Resumo: Os canabinoides, compostos encontrados na planta cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha, têm despertado um crescente interesse na comunidade médica e entre pacientes que buscam alternativas no tratamento de diversas condições de saúde. No entanto, o processo de regulamentação do uso terapêutico dessa substância no Brasil tem enfrentado desafios e debates jurídicos significativos, sobretudo em face da previsão do TETRAIDROCANABINOL (THC), composto extraído da planta, dentre as substâncias psicotrópicas proscritas pelos regulamentos executivos de saúde[1]. Esse trabalho se propõe a compilar em um único documento, de forma suscinta, como, e sob quais fundamentos, a jurisprudência tem desempenhado um papel fundamental na evolução da aceitação do Canabidiol para fins terapêuticos no país, figurando, na prática, como importante via de realização do direito fundamental à saúde.
Palavras-chave: Direito à Saúde. Canabidiol. Terapias Alternativas. Jurisprudência Nacional.
Na pauta da década, para além da análise no âmbito penal do uso recreativo de substâncias de uso proscrito pelos regulamentos executivos de saúde, a evolução das pesquisas científicas envolvendo o desenvolvimento de medicamentos e terapias a partir do uso de compostos extraídos da planta cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha, tem encontrado entraves jurídicos com relação ao uso e distribuição da droga para tratamento de pacientes que buscam alternativas às medicações até então existentes no mercado.
Os canabinóides são mensageiros químicos do corpo, sendo alguns deles produzidos naturalmente pelo organismo, denominados como endógenos, e utilizados, através de ligações químicas, para regular funções básicas como o humor, o apetite, a dor ou o sono, ao passo em que outros, denominados como exógenos, são tradicionalmente encontrados na planta cannabis sativa, podendo ser sintetizados através de um processo mecânico realizado em laboratório, após o que, uma vez consumidos, irão interagir com o sistema interno do organismo humano, produzindo determinados efeitos físicos e psicológicos.[2]
O Canabidiol (CBD) é um dos canabinóides presentes na planta cannabis sativa, empregado para a produção de medicamentos, em virtude das suas características terapêuticas, bem como do fato de não possuir, como efeito colateral de sua ingestão, a produção de efeitos psicoativos. [3]
O avanço das pesquisas médicas e o sucesso dos tratamentos com a cannabis têm colocado constantemente a jurisprudência brasileira diante de desafios complexos, devido aos conflitos que surgem entre o direito dos pacientes ao acesso a tratamentos eficazes e a proibição do uso e comércio da maconha no Brasil.
Em 2021, foi julgado o RE 1165959/SP[4], de relatoria do Ministro Marco Aurélio, que fixou com Repercussão Geral o Tema 1161: “Cabe ao Estado fornecer, em termos excepcionais, medicamento que, embora não possua registro na ANVISA, tem a sua importação autorizada pela agência de vigilância sanitária, desde que comprovada a incapacidade econômica do paciente, a imprescindibilidade clínica do tratamento, e a impossibilidade de substituição por outro similar constante das listas oficiais de dispensação de medicamentos e os protocolos de intervenção terapêutica do SUS.”[5]
O julgamento em questão teve como leading case pedido de fornecimento gratuito pelo Estado de São Paulo, do medicamento “Hemp Oil Paste RSHO”, à base de canabidiol, para pessoa hipossuficiente, tendo como fundamento o alto custo de importação do medicamento, destacando-se a existência preexiste de autorização para importação para uso pessoal, em caráter de excepcionalidade, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, conforme critérios específicos elencados na Resolução da Diretoria Colegiada - RDC n. 17, de 6 de maio de 2015, da Anvisa, e em regulamentações posteriores.
Na esteira desse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça, em 2021, no julgamento do REsp 1943628-DF, consolidou em sua jurisprudência o posicionamento acerca da obrigatoriedade do custeio pelas operadoras de planos de saúde de medicação que, a despeito de não ter sido registrada pela Anvisa, teve a sua importação excepcionalmente autorizada pela Agência.[6]
O julgado em questão baseou-se no pedido de fornecimento de medicamento denominado “Purodiol 200mg CDB”, cuja base é a substância canabidiol, utilizado para tratamento de paciente diagnosticado com epilepsia grave, e figura como hipótese de distinguishing com a tese firmada no Tema 990 dos Recursos Repetitivos, segundo a qual as operadoras de planos de saúde não estão obrigadas a fornecer medicamento não registrado pela Anvisa.[7]
Mais recentemente, já no ano de 2023, no julgamento do HC 802866/ PR (2023/0047241-7)[8], a Terceira Turma do STJ passou à análise da questão, a fim de uniformizar, no âmbito das turmas criminais, o entendimento já adotado pelas Quinta e Sexta Turmas, acerca da possibilidade de concessão de salvo-conduto para cultivo doméstico da planta cannabis sativa para fins medicinais, com fundamento no direito à saúde pública e a melhor qualidade de vida.
