NATÁLIA CARDOSO MARRA
(orientadora)
RESUMO: A pesquisa pautada objetiva análise quanto à prática de beijo lascivo e sua configuração como crime de estupro, integrado ao rol de ato libidinoso diverso da conjunção carnal, interpretado a luz do entendimento jurisprudencial. O estudo discorre sobre o posicionamento da jurisprudência acerca do tema, envolvendo uma análise constitucional, atenta aos princípios da proporcionalidade, ofensividade e razoabilidade.
PALAVRAS-CHAVE: CRIME DE ESTUPRO; DIREITO PENAL; BEIJO LASCIVO; ATO LIBIDINOSO.
Conforme disposto no Código Penal, após alteração do texto legal conforme a Lei 12.015/09, o crime de estupro passou a ser classificado como ato de "Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso."
O ato libidinoso é mencionado no Código Penal no artigo 213 quanto ao crime de estupro, e pode caracterizar-se mediante beijo lascivo.
Neste escopo, foi fixado pelo Superior Tribunal de Justiça o entendimento que qualquer ato libidinoso, compreendido como ato destinado à satisfação da lascívia, configura, caso exercido mediante violência ou grave ameaça, como crime de estupro.
A presente pesquisa aborda o tema supramencionado, analisando a configuração do crime de estupro em decorrência de beijo lascivo obtido mediante ensejo de força, enquadrado como ato libidinoso.
Neste sentido, será analisado o crime de estupro e os atos libidinosos divergentes da conjunção carnal, em especial, o beijo lascivo, com atenção a carência de especificação do tema, focando na insegurança jurídica trazida pela amplitude dos possíveis atos que poderiam ser enquadrados nesta definição, bem como sua aplicabilidade à luz dos princípios constitucionais da proporcionalidade, ofensividade e razoabilidade, demonstrando dessa forma a desproporção da conduta e sanção adotada pelo entendimento do STJ, e a necessidade de compreensão dos princípios constitucionais penais.
2.DOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL
A Importunação Sexual é um delito recentemente tipificado, incluído pela Lei n⁰ 13.718/18 na Legislação Penal, em art. 215-A:
Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro: (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)
Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave. (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)
O professor, doutrinador, Nucci, leciona que "comete o crime de importunação sexual qualquer um que realize ato libidinoso em relação a outra pessoa (com ou sem contato físico, mas visível e identificável), satisfazendo seu prazer sexual, sem que haja concordância válida das partes envolvidas (supondo-se a anuência de adultos)". (NUCCI, 2021. p. 769)
São considerados atos de importunação sexual: toques sem permissão, masturbação em público, ações como “encochar”, puxões de cabelo com finalidades lascivas, quando feitas sem consentimento, mas sem que seja empregada violência, de modo que a vítima não é subjugada ou gravemente ameaçada.
Em momento anterior, os atos de importunação sexual não tinham identificação penal específica, sendo aplicada então análises em semelhantes hipóteses dispostas no código penal, de modo que os requisitos não eram completamente preenchidos.
A importunação sexual poderia também ser enquadrada no art. 61 da Lei de Contravenções Penais, como Importunação Ofensiva ao Pudor — revogada na Lei n⁰ 13.718/18 ao tipificar este delito no Código —, causando comoção na população diante da falta de proporcionalidade, tendo em vista a punição através de aplicação de multa.
Em ambas situações, as penas aplicadas eram desproporcionais à conduta, mais ou menos gravosas.
O crime de estupro tem previsão legal na parte especial do código penal, artigo 213, que demanda:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
A legislação então, resguarda a dignidade sexual como bem jurídico, de forma que o delito admite tentativa, não enquadrando-se apenas na consumação do ato sexual (conjunção carnal), desde que reste caracterizada a intenção do sujeito ativo em praticar o referido ato delituoso.
“O estupro é, pois, crime complexo em sentido amplo, constituindo-se de constrangimento ilegal voltado para uma finalidade específica, consistente em conjunção carnal ou outro ato libidinoso.” (STJ - RHC: 93906 PA 2018/0009120-0, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Publicação: DJ 13/03/2019)
Neste escopo, é necessário entender que, após o advento da Lei 12.015/09 — que reformou algumas partes especiais do código penal —, o estupro passou a ser um crime de ação múltipla, de modo que uma, duas, ou mais condutas contra a mesma vítima em mesmo contexto fálico continua configurando o mesmo crime, não sendo adotado concurso material, como feito antes da implementação da lei. Ensina Greco:
Caso o agente, por exemplo, em uma única relação de contexto, mantenha com a vítima o coito anal para, logo em seguida, praticar a conjunção carnal, como já afirmamos anteriormente, tal fato se configurará em um único crime de estupro, devendo o julgador, ao aplicar a pena, considerar tudo o que efetivamente praticou contra a vítima. (GRECO, 2019, p. 486)
Tratando-se de sujeito ativo, qualquer pessoa pode ser autor da conduta, podendo, inclusive, haver dois ou mais agentes, de modo que haja revezamento na prática do ato libidinoso e ou conjunção carnal, no qual todos serão autores de um crime de estupro, e, os demais, serão enquadrados como seus respectivos partícipes.
