Resumo: O artigo propõe discutir a aplicabilidade do instituído da desconsideração da personalidade jurídica, prevista no art. 50 do CC/02, aos casos de responsabilidade tributária. Nesse enfoque, será analisada que existem juristas que não concordam com a aplicação de tal teoria, bem como há doutrinadores que vislumbram clara possibilidade de se aplicar o que vem disposto no art. 50 do CC/02. Ademais, será demonstrado que há quem defensa o entendimento no sentido de existir uma hipótese de desconsideração da personalidade jurídica fundada no art. 135 do CTN. Por fim, será concluído, em suma, que a disposição do art. 135 do CTN não se confunde com a desconsideração da personalidade.
Palavras-chave: desconsideração da personalidade jurídica; art. 135 do CTN; art. 50 do CC/02; responsabilidade tributária.
Abstract: The article proposes to discuss the applicability of the disregard of legal personality established in article 50 of the CC/02 to cases of tax liability. With this in mind, it will be analyzed that there are jurists who do not agree with the application of this theory, and there are also scholars who see a clear possibility of applying the provisions of article 50 of the CC/02. In addition, it will be shown that there are those who defend the view that there is a hypothesis of disregard of the legal personality based on art. 135 of the CTN. Finally, it will be concluded, in short, that the provision of art. 135 of the CTN is not to be confused with the disregard of personality.
Keywords: disregard of legal personality; art. 135 of the CTN; art. 50 of the CC/02; tax liability.
INTRODUÇÃO
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi criada no direito anglo-saxônico, chamada de desregard of legal entity doctrine, no intuito de coibir as fraudes que administradores da sociedade empresária possam cometer utilizando da pessoa jurídica como escudo, lesando terceiros. Rubens Requião afirma que conforme o prof. Verrucoli, um dos mais característicos casos de aplicação da disregard doctrine foi o julgado de “Salomon versus Salomon & Co Ltda.” ocorrido na Inglaterra, em 1897, tido por muitos estudiosos como o primeiro processo judicial que efetivamente enfrentou o debate sobre a desconsideração da pessoa jurídica.
Importa saber que, de início, vige o princípio da autonomia patrimonial, no qual há a separação do patrimônio dos sócios e da pessoa jurídica. Todavia, esse princípio não pode assumir um caráter absoluto, impenetrável. A partir do momento em que o administrador da pessoa jurídica, dolosamente, pratica atos em nome dessa pessoa jurídica, mas em seu favor (pessoa física) – contra os interesses da sociedade empresária –, deve ser responsabilizado por meio da invasão no patrimônio particular, de modo que assuma as obrigações que adquiriu.
No direito brasileiro, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica está presente nos diferentes âmbitos, seja no Código do Consumidor, na seara ambiental, seja no Código Civil. Interessa-se aqui a disposição contida no Código Civil. O art. 50 do CC/02 disciplina da seguinte forma:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)
O art. 50 do CC/02 estabelece requisitos a serem cumpridos a fim de se possam responsabilizar os administradores ou sócios da pessoa jurídica. Sendo assim, para que o patrimônio dos sócios ou administradores seja invadido é imprescindível que se configure o abuso da personalidade jurídica, seja por meio do desvio de personalidade, seja pela confusão patrimonial.
APLICABILIDADE (OU NÃO) DA TEORIA DA PERSONALIDADE JURÍDICA AOS CASOS DE RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIAHá grande dissenso na doutrina acerca da aplicabilidade da teoria da desconsideração da personalidade jurídica nos casos de responsabilidade tributária. Há juristas que não concordam com a aplicação de tal teoria, há doutrinadores que vislumbram clara possibilidade de se aplicar o que vem disposto no art. 50 do CC/02. Diante disso, serão explanadas as diversas nuances em que isso poderá ocorrer.
Existem duas correntes: a primeira que considera ser necessário haver previsão expressa de norma jurídica que discipline acerca da desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário. Essa linha de raciocínio é guiada pelo princípio da legalidade, nos termos do art. 37, caput¸ da CF/88.
Nessa corrente, há uma subdivisão: entre os que consideram dispensável a norma jurídica específica, bastando que uma norma jurídica geral preveja a desconsideração da personalidade; e a outra que afirma ser preciso uma norma jurídica específica que discipline acerca dessa desconsideração, nos termos do art. 146, III, CF/88, mas que, como não existe essa norma – no âmbito tributário–, não há que se falar em aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Nessa última filiam-se Renato Becho Lopes, Luciano Amaro e Edmar Oliveira Andrade Filho.
