Resumo: O termo inteligência artificial (IA) foi nomeado pelo cientista da computação John McCarthy, falecido em 2011. Por muitos anos, a IA foi tida como uma bobagem, sem aplicações importantes. A partir de 2015, surgiram desenvolvimentos que causaram uma verdadeira revolução em diversos campos. Essa revolução suscitou questões éticas e jurídicas, que passaram a ser enfrentadas pelos tribunais. Neste artigo, iremos analisar as implicações da inteligência artificial no sistema judicial, tanto de forma endógena, na incorporação da IA aos processos judiciais, quanto exógena, quando a IA é o próprio objeto da controvérsia dos autos.
Palavras-chaves: inteligência artificial; big data; aprendizado de máquina; direito.
Abstract: The term artificial intelligence (AI) was named by computer scientist John McCarthy, who passed away in 2011. For many years, AI was considered nonsense, without important applications. From 2015 onwards, developments emerged that caused a true revolution in several fields. This revolution raised ethical and legal questions, which began to be addressed by the courts. In this article, we will analyze the implications of artificial intelligence in the judicial system, both endogenously, in the incorporation of AI into judicial processes, and exogenously, when AI is the very object of the case's controversy.
Keywords: artificial intelligence; big data; machine learning; law.
Sumário: 1-Introdução; 2-Visão Geral da IA; 3-Usos Atuais da IA; 4-Desmistificando a IA; 5-Responsabilidade e Subordinação Algorítmicas; 6-Conclusão; 7-Referências
1-Introdução
A busca pela imitação do cérebro humano remonta há mais de um século. Atualmente, essa imitação ocorre tanto em termos de software quanto de hardware. De fato, a evolução na ciência de dados possibilitou a criação de algoritmos que simulam os neurônios humanos, como as redes neurais artificiais. De igual modo, foram desenvolvidos processadores neuromórficos e chips orgânicos, que diminuem o consumo de energia. Em uma terceira frente, há o armazenamento holográfico, que guarda os dados em três dimensões usando lasers.
O progresso nesse campo foi impulsionado por conflitos armados. Antes da primeira guerra mundial, os aviões eram feitos basicamente de madeira e tecido. Após a deflagração do conflito, os aviões evoluíram rapidamente para a versão de aço. Da mesma forma, a segunda guerra mundial desencadeou uma evolução no desenvolvimento de computadores.
O primeiro computador operacional no Brasil foi inaugurado em 1960 na PUC-Rio, com a presença de Juscelino Kubitschek e do cardeal Montini, o futuro Papa Paulo VI. Era o B-205, uma máquina que pesava mais de uma tonelada e custava o equivalente a 10 milhões de dólares a valores de hoje. O computador tinha uma capacidade de cálculo de 16k, um avanço formidável para a época, e era operado por um consórcio de órgãos públicos e privados que controlava os pedidos de cálculo.
De seu turno, o computador pessoal somente surgiu em 1973, com o Xerox Alto, que tinha a concepção de uma mesa de trabalho, tendo um mouse quadrado e uma tela vertical. Esse computador não chegou a ser vendido no mercado. Em 1975, foi lançado o Altair 8800, uma caixa retangular que alcançou o mercado. Porém, apenas em 1981 a IBM lançou o PC que se tornaria o padrão de computador pessoal predominante.
Do ponto de vista histórico, os instrumentos de cálculo acompanharam a história humana. O ábaco já era utilizado pelos fenícios há 4 mil anos, e facilitava as operações com grandes volumes no comércio marítimo. Bem antes disso, os humanos já utilizavam a matemática em ossos de babuínos, como o Osso de Ishango. Esse osso data de 20 mil anos e contém fileiras de traços que revelam cálculos matemáticos utilizando dúzias e dezenas. Algumas teorias atribuem esses cálculos às necessidades das mulheres de acompanhar o ciclo menstrual. Outras o consideram um calendário lunar. Há ossos mais antigos, como ossos de lobos de 32 mil anos, que contêm traços marcados por humanos para contagem, mas sem revelar operações aritméticas.
