RESUMO: O presente artigo tem por objetivo principal realizar uma análise das diversas espécies de usucapião existentes no ordenamento jurídico pátrio, as suas hipóteses de cabimento e requisitos legais, bem como os posicionamentos prevalentes no âmbito doutrinário e jurisprudencial, notadamente no que diz respeito ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal (STF). Nota-se que tal instituto se relaciona à intervenção do Estado na propriedade privada, que é um direito fundamental com previsão constitucional, razão pela qual deve sempre ser aplicado em estrita observância à legalidade. Apresenta como problema que tais instrumentos estão previstos em diversos diplomas, o que muitas vezes dificulta a atuação dos operadores do direito. É concluído, então, que a usucapião é um instrumento de garantia do direito à moradia, cuja legitimidade tem fulcro na própria Constituição, razão pela qual se observada a espécie e do procedimento adequados, surge o direito de propriedade originário do usucapiente.
Palavras-chave: Direito à propriedade privada. Função social da propriedade. Usucapião. Prescrição aquisitiva. Usucapião comum. Usucapião ordinário. Usucapião tabular. Usucapião extraordinário. Usucapião rural. Usucapião urbano. Usucapião pro habitare. Usucapião conjugal. Usucapião coletiva. Usucapião indígena.
O presente estudo realiza uma abordagem das diversas modalidades de usucapião existentes no ordenamento jurídico pátrio, bem como as suas hipóteses de cabimento e requisitos legais.
Nesta senda, tal instituto se relaciona tanto ao direito de propriedade, quanto à posse, que são direitos fundamentais com previsão constitucional, razão pela qual a usucapião deve sempre ser aplicada em estrita observância à legalidade.
Além disso, nota-se que a usucapião está prevista em diversos diplomas, o que muitas vezes dificulta a atuação dos operadores do direito. Existem espécies de usucapião dispostas na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB); no Código Civil; e no Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/2001); sendo que muitas vezes os diplomas versam sobre a mesma modalidade do instituto.
Desse modo, o trabalho busca demonstrar as semelhanças e diferenças entre as espécies de usucapião, bem como os posicionamentos prevalentes no âmbito doutrinário e jurisprudencial, notadamente no que diz respeito ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal (STF).
A metodologia utilizada no trabalho baseia-se em pesquisa bibliográfica, tendo em vista que se utiliza da legislação brasileira, de artigos de recursos informativos, dissertações, revistas, utilizando o método dedutivo.
1.CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DA USUCAPIÃO.
De início, importa registrar que “usucapião” é uma expressão feminina (FIGUEIREDO[1]):
A usucapião constitui instituto sedimentado pelo Corpus luris Civilis de Justiniano. Etimologicamente, significa a copio ou capionis (tomada, aquisição, ocupação) por meio do usu (uso). Trata-se de expressão no feminino a significar a ocupação da coisa por meio do uso. Exatamente por isso é que a expressão é consagrada no gênero feminino, como consta na Lei 6.969/81, no Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001), no Código Civil de 2002, no Direito Francês, Espanhol, Italiano e lnglês.
A usucapião é um instituto jurídico por meio do qual o indivíduo que fica na posse de um bem móvel ou imóvel por determinados anos agindo como se fosse dono, adquiri-lhe a propriedade ou outros direitos reais a ele relacionados, desde que cumpridos os requisitos legais.
De acordo com CAVALCANTE[2], “alguns autores, especialmente mais antigos, afirmam que a usucapião também pode ser chamada de prescrição aquisitiva [...] faz com que a pessoa adquira um determinado direito em virtude de ter ficado na posse daquele bem como se fosse o dono durante alguns anos, período no qual o proprietário original manteve-se inerte e não questionou essa posse”.
Ainda segundo o professor[3]:
Em contraposição aos direitos pessoais, que decorrem das relações humanas mediante o exercício do direito pelo credor contra o devedor, os direitos reais recaem sobre bens corpóreos, mediante o exercício de poderes imediatos e diretos sobre os bens, em caráter permanente e com direito de sequela.
Assim, não se verifica a prescrição dos direitos reais do titular sobre o bem ou o direito de reaver a coisa, independentemente do período de tempo em que ficou afastado da posse ou do simples uso. O que se verifica, na verdade, é a perda do bem diante do surgimento de algum direito em favor de uma terceira pessoa perante o mesmo bem, como é o caso da usucapião.
A usucapião é um modo de aquisição originária da propriedade, tornando irrelevante quaisquer direitos que terceiros tenham sobre o bem, bastando estar demonstrada a posse contínua, mansa e pacífica durante o prazo legal, com animus domini e sem contestação, independentemente do conhecimento ou não da posse pelo antigo proprietário, não havendo discussão quanto ao elemento subjetivo das partes.