Ultrapassadas as premissas acerca do cabimento ou não do remédio constitucional do habeas corpus para a análise do tema, de acordo com o julgado, em havendo prescrição feita por profissional médico especializado, não se configura como conduta criminosa o plantio e a aquisição das sementes da cannabis sativa, para a fabricação artesanal de óleo, com fins exclusivamente terapêuticos, independentemente de regulamentação específica por parte da Anvisa.
No julgamento do HC n. 779.289/DF[9], a Quinta Turma do STJ, com base na teoria da tipicidade conglobante, cunhada pelo jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, firmou entendimento acerca da atipicidade das condutas supramencionadas, em face do entendimento anterior já consolidado no âmbito da jurisprudência do próprio Tribunal Superior e do STF, acerca da atipicidade da conduta de importação de sementes da canabis sativa, não se amoldando ao tipo penal de tráfico, em virtude da inexistência do princípio ativo proscrito nos regulamentos administrativos pertinentes, nem ao crime de contrabando, pela incidência do princípio da insignificância.
Destacou-se, ainda, que o entendimento em contrário vai de encontro aos fundamentos do Direito Penal, considerando-se a finalidade declarada de proteção a bens jurídicos, posto que figura, em última instância, como forma criminalização da busca de acesso ao direito fundamental à saúde, ressaltando-se, ainda, que o uso medicinal da cannabis sativa é conduta inócua à ofensa ao bem jurídico tutelado pela Lei de Drogas, qual seja, a saúde pública.
Dentre os fundamentos elencados no voto, a hipótese citada, não se amolda às descrições típicas contidas na referida lei, por lhe faltar elemento normativo do tipo, qual seja, a ausência de autorização ou o uso em desacordo com determinação legal ou regulamentar, sobretudo porquanto a Portaria n.º 344, de 12 de maio de 1998 [10], que aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial, elenca, dentre as substâncias de uso proscrito no Brasil, apenas um dos canabinóides extraídos da cannabis, qual seja, o TETRAIDROCANABINOL – THC.
Nesse sentido, enriquecedor se faz transcrever o seguinte trecho da ementa do acórdão proferido julgado supramencionado:
A matéria trazida no presente mandamus diz respeito ao direito fundamental à saúde, constante do art. 196 da Carta Magna, que, na hipótese, toca o direito penal, uma vez que o art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, determina a repressão ao tráfico e ao consumo de substâncias entorpecentes e psicotrópicas, determinando que essas condutas sejam tipificadas como crime inafiançável e insuscetível de graça e de anistia. - Diante da determinação constitucional, foi editada mais recentemente a Lei 11.343/2006. Pela simples leitura da epígrafe da referida lei, constata-se que, a contrario sensu, ela não proíbe o uso devido e a produção autorizada. Dessa forma, consta do art. 2º, parágrafo único, que "pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas".
[...] Desde 2015 a Agência Nacional de Vigilância Sanitária vem autorizando o uso medicinal de produtos à base de Cannabis sativa, havendo, atualmente, autorização sanitária para o uso de 18 fármacos. De fato, a ANVISA classificou a maconha como planta medicinal (RDC 130/2016) e incluiu medicamentos à base de canabidiol e THC que contenham até 30mg/ml de cada uma dessas substâncias na lista A3 da Portaria n. 344/1998, de modo que a prescrição passou a ser autorizada por meio de Notificação de Receita A e de Termo de Consentimento Informado do Paciente. [11]
De acordo com o voto do Ministro Relator, Reynaldo Soares da Fonseca, a omissão estatal em regulamentar a matéria, aliada à inexistente previsão de solução breve para a questão, milita em desfavor do direito fundamental à saúde, condicionando a terapia canábica àqueles que possuam recursos para a aquisição dos medicamentos por meios próprios ou pelo enfrentamento da burocracia das vias judiciais.
Conclusão
A despeito da posição conservadora do cenário político brasileiro, a análise da jurisprudência pátria sobre o uso do Canabidiol para fins medicinais no Brasil revela um panorama em evolução.
As discussões levadas aos Tribunais têm sido essenciais na busca pelo equilíbrio entre os interesses em conflito, a fim de garantir tanto o acesso a terapias médicas eficazes quanto a necessidade de manter regulamentações voltadas à segurança pública e à saúde coletiva.
Ao longo dos anos, o poder judiciário tem funcionado como via de acesso e de garantia dos direitos fundamentais, assumindo uma postura contra majoritária e revelando uma tendência progressista ao reconhecer os benefícios e garantir o acesso a esses tratamentos para pacientes que deles necessitam, privilegiando-se as conclusões técnicas, as prescrições terapêuticas e o direito à saúde.
A bem disso, também é evidente que o quadro legal enfrenta desafios, como a necessidade de regulamentação clara e eficaz, apta desburocratizar o acesso ao tratamento prescrito, sobretudo em virtude da urgência de quem está em situação de vulnerabilidade causada pela doença.