Há cerca de 2,5 mil anos, os babilônios avançaram no cálculo astronômico, descobrindo a regularidade dos eclipses solares e lunares. Já no século I a.C, atribui-se a Arquimedes, conforme o relato de Cícero, a invenção da anticítera, uma máquina que incorporava diversas funções de cálculo. Essa máquina foi encontrada no início do século XX, dentro de uma galé romana. Esse achado arqueológico somente foi analisado em 1950, utilizando raios X. Foi criada uma máquina de raios X específica para analisar o artefato, que revelou uma intrincada conexão de 27 engrenagens. Uma dessas engrenagens possuía exatos 233 dentes, cada um deles representando uma lua, o equivalente a 18 meses e 11 dias, para a previsão de eclipses. Para os gregos, acompanhar a lua era fundamental, pois determinava as viagens noturnas, o pagamento de dívidas, as batalhas, as plantações e as festas religiosas. Algumas réplicas viáveis da anticítera foram construídas nos últimos anos, revelando se tratar de uma máquina complexa e funcional.
Após a conquista da Grécia por Roma houve um declínio nesse processo, e apenas 1,5 mil anos depois surgiria o relógio astronômico na Europa. Anos depois, em 1623, Guilherme Schickard inventou uma máquina de cálculos que incluía as quatro operações aritméticas, usando números de seis dígitos. Em 1625, ele sucumbiu à peste bubônica, juntamente com sua família. Essa máquina foi utilizada por Johannes Kepler, e é tida como a primeira máquina de computar utilizando as quatro operações, antes de Blaise Pascal e Leibniz. Contudo, não é consenso que ela era funcional, e uma réplica viável jamais foi elaborada.
Os estudos sobre inteligência artificial somente surgiram no século XIX, com o pioneirismo da obra “Darwin entre Máquinas”, de Samuel Butler, publicada em 1863, que já teorizava a possibilidade de conceber máquinas pensantes. Em 1943, foi criado o neurônio artificial MCP, assim nomeado em homenagem a seus criadores, um psicólogo e um matemático. Em 1946, entrou em operação o ENIAC, o primeiro computador digital de grande porte. Em 1950, Alan Turing publicou o artigo “Computadores e Inteligência”, na revista Mind. Na década de 1980, surgiu o Perceptron, seguido pela Retropropagação, que significou um enorme avanço na qualidade de emulação dos neurônios humanos e na velocidade de processamento. Na última década, houve a junção dos algoritmos de IA com o Big Data, o que somado a processadores de vários núcleos de supercomputadores, possibilitou que a inteligência artificial encontrasse aplicações relevantes.
Espera-se para a próxima década uma revolução na incorporação da IA em diversos campos do saber e da economia, gerando mudanças no mercado de trabalho. A incorporação de computadores com supremacia quântica e o aprendizado de máquina pode ajudar em muitos problemas de eficiência econômica. Contudo, é preciso enfrentar os desafios que surgirão, como o alto consumo de energia e recursos naturais da IA, e o extenso trabalho humano que está por trás de seu funcionamento.
2-Visão Geral da IA
De uma maneira geral, a IA é classificada em reativa, memória limitada, teoria da mente e autoconsciência. Este último nível é tido como hipotético. Também pode ser supervisionada, não supervisionada e semisupervisionada, cada uma voltada para uma tarefa específica, conforme haja ou não dados rotulados.
A IA é classificada ainda em estreita, geral e superinteligência. A primeira é possibilitada pelo uso de viés no algoritmo, tornando-o não extensível para outros domínios. A segunda é uma possibilidade hipotética, que visa escanear e modelar todo o cérebro humano. O cérebro de uma criança possui até um quatrilhão de conexões, reduzindo com o passar do tempo, chegando ao patamar adulto de 100 trilhões de conexões, englobando 86 bilhões de neurônios. Esse mecanismo de processamento evoluiu durante 6 bilhões de anos, por meio de um processo de tentativa e erro, com a finalidade de adaptação ao ambiente. Muitos cientistas apregoam que esse mecanismo é impossível de ser modelado em máquinas. Por seu turno, a superinteligência sucedeu o antigo conceito de ultrainteligência, designando um programa de IA com inteligência superior à dos humanos, tido pela maioria dos cientistas como meramente ficcional.
De uma maneira geral, um algoritmo utiliza um vetor de recursos de entrada, que é processado e transformado em um vetor de recursos de saída. A grande evolução nessa área ocorreu com o aprendizado de máquina, quando os algoritmos passaram a processar dados fora da amostra, sem a necessidade de atuação humana para calibrar o sistema sempre que surgisse uma situação não prevista no código.
