RESUMO: O presente estudo, objetiva trazer uma análise quanto ao direito do menor sob guarda de receber o benefício previdenciário de pensão por morte de seu responsável, após a vigência da Emenda Constitucional de nº 103/2019. A possibilidade de concessão de tal benefício sempre foi matéria controvertida, em razão das divergências doutrinárias e alterações legislativas sobre o tema, e, em especial, por ter o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990) trazido a possibilidade da sua concessão, assim como a redação original da Lei nº 8.213/1991, quando a Lei nº 9.528/97 o suprimiu. Tal alteração legislativa foi objeto de análise das ADI’s nº 4.878 e 5.083 pelo Supremo Tribunal Federal, as quais, aplicando interpretação conforme à Constituição, reconheceram tal direito ao menor sob guarda, desde que comprovada sua dependência. Contudo, uma controvérsia que parecia resolvida, volta a trazer contestações após a promulgação da Emenda Constitucional nº 103/2019, que suprimiu a figura do menor sob guarda da lista dos dependentes para fins previdenciários. Assim, o presente artigo visa averiguar se o menor sob guarda deixou ou não de integrar o rol dos dependentes da previdência social e qual o entendimento adotado na esfera administrativa e judicial sobre o assunto.
Palavras-chave: Pensão. Previdência. Menor. Guarda. Dependente.
Introdução
A pensão por morte é um benefício previdenciário pago aos dependentes dos segurados da previdência social, assim consideradas as pessoas listadas no artigo 16, da Lei nº 8.213/91, devendo a condição de dependente ser aferida no momento do óbito do instituidor.
Quanto ao período de carência[1], consigna-se que o referido benefício independe do preenchimento de tal requisito.
Todos os segurados poderão instituir pensão por morte se deixarem dependentes, sendo que o benefício independe sempre de carência. Frisa-se que a MP 664/2014 chegou a inserir carência de 24 recolhimentos mensais (em regra), mas a Lei 13.135/2015 restabeleceu a dispensa de carência para a pensão por morte (art. 26, I, da Lei 8.213/91). (AMADO, 2022, p.730).
Neste contexto, dentre os dependentes previdenciários, o menor sob guarda teve esse direito assegurado no parágrafo 3º, do artigo 33, da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), o qual dispôs que a guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários. (BRASIL, 1990).
Da mesma forma, a redação original da Lei nº 8.213/91 trouxe o menor sob guarda dentre os dependentes previdenciários, em seu artigo 16. (BRASIL, 1991).
No entanto, a inclusão do menor sob guarda no rol de dependentes previdenciários sempre foi matéria controvertida, uma vez que a criação do referido direito acabou sendo uma abertura para tentativas de fraude à Previdência Social. Em muitos casos, avós ou parentes próximos – com problemas de saúde ou idade avançada – acabavam promovendo ação de guarda de menor, para, caso viessem a óbito, ter aquele o direito a auferir o benefício de pensão por morte, sem de fato ser seu dependente.
Neste aspecto, poucos anos após o advento da referida Lei e da própria criação do Instituto Nacional de Seguro Social, foi editada a Medida Provisória n.º1.523/1996[2], convertida na Lei nº 9.528/1997, a qual suprimiu a figura do menor sob guarda do rol de dependentes para fins previdenciários.
O menor que estiver sob a guarda do segurado não mais será considerado dependente. A guarda sai da hipótese de dependência em razão dos absurdos que eram cometidos, pelo requerimento da inclusão de menor sob guarda dos avós com o objetivo de dependência para efeito de previdência social. Isso onera a previdência e descaracteriza a ordem normal das coisas. (MARTINS, 2010, p.299).
Assim, a partir do advento da Lei nº 9.528/1997, o rol de dependentes previdenciários, previsto então no artigo 16, da Lei nº 8.213/91 foi alterado, sendo retirada a figura do menor sob guarda do texto legal. Tal alteração trouxe diversas discussões sobre o tema, sendo, inclusive, a referida legislação objeto de análise nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 4.878 e 5.083 pelo Supremo Tribunal Federal, nas quais ficou declarado o direito do menor sob guarda a auferir o benefício em questão.