Consoante a jurisprudência, "o ato libidinoso diverso da conjunção carnal, que, ao lado desta, caracteriza o crime de estupro, inclui toda ação atentatória contra o pudor praticada com o propósito lascivo, seja sucedâneo da conjunção carnal ou não, evidenciando-se com o contato físico entre o agente e a vítima durante o apontado ato voluptuoso" (AgRg REsp n. 1.154.806/RS , Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA Turma, DJe 21/3/2012)" (STJ, AgRg no REsp XXXXX/MS , Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 21/11/2019, DJe 03/12/2019).
Portanto, pode haver a consumação do crime de estupro mesmo com a ausência de contato físico com a vítima. Um exemplo disso é a hipótese de que uma pessoa, sob emprego de violência e/ou grave ameaça, é obrigada a se masturbar ou a tocar em seu corpo de outra forma, eroticamente, sendo observada pelo agente do crime, o que, neste caso, dada a ofensa do bem jurídico tutelado — a liberdade sexual —, resta configurado crime de estupro.
Considerado como crime hediondo, mesmo na forma tentada, com base legal pelo artigo 1⁰, V, da Lei 8.072/90, o estupro é a) Inafiançável, tendo b) Regime inicial fechado, não admitindo c) Graça, anistia ou indulto, d) Prazo de prisão temporária em 30 (trinta) dias, e) Progressão de pena apenas tendo 2/5 de cumprimento em caso de réu primário e 3/5 sendo reincidente, entre outras consequências.
O crime de estupro qualificado se dará a partir de agravantes como a) O emprego de violência na prática do ato; b) O estupro praticado contra menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (quatorze) anos; c) A morte da vítima em decorrência da violência empregada no estupro, em consonância ao artigo 213, §1 e §2.
2.3 Dos Atos Libidinosos Diversos da Conjunção Carnal;
Como abordado em tópico 2.2, o crime de estupro não se configura apenas quando consumada conjunção carnal, podendo configurar-se também a partir de ato libidinoso diverso, exercido sobre a vontade de alguém, mediante violência ou grave ameaça.
Tratando-se de assegurar a liberdade e dignidade sexual, a fim de indicar os atos libidinosos diversos da conjunção carnal, Prado indica "a fellatio ou irrumatio in ore, o cunnilinguns, o pennilingus, o annilingus (sexo oral); o coito anal, inter femora; a masturbação; os toques e apalpadas do pudendo e dos membros inferiores; a contemplação lasciva; os contatos voluptuosos, entre outros." (PRADO, 2008, p. 582,)
Os atos que antes eram considerados Atentado Violento ao Pudor, empregados a partir de grave ameaça ou violência, agora, são tidos como estupro, a depender do caso concreto; da lasciva do ato, da "grosseria" de um ato libidinoso, pelo que entende a doutrina.
Está falta de clareza na descrição de ato libidinoso dentro do crime de estupro causa grande discordância na jurisprudência quanto a interpretação de determinados atos libidinosos divergentes da conjunção carnal. Essa insegurança jurídica advém da linha tênue que separa a Importunação Sexual do Estupro — sem a devida conjunção carnal. Ambos são crimes com grande divergência na pena, cuja reclusão é de 1 (um) ano a 5 (cinco) anos, enquanto o outro é de 6 (seis) a 10 (dez) anos, respectivamente.
Os atos libidinosos para satisfação da lascívia praticados a partir de imposição, diferenciam em seu tipo penal apenas pelo emprego ou não de violência e/ou grave ameaça. É necessário observar a jurisprudência:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PENAL. ART. 213 DO CÓDIGO PENAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O TIPO PREVISTO NO ART. 65 DO DECRETO-LEI N.º 3.688/1941. ATOS LIBIDINOSOS DIVERSOS DA CONJUNÇÃO CARNAL. CARACTERIZAÇÃO DO DELITO DE ESTUPRO. FATOS INCONTROVERSOS. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ENUNCIADO N.º 7 DA SÚMULA DESTA CORTE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. SUPERVENIÊNCIA DE LEI PENAL MAIS BENÉFICA: LEI N.º 13.718, DE 24 DE SETEMBRO DE 2018. PENA MAIS BRANDA. RETROATIVIDADE. READEQUAÇÃO DO TIPO: CRIME DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL. CONCESSÃO DE HABEAS CORPUS DE OFÍCIO. 1. Conforme a jurisprudência desta Corte Superior de Justiça"[a] controvérsia atinente à inadequada desclassificação para a contravenção penal prevista no art. 65 do Decreto-Lei n. 3.688/1941 prescinde do reexame de provas, sendo suficiente a revaloração de fatos incontroversos explicitados no acórdão recorrido. (REsp 1.605.222/MS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 28/6/2016, DJe 1/8/2016)"(AgRg no REsp 1.735.061/MG, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 24/05/2018, DJe 01/06/2018.) 2. No caso, o Tribunal de origem reconheceu que "[...] o réu, de fato, abordou a vítima, interceptou sua passagem, e passou a mão em seu seio e cintura". Contudo, considerou que tal conduta não configuraria o delito de estupro. No entanto, "[n]os termos da orientação desta Corte, o delito de estupro, na redação dada pela Lei n. 12.015/2009, inclui atos libidinosos praticados de diversas formas, onde se inserem os toques, contatos voluptuosos, beijos lascivos, consumando-se o crime com o contato físico entre o agressor e a vítima (AgRg no REsp 1359608/MG, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEXTA TURMA, julgado em 19/11/2013, DJe 16/12/2013)" (AgRg no AREsp 1.142.954/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 25/09/2018, DJe 04/10/2018.) 