O aprendizado profundo e as redes neurais artificiais possuem algoritmos tão complexos que nem mesmo seus desenvolvedores são capazes de entender o processo final de tomada de decisão. As redes neurais artificiais possuem diversas camadas, cada uma com um peso, que processam os dados de entrada, até atingir a camada de ativação, conhecida como colapso neural, e a fase terminal de treinamento, a última camada. Uma enorme quantidade de dados é usada para teste e treinamento do algoritmo, visando aumentar sua acurácia e precisão. Diversos algoritmos modernos possuem diferentes funcionalidades, como os algoritmos evolutivos, aleatórios, gananciosos e bandidos multi-armados. Outros desenvolvimentos estão surgindo, como o matroide, que une a álgebra linear e a teoria dos grafos, desenvolvido em 1935 e ainda pouco explorado. O algoritmo mestre é um conceito de algoritmo definitivo, que teria a capacidade de aprender qualquer tipo de conhecimento. Não se confunde com o teorema mestre, voltado para a solução de recorrências nos algoritmos de divisão. Esse suposto algoritmo definitivo também é um conceito meramente hipotético.
3-Usos Atuais da IA
A IA já é usada para relacionamentos e namoro, como o aplicativo Replika. Também existem robôs terapeutas, usados para tratamentos psicológicos. A IA emocional ou computação afetiva, existe desde 1995. Ela possibilita uma interação mais natural e personalizada, analisando os olhos, corpo, inflexão da voz e estresse do usuário. Também em 1995 foi lançado o livro Inteligência Emocional, do jornalista Daniel Goleman, que revolucionou os métodos de ensino e de negócios. A IA emocional utiliza PNL, análise de sentimentos, análise de contexto, base de conhecimento e o feedback dos usuários para o aprendizado profundo, resultando em conversas empáticas.
A IA já se mostrou útil na segurança pública, com a Universidade de Chicago desenvolvendo um algoritmo de IA para a previsão de crimes que revelou uma precisão de 90%. A IA também é uma aposta para reduzir as despesas processuais e possibilitar o acesso à justiça, agilizando grande parte do expediente em pequenas causas e processos criminais de menor gravidade. Como exemplo, o TRT15 utilizou ferramentas de IA que propiciaram um aumento de 12% no julgamento de causas no primeiro semestre de 2023, contornando uma defasagem de cerca de 1.000 colaboradores, entre servidores e juízes. Mas a IA também pode ser utilizada para atividades criminosas, como a elaboração de códigos maliciosos.
De uma maneira geral, a IA depende de um agente inteligente, que percebe sensores e transdutores, processa a informação, e interage com atuadores, como os braços robóticos e os carros autônomos.
A IA também tornou aplicável o reconhecimento facial. Ele é feito em duas dimensões, analisando os dados dos olhos, testa, queixo e profundidade da órbita ocular. Esses dados são convertidos em uma fórmula matemática, que representa um código único para cada pessoa, como uma impressão facial. As câmeras de reconhecimento facial também detectam alterações nas vestimentas e acessórios, como o uso de boné, óculos, máscara, corte de cabelo e barba. Esse recurso é bastante utilizado no reconhecimento de pessoas em tumultos ou na prática de crimes. No entanto, algumas pessoas já foram acusadas injustamente por esses algoritmos, revelando falhas decorrentes de vieses.
O reconhecimento facial também tem sido utilizado em portarias eletrônicas de condomínios e na aprovação de empréstimos pelo smartphone. Neste último caso, o TJSP deu ganho de causa aos bancos, decidindo que o ato de olhar para a tela do aparelho tem a mesma eficácia que a concordância por meio de uma assinatura contratual. No transporte público, o reconhecimento facial agiliza o ingresso de crianças e idosos.
No esporte, a IA faz o planejamento de dietas personalizadas e previne lesões nos atletas. Na educação, a IA acompanha o aprendizado do aluno de forma individualizada. Na segurança, a IA pode indicar as áreas de maior conflito e prever onde ocorrerão os crimes. Na execução penal, a IA acompanha a progressão de regime de cada detento. Na saúde, a IA sugere planos individualizados e adaptados à genética do usuário e ao seu estilo de vida. Também auxilia os médicos no diagnóstico precoce de doenças, como câncer, e sugere procedimentos, como parto cesáreo. Neste último caso, a IA possui limitações quanto à dependência da representação. De fato, o algoritmo não é capaz de examinar diretamente a paciente. A análise da ressonância magnética, por exemplo, não é suficiente, já que os pixels da imagem não são úteis para o algoritmo, que é adstrito à representação da paciente no relatório médico, que fornece os dados necessários para o processamento, chamados de vetores de características. A partir desses dados fornecidos pelo médico, como a presença de uma cicatriz uterina, é que a IA irá recomendar ou não um parto cesáreo. Esses dados informais devem ser transformados em linguagem de máquina, formando a base de conhecimento, antes de serem processados. Desta forma, o trabalho humano ainda é imprescindível.