Comprovando o entendimento supra, Renato Becho assegura que:
De qualquer modo, para nós, a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica não precisou ser transposta para a legislação tributária, pois há uma ferramenta legal mais forte no CTN, largamente utilizada pelas autoridades fiscais, para solucionar as questões em que se busca a despersonalização, que é o lançamento tributário ou sua revisão, fundada no art. 149, inc. VII. (BECHO, 2014, p. 124).
Luciano Amaro, em sua obra Direito Tributário Brasileiro, afirma que:
Resta examinar a desconsideração da pessoa jurídica (propriamente dita), que seria feita pelo juiz, para responsabilizar outra pessoa (o sócio), sem apoio em prévia descrição legal de hipótese de responsabilização do terceiro, à qual a situação concreta pudesse corresponder. Nessa formulação teórica da doutrina da desconsideração, não vemos possibilidade de sua aplicação em nosso direito tributário. Nas diversas situações em que o legislador quer levar a responsabilidade tributária além dos limites da pessoa jurídica, ele descreve as demais pessoas vinculadas ao cumprimento da obrigação tributária. Trata-se, ademais, de preceito do próprio Código Tributário Nacional, que, na definição do responsável tributário, exige norma expressa de lei (arts. 121, parágrafo único, II, e 128), o que, aliás, representa decorrência do princípio da legalidade. Sem expressa disposição de lei, que eleja terceiro como responsável em dadas hipóteses descritas pelo legislador, não é lícito ao aplicador da lei ignorar (ou desconsiderar) o sujeito passivo legalmente definido e imputar a responsabilidade tributária à terceiro. (AMARO, 2004, p. 236).
Por outro lado, a segunda corrente afirma ser dispensável um dispositivo legal específico para que se aplique a teoria:
No âmbito do direito tributário, sempre houve casos em que a desconsideração da personalidade jurídica foi adotada como meio de coibir a evasão fiscal, agora, portanto, ganhando o reforço da nova norma escrita. [...] No passado, vários casos tributários levados ao julgamento dos tribunais foram decididos através da desconsideração de personalidades jurídicas, mesmo sem lei expressa, ao passo que o novo art. 50, acima referido, iguais soluções poderão ser proferidas com fundamento mais sólido. [...] Portanto, este aspecto terá que ser devidamente levado em conta quando da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no campo do direito tributário, pois a responsabilização pessoal é exatamente o objetivo da norma no campo das relações jurídicas privadas, esgotando-se aí a sua finalidade, ao passo que no âmbito dos tributos não se procura apenas responsáveis, mas principalmente definir a situação efetivamente existente e constitutiva da obrigação tributária, a qual se disfarça através do indevido uso da pessoa jurídica. (OLIVEIRA, Ricardo Mariz de, 2004, p. 194-196).
Diante disso, estabelece-se a divergência doutrinária, ressaltando-se que na via jurisprudencial, os tribunais têm aplicado a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, fundada na ideia de que havendo meio mais célere e eficaz de satisfação do crédito, esse será utilizado.
Há autores que fundamentam a teoria da desconsideração da personalidade jurídica nos arts. 134 e 135, ambos do CTN, outros que defendem com base no art. 116, parágrafo único, e os demais que fundamentam no art. 50 do Código Civil. Importa aqui trazer os fundamentos que os doutrinadores encontram no art. 135 do CTN, bem como no art. 50 do CC/02, estabelecendo-se uma ligação com a dissolução irregular da empresa, nos termos da Súmula nº 435 do STJ.
Sendo assim, doutrinadores e a jurisprudência do STJ afirmam existir uma hipótese de desconsideração da personalidade jurídica fundada no art. 135 do CTN. Veja-se decisão do STJ:
TRIBUTÁRIO – CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA DEVIDA PELO TOMADOR DE SERVIÇO – ART. 22, IV DA LEI 8.212/91 – VIOLAÇÃO DO ART. 135 DO CTN: INOCORRÊNCIA.
1. O legislador, ao exigir do tomador do serviço contribuição previdenciária de 15% (quinze por cento) sobre o valor bruto da nota fiscal ou fatura de prestação de serviços que lhe são prestados por cooperados por intermédio de cooperativa de trabalho, nos termos do art. 22, IV da Lei 8.212/91 (com a redação dada pela Lei 9.876/99), em nenhum momento valeu-se da regra contida no art. 135 do CTN, que diz respeito à desconsideração da personalidade da pessoa jurídica para que seus representantes respondam pessoalmente pelo crédito tributário nas hipóteses que menciona.