Assim, a discussão sobre o tema estava praticamente encerrada, não tendo maiores repercussões até o advento da Emenda Constitucional nº 103/2019, quando novamente o legislador suprimiu a condição de dependente do menor sob guarda, quanto ao direito previdenciário. Logo, surge novo debate sobre a questão, uma vez que a Emenda Constitucional nº 103/2019 apresentou um texto que divergiu da regra proposta pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Deste modo, o embate de ideias ganha uma nova vertente de pensamento, no sentido de verificar a constitucionalidade da previsão normativa expressa no Estatuto da Criança e do Adolescente, qual seja, do direito do menor sob guarda ser considerado dependente para fins previdenciários.
Neste aspecto será feita uma análise quanto ao benefício da pensão por morte e sobre quem tem direito a receber o benefício em questão, tendo por enfoque principal a análise do direito do menor sob guarda, o histórico de alterações legislativas e qual o entendimento adotado na esfera administrativa e judicial sobre o tema.
Desenvolvimento
A pensão por morte trata-se de um benefício previdenciário pago aos dependentes do segurado da previdência social que venha a óbito, nos termos do artigo 74, da Lei nº 8.213/91. Confira-se:
Art. 74. A pensão por morte será devida ao conjunto dos dependentes do segurado que falecer, aposentado ou não, a contar da data:
I – do óbito, quando requerida em até 180 (cento e oitenta) dias após o óbito, para os filhos menores de 16 (dezesseis) anos, ou em até 90 (noventa) dias após o óbito, para os demais dependentes;
II – do requerimento, quando requerida após o prazo previsto no inciso anterior;
III – da decisão judicial, no caso de morte presumida. (BRASIL, 1991).
Neste contexto, para auferir o benefício previdenciário em questão, é necessário o preenchimento de dois requisitos básicos: a) morte do segurado; b) existência de dependentes.
Consigna-se, por oportuno, que para a concessão do benefício de pensão por morte, não existe um período mínimo de carência exigido, conforme artigo 26, da Lei nº 8.213/91: “Art. 26. Independe de carência a concessão das seguintes prestações: I – pensão por morte, salário-família e auxílio-acidente”. (BRASIL, 1991).
Outrossim, o requisito morte poderá ser comprovado por meio de certidão de óbito ou de sentença judicial em caso de morte presumida.
Quanto ao requisito de dependentes, é necessário comprovar a relação de dependência na data do óbito do instituidor, uma vez que será este o fato gerador do benefício. Neste sentido, ensina Marisa Ferreira dos Santos:
A relação jurídica entre dependentes e INSS só se instaura quando deixa de existir relação jurídica entre este e o segurado, o que ocorre com sua morte ou recolhimento à prisão. Não existe hipótese legal de cobertura previdenciária ao dependente e ao segurado, simultaneamente (SANTOS, 2014, p.182).
Assim, comprovada a relação de dependência, independente de cumprimento de período de carência, faz jus o beneficiário à pensão por morte.
Neste contexto, a Lei nº 8213/1991, na redação atual do seu artigo 16, define quem são os beneficiários do Regime Geral de Previdência Social na condição de dependentes do segurado. Veja-se:
Art.16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave;
II – os pais;
III – o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave;
§ 1º A existência de dependente de qualquer das classes deste artigo exclui do direito às prestações os das classes seguintes.
§ 2º O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento.
§ 3º Considera-se companheira ou companheiro a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado ou com a segurada, de acordo com o § 3º do art. 226 da Constituição Federal.
§ 4º A dependência econômica das pessoas indicadas no inciso I é presumida e a das demais deve ser comprovada
§ 5º As provas de união estável e de dependência econômica exigem início de prova material contemporânea dos fatos, produzido em período não superior a 24 (vinte e quatro) meses anterior à data do óbito ou do recolhimento à prisão do segurado, não admitida a prova exclusivamente testemunhal, exceto na ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito, conforme disposto no regulamento.
§ 6º Na hipótese da alínea c do inciso V do § 2º do art. 77 desta Lei, a par da exigência do § 5º deste artigo, deverá ser apresentado, ainda, início de prova material que comprove união estável por pelo menos 2 (dois) anos antes do óbito do segurado.