3. Não obstante a correção da decisão agravada, nesse ínterim, sobreveio a publicação da Lei n.º 13.718, de 24 de setembro 2018, no concessão de habeas corpus, de ofício, a fim de readequar a classificação do tipo penal, considerando a superveniência de lei penal mais benéfica ao réu (Lei n.º 13.718, de 24 de setembro 2018 - crime de importunação sexual - art. 215-A do Código Penal), e, por conseguinte, ajustar sua pena, tornada definitiva em 1 (um) ano e 2 (dois) meses de reclusão, em regime inicial semiaberto, cabendo ao juízo das execuções penais realizar a detração. (AgRg no REsp 1730341/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 23/10/2018, DJe 13/11/2018)DJU de 25/09/2018, que, entre outras inovações, tipificou o crime de importunação sexual, punindo-o de forma mais branda do que o estupro, na forma de praticar ato libidinoso, sem violência ou grave ameaça. 4. Agravo regimental desprovido, mas com aconcessão de habeas corpus, de ofício, a fim de readequar a classificação do tipo penal, considerando a superveniência de lei penal mais benéfica ao réu (Lei n.º 13.718, de 24 de setembro 2018 - crime de importunação sexual - art. 215-A do Código Penal), e, por conseguinte, ajustar sua pena, tornada definitiva em 1 (um) ano e 2 (dois) meses de reclusão, em regime inicial semiaberto, cabendo ao juízo das execuções penais realizar a detração. (AgRg no REsp 1730341/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 23/10/2018, DJe 13/11/2018)
Como disposto no caso acima, a jurisprudência entende que há necessidade de emprego de violência e/ou grave ameaça para qualificação do crime de crime de estupro em casos de atos libidinosos diversos a conjunção carnal, no entanto, comprovar que foram preenchidos tais requisitos nesses casos que normalmente são cometidos longe da vista da sociedade, na surdina, depende principalmente da palavra da vítima. Por conseguinte, "o simples fato de o laudo pericial concluir pela ausência de vestígios de prática sexual, não afasta, por si só, a materialidade do delito." conforme jurisprudência:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PRISÃO APÓS CONDENAÇÃO EM SEGUNDO GRAU. LEGALIDADE. REFORMATIO IN PEJUS. INEXISTÊNCIA. PRECEDENTES DO STF E STJ. ATOS LIBIDINOSOS DIVERSOS DA CONJUNÇÃO CARNAL. AUSÊNCIA DE VESTÍGIOS NO LAUDO PERICIAL. IR- RELEVÂNCIA. PRECEDENTES. CONDENAÇÃO BASEADA NOS ELEMENTOS DE PROVA COLHIDOS NOS AUTOS E NA PALAVRA DA VÍTIMA. SÚMULA 7/STJ. INOVAÇÃO QUANTO AO DESCONHECIMENTO DA IDADE DA VÍTIMA. QUESTÃO QUE DEMANDA PROVA E CONTRADITÓRIO, INVIÁVEL DE SER SUSCITADA EM RECURSO ESPECIAL.SÚMULA 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. Segundo a recente orientação do STF, seguida por ambas as Turmas desta Corte, a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5o, inciso LVII da Constituição Federal (HC 126.292, Rel. Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, j. em 17/2/2016, DJe 17/5/2016 e ARE XXXXX/SP, Rel. Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, j. 11/22/2016, em regime de repercussão geral, DJe 25/11/2016).
2. Esta Corte firmou o entendimento de que não há falar em reformatio in pejus ou ilegalidade na determinação de início de cumprimento da pena pelo Tribunal estadual, pois a prisão decorrente de acórdão condenatório encontra-se entre as competências do Juízo revisional e independe de recurso da acusação, somente podendo ser sustada se concedido efeito suspensivo a eventual recurso especial interposto.
3. O simples fato de o laudo pericial concluir pela ausência de vestígios de prática sexual, não afasta, por si só, a materialidade do delito, até porque a consumação do referido crime pode ocorrer com a prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal, como no caso concreto. Precedentes.
4. A tese de ausência de tipicidade da conduta, porquanto o réu não teria conhecimento da idade da vítima não foi suscitada durante o curso da instrução criminal ou no recurso de apelação. Inviável o acolhimento da pretensão quando já julgada a demanda, pela necessidade de efetivo contraditório a respeito do tema, mormente em sede de recurso especial, em razão do óbice da Súmula Precedentes. 7/STJ.
5. É inviável a análise, no âmbito do recurso especial, de teses que, por sua própria natureza, demandam dilação probatória, como a de ausência de provas de autoria. As provas dos autos foram apreciadas durante a instrução criminal, sob o crivo do contraditório, não sendo esta a via adequada para a sua revisão, em razão do óbice da Súmula n. 7/STJ. Precedentes.
6. Agravo regimental desprovido. (AgRg no AREsp n. 1.162.046/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 7/11/2017, DJe de 13/11/2017.)