Para TARTUCE[4], a usucapião possui, essencialmente, 5 (cinco) requisitos:
a) Posse com intenção de dono (animus domini) – entra em cena o conceito de posse de Savigny, que tem como conteúdo o corpus (domínio fático) e o animus domini (intenção de dono). [...]
b) Posse mansa e pacífica – exercida sem qualquer manifestação em contrário de quem tenha legítimo interesse, ou seja, sem a oposição do proprietário do bem. Se em algum momento houver contestação dessa posse pelo proprietário, desaparece o requisito da mansidão.
c) Posse contínua e duradoura, em regra, e com determinado lapso temporal – posse sem intervalos, sem interrupção. Como exceção a ser estudada, o art. 1.243 do CC admite a soma de posses sucessivas ou accessio possessionis. Quanto à duração, há prazos estabelecidos em lei, de acordo com a correspondente modalidade de usucapião. [...]
d) Posse justa – a posse usucapível deve se apresentar sem os vícios objetivos, ou seja, sem a violência, a clandestinidade ou a precariedade. Se a situação fática for adquirida por meio de atos violentos ou clandestinos, não induzirá posse, enquanto não cessar a violência ou a clandestinidade (art. 1.208, 2.ª parte, do CC). [...]
e) Posse de boa-fé e com justo título, em regra – a usucapião ordinária, seja de bem imóvel ou móvel, exige a boa-fé e o justo título (arts. 1.242 e 1.260 do CC). Para outras modalidades de usucapião, tais requisitos são até dispensáveis, como se verá mais adiante, havendo uma presunção absoluta ou iure et de iure de sua presença.
Note-se que, conforme ensinamento de CARVALHO FILHO[5], a Administração Pública direta e indireta pode adquirir bens por usucapião: “A lei civil, ao estabelecer os requisitos para a aquisição da propriedade por usucapião, não descartou o Estado como possível titular do direito. Segue-se, pois, que, observados os requisitos legais exigidos para os possuidores particulares de modo geral, podem as pessoas de direito público adquirir bens por usucapião. Esses bens, uma vez consumado o processo aquisitivo, tornar-se-ão bens públicos”.
Nessa linha intelectiva, ainda conforme o referido autor, importa registrar que:
Como os imóveis públicos não são suscetíveis de ser adquiridos por usucapião, conforme averba o art. 183, § 3º, da CF, sentiu-se a necessidade de adotar para eles outro instrumento que guardasse similitude com aquele instituto, sempre tendo em mira atender às necessidades reclamadas pela política urbana. Foi então instituída a concessão de uso especial para fins de moradia, disciplinada pela Medida Provisória no 2.220, de 4.9.2001. Sendo instrumento recente, vale a pena alinhavar sucintamente algumas observações sobre seu regime jurídico. Antes, porém, cumpre salientar que ambos os instrumentos têm como núcleo central o direito à moradia, sem dúvida um dos direitos fundamentais dos indivíduos. Desse modo, pode dizer-se que o direito à propriedade, no usucapião, e o direito ao uso de imóvel público, na concessão de uso especial, retratam direitos-meio para o exercício do direito-fim – este o direito à moradia, verdadeiro pano de fundo daqueles outros direitos. Esse aspecto não deve ser esquecido na medida em que o Estatuto da Cidade inclui o direito à moradia como um dos fatores que marcam as cidades sustentáveis (art. 2º, I, Estatuto da Cidade). Constitui, pois, uma das diretrizes de política urbana, de modo que outros instrumentos devem ser instituídos para tal desiderato política urbana
Em regra, o usucapiente pode contabilizar a posse do antecessor, desde que contínua. No caso da usucapião ordinária e da usucapião tabular, contudo, tanto o possuidor atual, quanto o(s) antecessor(es) cuja posse se pretenda utilizar para fins de usucapião precisam ter justo título e estar de boa fé.
Os arts. 1.241, 1.243 e 1.244 do Código Civil dispõem acerca do tema:
Art. 1.241. Poderá o possuidor requerer ao juiz seja declarada adquirida, mediante usucapião, a propriedade imóvel.
Parágrafo único. A declaração obtida na forma deste artigo constituirá título hábil para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Art. 1.243. O possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (art. 1.207), contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com justo título e de boa-fé.
Art. 1.244. Estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião.
Registre-se, ademais, que, para o Superior Tribunal de Justiça, é possível o reconhecimento da usucapião de bem imóvel com a implementação do requisito temporal no curso da demanda, sendo certo que a contestação apresentada pelo réu não impede o transcurso do lapso temporal, pois a peça defensiva não tem a capacidade de exprimir a resistência do demandado à posse exercida pelo autor, mas apenas a sua discordância com a aquisição do imóvel pela usucapião (STJ. 3ª Turma. REsp 1.361.226-MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 05/06/2018)[6].
