Resumo: O presente artigo versa sobre o tema “dos benefícios da justiça restaurativa para aumentar a satisfatividade nas varas de família”, sob a ótica jurídica e científica, uma vez que os processos que tramitam nas Varas de Família possuem caráter sensível, assim o principal intuito é compreender os benefícios garantidos através da adoção de um sistema processual mais empático, como o benefício da justiça restaurativa. A grande problemática é que atualmente os processos não adotam soluções adequadas e satisfatórias para as famílias envolvidas judicialmente em confrontos. Assim, a fim de analisar o processo que levou a essa realidade brasileira, foram feitas pesquisas bibliográficas e documentais com o intuito de entender sobre a origem da justiça restaurativa, bem como sobre o funcionamento dos processos na seara da família e como seria a aplicação do referido benefício em tais varas. Ao término, observar-se-á que é imperiosa a adoção da justiça restaurativa nas Varas de Família, para que os processos entendam a necessidade de cada sujeito processual e se dirijam para uma solução menos onerosa do litígio.
Palavras-chave: Justiça restaurativa; Família; Satisfatividade processual; Direito de Família; Proteção;
A justiça restaurativa tem por objetivo a resolução de um conflito, mediado por uma autoridade, a qual leva os litigantes a, juntos, encontrarem uma solução para o problema em que estão envolvidos.
Eles devem assumir suas responsabilidades dentro do problema que vivenciam em comum, não para se sentirem culpados, mas sim para entenderem seu papel dentro do trauma, bem como unir-se em um círculo de diálogo para encontrarem uma forma de sentirem-se restituídas - e restauradas - por meio de um acordo no qual tenham influenciado.
O conceito teve início no Canadá e na Nova Zelândia, mas vem se expandindo para os demais países do mundo. No Brasil, ele ainda vem sendo difundido - mas já é plenamente autorizada por norma legal expressa.
O que falta atualmente é o conhecimento da população sobre esse instituto, bem como que sejam incentivados a participar do procedimento, que tem muitas vantagens em relação ao oneroso e longo processo judicial, em que a sentença pode não ser, ainda assim, suficiente para satisfazer plenamente as partes litigantes.
Os estudos apontam para o seu uso de maneira mais recorrente em sociedades afetadas por crimes, colocando infratores, vítimas e demais coletividade para conversarem, a fim de restaurar as relações humanas, e não apenas apontar um culpado. Assim, como o sistema judiciário, o penitenciário encontra-se abarrotado, podendo ser ineficaz em reeducar o apenado, e em fazer sentir-se justiçadas as vítimas e suas famílias.
O objetivo é que, por meio de pesquisa documental e revisão bibliográfica, possa-se identificar a possibilidade de aplicação da justiça restaurativa na seara familiar, como forma de atrair mais satisfatividade aos litigantes.
Frisa-se que as relações familiares são sensíveis e devem ser conservadas ao máximo, independentemente dos dissídios judiciais, permitindo o bom relacionamento entre os envolvidos e a criação harmoniosa de crianças envolvidas, que podem estar presentes em vários tipos processuais, como divórcios, arbitramento ou exoneração de pensão alimentícia, investigação de paternidade e outros.
Os objetivos específicos são entender a justiça restaurativa, seu conceito e princípios, o funcionamento das Varas de Família, bem como a importância da entidade familiar, e, por fim, encontrar a possibilidade ou impossibilidade de que a justiça restaurativa seja utilizada como meio para o alcance de satisfação verdadeira pelos litigantes.
2.1 - O que é a justiça restaurativa?
A princípio, há questionamentos se a tradução correta do inglês, “restorative justice”, seria realmente “justiça restaurativa”, ou se seria melhor “justiça restauradora”. Na prática, essas e outras traduções similares são igualmente utilizadas como sinônimos para um mesmo todo (PINTO, 2011).