2. A referência a "cooperados" contida no art. 22, IV da Lei 8.212/91 diz respeito tão-somente ao fato de que, embora firmado o contrato com a cooperativa de trabalho, o serviço, efetivamente, é prestado pela pessoa física do cooperado.
3. Inexistência de ofensa ao art. 135 do CTN.
4. Recurso especial improvido.[1] (grifo meu)
Outrossim, a Min. Eliana Calmon encontrou na responsabilidade tributária de terceiros, prevista no CTN, uma regra de desconsideração da personalidade jurídica, conforme dispõe a seguir:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO - INOCORRÊNCIA DE LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO - VÍNCULO FAMILIAR - DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA.
1. As hipóteses de configuração de litisconsórcio necessário estão no artigo 47 do CPC, o qual exige imposição de lei, ou a existência de vínculo natural, pela natureza da relação jurídica.
2. A base fática da demanda descarta a existência de liame entre os litisconsortes, de relevância para o desfecho da causa, sendo certo que o fato de pertencerem os litisconsortes a uma só família não os coloca na mesma relação jurídica discutida nos autos.
3. Examinada a lei aplicável à espécie, o CTN, o primeiro diploma do direito pátrio a consagrar a teoria da desconsideração da pessoa jurídica, não se encontra, nas hipóteses do artigo 134 do CTN, determinação legislativa justificadora do litisconsórcio.[2] (grifo meu)
No entanto, o que se tem disciplinado no art. 135 do CTN não se confunde com a desconsideração da personalidade, haja vista o referido dispositivo corresponder apenas à imputação de responsabilidade pessoal e direta a pessoas determinadas pelos créditos tributários decorrentes de atos ilícitos praticados por essas, conforme fora exposto ao longo desse artigo.
Em tais casos, observa-se que a esses sujeitos a responsabilidade é conferida de forma exclusiva, sendo dispensáveis os efeitos da desconsideração: a suspensão temporária da eficácia dos atos constitutivos da pessoa jurídica, a fim de que se desconsidere a separação patrimonial existente entre essa e seus sócios, responsabilizando esses, de maneira ilimitada, pelas obrigações tributárias devidas pela pessoa jurídica.
Nesse sentido, veja-se:
O Código Tributário Nacional (CTN) prevê, no art. 135, situações em que, por abuso do representante legal da pessoa jurídica, ele é pessoalmente responsabilizado por obrigações tributárias que, formalmente, seriam da empresa. Exemplos de responsabilidade subsidiária são dados pelos arts. 133, II, e 134.
[...]
Portanto, quando a lei cuida de responsabilidade solidária, ou subsidiaria, ou pessoal dos sócios, por obrigações da pessoa jurídica, ou quando ela proíbe que certas operações, vedadas aos sócios, sejam praticadas pela pessoa jurídica, não é preciso desconsiderar a empresa, para imputar as obrigações aos sócios, pois, mesmo considerada a pessoa jurídica, a implicação ou responsabilidade do sócio já decorre de preceito legal. (AMARO, 1993, p. 74)
Salienta-se que o art. 135 do CTN abarca situações de responsabilidade por substituição, que se apura quando, no instante da materialização da hipótese de incidência, quem se obrigará a realizar o pagamento será terceira pessoa distinta daquela que tem relação direta e pessoal com o fato gerador. Destarte, desde a prática da conduta definida em lei como fato gerador, o sujeito passivo é o diretor, gerente ou representante da pessoa jurídica de direito privado, e não a pessoa jurídica.
Por consequência, não se deve confundir a responsabilidade tributária prevista no artigo 135 do Código Tributário com a desconsideração da personalidade jurídica, já que seus pressupostos são distintos. Atente-se que, para que a desconsideração seja adotada deverá haver abuso da personalidade jurídica, o que não se vislumbra, necessariamente, nos mencionados dispositivos legais. Não resta dúvida, portanto, que o art. 135, III, do CTN não demonstra o instituto da desconsideração da pessoa jurídica, abrangendo não mais que pressupostos de responsabilidade tributária pessoal e direta por expressa disposição legal.