Embora não seja comum, é juridicamente possível o reconhecimento de usucapião de bem móvel. Ela é classificada em ordinária, se houver justo título e boa-fé, caso em que o prazo de aquisição da propriedade é de 3 (três) anos, e em extraordinária, cujo prazo é de 5 (cinco) anos, mas não é exigido nenhum outro requisito. Para melhor elucidar a questão, vejamos:
Art. 1.260. Aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e incontestadamente durante três anos, com justo título e boa-fé, adquirir-lhe-á a propriedade.
Art. 1.261. Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco anos, produzirá usucapião, independentemente de título ou boa-fé.
Art. 1.262. Aplica-se à usucapião das coisas móveis o disposto nos arts. 1.243 e 1.244.
Por fim, DI PIETRO[7] leciona que:
Embora não mais previsto na Constituição, havia até recentemente o usucapião especial disciplinado pela Lei nº 6.969, de 10-12-81, que incidia sobre terras devolutas situadas na área rural, após o período de cinco anos de posse ininterrupta e sem oposição, além de outros requisitos anteriormente estabelecidos para o usucapião pro labore: morada e cultivo da terra com o próprio trabalho, inexistência de outro imóvel de que seja proprietário o interessado, área não superior a 25 ha. A Constituição de 1988, lamentavelmente, proibiu qualquer tipo de usucapião de imóvel público, quer na zona urbana (art. 183, § 3º), quer na área rural (art. 191, parágrafo único), com o que revogou a Lei nº 6.969/81, na parte relativa aos bens públicos. Essa proibição constitui um retrocesso por retirar do particular que cultiva a terra um dos instrumentos de acesso à propriedade pública, precisamente no momento em que se prestigia a função social da propriedade.
Pois bem. A usucapião pode ser rotulada em comum e especial. No primeiro caso, a usucapião se subdivide em usucapião ordinária e usucapião extraordinária. Na segunda hipótese, a usucapião é classificada em usucapião rural, usucapião urbana e usucapião coletiva.
Vejamos as características de cada modalidade de usucapião.
2. USUCAPIÃO COMUM
A usucapião comum é aquela cujo maior aliado é o transcurso do tempo, sendo exigido, quando muito e a depender da espécie, apenas justo título e boa-fé. Não se confunde com a usucapião especial, para a qual, além do tempo, é imprescindível que o imóvel sirva de moradia ou, ao menos, que sejam nele realizadas obras ou serviços produtivos, como será visto adiante.
Outra característica marcante da usucapião comum, é que ela pode ocorrer indistintamente em imóveis urbanos ou rurais, bem como que o usucapiente pode usucapir mais de um imóvel, utilizando o instituto quantas vezes necessárias, desde que observados os requisitos legais para tanto.
2.1 USUCAPIÃO ORDINÁRIA
A usucapião ordinária está prevista no art. 1.242, caput, do Código Civil.
Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.
Como visto, é possível usucapião ordinária tanto de imóvel rural, quanto de imóvel urbano, sendo o prazo, em ambos os casos, de 10 (dez) anos. Para tanto, necessária a existência de justo título e de boa-fé.
Quanto ao justo título, TARTUCE[8] leciona:
No que toca ao justo título, é fundamental a citação novamente do Enunciado n. 86 do CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil, prevendo que a expressão abrange todo e qualquer ato jurídico hábil, em tese, a transferir a propriedade, independentemente de registro. Em outras palavras, deve ser considerado justo título para a usucapião ordinária o instrumento particular de compromisso de compra e venda, independentemente do seu registro ou não no Cartório de Registro de Imóveis
2.2 USUCAPIÃO TABULAR OU DOCUMENTAL OU POR COVALESCENÇA REGISTRAL
A usucapião tabular ou documental ou por convalescença registral, por sua vez, tem disposição no parágrafo único do art. 1.242 do Código Civil, de modo que é, em verdade, um desdobramento da espécie anterior.
Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.
Além dos requisitos da usucapião ordinária, a usucapião tabular depende que o justo título existente – adquirido onerosamente – tenha sido cancelado e que o imóvel sirva de moradia ou de investimento de interesse social.
O objetivo do legislador foi proteger o adquirente de boa-fé, que comprou bem imóvel onerosamente e, a posteriori, foi surpreendido com o cancelamento do título. Tamanha a necessidade de conferir segurança jurídica a esse indivíduo, foi incluída ressalva expressa no art. 214, § 5º, da Lei de Registros Públicos (Lei n.º 6.015/1973):
Art. 214 - As nulidades de pleno direito do registro, uma vez provadas, invalidam-no, independentemente de ação direta.
§ 1º A nulidade será decretada depois de ouvidos os atingidos.
§ 2º Da decisão tomada no caso do § 1º caberá apelação ou agravo conforme o caso.
§ 3º Se o juiz entender que a superveniência de novos registros poderá causar danos de difícil reparação poderá determinar de ofício, a qualquer momento, ainda que sem oitiva das partes, o bloqueio da matrícula do imóvel.
