RESUMO: O presente artigo tem por objetivo principal realizar uma análise da jurisprudência recente dos Tribunais Superiores acerca do Sistema Único de Saúde (SUS) enquanto instrumento concretizador do direito à saúde, assim entendido como direito fundamental social de segunda dimensão. Apresenta como problema o grande número de demandas envolvendo a assistência à saúde em tramitação no Poder Judiciário brasileiro e a inexistência de segurança jurídica acerca da temática no âmbito dos Tribunais Superiores. Constata-se que a ausência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial, bem como que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal têm relativizado tal premissa em situações específicas quando constatada a mora da agência reguladora. É estudado, também, o dissenso entre os referidos Tribunais acerca da competência jurisdicional para processar e julgar as ações que têm como pedido o fornecimento de medicamento registrado na Anvisa, mas não incorporado ao SUS, matéria afetada para julgamento pela Suprema Corte, sob o Tema n.º 1.234 da Repercussão Geral. O método de abordagem deste artigo baseia-se em pesquisa bibliográfica e utiliza o método dedutivo.
Palavras-chave: Direito à saúde; Sistema Único de Saúde (SUS); Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa); Medicamentos experimentais; Jurisprudência; Superior Tribunal de Justiça; Supremo Tribunal Federal; Competência. Tema n.º 1.234 da Repercussão Geral.
O presente estudo realiza uma abordagem do papel do Sistema Único de Saúde (SUS) na concretização, do direito à saúde, e a importância da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no processo de registro dos medicamentos no território nacional.
Nesta senda, nota-se que apesar de a ausência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) impedir, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal possuem diversos julgados flexibilizando tal preceito em algumas hipóteses quando constatada a mora da agência reguladora.
O presente artigo busca demonstrar que a existência de grande dissenso jurisprudencial e a necessidade de pacificação da matéria a fim de conferir segurança jurídica tanto para os profissionais de saúde e gestores públicos, quanto para a população que depende do Sistemas Único de Saúde (SUS).
A metodologia utilizada no trabalho baseia-se em pesquisa bibliográfica, tendo em vista que se utiliza da legislação brasileira, de artigos de recursos informativos, dissertações, revistas, utilizando o método dedutivo.
1.CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS) E DA AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA)
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB), em seu art. 196, dispõe que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
A fim de dar concretude ao direito social acima mencionado, a Carta Magna prevê em seu art. 198 que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; e III - participação da comunidade.
De acordo com Souza[1] (2016, p. 37-38), as disposições constitucionais acerca do direito à saúde “são fruto do movimento sanitário, que teve como marco a VIII (Conferência Nacional da Saúde (CNS)”, sendo certo que tais artigos preveem “a obrigação do Estado em prover o acesso às ações e serviços de saúde, como o sistema deve ser organizado, as diretrizes, a participação complementar da rede privada e algumas das atribuições do sistema único de saúde. [...] é a partir dessa Carta Magna que a saúde passa a ser includente, ou seja, universal e igualitária. Sendo mais clara: aqui nasce o SUS”.
O Sistema Único de Saúde (SUS) abrange desde o simples atendimento para avaliação da pressão arterial, por meio da Atenção Primária, até o transplante de órgãos, garantindo acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país. Com a sua criação, o SUS consagrou a chamada atenção integral à saúde, desde a gestação e por toda a vida, com foco na saúde com qualidade de vida, visando a prevenção e a promoção da saúde.
A esse respeito, precisos os esclarecimentos de Souza[2] (2016, p. 40):
[...] 1. Atenção Primária: equivale, após a Portaria 2.488/11, à atenção básica. Nesse nível, as ações e serviços de saúde são executadas pelas Equipes de Saúde da Família (ESF), Equipes de Agentes comunitários de saúde {EACS), Núcleos de Apoio à Saúde da Família {NASF), dentre outros espaços da rede que estão mais próximos da comunidade e, por esse motivo, deve existir vínculo e corresponsabilidade.
2. Atenção Secundária: nesse nível, as ações são executadas pelas especialidades ou clínicas de especialistas. Observe que, quanto maior a complexidade, mais afastados da comunidade os profissionais estão.