No Brasil, há conceituação legal do que é a justiça restaurativa, conforme o art. 1º, caput, da Resolução nº. 225 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 31 de maio de 2016:
Art. 1º. A Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, [...] (BRASIL, 2016)
A intenção é utilizar-se de um processo organizado em fases, baseado em diálogo, a fim de resolver problemas que haja entre as partes litigantes, os quais tenham levado a existência do processo judicial.
O procedimento todo se baseia na entrada de consenso entre as partes afetadas pela situação de crise, colocando-os como sujeitos centrais na construção da solução que restaurará os traumas e perdas causados. Conforme Renato Sócrates:
Tais procedimentos propiciam às partes a apropriação do conflito que originalmente lhes pertence, legitimando-os a construir um acordo e um plano restaurativo, alcançando o resultado restaurativo, ou seja, um acordo objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e se lograr a reintegração social da vítima e do infrator (PINTO, 2011, p. 16)
Tudo se baseia em um processo que deve ser realizado voluntariamente pelas partes, ocorrendo de maneira relativamente informal (afinal, continuará vinculado ao judiciário), servindo-se de um facilitador, cuja função é servir de meio para a condução de uma conversa saudável entre as partes. Assim, realizam-se reuniões coletivas, em que se permite e estimula a participação das pessoas envolvidas direta e indiretamente no problema, sejam elas os próprios litigantes ou pessoas que os rodeiam e se sentem, de alguma forma, afetados e/ou prejudicados pelo que quer que tenha acontecido.
Assim, é inquestionavelmente necessário que os participantes tenham disponibilidade psíquica e emocional para participar do procedimento, afinal, esse método de resolução de conflitos não pode ser corretamente aplicado de modo forçoso. O que se está buscando é estabelecer:
[...] um diálogo claro sobre o trauma dos envolvidos, permitindo-lhes protagonizarem a solução da desordem, sensação muitas vezes não vivenciada na sentença do juiz, que se detém a resolver o problema judicial, ou seja, uma resolução formal, não necessariamente palpável e concreta quanto às relações humanas envolvidas. (AZEVEDO, 2023, p. 2145)
Isso tudo por que, mais detalhadamente,
[...], não raro, é a sentença não encerrar o problema social, mas, apenas, o judicial, deixando as partes inseguras com o Estado, já que esse não parece confiável. Outrossim, o perder x ganhar do processo pode provocar novas desavenças e a impressão de injustiça após esperar solução por anos. [...]. Por isso, criou-se a opção de desjudicializar, um sistema multiportas que possibilita encontrar o modo adequado de resolver o litígio, ouvindo os envolvidos que, por meio do diálogo, decidirão a solução, empoderando-lhes para protagonizarem a sentença, e, intrinsecamente, agilizarem o fim da lide (AZEVEDO, 2021, p. 2037)
Para que o procedimento realmente funcione, tornando concreta a pretensão estabelecida pelo conceito da justiça restaurativa, é necessário
[...] a identificar as necessidades e obrigações oriundas dessa violação e do trauma causado e que deve ser restaurado, oportunizar e encorajar as pessoas envolvidas a dialogarem e a chegarem a um acordo, como sujeitos centrais do processo, sendo ela, a Justiça, avaliada segundo sua capacidade de fazer com que as responsabilidades [...] sejam assumidas, as necessidades oriundas da ofensa sejam satisfatoriamente atendidas e a cura, ou seja, um resultado individual e socialmente terapêutico seja alcançado.
A ideia, então, é voltar-se para o futuro e para restauração dos relacionamentos, ao invés de simplesmente concentrar-se no passado e na culpa. (PINTO, 2011, p. 17)
Dessa maneira, o objetivo final é a obtenção de um resultado restaurativo, ou seja, basicamente, um acordo construído no processo restaurador, em que se encontram reunidas as respostas e programas que as partes criaram nas reuniões para os fins de reparação do trauma que vivenciaram, a de atender as necessidades tanto individuais quanto coletivas dos envolvidos, responsabilizando-se os litigantes pela sua participação no conflito e, por fim, permitir a sua reintegração e que voltem a convivência comum.