§ 4º Bloqueada a matrícula, o oficial não poderá mais nela praticar qualquer ato, salvo com autorização judicial, permitindo-se, todavia, aos interessados a prenotação de seus títulos, que ficarão com o prazo prorrogado até a solução do bloqueio.
§ 5º A nulidade não será decretada se atingir terceiro de boa-fé que já tiver preenchido as condições de usucapião do imóvel.
A usucapião em apreço, como a anterior, também pode ocorrer em imóveis urbanos ou rurais, mas, diante das particularidades acima indicadas, seu prazo é de somente 5 (cinco) anos.
2.3 USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA
A usucapião extraordinária está disposta no art. 1.238 do Código Civil.
Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
Seu prazo é, como regra, 15 (quinze) anos. Entretanto, pode ser reduzido para 10 (dez) anos se o imóvel servir de moradia ou apresentar obras ou serviços produtivos. Note-se, portanto, que o fato de o imóvel servir como moradia ou possuir caráter produtivo não é circunstância propriamente constitutiva do direito à usucapião, mas sim causa de redução do tempo necessário para usucapir, em franco benefício ao usucapiente que cumpriu a função social da propriedade rural ou urbana, conforme o caso.
Especificamente acerca do tema, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a usucapião extraordinária pode ser de área inferior ao "módulo urbano". Essa já era o entendimento prevalecente na doutrina. Por todos, CARVALHO FILHO[9]: “a previsão em lei municipal de módulo urbanístico com área superior à prevista para os institutos anteriormente citados (250m²) não impede que o possuidor, preenchidos os demais requisitos, tenha o direito à usucapião urbana, e isso porque os elementos do direito subjetivo têm definição no art. 183 da CF [...] o tecido social do instituto deve preponderar sobre o formalismo de leis locais urbanísticas”.
No julgamento do REsp 1667842/SC[10], em consonância com o julgamento do RE 422349/RS pelo Supremo Tribunal Federal, foi decidido pela Corte da Cidadania que:
Se forem preenchidos os requisitos do art. 1238 do CC/2002, a pessoa terá direito à usucapião extraordinária e o fato de o imóvel em questão não atender ao mínimo dos módulos urbanos exigidos pela legislação municipal para a respectiva área (dimensão do lote) não é motivo suficiente para se negar esse direito, pois não há na legislação ordinária própria à disciplina da usucapião regra que especifique área mínima. Para que seja deferido o direito à usucapião extraordinária basta o preenchimento dos requisitos exigidos pelo Código Civil, de modo que não se pode impor obstáculos, através de leis municipais, para impedir que se aperfeiçoe, em favor de parte interessada, o modo originário de aquisição de propriedade.
3.USUCAPIÃO ESPECIAL
A usucapião especial, por sua vez, tem como característica que o imóvel sirva como moradia do usucapiente, possuindo, de pronto, prazos menores em relação às espécies de usucapião comum.
3.1 USUCAPIÃO RURAL
A usucapião rural tem amparo constitucional, no art. 191 da Constituição da República:
Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
Ocorre que o dispositivo da Carta Magna foi integralmente copiado no art. 1.239 do Código Civil:
Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Como seu próprio nome indica, essa espécie de usucapião é restrita a imóveis rurais, e tem como prazo 5 (cinco) anos.
Seus requisitos são que o imóvel rural possua até 50 (cinquenta) hectares; sirva para produção familiar; sirva de moradia; e que o usucapiente não possua outro imóvel.
Para o Superior Tribunal de Justiça, presentes os requisitos exigidos no art. 191 da CF/88, o imóvel rural cuja área seja inferior ao "módulo rural" estabelecido para a região (art. 4º, III, da Lei 4.504/1964) poderá ser adquirido por meio de usucapião especial rural (STJ. 4ª Turma. REsp 1.040.296-ES, Rel. originário Min. Marco Buzzi, Rel. para acórdão Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 2/6/2015)[11].
Registre-se que na prática forense se verifica o emprego da nomenclatura usucapião pro labore, entretanto, essa denominação não é a mais técnica. Isso porque a posse-trabalho não é uma espécie de usucapião, mas sim uma característica presente em diversas espécies, que consiste em tornar o bem imóvel produtivo por meio do trabalho.
3.2 USUCAPIÃO URBANA
A usucapião urbana pode ser de duas subespécies: pro habitare ou pro misero e familiar, conjugal, especialíssima ou residencial. Ambos só podem ser utilizados uma vez, por expressa previsão legal.
3.3 USUCAPIÃO PRO HABITARE OU PRO MISERO
A usucapião urbana pro habitare ou pro misero é a espécie de usucapião com maior número de previsões normativas. Ela tem assento no art. 183 da Constitucional da República Federativa do Brasil:
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
Além disso, conta com reprodução no art. 1.240 do Código Civil:
Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º O direito previsto no parágrafo antecedente não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
Por fim, consta também no art. 9º do Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/2001):
Art. 9º Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º O título de domínio será conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3º Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão.