A biônica também já é uma realidade, após a incorporação de algoritmos de IA e Big Data. Na farmacologia, o algoritmo Alpha Fold 2, lançado em 2020, é capaz de emular proteínas em três dimensões, acelerando o desenvolvimento de medicamentos. Nas finanças, a IA auxilia na avaliação de risco de crédito e no cálculo de juros, decidindo também se o cliente é elegível para empréstimo. No clima, a IA pode prever a trajetória de furacões e ciclones tropicais com maior precisão e antecedência.
A aviação tem se beneficiado dos algoritmos de IA, principalmente na redução de custos de logística e na manutenção preditiva de aeronaves. Na Escócia, está em teste um ônibus dirigido por IA, com autonomia de nível 4, com um motorista apenas olhando o painel. O ônibus percorre um trecho de 22 km, a 80 km/h, para o transporte de até 10 mil passageiros.
Na exploração espacial, a IA pode ajudar no controle de constelações de satélites, acompanhando o fim da vida útil, com foco na redução de custos. As viagens espaciais somente são possibilitadas pela incorporação de computadores, uma vez que a alta velocidade de escape requer ajustes de curso muitos rápidos, impossíveis de serem realizados pela percepção humana. No entanto, a IA em foguetes não considera os fatos, mostrando muitas falhas no design de motores, por exemplo. Da mesma forma, a IA para artigos científicos da META foi descartada em poucos dias, por conter graves problemas nas referências.
A IA em tratores possibilitou o aumento da produção com redução de custos. Existem tratores sem motoristas, que fazem a colheita, o plantio, a pulverização e recolhem dados do rendimento da terra. A colheitadeira chinesa H9700, por exemplo, cobre uma área de 500 ha em uma jornada de 8 horas, fazendo curvas sem necessidade de atuação humana.
Mas toda essa evolução não significa o fim dos empregos. Diversos estudos apontam um crescimento líquido de vagas de trabalho, que mudarão de foco após a consolidação da revolução propiciada pela IA. No mercado bancário, por exemplo, houve um aumento líquido de ofertas de trabalho, mas com um perfil diferente. A incorporação de caixas eletrônicos tirou muitos empregos nas agências bancárias há alguns anos. A IA também tem realizado grande parte das funções bancárias. No entanto, com a disseminação do mobile, internet bank e fintechs, houve um aumento líquido de vagas de emprego no setor.
O Chat GPT 1 foi lançado em 2018. Em novembro de 2022, foi lançado o Chat GPT 4. Essa IA tem sido usada para a correção de redações e elaboração de textos através da pesquisa em bancos de dados em dezenas de milhões de arquivos da web. O algoritmo utiliza transformadores, um aperfeiçoamento em relação às redes neurais recorrentes, além de um mecanismo de auto atenção, que faz uma varredura por relações entre os termos. A Open IA adverte, porém, que a ferramenta não se destina a dar conselhos e não deve ser alimentada com informações sensíveis.
Segundo o paradoxo de Moravec, a atividade de raciocínio requer pouca capacidade computacional, ao passo que as atividades motoras exigem uma enorme capacidade de computação. A IA não é capaz de atividades humanas básicas, como pegar uma bola ou andar. O ato de andar requer um complexo sistema de equilíbrio localizado no sistema vestibular do ouvido, onde fica o labirinto, formado por três partes. O robô LEMUR usa IA para contornar obstáculos de forma autônoma ao escalar montanhas. No entanto, essas atividades tão simples para humanos são extremamente custosas para robôs com IA. Espera-se que o desenvolvimento da IA possibilite a substituição de funções humanas arriscadas, com o trabalho em minas.
4-Desmistificando a IA
Sophia foi o primeiro robô humanoide com cidadania saudita. Esse fato não chega a impressionar o brasileiro, que viu um cachorro shih-Tzu ser nomeado para uma comissão da OAB-MG em 2023, o macaco Tião levar 400 mil votos para prefeito e o rinoceronte Cacareco receber 100 mil votos para deputado há mais de meio século.
A IA pode se tornar uma tecnologia promissora, se for usada com racionalidade. Pode ser comparada a outras tecnologias auspiciosas, que podem ser benéficas ou danosas, a depender da forma como serão usadas. Vejamos alguns exemplos.
