Resumo: Este artigo analisa as ondas renovatórias de acesso à justiça e seus impactos positivos e negativos sobre os vulneráveis economicamente e digitalmente. Através da exploração dos elementos-chave das ondas, principalmente a sexta onda, como tecnologia, resolução alternativa de disputas e autosserviço, examinamos como a acessibilidade, a redução de custos e do tempo de espera estão transformando o acesso à justiça para essa parcela da população. Por fim, conclui que essas inovações têm o potencial de reduzir desigualdades e tornar o sistema de justiça mais inclusivo.
Palavras-chave: Acesso à justiça, ondas renovatórias, digitalização, inclusão, políticas públicas.
1.INTRODUÇÃO
O acesso à justiça tem sido um tema central de discussão e reforma no campo jurídico ao longo das últimas décadas. No contexto global, a busca por garantir que todas as camadas da sociedade possam usufruir de maneira eficaz do sistema judicial é de extrema relevância, dado o impacto direto que tem sobre os direitos individuais, a justiça social e a igualdade. Este breve artigo busca abordar o histórico do acesso à justiça, analisar a concepção da sexta onda renovatória e sua influência no cenário jurídico atual brasileiro.
No cerne deste artigo, em um primeiro momento, levanta-se a questão fundamental de como as transformações nas abordagens ao acesso à justiça, representadas pelas ondas renovatórias de Cappelletti e as contribuições subsequentes de Economides, Junqueira e outros, impactam o direito e sociedade.
Diante disso, a hipótese é que a expansão das alternativas de acesso à justiça, com a integração da tecnologia e da inclusão digital, promete tornar o sistema judicial mais inclusivo, eficiente e acessível, mas requer estratégias cuidadosas para evitar a exclusão de grupos vulneráveis.
O propósito central é explorar os desafios e oportunidades que surgem com a crescente digitalização do acesso à justiça, tendo em vista a necessidade de equilibrar a eficiência proporcionada pela tecnologia com a inclusão de todos os cidadãos, em especial aqueles em situação de vulnerabilidade social.
2.METOLOGIA
Este estudo se baseia em uma metodologia de revisão bibliográfica qualitativa. As obras selecionadas para análise foram escolhidas com base em sua relevância para o tema de acesso à justiça e sua capacidade de oferecer uma síntese significativa das diferentes correntes de pensamento que moldaram a evolução desse campo. Autores como Mauro Cappelletti, Kim Economides, Eliane Botelho Junqueira e outros cujas contribuições estão inseridas no contexto das ondas renovatórias do acesso à justiça foram escolhidos para esta revisão de literatura. Além disso, foram priorizadas obras mais atuais que apresentam uma análise contemporânea das transformações em curso no sistema de justiça, especialmente no contexto da digitalização.
3.ANÁLISE & DISCUSSÃO
As ondas renovatórias de acesso à justiça são um conceito desenvolvido pelo jurista italiano Mauro Cappelletti e Bryant Garth em seu trabalho seminal "Acesso à Justiça" (1978), fruto de um movimento de acesso à justiça que ganhou destaque na década de 1970, quando estudiosos do Direito e de várias outras áreas refletiam sobre o tema levando em consideração diversas realidades mundiais – o “Projeto Florença”. O livro é considerado uma obra fundamental no campo do acesso à justiça e na reforma do sistema judicial, tendo sido lançado no Brasil em 1988.
Na obra, os autores propõem uma análise metodológica da ciência jurídica a partir dos aspectos políticos do processo, identificando as "correntes inovadoras" como momentos em que o Direito precisou reconhecer certas necessidades ou condições para evitar que o acesso à justiça se tornasse inviável. Essas correntes não seguem uma ordem cronológica e estática; em vez disso, elas evoluem ao longo do tempo, principalmente por meio do processo e do debate legislativo, mas também na aplicação da lei em casos em litígio.