Registra-se que alguns autores, bem como jurisprudência, afirmam ser possível aplicar aos casos de responsabilidade tributária a teoria da desconsideração da personalidade jurídica fundada no art. 50 do Código Civil. Sendo assim, para que houvesse uma responsabilização pessoa do sócio-gerente, por exemplo, deveria haver uma quebra da separação patrimonial do sócio e da pessoa jurídica e posterior invasão no patrimônio particular do sócio, desde que cumprissem os requisitos: confusão patrimonial ou desvio de finalidade.
Traçando-se um paralelo com a problemática desse artigo, indaga-se: E quando se tem a dissolução irregular da sociedade empresária, há fundamento legal que embase a aplicabilidade dessa teoria, quando da aplicação Súmula nº 435 do STJ? Existe fundamento para esse redirecionamento da execução fiscal ao sócio, atribuído pela Súmula?
Nas lições do doutrinador Leandro Paulsen,
A dissolução irregular tem sido considerada como causa para o redirecionamento porque se presume, em tal caso, a confusão de patrimônios, com locupletamento dos sócios. Não seria o caso, contudo, de invocação do art. 135, III, do CTN, porquanto o crédito tributário não decorre da dissolução irregular. Mais pertinente é o art. 50 do Código Civil de 2002: ‘Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica’. (PAULSEN, Leandro, 2007, p.60)
Em outras palavras, o mencionado autor vislumbra a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, nos moldes do art. 50 do CC/02, isto é, existe, para ele, a possibilidade de haver a dissolução irregular da pessoa jurídica e, havendo a confusão patrimonial ou o desvio de finalidade, os administradores ou sócios da sociedade empresária poderão ser responsabilizados pessoalmente.
Em contraposição, Renato Becho afirma que a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica não se coaduna com a legislação tributária, uma vez que há uma ferramenta mais forte no CTN, que é o lançamento tributário ou sua revisão, baseada no art. 149, inc. VII, do mesmo código. Esse entendimento já foi seguido pela jurisprudência em alguns julgados, conforme se segue:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE.
PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS.
- A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída.
-A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular. - Recurso a que se nega provimento. [3](grifo meu)
Renato Becho garante que na ocasião de o Fisco configurar como o sujeito lesado, não há necessidade de socorrer-se no Judiciário, como dispõe o Código Civil, haja vista que, nesse caso, o representante do fisco facilmente desconsiderará a personalidade jurídica e fará a constituição do crédito tributário, sem se ater aos vícios do negócio jurídico (dolo, simulação ou fraude) (BECHO, 2014).
Com efeito, parte da doutrina manifesta-se adepta à aplicação do artigo 50 do Código Civil no campo do direito tributário, especialmente pela não existência de norma específica desse ramo do direito estipulando a maneira e os limites da aplicação da doutrina desconsideração da personalidade jurídica nas relações jurídicas tributárias.
Em verdade, a utilização do dispositivo legal ora mencionado propiciaria maior segurança jurídica aos sujeitos passivos da obrigação tributária e à própria Administração Pública Tributária, uma vez que a desconsideração da personalidade não se realizaria conforme o simples arbítrio do administrador ou do juiz, mas sim fundamentada em critérios legais antecipadamente delimitados. Dessa maneira, estreitar-se-ia a eventualidade de contestação do procedimento utilizado para a aplicação do instituto, conferindo-se maior celeridade e eficácia à satisfação do crédito tributário.
Acredita-se que, após elucidação feita nesse artigo, não seja possível fundamentar a hipótese de dissolução irregular na legislação tributária, notadamente no art. 135 do CTN. A responsabilização dos sócios-administradores no caso de dissolução irregular da pessoa jurídica não encontra fundamento legal, uma vez que é decorrente de uma criação da Fazenda amparada pelo Poder Judiciário, contudo infringindo a escolha legislativa no momento da elaboração do Código Tributário Nacional.