Trata-se de espécie de usucapião voltada exclusivamente aos imóveis urbanos e que conta com prazo de 5 (cinco) anos.
Seus requisitos são que o imóvel tenha até 250 (duzentos e cinquenta) metros quadrados – podendo ser unidade autônoma em condomínio; sirva de moradia; e que o usucapiente não possua outro imóvel. Há previsão específica de que o herdeiro somente continua a posse do posseiro anterior se residir no imóvel ao tempo da sucessão.
Quanto ao aproveitamento do tempo anterior de posse de terceiros para complementação do quinquênio necessário à declaração de prescrição aquisitiva, esse pode ser pela soma das posses inter vivos (acessio possessionis) ou pela soma das posses causa mortis (sucessio possessionis). O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp 1.799.625-SP, decidiu que isso não seria possível a acessio possessionis – mas, somente a sucessio possessionis – no caso de usucapião especial urbana:
RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DECLARATÓRIA - USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA (arts. 183 da CRFB/88, 1.240 do CC/02 e 9º da Lei nº 10.257/2001) - PRETENSÃO PETITÓRIA DEDUZIDA EM RECONVENÇÃO - TRIBUNAL DE ORIGEM QUE, AO REFORMAR A SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA, ACOLHE O PEDIDO DECLARATÓRIO DE PRESCRIÇÃO AQUISITIVA E JULGA IMPROCEDENTE AQUELE VEICULADO EM RECONVENÇÃO (pleito reivindicatório). INSURGÊNCIA DOS RÉUS/RECONVINTES. USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA - CARÁTER PESSOAL/FAMILIAR - INCOMPATIBILIDADE COM O INSTITUTO DA ACCESSIO POSSESSIONIS (art. 1.243 do CC) - IMPOSSIBILIDADE DE ACRÉSCIMO DE POSSES ANTERIORES - LAPSO QUINQUENAL NÃO ALCANÇADO.
Hipótese: ação de usucapião especial urbana ajuizada por promissários compradores de imóvel urbano, cujo pedido foi julgado procedente pela Corte estadual, ao reformar a sentença em sede de apelação, com fundamento no instituto da accessio possessionis - somatório das posses anteriores -, a teor do que dispõe o artigo 1.243 do Código Civil.
1. A usucapião especial urbana, introduzida no ordenamento jurídico pátrio pela Constituição da República de 1988, consubstancia expressão da política de desenvolvimento urbano pautada pelo caráter social do direito à moradia - enquanto desdobramento da garantia à dignidade da pessoa humana. Referido instituto destina-se, portanto, uma vez satisfeitos os requisitos previstos na Carta Magna, à concretização da justiça social e do acesso à moradia.
1.1 De acordo com o seu aparato normativo - constitucional e infraconstitucional, a referida modalidade de usucapião apresenta como pressupostos: a) área urbana (a ser usucapida) não superior a 250 m2 (duzentos e cinquenta metros quadrados); b) posse mansa e pacífica de 5 (cinco) anos ininterruptos, sem oposição, com animus domini; c) imóvel utilizado como moradia do possuidor ou de sua família, e d) o possuidor não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural, não lhe tendo sido deferida a usucapião especial urbana em outra ocasião.
2. A accessio possessionis, prevista no Diploma Substantivo Civil desde o Código de 1916, traduz-se na possibilidade de acrescer, para fins de implemento do prazo prescricional aquisitivo, a posse exercida anteriormente, contanto que todas sejam contínuas e pacíficas (artigo 1.243 do Código Civil vigente).
3. Distancia-se do escopo constitucional a compatibilidade entre o instituto da accessio possessionis com a usucapião especial urbana, porquanto inarredável o caráter pessoal e humanitário inerente a essa. Trata-se de modalidade de aquisição da propriedade imóvel singular, com especificidades próprias, a exemplo do prazo relativamente diminuto, comparativamente aos demais modos, bem assim a exigência da finalidade precípua de moradia e de o requerente não ser titular de nenhum outro imóvel urbano ou rural.
3.1. Nesse sentido, destaca-se o enunciado n. 317, aprovado na IV Jornada de Direito Civil, organizada pelo Conselho da Justiça Federal, qual seja: "A accessio possessionis de que trata o art. 1.243, primeira parte, do Código Civil não encontra aplicabilidade relativamente aos arts. 1.239 e 1.240 do mesmo diploma legal, em face da normatividade do usucapião constitucional urbano e rural, arts. 183 e 191, respectivamente".
3.2 Na hipótese, de acordo com a moldura fática delineada pelas instâncias ordinárias, a posse dos autores, coincidente com a celebração do compromisso de compra e venda, teve início em 20/12/2002, tendo a demanda sido ajuizada apenas em maio de 2004, em lapso temporal inferior a cinco anos e, portanto, insuficiente à declaração da prescrição aquisitiva, a impor o provimento do recurso especial.