A primeira corrente, por exemplo, diz respeito ao reconhecimento dos desafios econômicos para o acesso à justiça. Tornou-se evidente, independentemente do sistema legal de um país, que era necessário garantir o acesso à justiça para pessoas de menor poder econômico, a fim de evitar a elitização completa do sistema judicial e as disparidades sociais resultantes disso. A Lei de Assistência Judiciária Gratuita, Lei n.º 1.050, de 1960, faz parte desse contexto.
A segunda corrente de acesso apontada por Cappelletti decorre da identificação da necessidade de acesso à justiça para proteger os direitos difusos e coletivos. Não basta que todos, independentemente de sua situação financeira, tenham acesso à justiça; a justiça também deve ser acessível às demandas que afetam grupos específicos com interesses comuns. Leis como a Lei da Ação Civil Pública (Lei n.º 7.347/1985) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/1990) abordam essa questão.
A terceira corrente inovadora reconhece a necessidade de explorar novas abordagens para o acesso aos mecanismos jurídicos, enfocando a eficácia na resolução de conflitos. Neste contexto, há um reconhecimento mais amplo da chamada “crise do Poder Judiciário”, resultante do aumento das demandas e da perda de qualidade na prestação de serviços judiciais.
Essa corrente inovadora teve um forte impacto no Código de Processo Civil atual. A conciliação, mediação (tanto judicial como extrajudicial) e arbitragem obtiveram reconhecimento legal como métodos eficazes de resolução de conflitos. Baseando-se na autocomposição e na livre autonomia de vontade, essa corrente reconhece o papel de outras ferramentas não judiciais, mas úteis na promoção da harmonia social.
A quarta corrente, no entanto, não foi elaborada por Cappelletti, mas sim por seu discípulo, o jurista australiano Kim Economides (1999). Essa corrente inovadora vai além da terceira, pois não apenas reconhece a necessidade de desenvolver abordagens diversas para a resolução de conflitos, mas também enfatiza a humanização do processo de resolução de conflitos. Kim propõe uma verdadeira renovação epistemológica do direito e da formação de profissionais jurídicos, começando pelo ensino nas faculdades.
Isso envolve, por exemplo, não mais considerar o conflito como um problema a ser tratado, mas como uma oportunidade de aprimorar a convivência social e coletiva. Afinal, o conflito é um fenômeno natural da vida em sociedade e tende a aumentar, à medida que vivemos mais tempo, com mais pessoas e em espaços menores, como destacado anteriormente.
A professora Eliane Botelho Junqueira (1996), da PUC-Rio, que hoje é um importante centro acadêmico de pesquisa empírica sobre o acesso à justiça no Rio de Janeiro, desenvolveu a quinta corrente, relacionada à justiça e à globalização. Para ela, a globalização tem desencadeado inúmeras transformações na administração da justiça, devido a empresas transnacionais, multinacionais e outras entidades que escapam da jurisdição dos estados-nação, além da pressão de grandes organizações internacionais.
Fica evidente que o sistema judicial dos Estados não está preparado para lidar com essas questões. Como resultado, surgiram os tribunais arbitrais, uma nova forma de resolução de conflitos supranacionais, na qual os Estados precisam se adaptar para lidar satisfatoriamente com problemas de alcance global.
A sexta onda enfoca a relação entre a revolução tecnológica, em especial a chamada revolução 4.0, e a acessibilidade à justiça. Destaca-se o acesso à justiça no ambiente virtual como um reflexo do projeto proposto pela Global Access to Justice Project (2019), que busca aprimorar o acesso à justiça por meio de tecnologias inovadoras. Parte-se da premissa de que a vulnerabilidade cibernética pode representar um obstáculo, visto que o acesso à internet e o conhecimento em tecnologia se tornam requisitos para a utilização de tribunais online e outros serviços judiciais digitais.
A mais recente e derradeira onda é a sétima e está interrelacionada à desigualdade de gênero e raça nos sistemas de justiça, seu enfoque é a proteção de grupos sociais vulneráveis ou culturalmente vulnerabilizados. Observamos em ascensão atos normativos do CNJ a fim de pautar a atuação do judiciário em consonância com os direitos humanos de grupos vulneráveis, como mulheres, população LGBTQIA+, pessoas negras, etc.