2.2 - Dos princípios norteadores
Conforme estabelece a Resolução nº. 225 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 31 de maio de 2016, em seu art. 2º:
Art. 2º. São princípios que orientam a Justiça Restaurativa: a corresponsabilidade, a reparação dos danos, o atendimento às necessidades de todos os envolvidos, a informalidade, a voluntariedade, a imparcialidade, a participação, o empoderamento, a consensualidade, a confidencialidade, a celeridade e a urbanidade (BRASIL, 2016)
Destrinchando-se o ali contido, cumpre-se estabelecer algumas explicações.
O princípio da corresponsabilidade pode ser definido como, conforme o DICIO - Dicionário Online de Português (online), a “responsabilidade compartilhada, qualidade da pessoa que é responsável em conjunto com outra ou com outras pessoas, geralmente sendo ambas autoras de uma ação e respondendo conjuntamente por seus atos” e também como “qualidade do que é responsável juntamente com outro”.
Não obstante estarem todos os conceitos correlativamente interligados, o princípio da reparação dos danos e o princípio do atendimento às necessidades de todos os envolvidos merecem especial atenção, pois ambos se referem ao resultado restaurador a ser alcançado pelas partes.
Quanto ao princípio da informalidade, se refere ao procedimento poder ser ajustado às necessidades das pessoas envolvidas, apesar de divido em várias fases. Nesse mesmo diapasão, mostra-se ligado à possibilidade e estímulo da oralidade entre as partes, as quais são colocadas como iguais. Um subprincípio da informalidade é o da adaptabilidade, que objetiva que as partes
[...] se utilizem de um meio mais tranquilo para se resolver um conflito, sem ser necessário se utilizar da tensão de um processo no judiciário, pois muitas das vezes a formalidade do judiciário inibe as parte e causa um certo pânico e medo, contribuindo para que os envolvidos não participem de uma forma efetiva no processo (MIRANDA NETO, 2019, p. 24)
Além disso, encontram-se o princípio da informalidade conexo com o princípio da celeridade, em atendimento às necessidades constitucionais e dos litigantes. Por este princípio, busca-se dar andamento mais rápido aos processos, solucionando-os tão logo quanto possível, enxugando-se as mais diversas formalidades que existem na justiça comum.
Quanto ao princípio da voluntariedade,
[...] é válido em todo o curso do processo, não importando se o mesmo está em seu início, meio ou fim. O sistema restaurativo deve respeitar a voluntariedade das partes em todos os momentos do processo, ou seja, os participantes participam do devido processo legal se assim quiserem. (MIRANDA NETO, 2019, p. 22)
Dessa maneira, as partes podem, a todo tempo, desistir das reuniões restauradoras, já que o diálogo não deve ser forçado, bem como tem a possibilidade de renunciar o acordo caso se sintam prejudicados de alguma forma. O princípio da participação está amplamente relacionado com o anterior, pois a presença da parte deve ser incentivada e não obrigatória.
O princípio da imparcialidade afeta, em suma, a autoridade que está conduzindo o círculo de conversa, mais conhecido como facilitador, que deve agir em prol de todos, tentando alcançar uma solução que não prejudique a nenhum dos sujeitos que estejam participando do procedimento.
O princípio do empoderamento existe, pois, as partes tornam-se protagonistas na construção da solução de seu problema.
A consensualidade se refere às partes darem sua permissão para os assuntos tratados, bem como desejarem a tentativa de restauração, afinal, “sem um consenso não existe acordo e sem acordo não existe solução de problema” (MIRANDA NETO, 2019. p. 23). O princípio da confidencialidade é uma forma de dar segurança aos participantes, vez que concede a estas transparência e confiança, bem como a garantia de que nada que ali ocorrer poderá ser utilizado como prova processual, sentindo-se, assim, protegidos para falar o que pensam e estabelecer acordos para solucionar os problemas.
O princípio da urbanidade, por fim, tem ligação com o tratamento cordial e respeitoso entre as partes, que devem conversar em um ambiente tranquilo e harmônico, independentemente do trauma que tenham se causado mutuamente. Isto pois, se querem resolver os problemas, precisam ser capazes de pensar em conjunto.