4. Recurso especial provido, a fim de reformar o acórdão impugnado, restabelecendo a sentença proferida pelo magistrado singular (improcedência da ação e procedência da reconvenção).
(REsp n. 1.799.625/SP, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 6/6/2023, DJe de 15/6/2023.)
Acerca da polêmica, assim esclarece CAVALCANTE[12]:
Em tese [...], é possível a soma das posses para fins de usucapião? Sim. Isso está previsto no art. 1.243 do Código Civil:
Art. 1.243. O possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (art. 1.207), contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com justo título e de boa-fé.
A soma das posses inter vivos é chamada de acessio possessionis, algo como “compra da posse”.
A soma das posses causa mortis, isto é, decorrente de herança, é denominada sucessio possessionis.
[...] Se formos analisar apenas o Código Civil, vamos perceber que não existe nenhuma proibição de que seja feita a soma das posses para a usucapião especial urbana. O art. 1.243 do CC não restringe a possibilidade de acréscimo/soma de posses a alguma modalidade específica de usucapião. Assim, o art. 1.243 apresenta previsão de caráter genérico.
Vale ressaltar, contudo, que o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), que também rege a usucapião pro-moradia, autoriza apenas a sucessio possessionis (soma das posses causa mortis), não mencionando a possibilidade de accessio possessionis. [...]
Para o Superior Tribunal de Justiça, a destinação de parte do imóvel para fins comerciais não impede o reconhecimento da usucapião especial urbana sobre a totalidade da área (STJ. 3ª Turma. REsp 1.777.404-TO, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 05/05/2020). De acordo com o referido acórdão, em nenhum dispositivo legal é feita a exigência da exclusividade no uso residencial. O que a lei exige é que o imóvel pleiteado seja utilizado para a moradia do autor ou de sua família, mas não se proíbe que essa área seja produtiva, especialmente quando é utilizada para o sustento do próprio requerente, logo, o exercício simultâneo de pequena atividade comercial pela família domiciliada no imóvel objeto do pleito não inviabiliza a usucapião buscada[13].
No que diz respeito à vedação de que o usucapiente possua outro imóvel, o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento segundo o qual o fato de os possuidores serem proprietários de metade do imóvel usucapiendo não faz incidir a vedação de não possuir “outro imóvel” urbano, contida no art. 1.240 do Código Civil (STJ. 3ª Turma. REsp 1.909.276-RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 27/09/2022). Isso porque, para a Corte Superior, a usucapião especial urbana foi idealizada para contemplar as pessoas sem moradia própria, o que ocorre nessas hipóteses, já que o usucapiente eventualmente teria que remunerar o coproprietário para usufruir com exclusividade do bem[14].
Outra particularidade da usucapião em comento está preceituada no art. 12, § 1º, do Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/2001), segundo o qual “na ação de usucapião especial urbana é obrigatória a intervenção do Ministério Público”.
3.4 USUCAPIÃO FAMILIAR OU CONJUGAL OU ESPECIALÍSSIMA OU RESIDENCIAL
A usucapião familiar, conjugal, especialíssima ou residencial está prevista no art. 1.240-A do Código Civil:
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011)
§ 1º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
Mais uma vez, trata-se de espécie de usucapião que diz respeito apenas aos imóveis urbanos. Tem como requisitos que o imóvel tenha até 250 (duzentos e cinquenta) metros quadrados; sirva de moradia; que o usucapiente seja coproprietário; tenha sido abandonado pelo cônjuge ou companheiro; e não possua outro imóvel.
A intenção do legislador foi tutelar os interesses do indivíduo cujo cônjuge abandonou o lar, circunstância que atravanca eventual alienação do imóvel, por exemplo, o que restringe sobremaneira o uso e gozo da propriedade, a depender do regime de bens adotado. Em razão disso, foi previsto prazo diminuto, o menor de todas as espécies de usucapião, de tão somente 2 (dois) anos.
Inclusive, para o Superior Tribunal de Justiça, a separação de fato por longo período afasta a regra de impedimento da fluência da prescrição entre cônjuges prevista no art. 197, I, CC (Art. 197. Não corre a prescrição: I - entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal) e viabiliza a efetivação da prescrição aquisitiva por usucapião (STJ. 3ª Turma. REsp 1.693.732-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 05/05/2020)[15].
3.5 USUCAPIÃO COLETIVA
A usucapião coletiva tem disposição no art. 10 do Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/2001):
Art. 10. Os núcleos urbanos informais existentes sem oposição há mais de cinco anos e cuja área total dividida pelo número de possuidores seja inferior a duzentos e cinquenta metros quadrados por possuidor são suscetíveis de serem usucapidos coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. (Redação dada pela lei nº 13.465, de 2017)
§ 1º O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.
§ 2º A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis.
§ 3º Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas.
§ 4º O condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio.
§ 5º As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes.