Em 2009, foi lançado um Cadillac movido à energia nuclear a partir do tório, um elemento radioativo, e que tinha uma autonomia de cem anos. No entanto, o carro foi logo retirado de linha pelo temor de ser adquirido por grupos jihadistas, que poderiam usá-lo na construção de bombas atômicas. De igual modo, a nanotecnologia pode ser promissora, mas também maléfica para a saúde. Estudos comprovaram que o contato de nanomateriais sintéticos com tecidos humanos pode causar dano ao DNA, gerando o crescimento de tumores e a morte de células.
A engenharia genética pode causar mutações aleatórias, com consequências danosas à gerações futuras. Mas se bem utilizada, possibilita a produção de alimentos transgênicos saudáveis, elevando o patamar de produção agrícola, possibilitando o fornecimento de alimentos para bilhões de pessoas no mundo, sem que haja constatação de malefício à saúde. Possibilita também a criação de medicamentos para terapia gênica, como o Zolgensma, que trata a atrofia muscular espinhal (AME). Esse medicamento introduz na célula alvo uma cópia funcional do gene SMN por meio de um vetor viral, fazendo o corpo produzir a proteína essencial para o neurônio motor, revertendo os efeitos da doença congênita.
Assim, os riscos da IA não são intrínsecos, mas humanos. Não há risco de a IA ganhar vida própria, mas há grandes riscos nas decisões humanas sobre o uso da IA. Como exemplo, com o uso de mísseis hipersônicos, o tempo de resposta de uma nação a um ataque nuclear pode ser inferior a dez minutos. Uma possível solução seria entregar essa tarefa a um programa de inteligência artificial, que detectaria o ataque por meio de sensores de radiação e condições atmosféricas, e acionaria automaticamente os códigos nucleares como resposta. Mesmo que houvesse um colapso na central de comando do país, a resposta seria automatizada, numa tática conhecida como mão morta. Essa possibilidade flerta perigosamente com a ficção dos filmes, quando a skynet, um sistema de inteligência artificial criado para controlar o arsenal atômico, começa a pensar por conta própria e lança ataques nucleares em 2029, matando metade da população mundial.
As potências militares não são mais medidas pela quantidade do arsenal nuclear, mas sim pela incorporação da inteligência artificial em sua defesa. A IA tem sido utilizada extensivamente no reconhecimento de alvos e no campo do engano, como na negação de área.
Além do controle dos códigos nucleares, outro tema bastante polêmico se relaciona aos robôs assassinos, como tanques e drones autônomos. Já ocorreram incidentes onde esses robôs se voltaram contra o próprio operador. Existem questões éticas na utilização dessas armas, como a tomada de decisão de ataque, que deve ser exclusiva de um humano. Alguns defendem a proibição do emprego de tais armas, como os drones autônomos kamikaze, adotando-se uma proscrição semelhante à aplicada às armas químicas e biológicas.
Os riscos de apocalipse da IA são infundados, e acompanham a tradição apocalíptica de séculos. Se antes eram causas místicas, no último século essa tradição se voltou para cometas, apocalipse nuclear, apocalipse climático e o atual apocalipse da inteligência artificial.
Mas não se pode descurar do mal emprego da IA, como entregar o controle da economia mundial aos algoritmos. Basta ver os efeitos da crise decorrente da securitização de empréstimos hipotecários em 2008. As análises de investimento estão sendo delegadas aos “algo trading”. Esses algoritmos não apenas compram e vendem ativos financeiros caso o preço atinja determinado patamar, mas também aprendem a manipular o mercado. As autoridades reguladoras devem cuidar para que o controle final dessas ações seja humano.
Um risco bastante propalado diz respeito à chegada da superinteligência. De fato, os estudos de IA sempre buscaram simular a inteligência humana. A IA também mimetiza o comportamento dos animais, como o enxame de partículas (similar ao agrupamento de pássaros) e a otimização que imita colônias de formigas. Mas como sentenciou Yann LeCun, cientista da computação francês tido como um dos pais da IA moderna, o máximo que a inteligência artificial pode alcançar é simular o cérebro de um rato. Os ratos são animais espertos, possuem uma dieta saudável e são afetivos e dedicados ao parceiro. No entanto, possuem uma péssima imagem histórica, por terem sido os vetores da peste negra. Uma IA que chegue ao nível de um rato dificilmente dominará a humanidade.