Desta forma, como os atos diversos da conjunção carnal não costumam deixar vestígios – como masturbação –, o simples fato de a perícia não constar vestígios do crime ou da violência, não afasta a ocorrência da materialidade delitiva do delito, sendo a prova oral suficiente para comprovar a materialidade e autoria, portanto "A palavra da vítima é viga mestra da estrutura probatória, e sua acusação, firme e segura, em consonância com as emissoras provas, autoriza a condenação." (RT 750/682)
3.DOS PRINCÍPIOS PENAIS CONSTITUCIONAIS
O Princípio Penal Constitucional da Proporcionalidade desempenha um papel fundamental na busca por um equilíbrio entre o exercício do poder punitivo do Estado e a proteção dos direitos e garantias fundamentais do cidadão. Sua aplicação é essencial para garantir que as sanções penais sejam justas e adequadas.
Apesar de não expressamente, sua base advém da própria Constituição, que estabelece as normas e diretrizes para a atuação do sistema penal. A Carta Magna, ao consagrar direitos e liberdades individuais, impõe ao Estado a obrigação de respeitá-los em todas as suas ações, inclusive na aplicação do Direito Penal. Assim, a proporcionalidade é um instrumento vital para aferir se as medidas repressivas adotadas pelo Estado estão em conformidade com a Constituição, fundamentando-se a partir da jurisprudência e doutrina.
Concomitante ao entendimento do jurista Barroso, o Princípio da Proporcionalidade é composto por três elementos inter-relacionados, a) Adequação, onde se verifica se a medida penal é adequada para alcançar o objetivo perseguido, estabelecendo que a pena ou a sanção penal deve ser apropriada para a gravidade da conduta criminosa, bem como para a proteção de bens jurídicos relevantes; b) Necessidade, que refere-se à necessidade da medida, onde é necessário analisar se a pena é a única forma de alcançar o objetivo pretendido ou se existem alternativas menos gravosas que poderiam ser utilizadas para atingir o mesmo fim; c) Proporcionalidade em sentido estrito, que exige uma análise ponderada dos benefícios da medida penal em relação aos ônus impostos ao condenado, de modo que a pena não seja excessivamente severa em relação ao delito cometido. Além disso, a proporcionalidade em sentido estrito também considera o princípio da individualização da pena, levando em conta as circunstâncias do caso e a personalidade do condenado. (BARROSO, 2018.)
O Princípio da Proporcionalidade não se limita apenas à aplicação das penas, mas também se estende a todos os atos do Estado no campo penal. Ele atua como um freio ao poder estatal, impedindo a imposição arbitrária de sanções e assegurando que as medidas adotadas sejam proporcionais, desempenhando um papel crucial na preservação dos direitos e garantias individuais no sistema penal, devendo as medidas serem adequadas.
Este princípio serve como proteção ao cidadão da aplicação de penas desproporcionais e arbitrárias. A sua observância é essencial para a construção de um Estado de Direito justo e democrático.
O Princípio da Ofensividade, também conhecido como Princípio da Lesividade ou Princípio da Intervenção Mínima, é um dos pilares do Direito Penal e desempenha um papel fundamental na definição do que constitui um crime e na limitação do poder punitivo do Estado. Este princípio está intrinsecamente relacionado à proteção dos direitos individuais.
Ensina Bitencourt:
Somente se justifica a intervenção estatal em termos de repressão penal se houver efetivo e concreto ataque a um interesse socialmente relevante, que represente no mínimo, perigo concreto ao bem jurídico tutelado (BITENCOURT, 2010, p.111).
Assim, este princípio parte da ideia de que o Direito Penal só deve ser acionado quando há uma conduta que cause efetiva lesão ou ameaça de lesão a um bem jurídico relevante. Em outras palavras, o Estado só deve intervir na esfera do indivíduo quando este tenha efetivamente prejudicado, colocado em risco ou ameaçado prejudicar um interesse jurídico digno de proteção.
Isso implica que a mera potencialidade de causar dano não é suficiente para justificar a intervenção penal. O Direito Penal não deve ser utilizado como uma ferramenta arbitrária ou excessivamente expansiva do Estado, mas sim como um último recurso para proteger bens jurídicos fundamentais da sociedade.
Portanto, para que uma conduta seja considerada um crime, ela deve ser intrinsecamente lesiva ou ameaçadora, de modo que a tipificação de condutas criminosas deve ser precisa e clara, evitando ambiguidades que possam dar margem a interpretações excessivamente amplas.
Além disso, a análise da ofensividade desempenha um papel importante na fixação da pena. A gravidade do dano causado ou ameaçado, juntamente com outros fatores, como a culpabilidade do agente e as circunstâncias do caso, influenciam a dosimetria da pena. Isso garante que a punição seja proporcional à gravidade da ofensa.
O Princípio da Ofensividade atua como um contrapeso ao poder estatal, evitando a criminalização de condutas que não atentem contra bens jurídicos relevantes. Isso é crucial para proteger os direitos individuais e a liberdade dos cidadãos, ao mesmo tempo em que contribui para a preservação da legitimidade e da credibilidade do sistema penal, desempenhando um papel essencial na configuração do Direito Penal como um instrumento de controle do poder estatal e de proteção dos direitos fundamentais, contribuindo para a construção de um sistema penal mais justo, humano e equitativo.