3 - DA SEARA DA FAMÍLIA E DOS LITÍGIOS
3.1 - Da Constituição Federal e a proteção a entidade familiar
A família brasileira é marcada por um início com fortes interferências do sistema patriarcal, de forma que a mulher era vista como propriedade e pessoa responsável pelos afazeres domésticos e criação dos filhos, enquanto o homem era o chefe do lar e responsável por trazer o sustento da entidade familiar, assim pode-se dizer que “o patriarcado e uma ética da honra masculina foi tecido nas civilizações por todo o planeta, e na história da formação da sociedade brasileira, especialmente no período da colonização do Brasil, não foi diferente” (JÚNIOR, 2022, p. 19).
Ocorre que com a evolução do ser humano, bem como o acontecimento de movimentos, como o movimento feminista, o lugar da mulher na sociedade foi alterado e, com isso, a família contemporânea passou a apresentar diferentes características, haja vista que para formação familiar antes só se permitia a presença de laços, agora passou a permitir a formação de famílias a partir de vínculos afetivos, conforme pode-se ver:
Noutro giro, em face a evolução humana, a família contemporânea possui como principal característica a diversidade, baseada, principalmente, no afeto e na convivência dos seus indivíduos. Assim, abrangendo a possibilidade da filiação não ser apenas aquela que deriva dos laços consanguíneos, mas também a relação de amor e identificação, como é o caso da filiação socioafetiva. (JÚNIOR, 2022, p.21)
Ante as transformações no entendimento de entidade familiar, o Direito não poderia se manter inerte e deixar de regulamentar as novas relações familiares, motivo pelo qual, através de seu art. 226 da Constituição Federal de 1988, passou a assegurar que “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (BRASIL, 1988).
Por trazer o termo família, sem conceituar, atribui-se para tal o conceito amplo, haja vista que na contemporaneidade não existe uma única forma de família, assim, todas se tornam amparadas pelo dispositivo constitucional. Ademais, o estado prevê que a liberdade do cidadão tenha seu próprio planejamento familiar, não sendo cabível que o Estado conduza qual o modelo familiar é apropriado ou não, sobre isso:
(...) a família é traduzida como uma comunidade de afeto, usando a locução da psicanálise, lócus do desenvolvimento e amparo da pessoa; é uma instituição a serviço da formação e bem-estar da pessoa e não o contrário. O direito de personalidade à autodeterminação ético-existencial do sujeito também não pode ceder a um modelo único de estrutura familiar, haja vista que é permitido ao cidadão o seu próprio planejamento familiar. Não cabe ao Estado dirigir a conduta do cidadão para este ou aquele modelo familiar, pois esta decisão envolve aspectos de sua autonomia ético-existencial. (...) o direito geral de personalidade não permite infl uência do Estado na vida afetiva do indivíduo, tampouco na sua opção sexual, devendo ser-lhe assegurado o direito de constituir família com pessoa do mesmo ou do sexo oposto; a procriação natural ou assistida; o direito à adoção, ou mesmo o direito de não ter flhos, etc. (MENEZES, 2008, p. 120-124)
Neste sentido, quando analisada a Constituição Federal de 1988, nota-se que o art. 1º traz o princípio da dignidade da pessoa humana, assim, atrelado a ele, o referido dispositivo legal deixou de se basear nos fundamentos religiosos e passou a amparar os interesses da pessoa humana em si, salvaguardando o direito de desenvolvimento da personalidade, logo, garantindo-lhe a livre escolha de formação familiar. Menezes sabiamente disserta:
O epicentro da Constituição de 1988 é a dignidade da pessoa humana, substrato essencial dos direitos fundamentais. Desta forma, a pessoa ganha notável destaque na atuação do Estado e na conformação das instituições, em geral. A família, instituição secular de forte matiz religiosa, assume feição laica e função instrumental em face do desenvolvimento da pessoa. Deixa de ter um fim em si mesmo, para se conformar como instituição de apoio e amparo à pessoa de seus membros, garantindo-lhe o livre desenvolvimento da personalidade.(MENEZES, 2008, p. 1228)
Isto posto, quando se falar em proteção constitucional da família, deve-se levar em consideração que a Constituição vigente busca proteger a família como um todo, não determinando um tipo ideal, mas considerando como família aquelas decorrentes de vínculos sanguíneos e/ou afetivos, para que o máximo de entidades familiares possam estar incluídas na proteção assegurada através do art. 226 da Constituição Federal.