3. Atenção Terciária: nível onde as ações são executadas nos hospitais de grande porte e hospitais universitários.
A gestão das ações e dos serviços de saúde deve ser solidária e participativa entre os três entes da Federação: a União, os Estados e os municípios. A rede que compõe o SUS é ampla e abrange tanto ações quanto os serviços de saúde. Engloba a atenção primária, média e alta complexidades, os serviços urgência e emergência, a atenção hospitalar, as ações e serviços das vigilâncias epidemiológica, sanitária e ambiental e assistência farmacêutica[3].
O Sistema Único de Saúde (SUS) foi disciplinado e regulamentado pela Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990. De acordo com Souza[4] (2016, p. 57), “[...] essa lei aborda as condições para promover, proteger e recuperar a saúde, além da organização e o funcionamento dos serviços também relacionados à saúde. Por meio desta lei, as ações de saúde passaram a ser regulamentadas em todo território nacional. [...] A descentralização político-administrativa é reforçada na forma da municipalização dos serviços e das ações de saúde, com redistribuição de atribuições e recursos em direção aos municípios - Descentralização com ênfase na municipalização”.
Ocorre que, passados mais de três décadas desde a sua criação, o sistema apresenta diversas mazelas, o que resulta em desafios hercúleos tanto para os profissionais de saúde e gestores públicos, quanto para a população que dele depende.
Nesse contexto, verifica-se que com o fortalecimento de instituições como o Ministério Público e a Defensoria Pública, bem como com a ampliação do acesso à informação, os cidadãos têm recorrido cada vez mais ao Poder Judiciário na tentativa de ter assegurado seu direito à saúde.
Ciente disso, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução n.º 31 de 2010, com o objetivo de orientar os tribunais na solução de lides que envolvam a o direito à saúde. Na oportunidade, assim elencou as razões que tornaram conveniente e oportuna a elaboração do referido ato:
CONSIDERANDO o grande número de demandas envolvendo a assistência à saúde em tramitação no Poder Judiciário brasileiro e o representativo dispêndio de recursos públicos decorrente desses processos judiciais;
CONSIDERANDO a relevância dessa matéria para a garantia de uma vida digna à população brasileira;
CONSIDERANDO que ficou constatada na Audiência Pública nº 4, realizada pelo Supremo Tribunal Federal para discutir as questões relativas às demandas judiciais que objetivam o fornecimento de prestações de saúde, a carência de informações clínicas prestadas aos magistrados a respeito dos problemas de saúde enfrentados pelos autores dessas demandas;
CONSIDERANDO que os medicamentos e tratamentos utilizados no Brasil dependem de prévia aprovação pela ANVISA, na forma do art. 12 da Lei 6.360/76 c/c a Lei 9.782/99, as quais objetivam garantir a saúde dos usuários contra práticas com resultados ainda não comprovados ou mesmo contra aquelas que possam ser prejudiciais aos pacientes;
CONSIDERANDO as reiteradas reivindicações dos gestores para que sejam ouvidos antes da concessão de provimentos judiciais de urgência e a necessidade de prestigiar sua capacidade gerencial, as políticas públicas existentes e a organização do sistema público de saúde;
CONSIDERANDO a menção, realizada na audiência pública nº 04, à prática de alguns laboratórios no sentido de não assistir os pacientes envolvidos em pesquisas experimentais, depois de finalizada a experiência, bem como a vedação do item III.3, "p", da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde;
CONSIDERANDO que, na mesma audiência, diversas autoridades e especialistas, tanto da área médica quanto da jurídica, manifestaram-se acerca de decisões judiciais que versam sobre políticas públicas existentes, assim como a necessidade de assegurar a sustentabilidade e gerenciamento do SUS;
CONSIDERANDO, finalmente, indicação formulada pelo grupo de trabalho designado, através da Portaria nº 650, de 20 de novembro de 2009, do Ministro Presidente do Conselho Nacional de Justiça, para proceder a estudos e propor medidas que visem a aperfeiçoar a prestação jurisdicional em matéria de assistência à saúde;
CONSIDERANDO a decisão plenária da 101ª Sessão Ordinária do dia 23 de março de 2010 deste E. Conselho Nacional de Justiça, exarada nos autos do Ato nº 0001954-62.2010.2.00.0000;
Por outro lado, tendo em vista que o crescente número de demandas que chegam aos Tribunais Superiores, esses, com o fito de pacificar a jurisprudência e, assim, proporcionar segurança jurídica aos usuários, colaboradores e gestores públicos, vem prolatando diversos julgados de importância ímpar tanto na seara acadêmica, quanto no âmbito prático.