Novamente, trata-se de usucapião específico de bem imóvel urbano e com prazo de 5 (cinco) anos. Entretanto, nessa espécie de usucapião, a área usucapienda é ocupada por núcleos urbanos informais, devendo ser levado em conta a divisão de até 250 (duzentos e cinquenta) metros quadrados por possuidor, que não pode ter outro imóvel.
CARVALHO FILHO[16] faz um paralelo entre a usucapião coletiva – de imóveis privados – com a concessão coletiva de uso especial de imóveis públicos, que, por sua natureza, não podem ser usucapidos:
O legislador, ainda, curvando-se a exigências urbanísticas inafastáveis, instituiu a concessão coletiva de uso especial para fins de moradia (art. 2o), à semelhança do usucapião especial coletivo de imóvel urbano particular, disciplinado pela Lei no 10.257/2001 (Estatuto da Cidade). Outorgar-se-á a concessão coletiva para moradia quando, em imóvel público urbano com área superior a 250 m2, haja ocupação por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, não sendo possível identificar os terrenos ocupados por possuidor. Aqui também há a exigência de que o possuidor não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Na concessão coletiva, a cada concessionário será atribuída igual fração ideal do terreno, e isso sem levar em conta a dimensão do terreno que cada possuidor ocupe. Ressalva-se apenas a celebração de acordo entre os ocupantes, no qual pode ser pactuada a atribuição de frações ideais diferenciadas. A fração ideal outorgada a cada possuidor não poderá exceder a 250 m2. Sem dúvida é singular, e até mesmo se afigura esdrúxulo, que a concessão seja outorgada para incidir sobre uma fração ideal do terreno. Entretanto, deve considerar-se que o instituto tem caráter urbanístico e visa a regularizar a situação imobiliária de infinito número de pessoas, integrantes do que a lei denominou de “população de baixa renda”. Além disso, procurou o legislador assemelhar esse tipo de concessão ao usucapião especial de imóvel urbano privado, figura em que, pela formação de condomínio, o domínio de fração ideal de terreno não acarreta qualquer estranheza. Por fim, é preciso aceitar que a ordem urbanística está mesmo a reclamar medidas jurídicas novas, ainda mais quando se cuida de garantir o bem-estar, a segurança e a comodidade das populações.
Assim como a usucapião pro habitare ou pro misero, aplica-se o art. 12, § 1º, do Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/2001), segundo o qual “na ação de usucapião especial urbana é obrigatória a intervenção do Ministério Público”.
4. USUCAPIÃO INDÍGENA E “USUCAPIÃO” QUILOMBOLA
No que concerne às terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, em seu art. 231, §§ 1º e 2º, a Constituição da República dispõe que elas são de propriedade da União:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
Nesse contexto, o art. 33 do Estatuto do Índio (Lei n.º 6.001/1973) prevê a existência da chamada usucapião indígena:
Art. 33. O índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinqüenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena.
Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica às terras do domínio da União, ocupadas por grupos tribais, às áreas reservadas de que trata esta Lei, nem às terras de propriedade coletiva de grupo tribal.
Seu prazo é de 10 (dez) anos e tem como requisitos que o imóvel tenha até 50 (cinquenta) hectares, não havendo distinção entre o indígena “ser ou não integrado”, classificação essa, aliás, que se encontra em desuso.
É vedada a usucapião indígena em terras da União, em áreas reservadas pelo Estatuto do Índio e em terras ocupadas ou terras de propriedade coletiva de grupos tribais.
No que toca aos quilombolas, prevalece que o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) não prevê uma espécie de usucapião quilombola. Vejamos o que diz o referido dispositivo:
Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
A diferença, portanto, é que, no caso dos indígenas, a Carta Magna lhes garante a posse permanente da área com usufruto exclusivo, mas a propriedade é da União. Tanto é assim que o texto constitucional, no § 6º, do seu art. 231, dispõe que eventuais títulos existentes são nulos, logo.
Por sua vez, o ADCT já garante aos quilombolas a propriedade das áreas por eles ocupadas, não havendo, porém, previsão de nulidade de eventuais títulos existentes.
5. DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL
Prevalece que a desapropriação judicial não é uma modalidade de usucapião, todavia, aqueles que assim entendem, a denominam de usucapião rural coletiva.
A desapropriação judicial está prevista no art. 1.228, § 4º, do Código Civil:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
Tem como característica o prazo de 5 (cinco) anos e o fato de ensejar o pagamento de indenização – o que, por si só, já demonstra não se tratar de usucapião. Para além disso, seus requisitos são a existência de área extensa; de um considerável número de pessoas; de boa-fé; e de obras ou serviços relevantes de interesse social e econômico.
CONCLUSÃO
O presente artigo teve como principal finalidade analisar semelhanças e diferenças entre as modalidades de usucapião, bem como os posicionamentos prevalentes no âmbito doutrinário e jurisprudencial, notadamente no que diz respeito ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Constata-se que as espécies de usucapião estão dispostas na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB); no Código Civil; e no Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/2001); o que muitas vezes dificulta a atuação dos operadores do direito.