3.2 - Da onerosidade às relações humanas em decorrência das soluções judiciais dos processos de família
Como supramencionado, os processos em que a família é objeto de litígio são carregados de teor sensível e emocional, ocasionando, durante todo seu deslinde, um abalo na estrutura familiar que já não se encontrava estável.
Os processos legais relacionados a questões familiares, normalmente, são complexos e envolvem considerável investimento de tempo, dinheiro, bem como de capacidade emocional. Estes processos podem se desenrolar por meses, às vezes anos, criando tensão e conflito que vão além das partes diretamente envolvidas, e afetam significativamente outros membros da entidade familiar.
Infelizmente, os processos de família, muitas vezes, deixam de ser sobre a discussão da lide e passam a ser uma disputa de egos e sentimentos entre as partes, o que ocorre com frequência em processos de guarda, oportunidade em que os filhos passam a ser pensados como objeto.
As implicações emocionais dos processos de família são desafiadoras. O estresse, a ansiedade e a hostilidade associados à litigação podem deixar cicatrizes emocionais profundas em todas as partes envolvidas, resultando em relações familiares enfraquecidas e diversas vezes irreparáveis.
Ademais, salienta-se que a onerosidade financeira, incluído os custos legais, despesas judiciais e a possível diminuição da capacidade de ganho durante os processos, agrava ainda mais o fardo das disputas familiares.
Segundo Mauro Cappelletti é possível verificar que o acesso à justiça tem duas vertentes básicas, sendo que a primeira busca garantir o direito de recorrer ao poder Judiciário para a solução de conflitos, enquanto a segunda traz a necessidade do litígio apresentado ser solucionado de forma efetiva, neste sentido, “vê-se que o princípio do acesso à justiça determina, não somente, o quantitativo de indivíduos socorridos pela jurisdição, mas se relaciona, também, com a qualidade, tempestividade e efetividade da jurisdição prestada” (BORGES, 2020, p. 96134).
Assim, é nítido que mesmo garantindo o acesso das partes às vias judiciais, ainda há muito o que se fazer em relação à satisfação da lide processual.
O abalo familiar é tão grande que muitas vezes os pais ou mães preferem se afastar dos filhos, no afã de evitar eventual contato com o outro genitor, prejudicando cada vez mais a estrutura familiar e demonstrando a necessidade do benefício da justiça restaurativa.
4 - DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NAS VARAS DE FAMÍLIA
4.1 - Da regulamentação legislativa
De pronto, cumpre destacar que não existem, atualmente, normas específicas que definam o uso da justiça restaurativa nas Varas de Família.
No entanto, a atual Constituição Federal brasileira (CF), datada de 1988, prevê em seu art. 4º que faz parte dos princípios de nossa existência como república:
Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
[...]
II - prevalência dos direitos humanos;
[...]
VI - defesa da paz;
VII - solução pacífica dos conflitos; (BRASIL, 1988)
No mais, em complemento, os métodos de solução alternativa de conflitos são amplamente incentivados pelo Código de Processo Civil (CPC), como, por exemplo, pode-se ler no seu art. 3º, §3º:
Art. 3º. Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.
[...]
§ 3º. A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial. (BRASIL, 2015)
Isso encontra-se reforçado pelo art. 139, V, do mesmo dispositivo legal, sendo que a justiça restaurativa é uma das práticas nesse sentido, não havendo, portanto, dúvidas da possibilidade de que seja aplicada à seara familiar, in verbis:
Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:
[...]