5-Responsabilidade e Subordinação Algorítmicas
Os temas da responsabilidade e da subordinação algorítmicas estão entrelaçados. A responsabilidade algorítmica decorre de danos causados pelas decisões tomadas pela IA, a exemplo das mortes causadas por carros autônomos e braços robóticos. Alguns estudiosos propuseram uma divisão entre a IA individual, híbrida (humano-máquina) e coletiva (máquinas de IA interconectadas) para fins de responsabilização específica para cada modalidade. Outros propõe a figura do “algoritmo empregado”, como forma de contornar a delegação cada vez maior de funções nas empresas aos algoritmos, inibindo a responsabilização por condutas danosas. Dessa forma, cria-se uma ficção jurídica de equiparar o algoritmo a um gerente empresarial para fins de responsabilização da empresa por danos causados.
Um grande desafio para as leis de responsabilidade algorítmica é o problema das muitas mãos, uma vez que os algoritmos de IA estão cada vez mais complexos. Um único algoritmo de uma indústria, por exemplo, pode ser desenvolvido por milhares de funcionários de diversas corporações diferentes. Nos EUA, a abordagem do tema se dá de forma descentralizada, delegando para as agências reguladoras. Já na Europa, a abordagem é centralizada. A ausência de uma lei de responsabilidade algorítmica nos EUA não impede que a questão seja discutida em processos judiciais multimilionários, envolvendo a quebra de dados privados de pessoas famosas e a violação de direitos autorais, além da indenização por danos causados pelos algoritmos.
No Brasil, o PL 2338/2023 prevê no artigo 5º a proteção contra o viés do algoritmo e a transparência na tomada de decisão, além de prever a responsabilidade civil objetiva nas atividades de alto risco no artigo 27. Na ciência de dados, existe um teorema que diz que um algoritmo sem viés é inútil, não sendo superior ao acaso. O viés e a imprevisibilidade estão na base do poder de predição dos algoritmos de aprendizagem de máquina. De igual modo, esses algoritmos se tornam tão complexos, que nem mesmo seus desenvolvedores são capazes de entender o processo de tomada de decisão. Desta forma, a correção de vieses, a transparência na decisão e a responsabilidade objetiva podem travar o desenvolvimento da IA.
Os tribunais também não aplicam adequadamente o direito vinculado à ciência de dados. Tradicionalmente, a justiça demora em absorver os avanços tecnológicos, desde os tempos do telégrafo. Não custa lembrar que existem diversas ações judiciais recentes tramitando nos tribunais brasileiros visando o reparo e a instalação de orelhões. De fato, por muitos anos os computadores foram utilizados pelos tribunais apenas como substitutos das máquinas de escrever.
Atualmente, foram incorporados sistemas especialistas, cujo motor de inferência elabora minutas de decisões e movimenta processos sem intervenção humana, com pesquisas avançadas em grandes bancos de dados. No campo da investigação patrimonial, o sistema sniper utiliza IA para detectar quaisquer movimentações financeiras do devedor, por meio do fornecimento do CPF ou CNPJ. Depois de alguns anos, os tribunais finalmente passaram a adotar o domicílio digital para comunicações processuais.
Um bom exemplo da dificuldade dos juristas em entender essa revolução tecnológica proporcionada pelo aprendizado de máquina está no manejo de conceitos abertos, como a subordinação algorítmica.
No dia 14/09/2023 foi proferida uma sentença pela 4ª Vara do Trabalho de São Paulo em uma ação coletiva ajuizada pelo MPT, reconhecendo o vínculo de emprego entre os motoristas e a Uber, além de condenar a plataforma a pagar um bilhão de reais por danos morais coletivos. No dispositivo da sentença também constou multa cominatória de 10 mil reais por cada motorista não registrado, devendo a regularização ser feita na proporção de um sexto por mês, até completar o período de seis meses, incidindo a multa na mesma proporção de um sexto. A contagem do prazo se inicia em um mês após a intimação.
Contra essa decisão, a empresa pode interpor recurso ordinário para o TRT2, solicitando efeito suspensivo ao relator, conforme a redação atual da súmula 414 do TST, que se reporta ao art. 1.029, §5ª, II, do NCPC. De igual modo, cabe pedido de suspensão em sede de reclamação ao STF, segundo o art. 989, II, do NCPC. No TRT2, o tema é controvertido. Em decisões recentes, a 8ª e a 14ª turmas reconheceram o vínculo. Já a 11ª e a 17ª turmas negaram o vínculo. No TST, o tema também não é pacífico. A 3ª turma reconheceu o vínculo. A 8ª turma já decidiu nos dois sentidos, mas atualmente prevalece entre a maioria de seus integrantes o entendimento pelo reconhecimento do vínculo de emprego. Por sua vez, a 4ª e a 5ª turmas do TST negaram o vínculo. Dada a controvérsia entre os órgãos fracionários, o tema foi encaminhado para a SDI-1.