§ 7º Será excluído definitivamente da condição de dependente quem tiver sido condenado criminalmente por sentença com trânsito em julgado, como autor, coautor ou partícipe de homicídio doloso, ou de tentativa desse crime, cometido contra a pessoa do segurado, ressalvados os absolutamente incapazes e os inimputáveis. (BRASIL, 1991).
Conforme se vislumbra da norma legal acima, o menor sob guarda não está previsto no rol de dependentes da previdência social na lei que rege os benefícios previdenciários. No entanto, nem sempre foi assim.
A referida Lei, em sua redação original, abarcava a figura do menor sob guarda como dependente, no parágrafo 2º, do seu artigo 16, conforme a seguir transcrito:
Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na Condição de dependentes do segurado:
[...]
§ 2º Equiparam-se a filho, nas condições do inciso I, mediante declaração do segurado: o enteado; o menor que, por determinação judicial, esteja sob a sua guarda; e o menor que esteja sob sua tutela e não possua condições suficientes para o próprio sustento e educação […]. (BRASIL, 1991) (grifos nossos).
Não obstante, a proteção ao menor sob guarda já estava prevista em legislação especial, antes mesmo da lei da previdência trazer tal disposição, uma vez que os direitos previdenciários conferidos ao menor sob guarda foram relacionados no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), mais especificamente em seu artigo 33.
Art. 33. A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.
§ 1º A guarda destina-se a regularizar a posse de fato, podendo ser deferida, liminar ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela e adoção, exceto no de adoção por estrangeiros.
§ 2º Excepcionalmente, deferir-se-á a guarda, fora dos casos de tutela e adoção, para atender a situações peculiares ou suprir a falta eventual dos pais ou responsável, podendo ser deferido o direito de representação para a prática de atos determinados.
§ 3º A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários. (BRASIL, 1990). (grifos nossos)
Logo, com o advento da Lei nº 8.213/91, o direito previdenciário conferido ao menor sob guarda, foi positivado na redação original da lei que trata dos benefícios previdenciários.
Posteriormente, no ano de 1996, foi editada a Medida Provisória nº 1.523/96, a qual posteriormente foi convertida na Lei nº 9.528/97, cuja redação suprimiu a figura do menor sob guarda da lista de dependentes previdenciários, alterando o texto original da Lei nº 8.213/91, o qual passou a vigorar com a seguinte redação: “Art. 16. […] §2º O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento”. (BRASIL, 1997).
Desta feita, a temática em questão passou a ser amplamente debatida entre os beneficiários da previdência social e o Instituto Nacional de Seguro Social, que, por se tratar de uma Autarquia Federal, ente da Administração Pública, deve reger seus atos e analisar os benefícios pleiteados pelos cidadãos, com base nos princípios que a Administração Pública, especialmente o da legalidade.
Logo, partindo da legalidade estrita, se a norma deixou de prever o menor sob guarda na lista de dependentes previdenciários, não haveria justificativa legal para considerá-lo como dependente econômico para fins previdenciários.
Desta feita, os requerimentos administrativos de benefícios de pensão por morte que versavam sobre a referida temática (menor sob guarda na condição de dependente) passaram a ser indeferidos pelo Instituto Nacional de Seguro Social, sob a fundamentação de que não estaria presente a qualidade de dependente, pois não se encontra no rol de pessoas previsto no artigo 16, da Lei nº 8.213/1991.
De outro lado, aqueles que defendiam os direitos dos menores sob guarda sustentavam que a regra prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente não havia sido revogada pela Lei nº 9.528/97, e, portanto, faziam jus a auferir o benefício de pensão por morte em decorrência do óbito de seu responsável legal.
Assim, inúmeras foram as demandas judicializadas sobre o tema, chegando a questão aos Tribunais Superiores. Nesse contexto:
O Ministério Público Federal ajuizou ações Civis Públicas objetivando o reconhecimento da condição de dependente para o menor sob guarda do segurado por determinação judicial. Em razão de decisões proferidas nessas Ações Civis Públicas ajuizadas, o INSS editou a IN INSS/DC n. 106, de 14.04.2004, mencionando que os menores sob guarda judicial continuam tendo a qualidade de dependentes mesmo após a publicação da Lei n. 9.5289/97, nos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Sergipe e Tocantins.