V - promover, a qualquer tempo, a autocomposição, preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais; (BRASIL, 2015)
Especificamente nas Varas de Família, o CPC prevê que, conforme o seu art. 694:
Art. 694. Nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para a solução consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxílio de profissionais de outras áreas de conhecimento para a mediação e conciliação.
Parágrafo único. A requerimento das partes, o juiz pode determinar a suspensão do processo enquanto os litigantes se submetem a mediação extrajudicial ou a atendimento multidisciplinar. (BRASIL, 2015)
Além disso, a supramencionada Resolução nº. 225 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 31 de maio de 2016, é inteiramente dedicada a dispor sobre a política nacional da Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário, bem como algumas outras providências.
O art. 1º da referida resolução, em seus incisos, estrutura a forma como o procedimento deve se dar, notoriamente:
I – é necessária a participação do ofensor, e, quando houver, da vítima, bem como, das suas famílias e dos demais envolvidos no fato danoso, com a presença dos representantes da comunidade direta ou indiretamente atingida pelo fato e de um ou mais facilitadores restaurativos;
II – as práticas restaurativas serão coordenadas por facilitadores restaurativos capacitados em técnicas autocompositivas e consensuais de solução de conflitos próprias da Justiça Restaurativa, podendo ser servidor do tribunal, agente público, voluntário ou indicado por entidades parceiras;
III – as práticas restaurativas terão como foco a satisfação das necessidades de todos os envolvidos, a responsabilização ativa daqueles que contribuíram direta ou indiretamente para a ocorrência do fato danoso e o empoderamento da comunidade, destacando a necessidade da reparação do dano e da recomposição do tecido social rompido pelo conflito e as suas implicações para o futuro.
Como é legível e já foi mencionado, a prática hoje se encontra mais voltada à seara criminal, por isso a menção frequente de haver “agressores” e “vítimas” envolvidos nos conflitos que buscam reparação. Ainda assim, como não há proibição legal, não há expresso problema em estender o conceito para outras áreas - mas o ideal seria a criação de normas voltadas às especificidades que os processos de cada um podem encontrar pelo caminho.
Contudo ao exposto, Rodston R. M. de Carvalho (2022) destaca que:
Apesar de a Justiça restaurativa estar em funcionamento há cerca de 15 anos no Brasil, suas práticas nas lides processuais ainda são muito discretas, tendo uma enorme necessidade de ser expandida, conhecida e divulgada sempre que possível. É preciso que a sociedade tenha um conhecimento mais amplo e aprofundado sobre o assunto. Ela está intimamente ligada à cultura da paz, [...]. (CARVALHO, 2022, p. 174)
Sendo assim, é relevante refletir se a prioridade agora seriam as iniciativas legislativas ou a divulgação e o incentivo à prática da justiça restaurativa, afinal, a regras existentes podem se estender às áreas do direito, mas sem que as pessoas sejam incentivadas a realizar tal, não há como essa ser uma solução eficiente, por mais desejosa e benéfica que seja.
4.2 - Da aplicabilidade para maior satisfatividade na seara familiar
Como foi possível verificar ao longo do aqui exposto, fica claro que a justiça restaurativa faz parte de uma cultura de paz que merece atenção, que deveria ser mais difundida por entre a sociedade.
Assim, logo de início, deve-se esclarecer que:
[...] as relações familiares são extremamente favoráveis à aplicação da justiça restaurativa, pois, existe a oportunidade de reconstruir vínculos afetivos que foram desgastados pelos mais diversos motivos, sendo um terreno muito delicado, se faz necessária a real reconciliação das partes com técnicas específicas desse novo sistema que ainda não foi amplamente difundido por todos os Tribunais de justiça, e principalmente, nas comarcas do interior. Se apresentando assim, como uma proposta mais preocupada com o indivíduo em si, o ser humano, que sente e sofre todos os desgastes de um processo. (CARVALHO, 2022, p. 173-174)
Como já dito também, as relações de família são complexas. As estruturas familiares são diversas, mas os problemas são muito pessoais. Todo conflito de família é muito oneroso a todos, sejam ex-casais ou não, com filhos ou não. Carregar todo esse ódio mostra-se ruim e perigoso, seja para a psique dos envolvidos, seja para a criação dos filhos ou pelo risco de incorrer na vontade de se vingar. Essa é a ideia que traz Rodston (2022) em seu estudo:
O direito de família alcança situações que envolvem esses aspectos familiares como o casamento, separação, divórcio, guarda de filhos, adoção e pensão alimentícia que trata ainda do reconhecimento da união estável, testamento, partilha de bens, inventários, entre outros.