Segundo Mansur e Oliveira[5] (2006, p. 15), “ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) compete dar a última palavra sobre a interpretação das normas infraconstitucionais, a partir das decisões dos Tribunais Estaduais (2ª. instância), entre eles o TJ/SP. Nesse sentido, dentre as suas competências (especificadas no artigo 105 da Constituição Federal) consta verificar se as decisões de 2ª. instância ofendem lei federal vigente no país, mediante provocação da parte vencida por meio de recurso especial. [...] Por fim, o Supremo Tribunal Federal (STF) apresenta-se como o órgão máximo do sistema judiciário brasileiro, sendo competente para julgar os recursos interpostos contra decisões sob alegação de contrariedade à Constituição Federal”.
Uma das temáticas mais recorrentes é se o Estado, assim entendido o Poder Executivo, pode ser obrigado pelo Poder Judiciário a fornecer medicamentos não registrados na Anvisa, é dizer, os chamados “medicamentos experimentais”.
Criada pela Lei nº 9.782, de 26 de janeiro 1999, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é uma agência reguladora, sob a forma de autarquia de regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde, está presente em todo o território nacional por meio das coordenações de portos, aeroportos, fronteiras e recintos alfandegados. A agência reguladora exerce o controle sanitário de todos os produtos e serviços (nacionais ou importados) submetidos à vigilância sanitária, tais como medicamentos, alimentos, cosméticos, saneantes, derivados do tabaco, produtos médicos, sangue, hemoderivados e serviços de saúde[6].
2. MEDICAMENTOS EXPERIMENTAIS
Em 2019, no julgamento do RE 657.718/MG, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que, como regra geral, o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. Em outras palavras, a ausência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.
Entretanto, ciente da precariedade da agência reguladora, bem como das dificuldades enfrentadas no âmbito do Sistema Único de Saúde, a Suprema Corte estabeleceu ser possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido, desde que preenchidos três requisitos.
O primeiro deles é que exista pedido de registro do medicamento no Brasil, exceto em caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras, situações nas quais se revela irrazoável exigir tal condicionante.
O segundo requisito é que o medicamento já tenha sido registrado em renomadas agências de regulação no exterior, circunstância que faz presumir, ainda que precariamente, a sua segurança e eficácia.
Por fim, o terceiro requisito é que inexista substituto terapêutico com registro no Brasil, pois, do contrário, faltaria interesse processual, uma vez que o paciente teria suas necessidades atendidas por meio de medicamento já conhecido e aprovado pela agência reguladora.
O STF registrou, ainda, que as ações que demandam fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União, logo, na Justiça Federal, tendo em vista a natureza de autarquia federal da agência reguladora.
O raciocínio dos Ministros, então, foi o de que, malgrado o medicamento ainda seja experimental no Brasil, em decorrência de mora da Anvisa, como já houve registro em outros países, é razoável presumir a sua segurança, viabilizando, então, o seu fornecimento.
Em 2021, ao julgar o RE 1.165.959/SP, o Plenário do STF entendeu que o Estado pode ser obrigado a fornecer medicamento não registrado na Anvisa, se a sua importação estiver autorizada, se ele se mostrar imprescindível ao tratamento e se houver incapacidade financeira do paciente.
Dito de outro modo, constatada a incapacidade financeira do paciente, o Estado deve fornecer medicamento que, apesar de não possuir registro sanitário, tem a importação autorizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para tanto, devem ser comprovadas a imprescindibilidade do tratamento e a impossibilidade de substituição por outro similar constante das listas oficiais de dispensação e dos protocolos de intervenção terapêutica do Sistema Único de Saúde (SUS).
Nessa oportunidade, a Suprema Corte entendeu que muito embora a Anvisa ainda não tenha registrado o medicamento, a própria agência reguladora já autorizou a sua importação, donde se presume a segurança e eficácia do fármaco.
Por derradeiro, não seria arrazoado proibir o seu fornecimento no país, se acaso demonstrado, no caso concreto, a imprescindibilidade clínica do tratamento, assim entendida como a impossibilidade de substituição por outro medicamento disponível no SUS, bem como a hipossuficiência do paciente para a sua aquisição na rede privada.