Entretanto, a liminar concedida na Ação Civil Pública n.970057902-6, que tramitou na 7ª Vara Federal Previdenciária de São Paulo, foi cassada pelo STJ[3], de modo que a IN INSS/DC n.106/2004 não se aplica mais ao Estado de São Paulo.
O STJ, em Embargos de Divergência, decidiu que a lei Previdenciária, por ser especial, prevalece sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, de modo que, a partir da Lei n. 9528/97, o menor sob guarda judicial está excluído do rol de dependentes do segurado (…). (SANTOS, 2014, p.189).
Posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça voltou a analisar a matéria em questão e, por meio do Tema Repetitivo 732, fixou a tese de que o menor sob guarda tem direito à concessão do benefício de pensão por morte do seu mantenedor, comprovada sua dependência econômica.
O menor sob guarda tem direito à concessão do benefício de pensão por morte do seu mantenedor, comprovada sua dependência econômica, nos termos do art. 33, § 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente, ainda que o óbito do instituidor da pensão seja posterior à vigência da Medida Provisória 1.523/96, reeditada e convertida na Lei 9.528/97. Funda-se essa conclusão na qualidade de lei especial do Estatuto da Criança e do Adolescente (8.069/90), frente à legislação previdenciária. STJ. 1ª Seção. REsp 1164452-TRF4, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Seção, julgado em 11/10/2017. (Recurso Repetitivo – Tema 732).
No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento conjunto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 4.878 e 5.083, entendeu que a norma prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente não foi revogada pela Lei nº 9.528/1997, bem como que deveria ser conferida interpretação conforme ao parágrafo 2º, do artigo 16, da Lei n.º 8.213/1991, para contemplar, em seu âmbito de proteção, o menor sob guarda, na categoria de dependentes do Regime Geral de Previdência Social, em consonância com o princípio da proteção integral e da prioridade absoluta, nos termos do artigo 227, da Constituição Federal, desde que comprovada a dependência econômica, nos termos em que exige a legislação previdenciária.
AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE. JULGAMENTO CONJUNTO. DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. ARTIGO 16, § 2º, DA LEI N.º 8.213/1991. REDAÇÃO CONFERIDA PELA LEI N.º 9.528/1997. MENOR SOB GUARDA. PROTEÇÃO PREVIDENCIÁRIA. DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL. PRINCÍPIO DA PRIORIDADE ABSOLUTA. ART. 227, CRFB. INTERPRETAÇÃO CONFORME, PARA RECONHECER O MENOR SOB GUARDA DEPENDENTE PARA FINS DE CONCESSÃO DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO, DESDE QUE COMPROVADA A DEPENDÊNCIA ECONÔMICA. 1. Julgamento conjunto da ADI nº 4.878 e da ADI nº 5.083, que impugnam o artigo 16, § 2º, da Lei nº 8.213/1991, na redação conferida pela Lei nº 9.528/1997, que retirou o “menor sob guarda” do rol de dependentes para fins de concessão de benefício previdenciário. 2. A Constituição de 1988, no art. 227, estabeleceu novos paradigmas para a disciplina dos direitos de crianças e de adolescentes, no que foi em tudo complementada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. º 8.069/1990). Adotou-se a doutrina da proteção integral e o princípio da prioridade absoluta, que ressignificam o status protetivo, reconhecendo-se a especial condição de crianças e adolescentes enquanto pessoas em desenvolvimento. 3. Embora o “menor sob guarda” tenha sido excluído do rol de dependentes da legislação previdenciária pela alteração promovida pela Lei nº 9.528/1997, ele ainda figura no comando contido no art. 33, § 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/1990), que assegura que a guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e direitos, inclusive previdenciários. 4. O deferimento judicial da guarda, seja nas hipóteses do art. 1.584, § 5º, do Código Civil (Lei n.º 10.406/2002); seja nos casos do art. 33, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/1990), deve observar as formalidades legais, inclusive a intervenção obrigatória do Ministério Público. A fiel observância dos requisitos legais evita a ocorrência de fraudes, que devem ser combatidas sem impedir o acesso de crianças e de adolescentes a seus direitos previdenciários. 5. A interpretação constitucionalmente adequada é a que assegura ao “menor sob guarda” o direito à proteção previdenciária, porque assim dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente e também porque direitos fundamentais devem observar o princípio da máxima eficácia. Prevalência do compromisso constitucional contido no art. 227, § 3º, VI, CRFB. 6. ADI 4878 julgada procedente e ADI 5083 julgada parcialmente procedente para conferir interpretação conforme ao § 2º do art. 16, da Lei n.º 8.213/1991, para contemplar, em seu âmbito de proteção, o “menor sob guarda”, na categoria de dependentes do Regime Geral de Previdência Social, em consonância com o princípio da proteção integral e da prioridade absoluta, nos termos do art. 227 da Constituição da Republica, desde que comprovada a dependência econômica, nos termos em que exige a legislação previdenciária (art. 16, § 2º, Lei 8.213/1991 e Decreto 3048/1999). (STF - ADI 4878, Relator (a): GILMAR MENDES, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 08-06-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-157 DIVULG 05-08-2021 PUBLIC 06-08-2021).