Em verdade, o erro jurisprudencial não pode ser suportado por outros dispositivos que não se comprometem a estabelecer a responsabilidade tributária. Não fosse assim, outros dispositivos legais, que não o art. 135 do CTN, viriam ao amparo dos exequentes. Em outros termos, caracterizando a situação como desconsideração da personalidade jurídica, seria como se a discussão (cobrança de tributo) saísse da espera do direito tributário (e de sua lei de regência, o CTN), permitindo que os credores buscassem satisfazer seu crédito como se não tributário fosse, aplicando-se, por conseguinte, a legislação comercial ou civil. Nesse sentido,
De nossa parte, não conseguimos identificar que a dissolução irregular seja uma hipótese de desvio de finalidade. Ela se parece mais com o encerramento, ainda que irregular, da pessoa jurídica, que não cumpre mais com sua finalidade. Assim também não nos parece que o encerramento irregular (o simples “fechar as portas” do estabelecimento comercial) signifique confusão patrimonial. Esta nos parece evidente quando se comprova que o sócio administrador pagou débitos pessoais, com os meios financeiros da pessoa jurídica ou vice-versa. Em outras palavras, fechar as portas de uma empresa não nos parece o mesmo que confundir o patrimônio social com o particular do sócio. (BECHO, Renato, 2014, p. 123-124).
A dissolução irregular em si não encontra fundamento legal nem no art. 135 do CTN nem no art. 50 do Código Civil. O que se pode vislumbrar é a possibilidade de atos que deram a origem, de forma indireta, à dissolução irregular configurarem pressupostos de fatos de um ou do outro dispositivo – do CTN ou do CC/02.
Em outras palavras, se os diretores, gerentes ou administradores da pessoa jurídica praticaram atos com excesso de poderes ou infração à lei, contrato social ou estatuto e desses atos originaram créditos que não foram adimplidos, essas pessoas serão responsabilizadas pessoalmente, nos termos do art. 135 do CTN. Se dessa conduta gerou a dissolução irregular, as pessoas físicas não podem ser responsabilizadas por todo o tributo devido pela pessoa jurídica, mas sim, tão-somente por esses créditos que deram origem de forma ilícita.
O mesmo ocorre com o art. 50 do Código Civil. A dissolução irregular em si não pode ser considerada pressuposto para a aplicação do indigitado dispositivo. Caso sejam praticados atos, pelo sócio da pessoa jurídica, caracterizados pelo abuso de direito – confusão patrimonial ou desvio de finalidade – que indiretamente provocaram a dissolução irregular, em razão desses atos, poderá haver a desconsideração da personalidade jurídica, a fim de que levante o manto protetor que serviu de escudo para prática de fraudes em favor da pessoa física e contra os interesses da pessoa jurídica. Nesse caso, pode-se vislumbrar a possibilidade de aplicação do artigo 50 do Código Civil contra esses atos. Essa conclusão assemelha-se à posição defendida pelo doutrinador Leandro Paulsen.
O próprio CPC de 2015, a partir do art. 133, apresenta um capítulo autônomo que disciplina acerca da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, o que no Código de Processo Civil de 1973 não há correspondência. Sendo assim, haverá um procedimento a ser seguido, traçado pela legislação, de forma que garantirá o contraditório e a ampla defesa do sócio da pessoa jurídica, possibilitando uma decisão justa e mais distante de arbítrios dos juízes. Segundo o art. 133 do novo CPC:
O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
§ 1o O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.
§ 2o Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Como se observa, o incidente de desconsideração terá existência somente quando houver pedido da parte ou do Ministério Público, fato que retira a possibilidade de o juiz instaurar de ofício. Corroborando com esse raciocínio, o art. 135, do mesmo diploma, assegura que o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias, em respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa.
CONCLUSÃO
Diante de toda a exposição, pode-se concluir que a dissolução irregular em si não pode ser considerada o pressuposto de aplicação dos art. 135 do CTN nem do art. 50 do CC/02. A tentativa em aferir de que maneira os sócios agiram é de suma importância no que se refere à possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica para a consequente responsabilização desses sócios, na medida das suas ações ou omissões.
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[1] REsp. n. 787.457/PR. Disponível em: <https://www.stj.jus.br> Acesso em: 01 out. 2023.
[2] Resp 436.012/PR. Disponível em: <https://www.stj.jus.br> Acesso em: 01 out. 2023.
[3]Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n. 15166 BA 2002/0094265-7. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 05 out. 2023.
Graduação em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC - Bahia). Pós-Graduada em Direitos Difusos e Coletivos pelo Curso CEI, sob coordenação do professor Tiago Fensterseifer e do professor Júlio Carmago Azevedo. Assessora Técnico Jurídica do Ministério Público da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PIRES, Letícia Ribeiro. A desconsideração da personalidade jurídica se aplica aos casos de responsabilidade tributária? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 nov 2023, 04:41. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63692/a-desconsiderao-da-personalidade-jurdica-se-aplica-aos-casos-de-responsabilidade-tributria. Acesso em: 23 dez 2024.
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