Diante dessas inúmeras questões familiares apresentadas se faz necessário equilibrar os ânimos e ter racionalidade para lidar com questões tão sensíveis, haja vista, a carga emocional que eventuais lides de direito de família possuem levando em consideração também sua complexidade, necessitando serem tratadas com muita polidez. (CARVALHO, 2022, p. 175)
Até porque “não raro, é a sentença não encerrar o problema social, mas, apenas, o judicial, deixando as partes inseguras com o Estado, já que esse não parece confiável” (AZEVEDO, 2021, p. 2037) uma vez que sentenciado o processo, os litigantes ainda assim não encontram a paz, tranquilidade e satisfação que imaginaram ao ingressar com o litígio. Além disso, “o perder x ganhar do processo pode provocar novas desavenças e a impressão de injustiça após esperar solução por anos” (AZEVEDO, 2021, p. 2037), trazendo ainda mais revolta para relacionamentos interpessoais que já se encontravam em linhas tênues.
Sendo assim, desde o princípio, a justiça restaurativa não é só uma boa ideia, é de fato necessária, já que, aqui, são relações humanas muito íntimas que restam abaladas pela existência de dissídios.
As sentenças judiciais são dotadas de caráter objetivo, e os processos têm visão limitada sobre os acontecimentos que os geram: esses procedimentos decisórios são portadores de um olhar direto sobre o conflito, que se baseia no que a lei culpa ou deixa de culpar, restrito as provas processuais, afastando qualquer discricionariedade e, portanto, infelizmente, ignorando os sentimentos dos envolvidos.
E veja bem, isso não está errado: a decisão do juiz deve ser imparcial, tomando em conta aquilo que realmente viu nos autos e sendo baseada nos ditames legais, a fim de evitar injustiças. Isso não quer dizer, no entanto, que as pessoas não se sentirão desassistidas ou injustiçadas, vez que, por se tratar de questões muito emocionais e psicológicas, os litigantes esperam “encontrar mais” no “fim do arco-íris”.
É exatamente nesse espaço que a justiça restaurativa se encaixa e pode ser mais satisfatória que uma decisão final de um juiz: tudo se baseia no que as partes estão sentindo, e em como se sentem. Conforme vem se demonstrando ao longo deste estudo, cumpre ressaltar que no “contexto dos conflitos de família, haveria a necessidade de ambas as partes exporem suas mágoas e ressentimentos, para que se possa chegar a um denominador comum, em que as partes envolvidas compreendam o ponto de vista do outro” (CARVALHO, 2022, p. 184).
Dessa maneira, juntos, em um círculo de conversa aberta e saudável, em ambiente harmonioso e mediado por um facilitador, os litigantes devem assumir suas responsabilidades e expor seu traumas, apontando maneiras de se sentirem melhor com tudo o que ocorreu, coisas a fazer, desculpas a prestar, a fim de finalmente encontrarem a paz que tanto queriam, construindo por si só a justiça (utilizando-se de seu próprio senso de justiça) para constituírem um acordo que acalenta ao seus ânimos interiores, sentindo-se, no fim de todo esse processo, verdadeiramente atendidos e satisfeitos com o resultado obtido. Sendo assim, a “justiça nesse contexto busca não a uniformidade de decisões, mas a necessária provisão de apoio e oportunidades para todos dentro desse processo” (CARVALHO, 2022, p. 179).
Em perspectivas ainda mais felizes, a relação que um dia existiu poderá ser restaurada, para que os ex-litigantes vivam em paz um com outro, de maneira que o acordo seja uma resolução não tão somente para o processo, mas também para a vida, que é o que realmente importa.