Neste sentido, apesar de não existir mais a figura do menor sob guarda no rol de dependentes da Lei nº 8.213/91, desde que comprovada a dependência econômica, dever-se-ia levar em consideração a norma prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, em consonância com o entendimento dos Tribunais Superiores, garantindo o cumprimento dos princípios da proteção integral, da dignidade da pessoa humana, da prioridade absoluta e do direito à vida.
Logo, tal questão parecia pacificada, já que os dois tribunais de maior hierarquia do país exararam decisões, no sentido de assegurar ao menor sob guarda o direito previdenciário de auferir o benefício da pensão por morte em decorrência do óbito de seu responsável legal.
No entanto, com o advento da Emenda Constitucional nº 103/2019, o debate sobre a questão tomou novo fôlego, haja vista que o tema foi novamente analisado pelo legislador, e, novamente, a figura do menor sob guarda foi suprimida da lista dos dependentes previdenciários.
A Emenda Constitucional nº 103/2019 abordou o tema no artigo 23, § 6º: "Equiparam-se a filho, para fins de recebimento da pensão por morte, exclusivamente o enteado e o menor tutelado, desde que comprovada a dependência econômica". (BRASIL, 2019)
Neste contexto, a discussão ganha nova roupagem, pois não se trata de uma antinomia legal, mas constitucional, uma vez que a Lei nº 8.069/90 precede à alteração Constitucional. Assim, passou-se a questionar se a nova regra constitucional recepcionou a norma expressa no parágrafo 3º, do artigo 33, da Lei nº 8.069/90.
Outrossim, considerando a nova supressão da figura do menor sob guarda no texto Constitucional, o Instituto Nacional de Seguro Social publicou a Portaria DIRBEN/INSS nº 991, de 28 de março de 2022, aprovando as normas procedimentais em matéria de benefícios, a qual trouxe as seguintes regras sob a temática abordada:
Art. 26. O menor sob guarda integra a relação de dependentes apenas para fatos geradores ocorridos até 13 de outubro de 1996, data da publicação da Medida Provisória nº 1.523, reeditada e convertida na Lei nº 9.528, de 10 de dezembro de 1997.
§ 1º Para óbitos ocorridos entre 14 de outubro de 1996 e 13 de novembro de 2019, equipara-se a filho o menor sob guarda que comprove a dependência econômica, conforme determinado pelo STF no julgamento vinculante das ADI's 4878 e 5083. (incluído pela Portaria Dirben/INSS nº 1.080, de 06 de Dezembro de 2022)
§ 2º Para fins do disposto no §1º, a guarda consiste no direito definido em juízo de terceiro ficar com a responsabilidade de ter o menor em sua companhia. (incluído pela Portaria Dirben/INSS nº 1.080, de 06 de Dezembro de 2022)
§3º O menor sob guarda perde a qualidade de dependente ao completar 18 (dezoito) anos de idade, aplicando-se todas as demais causas de perda da qualidade de dependente previstas no art. 25. (incluído pela Portaria Dirben/INSS nº 1.080, de 06 de Dezembro de 2022)
§4º Aplica-se o disposto no §1º a todos os benefícios pendentes de decisão, inclusive em fase recursal. (incluído pela Portaria Dirben/INSS nº 1.080, de 06 de Dezembro de 2022). (BRASIL, 2022) (grifos nossos)
Logo, da portaria acima, percebe-se que o Instituto Nacional de Seguro Social (Autarquia responsável pela análise, concessão e manutenção dos benefícios previdenciários), em decorrência da publicação da Emenda Constitucional nº 103/2019 e da supressão do menor sob guarda da lista de dependentes previdenciários, não concede benefícios aos mesmos, sob a fundamentação de falta de qualidade de dependente.