Demais disso, se verifica, em linhas gerais, que o Constituinte assegurou a propriedade privada como direito fundamental, classificado doutrinariamente como de primeira dimensão, de modo que a usucapião deve sempre ser aplicada em estrita observância à legalidade.
Por fim, conclui-se que a regularidade da usucapião depende da observância dos requisitos positivos e negativos insculpido tanto no texto constitucional, quanto na legislação de regência, a exemplo do Código Civil e do Estatuto da Cidade, sob pena de violação à propriedade privada, direito tão caro numa república.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Impossibilidade de declaração de ofício da usucapião. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/20b5e1cf8694af7a3c1ba4a87f073021>. Acesso em: 19/11/2023
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. É possível o reconhecimento da usucapião de bem imóvel com a implementação do requisito temporal no curso da demanda. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/7eb532aef980c36170c0b4426f082b87>. Acesso em: 19/11/2023
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Usucapião extraordinário e possibilidade de a área do imóvel ser inferior ao "módulo urbano". Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/202ed3792e2cfa7318b12ead83763c37>. Acesso em: 19/11/2023
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CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A destinação de parte do imóvel residencial para fins comerciais (utilização mista: residencial e comercial) não impede o reconhecimento da usucapião especial urbana sobre a totalidade da área. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/5fd2c06f558321eff612bbbe455f6fbd>. Acesso em: 19/11/2023
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Não é possível aproveitar o tempo anterior de posse de terceiros para complementação do quinquênio necessário à declaração de prescrição aquisitiva no caso de usucapião especial urbana. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/b32a29fd7425fb6b46049bf9e240cda1>. Acesso em: 19/11/2023
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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 33. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020
FIGUEIREDO, Luciano; e FIGUEIREDO, Roberto. Direito Civil Parte Geral. 8ª ed. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 557.
TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 10. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020.
[1] FIGUEIREDO, Luciano; e FIGUEIREDO, Roberto. Direito Civil Parte Geral. 8ª ed. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 557.
[2] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Impossibilidade de declaração de ofício da usucapiãoo. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/20b5e1cf8694af7a3c1ba4a87f073021>. Acesso em: 19/11/2023
[3] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Prescrição aquisitiva começa do exercício da posse ad usucapionem. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/1f1a330a04265fcc56b37df4f9bc529c>. Acesso em: 19/11/2023
[4] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 10. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São
Paulo: Método, 2020.
[5] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 33. ed. – São Paulo: Atlas, 2019
[6] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. É possível o reconhecimento da usucapião de bem imóvel com a implementação do requisito temporal no curso da demanda. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/7eb532aef980c36170c0b4426f082b87>. Acesso em: 19/11/2023
[7] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 33. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020
[8] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 10. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São
Paulo: Método, 2020.
[9] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 33. ed. – São Paulo: Atlas, 2019
[10] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Usucapião extraordinário e possibilidade de a área do imóvel ser inferior ao "módulo urbano". Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/202ed3792e2cfa7318b12ead83763c37>. Acesso em: 19/11/2023
[11] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Usucapião especial rural e área do imóvel inferior ao módulo rural. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/1579779b98ce9edb98dd85606f2c119d>. Acesso em: 19/11/2023
[12] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Não é possível aproveitar o tempo anterior de posse de terceiros para complementação do quinquênio necessário à declaração de prescrição aquisitiva no caso de usucapião especial urbana. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/b32a29fd7425fb6b46049bf9e240cda1>. Acesso em: 19/11/2023
[13] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A destinação de parte do imóvel residencial para fins comerciais (utilização mista: residencial e comercial) não impede o reconhecimento da usucapião especial urbana sobre a totalidade da área. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/5fd2c06f558321eff612bbbe455f6fbd>. Acesso em: 19/11/2023
[14] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. O fato de os possuidores serem proprietários de metade do imóvel usucapiendo não faz incidir a vedação de não possuir ‘outro imóvel’ urbano, contida no art. 1.240 do Código Civil. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/7de64fd4ad48b97aa81f0250c25b899a>. Acesso em: 19/11/2023
[15] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A separação de fato por longo período afasta a regra de impedimento da fluência da prescrição entre cônjuges prevista no art. 197, I, CC e viabiliza a efetivação da prescrição aquisitiva por usucapiãoo. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/ab73f542b6d60c4de151800b8abc0a6c>. Acesso em: 19/11/2023
[16] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 33. ed. – São Paulo: Atlas, 2019
Pós-graduação lato sensu em Direitos Difusos e Coletivos e Assessor Técnico-Jurídico do Ministério Público do Estado da Bahia
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, Gabriel Cardoso. A usucapião no direito brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 nov 2023, 04:18. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63938/a-usucapio-no-direito-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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