Pode acontecer, também, de o medicamento possuir registro na Anvisa, porém, ainda não ter sido incorporado em ato normativo do SUS.
A esse respeito, em 2018, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do REsp 1.657.156-RJ, sob a sistemática dos recursos repetitivos, definiu que a concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa de três requisitos.
O primeiro deles é a comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS. Isso porque, caso já exista fármaco eficaz para o tratamento do paciente, desnecessário que o Estado seja condenado a fornecer outro medicamento ao paciente.
O segundo, é a incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito, uma vez que, em se tratando de indivíduo com recursos financeiros suficientes, lhe é facultado adquirir o medicamento de sua preferência na rede privada.
O terceiro e último requisito é a existência de registro do medicamento na Anvisa, observados os usos autorizados pela agência, isto é, em regra, não é possível o uso off-label.
Entendeu o STJ, então, que por se tratar de situação excepcional, o Poder Judiciário até pode obrigar o Poder Executivo a fornecer medicamento não incorporado ao SUS, entretanto, faz-se necessário que a sua indicação de uso tenha sido autorizada pela Anvisa.
Isso significa que, ainda que a prática clínica demonstre que o fármaco destinado à doença 1 também se revela eficaz para a doença 2, não havendo autorização de uso por parte da Anvisa para a segunda enfermidade, o Poder Judiciário não pode determinar o fornecimento do medicamento para tratar a doença 2, mas apenas e tão somente para a doença 1.
Como já se poderia antever, em 2021, no julgamento do PUIL 2101-MG, o Superior Tribunal de Justiça relativizou sua jurisprudência para estabelecer que, em regra, não é possível que o paciente exija do poder público o fornecimento de medicamento para uso off-label, entretanto, excepcionalmente, será possível que o paciente exija o medicamento caso o uso fora da bula (off-label) tenha sido autorizado pela ANVISA.
A lógica do STJ é que apesar de o medicamento não ter sido originariamente registrado para aquele uso requerido, o paciente pode solicitar à Anvisa a autorização para o seu uso off-label, hipótese em que o SUS passará a ser obrigado a fornecer o fármaco, como se incorporado fosse.
3.COMPETÊNCIA
Nessa linha intelectiva, quanto à (in)existência de incorporação do medicamento ao Sistema Único de Saúde, paira na jurisprudência do STF e do STJ grande dissenso acerca do ramo da Justiça competente para processar e julgar os feitos relacionados a medicamentos registrados na Anvisa, mas não incorporados ao SUS.
Acerca do tema, calha fazer breve digressão.
Em 2022, ao julgar o RMS 68.602-GO e o CC 182.080-SC, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que em ação que pretende o fornecimento de medicamento registrado na Anvisa, ainda que não incorporado em atos normativos do SUS, é prescindível – dispensável – a inclusão da União no polo passivo da demanda.
Para tanto, fundamentou que em demandas relativas a direito à saúde, é incabível ao juiz estadual determinar a inclusão da União no polo passivo da demanda se a parte requerente optar pela não inclusão, ante a solidariedade dos entes federados.
Entretanto, também em 2022, no julgamento do Rcl 49593 AgR e do RE 1286407 AgR-segundo/PR, o Supremo Tribunal Federal se posicionou no sentido de ser obrigatória a inclusão da União no polo passivo de demanda na qual se pede o fornecimento gratuito de medicamento registrado na Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas não incorporado aos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do Sistema Único de Saúde (SUS).
A jurisprudência de ambas as Turmas da Suprema Corte têm consolidado o entendimento no sentido de que, quer na hipótese em que o fármaco já se encontre incorporado às políticas públicas do SUS, ou naquela em que ele ainda não tenha recebido a devida padronização ou incorporação ao sistema, presente se revela a necessidade da formação de um litisconsorte necessário na ação de origem, ante o dever de a autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competência e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.