Deste modo, desde a edição da referida Portaria, diversos benefícios previdenciários de menores sob guarda foram indeferidos pelo Instituto Nacional de Seguro Social, sob a fundamentação de que o menor sob guarda não está no rol de dependentes econômicos expressos na Lei nº 8.213/91, bem como da Emenda Constitucional nº 103/2019.
Novamente, tal divergência foi levada ao Judiciário, sendo objeto do Recurso Extraordinário nº 142218/RS, proposto pelo Instituto Nacional de Seguro Social, sob a fundamentação de violação do artigo 23, § 6º, da Emenda Constitucional nº 103/2019.
No entanto, o Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes[4], negou seguimento ao recurso em questão, afirmando que o menor sob guarda, desde que comprovada a dependência econômica, é dependente para fins previdenciários, pois a supressão do menor sob guarda na Emenda Constitucional nº 103/2023 não revogou o direito previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Desta feita, observa-se que, não obstante o Instituto Nacional do Seguro Social indeferir o benefício da pensão por morte, amparado pelo princípio da legalidade, em razão da legislação previdenciária atual não abarcar a figura do menor sob guarda como dependente para fins previdenciários, causando, consequentemente, um acúmulo de processos perante o Poder Judiciário e inibindo a satisfação dos direitos daqueles que não o busquem por tal meio, com base na jurisprudência dos Tribunais Superiores, pode ser verificado que, judicialmente, o benefício da pensão por morte tem sido concedido ao menor sob guarda.
Conclusão
O direito do menor sob guarda a receber o benefício de pensão por morte é um assunto muito controvertido entre os dependentes econômicos de pessoas que vieram a óbito e o Instituto Nacional do Seguro Social, em especial em decorrência das alterações legislativas que ocorreram no passar dos anos.
O Instituto Nacional do Seguro Social por ser um ente da administração pública indireta, deve respeitar os princípios legais que lhe são impostos. Deste modo, ao realizar a análise de um processo administrativo, deve atentar para o que está previsto na lei (legalidade), não lhe sendo possível aplicar juízo de valor sobre o caso.
Logo, considerando a alteração legislativa trazida pela Lei nº 9.528/1997, a qual suprimiu a figura do menor sob guarda do rol de dependentes do artigo 16 da Lei nº 8.213/1991, o Instituto Nacional do Seguro Social, por não existir previsão legal na Lei de Benefícios, indefere os processos que versam sobre o tema, sob o fundamento de falta de qualidade de dependente para o menor sob guarda.
Deste modo, competiu ao Poder Judiciário rever tal situação, o que o fez por meio Tema Repetitivo nº 732 e das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 4.878 e 5.083, firmando o entendimento de que a norma prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente não foi revogada pela Lei nº 9.528/1997, devendo ser reconhecido o direito à proteção do menor sob guarda a auferir o benefício de pensão por morte em decorrência do óbito de seu responsável legal, desde que comprovada sua condição de dependência.
Todavia, não se pode ignorar o fato de que possivelmente diversas pessoas que necessitavam do benefício de pensão por morte, muitas vezes infantes em situação de risco, ao terem seu pleito indeferido na esfera administrativa, seja por falta de conhecimento ou de recursos, não buscaram a satisfação de seu direito junto ao Poder Judiciário, ou seja, trata-se de prejuízo imensurável.
Em que pese tal situação, quando tal assunto parecia sedimentado, a Emenda Constitucional nº 103/2019 novamente suprimiu a figura do menor sob guarda do rol de dependentes previdenciários. Desta feita, considerando que os julgamentos alhures mencionados são anteriores à Emenda Constitucional nº 103/2019, bem como que agora a matéria é constitucional, tal situação deu margem para o Instituto Nacional de Seguro Social voltar a indeferir os requerimentos administrativos que versam sobre o tema, sob a mesma alegação, qual seja, falta de qualidade de dependente.