Como mencionado alhures o enfoque do trabalho é a Sexta Onda renovatória.
A introdução da tecnologia no âmbito jurídico ganhou relevância a partir dos anos 2000, sobretudo com a ratificação da Declaração de Santa Cruz de La Sierra (2003), mesmo que a Constituição Federal brasileira não aborde explicitamente os direitos ligados à era tecnológica. Contudo, a promoção da tecnologia e inovação é um compromisso do Estado, segundo a Constituição (BRASIL, 1988).
No entanto, enfatiza-se que a imposição do uso de plataformas virtuais como pré-requisito para a ação judicial pode excluir aqueles sem acesso ou conhecimento tecnológico. É importante destacar que a pandemia global de COVID-19 elevou a demanda por soluções digitais, colocando as pessoas em situação de vulnerabilidade social e cibernética em um risco ainda maior.
Assim sendo, apesar dos benefícios da tecnologia para aprimorar o acesso à justiça, a exclusão digital pode impedir que pessoas vulneráveis tenham efetivo acesso à justiça. Por isso, a necessidade de um sistema híbrido que valorize o sistema de justiça em ambiente tecnológico, mas assegure o atendimento presencial para aqueles sem acesso virtual. Por exemplo, a importância de evitar a exclusão e marginalização das pessoas vulneráveis devido à falta de acesso à tecnologia.
Isto posto, são diversas as ferramentas e mecanismos tecnológicos para a resolução de disputas e para facilitar o acesso à justiça, incluindo a mediação e conciliação online, plataformas de resolução de conflitos e até mesmo o balcão virtual que realiza o atendimento por videoconferência do jurisdicionado através agendamento prévio, evitando que precise se deslocar até o fórum.
É mister também destacar a importância do processo eletrônico e da videoconferência para acelerar os processos judiciais e promover o acesso à justiça, evidenciando que a digitalização remove as barreiras territoriais e temporais para tal acesso.
Além disso, cito regulamentações e práticas específicas, como a comunicação via WhatsApp, audiências por videoconferência, perícias virtuais e conciliação não presencial, ressaltando os desafios e riscos envolvidos nesses processos virtuais. Por fim, saliento a necessidade de as instituições estudarem o acesso à justiça em ambiente virtual para prevenir uma vulnerabilidade sistêmica que comprometa a dignidade humana.
Smith (2021) aponta que o uso da IA pode ter implicações no acesso à justiça, como o risco de reproduzir decisões enviesadas e o desemprego tecnológico. A automação de tarefas também é discutida, com a ressalva de que as máquinas podem otimizar o trabalho humano, mas não o substituir completamente. O autor sugere que a tecnologia pode ser um importante instrumento para aprimorar o acesso à justiça, desde que seja usada em conjunto com o trabalho humano, sem substituí-lo (p. 80-84).
Neste mesmo contexto da inteligência artificial, destaca-se o racismo algoritmo, em que programas/aplicativos desenvolvidos por seres humanos reproduzem o racismo estrutural arraigado na sociedade, causando uma série de exclusões, desvantagens e preconceitos velados por meio da IA a fim de privilegiar um grupo hegemônico, no caso a branquitude.
Salles (2006), por sua vez, destaca a importância do acesso à justiça como um direito social que exige intervenção positiva do Estado. Apesar de a Constituição assegurar o exercício dos direitos sociais e mecanismos jurídicos para sua proteção, violações ainda ocorrem. Para garantir o acesso à justiça, especialmente no ambiente digital, é fundamental a combinação de direitos, como o acesso à internet e à inclusão digital, para combater práticas que violem a dignidade humana.
A contribuição de Sandefur et al. (2020) vai no sentido de que o acesso à justiça não é apenas um direito, mas uma garantia para o exercício de outros direitos e uma ferramenta de combate à pobreza e exclusão social. No entanto, a digitalização do acesso à justiça não deve criar obstáculos para a concretização desses direitos, exigindo a identificação de obstáculos e a busca por soluções.