O Princípio da Razoabilidade sustenta o campo central do Direito, abrangendo diversas áreas do ordenamento jurídico, incluindo o Direito Penal, buscando assegurar que as decisões e ações do Estado, bem como as normas legais criadas, sejam sensatas, lógicas e equilibradas. Em outras palavras, exige que o Estado aja de forma justa e que suas intervenções não sejam arbitrárias ou desprovidas de senso comum.
A doutrina, ao se pronunciar sobre o princípio da razoabilidade, ora enfoca a necessidade de sua observância pelo Poder Legislativo, como critério para reconhecimento de eventual inconstitucionalidade da lei, ora o apresenta como condição de legitimidade dos atos administrativos, ora aponta sua importância para o Judiciário quando da aplicação da norma ao caso concreto. Isto demonstra de forma cristalina que a razoabilidade é essencial ao sistema jurídico como um todo e que sua utilização é essencial à concretização do direito posto. (ZANCANER, 1997, p. 618)
No âmbito do Direito Penal, a aplicação do princípio da razoabilidade é fundamental para garantir que as normas penais sejam redigidas de maneira clara e compreensível, evitando ambiguidades que possam levar a interpretações excessivamente amplas. Além disso, esse princípio atua como um critério para avaliar se a aplicação da lei em casos individuais é lógica, desempenhando um papel crucial na proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos, garantindo que o Estado aja de maneira coerente com os valores constitucionais. Isso ajuda a evitar decisões ou ações arbitrárias que possam prejudicar a dignidade e os direitos dos indivíduos.
Tal princípio é frequentemente mencionado na doutrina e jurisprudência quando abordado o princípio da proporcionalidade. No entanto, não se deve confundi-los. Segundo Ávila, a "aplicação da proporcionalidade exige a relação de causalidade entre meio e fim, de tal sorte que, adotando-se o meio, promove-se o fim. Ocorre que a razoabilidade não faz referência a uma relação de causalidade entre um meio e um fim, tal como o faz o postulado da proporcionalidade."(ÁVILA, 2007, p. 158)
4. DA CONFIGURAÇÃO DE CRIME DE ESTUPRO PELO BEIJO LASCIVO — O ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL E OS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE, OFENSIVIDADE E RAZOABILIDADE;
Conforme apontado em tópicos anteriores, há possibilidade de enquadrar ato libidinoso exercido sobre a vontade de alguém, em crime de estupro, desde que operado mediante violência ou grave ameaça.
É ainda muito nebuloso os requisitos para que a gravidade do ato praticado não seja enquadrada como importunação sexual, motivo pelo qual a conduta - independente do teor do ato libidinoso, desde que voluptuoso - é avaliada apenas sob a perspectiva do emprego ou não da violência e/ou grave ameaça, de modo que até mesmo atos libidinosos mais “leves”, por assim expressar, são tratados como crimes hediondos, configurados como estupro.
Canotilho, doutrina:
Uma lei restritiva, mesmo adequada e necessária, pode ser inconstitucional, quando adota cargas coativas de direitos, liberdades e garantias desmedidas, desajustadas, excessivas ou desproporcionais em relação aos resultados obtidos. (CANOTILHO, 1999, p. 617)
Neste sentido, segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o delito de estupro, na redação dada pela Lei n. 12.015/2009, "inclui atos libidinosos praticados de diversas formas, onde se inserem os toques, contatos voluptuosos, beijos lascivos, consumando-se o crime com o contato físico entre o agressor e a vítima” (AgRg no REsp 1359608/MG, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEXTA TURMA, julgado em 19/11/2013, DJe 16/12/2013).
Desta forma, o emprego de força física contra a vítima, subjugando-a pela superioridade física do agente a fim de obter beijo contra sua vontade, já seria suficiente para que o agente responda pelo crime de estupro, mesmo ausentes vestígios de lesão.