Neste sentido, a fim de solucionar a situação e evitar maiores controvérsias, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que deve ser aplicada a mesma interpretação das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 4.878 e 5.083, tendo como escopo primário a base de princípios constitucionais e do próprio princípio da proteção integral que rege o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Posto isso, ao menos aparentemente, a jurisprudência sinaliza no sentido de que será mantido o direito previdenciário do menor sob guarda, de receber pensão por morte. No entanto, também é certo que diversas pessoas sofrerão prejuízos, seja pela morosidade enfrentada até o momento da concessão do benefício, ou ainda, por quedarem-se inertes frente ao indeferimento na esfera administrativa.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Emenda Constitucional n.º 103, de 12 de Novembro de 2019. Diário Oficial da União, Brasília, 12 novembro de 2019. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm. Acesso em: 14 de nov. de 2023.
BRASIL. Lei nº 8.069 de 29 de março de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 16 de julhode 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 11 de nov. de 2023.
BRASIL. Lei nº 8.213 de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União, 25 de julho de 1991. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm. Acesso em: 14 nov. de 2023
BRASIL. Lei nº 9.528 de 10 de dezembro de 1997. Altera dispositivos das Leis nºs 8.212 e 8.213, ambas de 24 de julho de 1991, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 10 dezembro de 1997. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9528.htm. Acesso em: 14 nov. de 2023
BRASIL. PORTARIA DIRBEN/INSS Nº 991, DE 28 DE MARÇO DE 2022. Aprova as Normas Procedimentais em Matéria de Benefícios. Diário Oficial da União, 29 de março de 2022. Disponível em: https://in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-dirben/inss-n-991-de-28-de-marco-de-2022-389275082. Acesso em: 14 nov. de 2023
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 1422181/RS. Relator: Ministro Alexandre de Moraes, Data de Julgamento: 24/03/2023. Data de Publicação: 27/03/2023. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/despacho1390298/false. Acesso em 15 nov. de 2023
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4878 Relator: GILMAR MENDES. Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN. Tribunal Pleno. Julgado em 08/06/2021. PROCESSO ELETRÔNICO DJe-157 DIVULG 05-08-2021 e PUBLIC 06-08-2021. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur459505/false. Acesso em 15 nov. de 2023
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 1ª Seção. Recurso Especial nº 1164452-TRF4. Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Seção, julgado em 11/10/2017. (Recurso Repetitivo – Tema 732). Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=201303392039. Acesso em 15 nov. de 2023
AMADO, Frederico. Manual de Direito Previdenciário. 2. ed. São Paulo: JusPodivm, 2022. p. 730.
MARTINS, Sergio Pinto. Direito da seguridade social. 29. ed. – São Paulo: Atlas, 2010. p. 299.
SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito Previdenciário esquematizado. Coord. Pedro Lenza. – 4. ed. – São Paulo: Saraiva, 2014. p. 182 e p.189
[1] Art. 24, da Lei nº 8.213/91. Período de carência é o número mínimo de contribuições mensais indispensáveis para que o beneficiário faça jus ao benefício, consideradas a partir do transcurso do primeiro dia dos meses de suas competências. (BRASIL, 1991).
[2] Reeditada sob nº 1596/1997.
[3] REsp 773.944/SP, Proc. n. 2005/0135286-6, 5ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Dje 18.05.2009
[4] STF – RE: 1422181 RS, Relator: ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 24/03/2023, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-065 DIVULG 24/03/2023 PUBLIC 27/03/2023.
Graduada em Direito pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, campus de Francisco Beltrão – Pr. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes – 2017. Assistente de Juiz de Direito do Juizado Especial Cível, Criminal e da Fazenda Pública na Comarca de Francisco Beltrão – Pr,(2015-2016). Atualmente e desde o mês de fevereiro de 2016, atua como Oficial de Promotoria do Ministério Público do Estado do Paraná, na Comarca de Francisco Beltrão – Pr.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Luana Strapazzon de. Do direito à pensão por morte do menor sob guarda após a Emenda Constitucional nº 103/2019 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 nov 2023, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63996/do-direito-penso-por-morte-do-menor-sob-guarda-aps-a-emenda-constitucional-n-103-2019. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
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