No STF, o tema não encontra divergência. Em 2023, a Suprema Corte cassou acórdãos da Justiça do Trabalho que reconheceram o vínculo de emprego com os motoristas de aplicativos, em decisões da lavra do Min. Alexandre de Moraes envolvendo a plataforma Cabify, e encaminhou o caso para a justiça comum estadual. No STJ, o tema também é pacífico, havendo decisões negando a relação hierárquica com as plataformas, tendo em conta que os serviços são eventuais, sem horários pré-estabelecidos.
Na Reclamação 59795, julgada em 2023, o STF também cassou decisão oriunda do TRT3 que havia reconhecido o vínculo, tendo como fundamento o tema 715, a ADC 48, a ADPF 324, a ADI 5835 e os Recursos Extraordinários com repercussão geral nºs 958252 e 688233. Segundo a Suprema Corte, a relação entre o motorista de aplicativo e a plataforma se assemelha ao do transportador autônomo de cargas, regulado pela Lei nº 11.442/2007, uma vez que o motorista pode decidir quando e se prestará o serviço, além de não existir exigência mínima de trabalho, de faturamento ou de número de viagens.
Contudo, a sentença da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo entendeu que os “elementos sociológicos” dos motoristas de aplicativos são muito distantes dos transportadores autônomos de que trata a Lei nº 11.442/2007, reconhecendo o vínculo de emprego com base na subordinação algorítmica. A sentença se baseou no acórdão da 8ª turma do TST, que foi objeto de Recurso Extraordinário no STF. Esse acórdão é emblemático por ter reconhecido o vínculo do motorista com base na subordinação clássica. De fato, o ministro relator chamou a subordinação algorítmica reconhecida pelo TRT1 de “licença poética”, afirmando que a Uber não fabrica tecnologia, tratando-se na verdade de uma transportadora que utiliza veículos de motoristas contratados. O Recurso Extraordinário contra esse acórdão foi admitido pelo presidente do TST, que enviou o recurso para o STF por vislumbrar possível violação ao art. 170, IV, da CF, que prevê o princípio da livre iniciativa. Caso o Recurso Extraordinário seja julgado com repercussão geral, se tornará um precedente qualificado, portanto vinculante para as demais instâncias, por força do art. 1.039 do NCPC.
A relação de trabalho com as plataformas digitais utiliza a gestão “gamificada”, própria da “gig economy”. Ou seja, utiliza um sistema de pontuações e recompensas tal qual um jogo eletrônico, que virou moda na economia de “bicos”. A sentença da 4ª Vara do Trabalho citou o princípio de Carrot, como se os motorista fossem atraídos pelas pontuações como coelhos atraídos por cenouras, à semelhança da psicologia behaviorista, que comprara o comportamento humano aos ratos que levam vários choques em busca de queijo. A sentença se baseou ainda nos ferroviários extranumerários, previstos no antigo art. 244, §1º, da CLT, uma realidade que remonta a meados do século passado, e que eram utilizados para serviços imprevistos.
Para fundamentar o vínculo de emprego, a sentença lançou mão do artigo “Subordinação Algorítmica: Caminho para o Direito do Trabalho na Encruzilhada Tecnológica?”, ressaltando que ele foi publicado na revista do TST em 2021 após aprovação pelo conselho editorial. Os autores do artigo são Denise Pires Fincato e Guilherme Winsch, ambos pós-doutores em Direito. O título do artigo está na forma de um interrogação, uma técnica editorial que virou moda no mundo jurídico nos últimos anos. No entanto, a conclusão do artigo não apresenta uma resposta para a indagação do título, servindo o texto como uma provocação ao debate.
Logo no início, os autores do artigo declaram que parece ter chegado o futuro, momento tão temido por grande parte dos juslaboralistas, e que as raízes clássicas do Direito do Trabalho encontram-se em xeque ou beiram à extinção. Mais à frente, os autores advertem que, no cruzamento de fundamentalidades, impõe gizar que também o desenvolvimento é essencial à humanidade, não sendo lógico, em princípio, freá-lo. E que o desenvolvimento tecnológico benéfico ao coletivo, por vezes, pode não ser favorável a um indivíduo. Por fim, os autores declaram que nos trabalhos prestados através de plataformas digitais não se visualiza o exercício efetivo e constante do poder diretivo por parte do empregador, pois este concede ao empregado liberdade para a execução do serviço. Os autores se reportam à obra de Manzano e Oliveira (Algoritmo: Lógica para Desenvolvimento de Programação de Computadores). Trata-se de livro voltado para cursos técnicos, conforme consta em seu prefácio, com análise de técnicas clássicas de programação, como algoritmos estruturados e orientados a objetos. O livro não cobre temas voltados à inteligência artificial, que fundamenta a suposta subordinação algorítmica.
