Superior Eleitoral - TSE, que, além de rechaçar a prática, editou ato normativo impondo a anulação/cassação/perda de todos as candidaturas/mandatos integrantes do Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários – DRAP em que veiculada a fraude.
A interpretação dada pelo TSE, coerente com os valores constitucionalmente consagrados, foi ratificada pelo Supremo Tribunal Federal – STF, que, no contexto da Ação Direta de Inconstitucionalidade de n.º 6.338, salientou a necessidade de se promover um combate enérgico à fraude à cota de gênero, enquanto medida pedagógica e proporcionalmente necessária ao desestímulo da prática.
Na ótica – acertada – do STF, a imposição de sanção que não se limita à candidatura fraudulenta representa medida consentânea com a necessidade de sancionar as agremiações que se utilizam do expediente ilegítimo, a partir da perda das candidaturas/mandatos a elas vinculados, além de impor medida pedagógica aos próprios integrantes das agremiações, igualmente atingidos pela sanção, no sentido de fiscalizarem os atos partidários.
O combate eficaz à fraude à cota de gênero, inclusive com o apenamento de todos os integrantes da agremiação beneficiada com a fraude, serve de elemento de concretização de valores constitucionais caros ao processo político, seja por meio do estímulo à igualdade ou mesmo pela busca a um real contexto político marcado pelo pluralismo.
REFERÊNCIAS
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______. Tribunal Superior Eleitoral. Consulta nº 0604054-58.2017.6.00.0000. Acórdão. Consulta. Art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/97 (Lei das Eleições). Cotas. Sexo biológico ou gênero. Mulheres transgêneras e homens transgêneros. Art. 12 da Lei nº 9.504/97 (Lei das Eleições). “Nome completo”. Inteligência. Nome registral civil. Nome social. Candidaturas proporcionais e majoritárias. Consulente: Maria de Fátima Bezerra. Consultado: Ministério Público Eleitoral. Relator: Min. Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, em 1º de março de 2018. PSESS em 1º de março de 2018.
______. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral nº 0000193- 92.2016.6.18.0018/PI. Acórdão. Leading Case - A fraude da cota de gênero em eleições proporcionais implica a cassação de todos os candidatos registrados pela legenda ou pela coligação. Recurso conhecido e improvido. Recorrentes: Antonio Gomes da Rocha e outros. Recorridos: Atencio Pereira de Queiroga e outros. Relator: Min. Jorge Mussi, em 17 set. 2019. Publicado DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 193, Data 04/10/2019, Página 105/107.
______. Supremo Tribunal Federal. ADI 6.338/DF. Relator: Min. Rosa Weber, julgada em 03 de abril de 2023. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 07 de junho de 2023.
CASTRO, Edson de Resende. Curso de Direito Eleitoral. 9. ed. Rio de Janeiro: Del Rey, 2016.
GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2018.
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[1] § 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo. (redação anterior a Lei n. 12.034/09).
[2] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Consulta nº 0604054-58.2017.6.00.0000. Acórdão. Consulta. Requisitos. Legitimidade. Senadora. Exame. Expressão “Cada Sexo”. Referência. Transgêneros. Omissão legislativa. Nome social. Cadastro eleitoral. Princípios da dignidade da pessoa humana. Igualdade. Não discriminação. Intimidade. Direito à felicidade. Bem-estar. Objetivo. Valores de justiça. Fins sociais. Exigências do bem comum. Cotas feminina e masculina. Contabilização. Percentuais. Art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/97. Pedido de registro de candidatura. Nome completo. Art. 12, caput, da Lei das Eleições. Nome civil. Determinação. Nome social. Urnas eletrônicas. Possibilidade. Expressão “Não estabeleça dúvida quanto à sua identidade”. Candidaturas proporcionais e majoritárias. Idênticos requisitos. Art. 11 da Lei das Eleições. Consulente: Maria de Fátima Bezerra. Consultado: Ministério Público Eleitoral. Relator: Min. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto. Sessão em 01 março 2018. Diário de justiça eletrônico, tomo 63, 03 abr. 2018. Acesso em: 20 de outubro de 2023.
[3] A esse respeito, destaque-se a posição firme do Tribunal Superior Eleitoral no sentido de que a fraude à cota de gênero tem o condão de invalidar não apenas a candidatura fraudulenta, mas, sim, devem ser cassados todos os registros ou diplomas de todos os candidatos que compuseram a chapa, independentemente de prova de participação ou anuência à fraude. Nesse sentido: “8. Caracterizada a fraude e, por conseguinte, comprometida a disputa, não se requer, para fim de perda de diploma de todos os candidatos beneficiários que compuseram as coligações, prova inconteste de sua participação ou anuência, aspecto subjetivo que se revela imprescindível apenas para impor a eles inelegibilidade para eleições futuras. Precedentes. 9. Indeferir apenas as candidaturas fraudulentas e as menos votadas (feito o recálculo da cota), preservando-se as que obtiveram maior número de votos, ensejaria inadmissível brecha para o registro de "laranjas", com verdadeiro incentivo a se "correr o risco", por inexistir efeito prático desfavorável. 10. O registro das candidaturas fraudulentas possibilitou maior número de homens na disputa, cuja soma de votos, por sua vez, contabilizou-se para as respectivas alianças, culminando em quociente partidário favorável a elas (art. 107 do Código Eleitoral), que puderam então registrar e eleger mais candidatos. 11. O círculo vicioso não se afasta com a glosa apenas parcial, pois a negativa dos registros após a data do pleito implica o aproveitamento dos votos em favor das legendas (art. 175, §§ 3º e 4º, do Código Eleitoral), evidenciando-se, mais uma vez, o inquestionável benefício auferido com a fraude. 12. A adoção de critérios diversos ocasionaria casuísmo incompatível com o regime democrático. (TSE - RESPE - Recurso Especial Eleitoral nº 19392 - VALENÇA DO PIAUÍ – PI - Acórdão de 17/09/2019 - Relator(a) Min. Jorge Mussi).” Tal entendimento, inclusive, encontra-se cristalizado na Resolução de n.º 23.609, do Tribunal Superior Eleitoral, por meio da qual conclui-se que a utilização de candidaturas femininas fictícias deve redundar na anulação /cassação de todos os diplomas/mandatos daqueles que se beneficiaram com a medida, independentemente de prova da anuência destes para com a realização do ato fraudulento (art. 20, §5º).
[4] ADI de n.º 6.338/DF.
Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (2013); Pós-Graduado em Direito do Trabalho e Previdenciário na atualidade pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-Minas (2016); Servidor Público Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GERALDO ZIMAR DE Sá JúNIOR, . A Fraude à Cota de Gênero como Instrumento de Abuso do Poder Político: Uma Análise das Sanções à Luz da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 nov 2023, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63690/a-fraude-cota-de-gnero-como-instrumento-de-abuso-do-poder-poltico-uma-anlise-das-sanes-luz-da-jurisprudncia-do-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 23 dez 2024.
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