Todavia, a insegurança jurídica trazida pela falta de especificação quanto a descrição dos atos divergentes da conjunção carnal é tamanha, que a jurisprudência tem interpretado a violação do bem jurídico protegido de duas formas distintas, qual seja:
PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ESTUPRO. TRANCAMENTO DA REPRESENTAÇÃO DE ATO INFRACIONAL. TIPICIDADE DA CONDUTA. BEIJO LASCIVO E OUTROS ATOS LIBIDINOSOS. VIOLÊNCIA. UTILIZAÇÃO DE FORÇA FÍSICA. VÍTIMA SUBJUGADA. JUSTA CAUSA. OCORRÊNCIA. PALAVRA DA VÍTIMA E TESTEMUNHAS. RECURSO DESPROVIDO. 1. Nos termos do entendimento consolidado desta Corte, o trancamento da ação penal por meio do habeas corpus é medida excepcional, que somente deve ser adotada quando houver inequívoca comprovação da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade, da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito - justa causa do processo penal -, ou ainda quando se mostrar inepta a denúncia por não atender aos requisitos essenciais do art. 41 do Código de Processo Penal – CPP. Precedentes. 2. O estupro é tipo misto alternativo e crime pluriofensivo, pois o crime do art. 213 do Código Penal tutela dois bens jurídicos: a liberdade sexual e, alternativamente, a integridade corporal e a liberdade individual. O núcleo do tipo é “constranger”, o que acarreta no comportamento de retirar de uma pessoa sua liberdade de autodeterminação, no sentido de coagir alguém a fazer ou deixar de fazer algo. Outrossim, o dissenso da vítima quanto à conjunção carnal ou outro ato libidinoso é fundamental à caracterização do delito: trata-se de elementar implícita do tipo penal. 3. O estupro é, pois, crime complexo em sentido amplo, constituindo-se de constrangimento ilegal voltado para uma finalidade específica, consistente em conjunção carnal ou outro ato libidinoso. Ademais, a execução desta conduta típica especial de constrangimento ilegal possui elementos especializantes de meio de execução, consistentes na violência (vis absoluta ou vis corporalis) ou grave ameaça (vis compulsiva). A grave ameaça, também conhecida como violência moral, é a promessa de realização de mal grave, futuro e sério contra a vítima (direta ou imediata) ou pessoa que lhe é próxima (indireta ou mediata). Por sua vez, a violência caracteriza-se pelo emprego de força física sobre a vítima, consistente em lesões corporais ou vias de fato. Pode ser direta ou imediata, quando dirigida contra o ofendido, ou indireta ou mediata, se voltada contra pessoa ou coisa ligada à vítima por laços de parentesco ou afeto. 4. O beijo lascivo ingressa no rol dos atos libidinosos e, se obtido mediante violência ou grave ameaça, importa na configuração do crime de estupro. Evidentemente, não são lascivos os beijos rápidos lançados na face ou mesmo nos lábios, sendo preciso haver beijos prolongados e invasivos, com resistência da pessoa beijada, ou então dos beijos eróticos lançados em partes impudicas do corpo da vítima. Por conseguinte, verificar-se-á estupro mediante violência caso a conduta do beijo invasivo busque a satisfação da lascívia, desde que haja intuito de subjugar, humilhar, submeter a vítima à força do agente, consciente de sua superioridade física. 5. No caso, resta evidente a utilização de força física, conquanto ausentes vestígios de lesão, para beijar a vítima contra sua vontade, e ainda lhe esfregar o órgão genital ereto, tendo o recorrente parado apenas por ter sido impedido por testemunha. Em tese, tal conduta amolda-se à hipótese típica do crime de estupro, para realização de atos libidinosos, cometido por meio de violência, consistente no emprego de força física contra a vítima, subjugando-a pela superioridade física do agente, até porque aquela possui limitações físicas decorrentes da ataxia cerebelar. 6. Ressalte-se que não há falar em aplicação retroativa, em tese, do crime de importunação sexual (CP, art. 215-A), porquanto a prova semiplena angariada até o momento levam à conclusão de utilização de violência para a prática do ato libidinoso, o que afasta a incidência da novatio legis in mellius, trazida pela Lei n. 13.718/2018, porquanto funciona como elemento especializante do crime de estupro. 7. Os elementos de informações testemunhais unificados nas investigações preliminares, realizados pela autoridade policial, somados e em consonância com a palavra da vítima, claramente conferem justa causa à representação, pois permitem inferir, em cognição meramente sumária, a materialidade do cometimento de atos libidinosos em relação à vitima, bem como a existência de indícios de autoria do recorrente. Outrossim, conforme jurisprudência consolidada desta Corte, a palavra da vítima possui especial relevância nos crimes contra a liberdade sexual, haja vista a usual clandestinidade da conduta, mormente se estiver em consonância com outros elementos informativos. 8. Diante de todas as peculiaridades e dificuldades probatórias típicas dos crimes contra a dignidade sexual, não se pode vislumbrar conclusão diversa senão da manutenção do processo, mesmo que não comprovadas exaurientemente a autoria e a materialidade, aptas à procedência da representação, impõe-se seu prosseguimento. Por corolário, possibilitar-se-á ao dominus litis a prova dos fatos imputados ao réu em instrução judicial, com todas as garantias processuais ao réu, em observância ao seu direito de confronto. 9. Recurso desprovido. STJ, RHC 93.906, Rel. Min. Ribeiro Dantas, 5ª Turma, j. 21.03.2019
Os recorrentes dos Embargos de Declaração supra alegaram que "é desproporcional e desarrazoado associar um beijo a um estupro. Mais injusto ainda é basear um processo exclusivamente na afirmação de uma suposta vítima que é contrariada por suas próprias testemunhas e pelo laudo pericial" (e-STJ, fl. 164).
Apesar de laudo negativo sobre a violência do ato, "É firme o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que, em crimes contra a liberdade sexual, a palavra da vítima possui especial relevância, uma vez que, em sua maioria, são praticados de modo clandestino, não podendo ser desconsiderada, notadamente quando corroborada por outros elementos probatórios" (AgRg no AREsp n. 1301938/RS, relator Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 18/9/2018, DJe 25/9/2018), de modo que a intimidação do autor com a vítima em beijo forçado é demonstrativo suficiente de ato libidinoso diverso da conjunção carnal, enquadrando-se em crime de estupro neste entendimento.