Eles também enfatizam a importância do investimento estatal e da disseminação de informações para garantir o acesso à justiça, especialmente no contexto de desigualdade social. A reserva do possível não deve limitar o acesso à justiça, pois os direitos fundamentais devem prevalecer sobre questões orçamentárias.
Portanto, enfatizam que há de se defender a necessidade de políticas públicas estrategicamente pensadas para a inclusão digital, evitando práticas discriminatórias e garantindo a igualdade no acesso à justiça. A paridade de armas tecnológicas é fundamental para permitir o acesso democrático à justiça no ambiente digital, alinhando-se com os princípios constitucionais democráticos.
Entende-se, por fim, que sexta onda deve ser defendida por seu potencial em tornar o acesso à justiça mais inclusivo, eficiente e acessível, beneficiando uma ampla gama de cidadãos. Ela promove a resolução de disputas de forma mais rápida, reduz custos, amplia o acesso à informação legal, moderniza o sistema de justiça e aborda desafios emergentes. No entanto, é crucial garantir que a inclusão digital seja uma prioridade para evitar a exclusão de grupos vulneráveis, assegurando que todos tenham acesso aos benefícios dessa transformação tecnológica.
4.CONCLUSÃO
Os benefícios da sexta onda tecnológica para os usuários hipossuficientes são notáveis. A digitalização do acesso à justiça pode proporcionar a essas pessoas um meio mais acessível e ágil para resolver suas questões legais. A possibilidade de acesso a serviços judiciais online pode reduzir os custos com deslocamento e tempo, tornando a justiça mais inclusiva e conveniente. Além disso, a disponibilidade de recursos como mediação online e plataformas de resolução de conflitos pode ajudar a solucionar disputas de forma mais eficiente e econômica.
No entanto, é fundamental reconhecer que a exclusão digital é um desafio significativo para as pessoas de baixa renda. A falta de acesso à internet e o desconhecimento de tecnologia podem ser barreiras para a utilização efetiva dos serviços judiciais digitais. Portanto, é crucial que as políticas públicas visem a reduzir essa lacuna digital, garantindo que todos, independentemente de sua situação financeira, possam desfrutar dos benefícios da sexta onda de acesso à justiça.
Em resumo, a tecnologia oferece oportunidades valiosas para aprimorar o acesso à justiça, mas é necessário adotar uma abordagem equitativa que leve em consideração as necessidades das pessoas de baixa renda. Um sistema híbrido que combina o acesso virtual à justiça com o atendimento presencial é essencial para garantir que a inclusão digital não deixe ninguém para trás. O desafio reside em criar políticas públicas abrangentes e estratégicas que permitam a todos desfrutar dos benefícios da revolução tecnológica no acesso à justiça.
REFERÊNCIAS
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ECONOMIDES, Kim. Lendo as ondas do “Movimento de Acesso à Justiça”: epistemologia versus metodologia? In: PANDOLFI, Dulce et al (Orgs.). Cidadania, justiça e violência. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999. p. 61-76.
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SMITH, Roger. Law, technology and access to justice: where are we now? In: LEONARDO, César Augusto Luiz Leonardo; SANTOS, Karinne Emanoela Goettems dos; MAIA, Maurilio Casas. Acesso à Justiça e Processo no Século XXI: Estudos em homenagem ao Professor Kazuo Watanabe. São Paulo: Tirant Brasil, 2021.
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JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Acesso à Justiça: um olhar retrospectivo. Rev. Estudos Históricos. 18 – 1996. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/reh/article/view/2025/1164 . Acesso em 03/11/2023.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Amanda Caroline. As ondas renovatórias de acesso à Justiça e uma análise de como superar as barreiras da exclusão digital Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 nov 2023, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63965/as-ondas-renovatrias-de-acesso-justia-e-uma-anlise-de-como-superar-as-barreiras-da-excluso-digital. Acesso em: 24 dez 2024.
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