Nesse sentido, o diálogo contínuo entre os poderes judiciário, legislativo e executivo, juntamente com a participação ativa da comunidade médica e científica, é fundamental na definição de políticas que respeitem a dignidade da pessoa humana, a fim de promover soluções regulatórias mais abrangentes, que atendam às demandas emergentes da sociedade, baseadas em pesquisas científicas contínuas, em que se garanta a qualidade e a segurança dos produtos e dos resultados a serem alcançados, pautando-se sempre na promoção do bem estar social, em contraposição a interesses políticos isolados e às demais crenças limitantes oriundas da moral e dos costumes.
Referências Bibliográficas:
BRASIL, Portaria n.º 344, de 12 de maio de 1998. (*) Aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial. Disponível em:
<https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/svs/1998/prt0344_12_05_1998_rep.html> acesso em: novembro de 2023.
DA SILVA, Anaísa Vieira. Medicinal use of cannabinoids. Monografia de Mestrado Integrado em Ciências Farmacêuticas apresentada à Universidade de Lisboa através da Faculdade de Farmácia. Disponível em:
<https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/52511/1/MICF_Anaisa_Silva.pdf> acesso em: novembro de 2023.
Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 1165959. Ministro Relator Alexandre de Moraes. 2021. Disponível em:
<https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=757870908> acesso em: 07/11/2023.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A operadora do plano de saúde deve custear medicamento importado, o qual, apesar de não registrado pela ANVISA, possui autorização para importação em caráter excepcional. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em:
<https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/a35d11c2f995c60b0341a9c777f1ae03>. Acesso em: 08/11/2023
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Brasil. Superior Tribunal de Justiça. 5ª Turma. HC 779289/DF, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 22/11/2022 (Info 758). Disponível em:
<https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202203358860> acesso em: 07/11/2023.
[1] BRASIL, Portaria n.º 344, de 12 de maio de 1998. (*) Aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial. Disponível em:
< https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/svs/1998/prt0344_12_05_1998_rep.html> acesso em: novembro de 2023.
[2] DA SILVA, Anaísa Vieira. Medicinal use of cannabinoids. Monografia de Mestrado Integrado em Ciências Farmacêuticas apresentada à Universidade de Lisboa através da Faculdade de Farmácia. Disponível em: <https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/52511/1/MICF_Anaisa_Silva.pdf>
acesso em: novembro de 2023.
[3] DA SILVA, Anaísa Vieira. Medicinal use of cannabinoids. Monografia de Mestrado Integrado em Ciências Farmacêuticas apresentada à Universidade de Lisboa através da Faculdade de Farmácia. Disponível em: <https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/52511/1/MICF_Anaisa_Silva.pdf>
acesso em: 07/11/2023.
[4] Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 1165959. Ministro Relator Alexandre de Moraes. 2021. Disponível em:
< https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=757870908> acesso em: 07/11/2023.
[5] Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 1165959. Ministro Relator Alexandre de Moraes. 2021. Disponível em:
<https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5559067&numeroProcesso=1165959&classeProcesso=RE&numeroTema=1161> acesso em: 07/11/2023.
[6] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A operadora do plano de saúde deve custear medicamento importado, o qual, apesar de não registrado pela ANVISA, possui autorização para importação em caráter excepcional. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/a35d11c2f995c60b0341a9c777f1ae03>. Acesso em: 08/11/2023
[7] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A operadora do plano de saúde deve custear medicamento importado, o qual, apesar de não registrado pela ANVISA, possui autorização para importação em caráter excepcional. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/a35d11c2f995c60b0341a9c777f1ae03>. Acesso em: 08/11/2023
[8] Brasil. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 802866/PR (20230047241-7). Ministro Relator Messod Azulay Neto. 2023. Disponível em:
<https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=5&documento_sequencial=208209340®istro_numero=202300472417&peticao_numero=&publicacao_data=20231003&formato=PDF> acesso em: 07/11/2023.
[9] Brasil. Superior Tribunal de Justiça. 5ª Turma. HC 779289/DF, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 22/11/2022 (Info 758). Disponível em:
< https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202203358860> acesso em: 07/11/2023.
[10] BRASIL, Portaria n.º 344, de 12 de maio de 1998. (*) Aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial. Disponível em:
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[11] Brasil. Superior Tribunal de Justiça. 5ª Turma. HC 779289/DF, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 22/11/2022 (Info 758). Disponível em:
< https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202203358860>. Acesso em: 07/11/2023.
Advogada, Formada em Direito pela Universidade Federal da Bahia, Pós graduada em Direito Penal pelo Instituto Damásio de Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JESUS, natalia das águas costa de. A influência da jurisprudência na aceitação do canabidiol para fins terapêuticos no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2023, 04:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63895/a-influncia-da-jurisprudncia-na-aceitao-do-canabidiol-para-fins-teraputicos-no-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
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