Entretanto, evidenciando a divergência das jurisprudências, em recente decisão foi proferido:
JUÍZO DE RETRATAÇÃO EM RECURSO ESPECIAL - REEXAME DA DECISÃO PELA TURMA JULGADORA - ESTUPRO DE VULNERÁVEL - DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO PREVISTO NO ARTIGO 215-A DO CÓDIGO PENAL - CABIMENTO - PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE - PRÁTICA DE ATO LIBIDINOSO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO - IMPORTUNAÇÃO SEXUAL CARACTERIZADA - ACÓRDÃO MANTIDO. - Embora haja no Superior Tribunal de Justiça orientação em sentido contrário, tem-se que em casos em que a acusação se refere a atos de menor lesividade, sem registro de conjunção carnal ou ato libidinoso em que se constate inegável e gravoso cunho sexual, inexistindo, ainda, contato intenso com partes íntimas ou circunstâncias que denotem maior gravidade, mostra-se necessária a desclassificação para o delito previsto no artigo 215-A do Código Penal, em atenção ao princípio da proporcionalidade e tendo em vista o menor potencial ofensivo da conduta imputada. (TJMG - Apelação Criminal 1.0686.21.000143-0/001, Relator(a): Des.(a) Glauco Fernandes , 2ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 18/05/2023, publicação da súmula em 24/05/2023)
No caso em referência, o relator dispõe que “no que se refere à acusação formulada nos presentes autos, em que é imputada ao réu a prática de ato libidinoso consistente em "palpar-lhe a vagina", mostra-se aplicável a tese desclassificatória aqui exposta, uma vez que os fatos narrados se adequam ao disposto no artigo 215-A do Código Penal.”
Com a devida vênia, as decisões supra tratam de atos totalmente divergentes, no entanto, demonstram de forma cristalina a insegurança jurídica e a violação dos princípios constitucionais penais quanto à aplicação da sanção e o enquadramento da conduta no tipo penal correto.
Em primeiro Acórdão, o autor beija de forma lasciva a vítima, esfregando-se nela, motivo pelo qual foi julgado pelo crime de estupro, nos termos da lei.
Em segundo Acórdão, o autor apalpa a intimidade de uma garota, contudo, é entendido que “a conduta imputada ainda que tenha gerado constrangimento na menor, não foi seguida de atos mais graves”, de modo que o fato de o autor “apenas” tocar na vagina da vítima não configurou, para a Turma Julgadora, estupro, desclassificando a conduta para importunação sexual pelo ato ter sido considerado “menos gravoso”, divergente do primeiro Acórdão, onde o beijo com lasciva; libidinoso, ensejou em estupro.
A ausência de descrição dos atos libidinoso divergentes da conjunção carnal resulta em decisões conflitantes; decisões destoantes; decisões que causam sentimento de injustiça às vítimas, isso porque a interpretação do ato, por não ser claro no dispositivo, depende, evidentemente, dos magistrados.
Há uma lacuna profunda quanto aos atos libidinosos que devem ou não configurar o delito do artigo 213 do Código Penal, de modo que não existe seguridade de saber como o autor do crime será punido, sendo sempre mais ou menos gravosa a sansão, por não haver previsão legal clara e objetiva o suficiente para não ocorrer dúvidas sobre a punição do acusado quanto ao delito cometido.
Portanto, "É de fundamental importância identificar, substancialmente, o bem jurídico de determinada conduta criminosa porque a partir desta advirão várias consequências como a classificação sistemática do crime, a própria compreensão do tipo, o conflito aparente de normas, além de se produzirem efeitos processuais. No que tange aos crimes sexuais, a identificação passa pelo princípio da intervenção mínima que implica a não punição das condutas meramente imorais."(GRECO. RASSI, 2010, p. 62)
Em que pese a esfera penal, os magistrados em geral devem ser bastante cuidadosos com as decisões proferidas. Segundo Trindade:
Quando estudamos o crime de estupro é preciso tomarmos cuidado com a intervenção desmedida do direito de punir do Estado, pois dependendo do caso poderíamos aplicar uma pena de 6 anos para quem desejasse apenas brincar, humilhar ou sujeitar a vítima a um vexame qualquer. [...] isto significa que nem sempre o ato libidinoso será um crime de relevância [...] ([TRINDADE, Título VI)
Destarte, evidenciado nas citações supraditas, além da dissonância entre o entendimento do Supremo e os demais Tribunais, há, ainda, discordância do Supremo em relação à doutrina. Para muitos doutrinadores, resta claro e evidente que, embora haja necessidade do ato libidinoso, incluído beijo lascivo, exercido sobre a vontade da vítima, não é proporcional que a punição desse agente seja equiparado a outros atos voluptuosos mais graves, ou efetiva conjunção carnal.
A concepção firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, somado à imprecisão da norma, ofende os princípios constitucionais penais da Proporcionalidade, Ofensividade e Razoabilidade, que são, em suma, a segurança do cidadão. Neste sentido, Mello, doutrinador, aponta:
Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa, não só a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. (MELLO, 2002, p. 808)
É absolutamente imprescindível que, ao ser aplicada, a medida penal não exceda de forma alguma o objetivo pretendido, de modo que seja a pena apropriada para a conduta cometida, não devendo ser, de modo algum, demasiadamente severa. Neste escopo, a tipificação da conduta deve ser precisa, de forma que não seja aberta possibilidades muito amplas de interpretação, para que, assim, o direito individual do cidadão seja resguardado e, ainda, haja efetivo cumprimento da norma, de forma justa e criteriosa, de acordo com o caso concreto.