O direito deve ser pensado para muito além de pontos finais judiciais: o que acontece no mundo real é determinante para o futuro da sociedade, e não deve ser mais ignorado. É hora de parar de implantar barreiras que predam as pessoas à justiça tradicional, e possibilitar o acesso aos métodos alternativos de solução de conflito, que se mostram mais efetivos e saudáveis.
A justiça restaurativa nem sempre será possível, pois depende do atendimento de todos os princípios norteadores, mas sempre que houver a possibilidade, deveria ser aplicada, por ser mais satisfatória e menos onerosa aos envolvidos.
A justiça restaurativa é uma abordagem inovadora que possui interesse na resolução de conflitos de forma mais empática possível, principalmente nas Varas de Família, em que os processos envolvem menores, incapazes, além de vínculos familiares, que merecem um tratamento cuidadoso, por conta de seu caráter sensível e emocional.
Através deste estudo, podemos destacar diversos benefícios da justiça restaurativa que contribuem significativamente para o aumento da satisfação de todas as partes envolvidas.
Em primeiro lugar, a justiça restaurativa enfatiza a comunicação aberta e o diálogo, dando oportunidade para que a parte expresse de forma inequívoca suas necessidades, preocupações e expectativas. Frisa-se que tal atitude auxilia não somente na compreensão do caso, mas também a promover a empatia e a construção de relacionamentos mais saudáveis entre os envolvidos. A abordagem restaurativa também promove a responsabilização, incentivando as partes a assumirem a responsabilidade por suas ações, e consequentemente acordos mais duradouros e cumpridos de forma satisfatória.
Além disso, a justiça restaurativa é uma alternativa eficaz ao modo tradicional de resolução do litígio, o que pode resultar em economia de tempo e de recursos, além de reduzir o estresse e a hostilidade associados a processos legais contenciosos. A capacidade de as partes participarem ativamente na resolução de seus próprios conflitos, com o auxílio de mediadores qualificados, traz mais humanidade ao processo e garante soluções adaptadas às peculiaridades da situação familiar objeto de litígio.
Por fim, a justiça restaurativa demonstrou ser eficaz na preservação de relacionamentos familiares, promovendo a cooperação e a reconciliação quando possível, mesmo em situações de conflito intenso. Isso não apenas beneficia as partes envolvidas, mas também pode ter um impacto positivo nas crianças e em outros membros da família, reduzindo o trauma e a tensão emocional.
Ante o exposto, este artigo científico demonstrou que a justiça restaurativa oferece inúmeros benefícios para aumentar a satisfação nas Varas de Família, quando instiga a comunicação, a responsabilização, a eficiência e a preservação de relacionamentos, pois apresenta uma abordagem valiosa e positiva para a resolução de conflitos familiares, motivo pelo qual é interessante a integração e a expansão dessa prática no sistema de justiça, para que cada vez mais o ambiente jurisdicional adote condutas mais empáticas, colaborativas e satisfatórias em relação a todas as partes envolvidas.
AZEVEDO, Karinny Leal. A justiça restaurativa para reparar os danos causados às relações humanas: caminho para uma sociedade pacífica. Universidade Paranaense (UNIPAR): Anais completos do VII Congresso Internacional de Ciência, Tecnologia e Inovação e XXII Encontro Anual de Iniciação Científica, 2023, p. 2145. ISSN 2525-5967. Disponível em: https://sisweb02.unipar.br/eventos/anais/index5632.php?codevento=5632. Acesso em: 02 out 2023.
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Graduado em Direito pela Universidade Federal da Grande Dourados. Pós graduado em Direito Administrativo pela Faculdade Campos Elíseos. Defensor Público do Estado do Paraná .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, Matheus Paulo de. Apontamentos sobre a possibilidade de utilização da justiça restaurativa nas varas de família Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 nov 2023, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63743/apontamentos-sobre-a-possibilidade-de-utilizao-da-justia-restaurativa-nas-varas-de-famlia. Acesso em: 23 dez 2024.
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