Num primeiro momento, pensou-se que a celeuma havia findado, com a posição do STF, assim sintetizada por Cavalcante[7]:
Em regra, a demanda pode ser proposta em face de qualquer dos entes da Federação (União, Estados, Distrito Federal, Municípios), isolada, ou conjuntamente. Entretanto, deve-se atentar para as seguintes diretrizes:
a) tratando-se de medicamento não padronizado/incorporado no RENAME/SUS, a UNIÃO deve necessariamente compor o polo passivo da lide; assim, a competência para julgar a lide é da Justiça Federal;
b) no caso de medicamento padronizado no RENAME/SUS, porém cuja distribuição/financiamento está sob a responsabilidade exclusiva da UNIÃO, por exemplo, em razão dos altos custos dos medicamentos ou tratamentos oncológicos, a UNIÃO deve necessariamente compor o polo passivo da lide; assim, a competência para julgar a lide é da Justiça Federal;
c) medicamentos não registrados na ANVISA, devem ser postulados necessariamente em face da UNIÃO, consoante fixado no Tema 500 da repercussão geral, logo, a competência é da Justiça Federal.
Contudo, o novo capítulo dessa disputa entre os Tribunais Superiores veio à tona em 2023, com o julgamento do Incidente de Assunção de Competência (IAC) n.º 14 pelo Superior Tribunal de Justiça.
Na ocasião, o STJ, em flagrante oposição ao STF, decidiu que:
A) Nas hipóteses de ações relativas à saúde intentadas com o objetivo de compelir o Poder Público ao cumprimento de obrigação de fazer consistente na dispensação de medicamentos não inseridos na lista do SUS, mas registrado na ANVISA, deverá prevalecer a competência do juízo de acordo com os entes contra os quais a parte autora elegeu demandar.
B) As regras de repartição de competência administrativas do SUS não devem ser invocadas pelos magistrados para fins de alteração ou ampliação do polo passivo delineado pela parte no momento da propositura da ação, mas tão somente para fins de redirecionar o cumprimento da sentença ou determinar o ressarcimento da entidade federada que suportou o ônus financeiro no lugar do ente público competente, não sendo o conflito de competência a via adequada para discutir a legitimidade ad causam, à luz da Lei nº 8.080/90, ou a nulidade das decisões proferidas pelo Juízo estadual ou federal, questões que devem ser analisadas no bojo da ação principal.
C) A competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da CF/88, é determinada por critério objetivo, em regra, em razão das pessoas que figuram no polo passivo da demanda (competência ratione personae), competindo ao Juízo federal decidir sobre o interesse da União no processo (Súmula 150/STJ), não cabendo ao Juízo estadual, ao receber os autos que lhe foram restituídos em vista da exclusão do ente federal do feito, suscitar conflito de competência (Súmula 254/STJ).
Em setembro de 2022, a controvérsia já havia sido afetada como Tema 1.234 (RE 1.366.243) a fim de que o STF discutisse a “Legitimidade passiva da União e competência da Justiça Federal, nas demandas que versem sobre fornecimento de medicamentos registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, mas não padronizados no Sistema Único de Saúde – SUS.”
Todavia, após o julgamento do IAC 14 pelo STJ, em abril de 2023, o STF concedeu tutela provisória para estabelecer que, até o julgamento definitivo do Tema 1.234 da Repercussão Geral, sejam observados os seguintes parâmetros:
1. nas demandas judiciais envolvendo medicamentos ou tratamentos padronizados [pelo SUS]: a composição do polo passivo deve observar a repartição de responsabilidades estruturada no Sistema Único de Saúde, ainda que isso implique deslocamento de competência, cabendo ao magistrado verificar a correta formação da relação processual;
2. nas demandas judiciais relativas a medicamentos não incorporados [ao SUS]: devem ser processadas e julgadas pelo Juízo, estadual ou federal, ao qual foram direcionadas pelo cidadão, sendo vedada, até o julgamento definitivo do Tema 1.234 da Repercussão Geral, a declinação da competência ou determinação de inclusão da União no polo passivo;
3. diante da necessidade de evitar cenário de insegurança jurídica, esses parâmetros devem ser observados pelos processos sem sentença prolatada; diferentemente, os processos com sentença prolatada até a data desta decisão (17 de abril de 2023) devem permanecer no ramo da Justiça do magistrado sentenciante até o trânsito em julgado e respectiva execução;
4. ficam mantidas as demais determinações contidas na decisão de suspensão nacional de processos na fase de recursos especial e extraordinário.
Pois bem. Ao que tudo indica, esse vai-e-vem jurisprudencial está com os dias contados, pois, com o julgamento do Tema 1.234 da Repercussão Geral, o Superior Tribunal de Justiça terá de se curvar ao entendimento da Suprema Corte.