Conforme abordado, há inegável desproporção entre conduta e sanção em casos de atos libidinoso no crime de estupro. Tal crime é considerado hediondo, com pena de 6 a 10 anos de reclusão. Apesar do entendimento do STJ, um beijo lascivo não poderia ser punido igualmente condutas como conjunção carnal, sexo oral, sexo anal ou masturbação, mesmo que imposto através de violência ou grave ameaça, pois não há dano suficiente ao bem jurídico tutelado para se enquadrar em um crime de pena tão severa. Data Vênia, a interpretação deste Supremo Tribunal de Justiça é evidentemente inadequada.
Outrossim, "por pior que seja o beijo e por mais feia que seja a pessoa que o forçou, não podemos condenar alguém por esse fato a cumprir uma pena de, pelo menos, 6 (seis) anos de reclusão, isto é, com a mesma gravidade que se pune um homicida.” (GRECO, 2012 p. 503.)
Os princípios constitucionais mencionados no parágrafo anterior não foram respeitados. A norma não traz precisão nos atos libidinosos mais graves ou menos graves, deixando ampla a interpretação do texto legal, de tal forma que beijos lascivos enquadrem o rol de atos libidinosos no crime de estupro, tornando-se, por conseguinte, ilegítima, como Celso de Mello ensina, sendo eivada de ilegalidade e inconstitucionalidade.
Deve-se observar e respeitar os princípios constitucionais penais da ofensividade, proporcionalidade e razoabilidade, para que a intervenção do Estado seja mínima, a pena, a de menor intensidade para punir a conduta, estando calculada da forma correta para apenas proteger o bem jurídico ameaçado.
Mesmo em sua pena máxima, o beijo lascivo como Importunação Sexual seria uma aplicação justa de pena para o crime cometido, sem que a punição seja tão severa, excessivamente gravosa e, sem afrontar os princípios penais constitucionais. O modo como o Egrégio Supremo Tribunal de Justiça tem aplicado a norma penal, não condiz com a ofensividade do ato criminoso, que está em desconformidade com a resposta penal à conduta delitiva, desrespeitando os princípios da ofensividade, razoabilidade e proporcionalidade, havendo excesso de punição. É necessário sempre lembrar do que é, de fato, a garantia de um Estado Democrático de Direito.
Diante da ambiguidade no texto legal referente ao crime de estupro, particularmente no que diz respeito à definição de "outro ato libidinoso", e considerando a severidade da penalização associada a esse crime, é crucial uma interpretação cuidadosa da lei para determinar quais condutas libidinosas podem ser consideradas parte desse delito. Uma interpretação precipitada e estritamente literal, como a adotada pelo Superior Tribunal de Justiça ao considerar um beijo lascivo forçado como estupro, pode resultar em aplicações injustas e excessivas, não condizentes com os Princípios Constitucionais Penais.
Nesse contexto, em busca de uma solução adequada para esse problema, é essencial analisar a lei penal à luz dos princípios que podem preencher as lacunas deixadas pelo legislador.
Os princípios são diretrizes fundamentais que fazem parte do sistema jurídico, orientando a formulação e interpretação das leis, além de servirem como limitações ao poder punitivo do Estado, especialmente no âmbito do Direito Penal.
As sanções penais devem ser apropriadas para alcançar seus objetivos. Portanto, a aplicação do Direito Penal deve ocorrer somente quando for apropriada para proteger o bem jurídico tutelado.
Destarte, a imposição de penalidades mais severas não deve prevalecer em hipótese que haja alternativas menos danosas.
Com base no exposto, fica evidente que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre o estupro, no contexto de um beijo lascivo obtido à força, viola os princípios da proporcionalidade, ofensividade e razoabilidade, uma vez que essa conduta não apresenta um potencial lesivo significativo ao bem jurídico da dignidade/liberdade sexual e não justifica uma pena mínima de seis anos de reclusão.
Como solução específica para esse problema, sugere-se que a conduta de forçar alguém a dar um beijo lascivo seja enquadrada como o crime de importunação sexual. Caso o ato seja interpretado como demasiadamente danoso ao bem jurídico tutelado, pode, assim, ser punido da forma mais gravosa descrita na norma.
É essencial ter cautela para evitar punições excessivas no âmbito penal. Todas as medidas repressivas devem ser proporcionais à gravidade do delito para que haja concordância com um Estado Democrático de Direito
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. ed. São Paul, pág. 158. 2007
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graduanda em Direito, do Centro Universitário UNA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VASCONCELOS, Larissa Sadi Ali de. Beijo lascivo enquadrado em crime de estupro – análise sob o entendimento jurisprudencial à luz dos princípios da proporcionalidade, ofensividade e razoabilidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2023, 04:52. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63891/beijo-lascivo-enquadrado-em-crime-de-estupro-anlise-sob-o-entendimento-jurisprudencial-luz-dos-princpios-da-proporcionalidade-ofensividade-e-razoabilidade. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
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Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
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