Até lá, remanesce a insegurança jurídica, amenizada recentemente com a antecipação dos efeitos da tutela acima explicitada, de modo que, ao menos por ora, as ações que têm como pedido o fornecimento de medicamento registrado na Anvisa, mas não incorporado ao SUS, devem ser processadas e julgadas pelo Juízo, estadual ou federal, ao qual foram direcionadas pelo cidadão, estando proibida a declinação da competência ou determinação de inclusão da União no polo passivo.
CONCLUSÃO
O presente artigo teve como principal finalidade demonstrar a existência de grande dissenso jurisprudencial no que diz respeito ao fornecimento de medicamentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) quando inexistente registro pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Constata-se que a concretização do direito à saúde depende da pacificação da matéria como meio de conferir segurança jurídica aos profissionais de saúde; aos gestores públicos e, principalmente, à população que depende do Sistemas Único de Saúde (SUS).
Demais disso, verifica-se que a ausência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial, bem como que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal têm relativizado tal premissa em situações específicas quando constatada a mora da agência reguladora.
Por fim, conclui-se que até o julgamento do Tema n.º 1.234 da Repercussão Geral, as ações que têm como pedido o fornecimento de medicamento registrado na Anvisa, mas não incorporado ao SUS, devem ser processadas e julgadas pelo Juízo, estadual ou federal, ao qual foram direcionadas pelo cidadão, estando proibida a declinação da competência ou determinação de inclusão da União no polo passivo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SOUZA, Natale Oliveira de. Legislação do SUS esquematizada e comentada. Salvador: SANAR, 2016
MANSUR, Nacime; e OLIVEIRA, Reinaldo Ayer de. O médico e a justiça. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, 2006
STF. Plenário. RE 657718/MG, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgado em 22/5/2019 (repercussão geral) (Info 941)
STF. Plenário. RE 1165959/SP, Rel. Marco Aurélio, redator do acórdão Min. Alexandre de Moraes, julgado em 18/6/2021 (Repercussão Geral – Tema 1161) (Info 1022).
STJ. 1ª Seção. EDcl no REsp 1.657.156-RJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 12/09/2018 (recurso repetitivo) (Info 633).
STJ. 1ª Seção. PUIL 2101-MG, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 10/11/2021 (Info 717).
STJ. 2ª Turma. RMS 68.602-GO, Rel. Min. Assusete Magalhães, julgado em 26/04/2022 (Info 734).
STJ. 1ª Seção. AgInt no CC 182.080-SC, Rel. Min. Manoel Erhardt (Desembargador convocado do TRF da 5ª Região), julgado em 22/06/2022 (Info 742)
STJ. 1ª Seção. CC 188.002-SC, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 12/4/2023 (IAC 14) (Info 770).
STF. 1ª Turma. RE 1286407 AgR-segundo/PR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 26/4/2022 (Info 1052).
STF. 2ª Turma. Rcl 49593 AgR, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 29/08/2022.
STF. Plenário. RE 1366243 TPI-Ref, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 19/04/2023.
[1] SOUZA, Natale Oliveira de. Legislação do SUS esquematizada e comentada. Salvador: SANAR, 2016, p. 37-38.
[2] SOUZA, Natale Oliveira de. Legislação do SUS esquematizada e comentada. Salvador: SANAR, 2016, p. 40.
[3] Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/s/sus>. Acesso em: nov. 2023.
[4] SOUZA, Natale Oliveira de. Legislação do SUS esquematizada e comentada. Salvador: SANAR, 2016, p. 57.
[5] MANSUR, Nacime; e OLIVEIRA, Reinaldo Ayer de. O médico e a justiça. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, 2006, p. 15.
[6] Disponível em: <https://www.gov.br/anvisa/pt-br/acessoainformacao/institucional>. Acesso em: nov. 2023.
[7] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Em demandas relativas a direito à saúde, o juiz pode determinar a inclusão da União no polo passivo da demanda se a parte requerente optou pela não inclusão?. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/92316afaebe71e3e55c62c02659c6d5d>. Acesso em: 13/11/2023.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, Gabriel Cardoso. O fornecimento de medicamentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) na jurisprudência dos tribunais superiores Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 nov 2023, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63867/o-fornecimento-de-medicamentos-pelo-sistema-nico-de-sade-sus-na-jurisprudncia-dos-tribunais-superiores. Acesso em: 23 dez 2024.
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