Na “conclusão da análise do vínculo de emprego com os motoristas”, a sentença ainda cita a constituição dirigente. Trata-se de definição há muito abandonada por seus criadores, a começar por J. J. Gomes Canotilho, que declarou há duas décadas que a constituição dirigente morreu.
A sentença fez uma interpretação evolutiva do artigo 6º, parágrafo único, da CLT, alterado em 2011. No entanto, esse dispositivo se vincula às ordens repassadas entre humanos com a intermediação de aparelhos eletrônicos, como e-mails e aplicativos mensageiros, como WhatsApp e Telegram, que possibilitaram o trabalho à distância. O próprio TST entende que o uso de aparelho celular, bip ou pager pelo empregado não caracteriza o regime de sobreaviso, conforme a súmula 428. A alteração ocorrida no dispositivo em 2011 visou o crescimento do teletrabalho, sem vinculação com a subordinação algorítmica.
Não se desconhece a possibilidade de que a inteligência artificial seja utilizada pela empresa para controle de seus empregados. Afinal, a aparência de trabalho não significa produtividade. Já existem programas que realizam o monitoramento ocular dos funcionários nas telas dos computadores. O aplicativo Traqq, por exemplo, avisa quando o funcionário fica mais de dez segundos em sites não relacionados ao trabalho.
No entanto, a sua aplicação à economia de “bicos” demonstra desconhecimento da ciência de dados. As recompensas e punições dos aplicativos são próprias de uma boa prestação do serviço, uma vez que a plataforma tem contrato tanto com motoristas quanto usuários. O esforço para a melhoria do serviço não implica necessariamente em controle e subordinação, mas sim em modelo de negócios voltado à eficiência, com base no aprendizado de máquina. Não à toa a sentença descartou a explicação da defesa sobre a inteligência artificial, chamando-a de “poluição sintática e semântica com termos tecnológicos e não jurídicos para descaracterizar algo evidente”.
Em outro caso recente, a 6ª Vara do Trabalho de Santos/SP também reconheceu o vínculo de emprego com base na subordinação algorítmica. A sentença declarou que de fato a plataforma não repassa ordens diretas ao motorista, mas o software, com base em algoritmos implementados pelas plataformas, estabelece regras e critérios para a melhor prestação do serviço, de sorte que se ele não se enquadrar nos referidos critérios poderá receber menos chamadas que aqueles que obedecem.
Já a Justiça do Trabalho de Blumenau/SC não reconheceu o vínculo entre entregadores e restaurantes, tendo em conta a impossibilidade jurídica do pedido, uma vez que os entregadores trabalham para até quatro aplicativos simultaneamente, não sendo possível o reconhecimento de vínculo com todos eles ao mesmo tempo. Além disso, havia liberdade e ausência de pessoalidade, uma vez que o labor só ocorria se o entregador aceitasse a entrega ofertada, não havendo determinação nesse sentido.
No plano internacional, prevalece atualmente uma abordagem de terceira via. Em 2016, a justiça do Reino Unido reconheceu pioneiramente o vínculo de emprego com os motoristas. O Supremo Tribunal do país confirmou a decisão, com base no precedente do caso Autoclenz Ltd v. Belcher, que envolveu trabalhadores de limpeza de automóveis, conhecidos como valeters.
A justiça da Califórnia também fez o mesmo. Em uma decisão de 34 páginas cujo título era “O Povo do Estado da Califórnia contra Uber”, a justiça aplicou a Lei AB5 de 2019, que dificultou a contratação de funcionários como empreiteiros no estado. No entanto, pouco depois houve um referendo popular conhecido como Proposição 22, que excluiu o vínculo de emprego com as plataformas, sendo aprovado por ampla maioria pela população. O título da decisão judicial citou “O Povo da Califórnia” por mera formalidade, já que não refletiu a realidade da opinião pública. A Proposição 22 foi confirmada pela justiça da Califórnia em 2023.
O parlamento da União Europeia aprovou uma votação relacionada à diretiva 414/2021, cujo art. 4º visa reconhecer o vínculo de emprego com as plataformas. Houve uma votação em 02/02/2023, contando com 376 votos a favor e 212 votos contra. Muitos países europeus aprovaram o vínculo de emprego com as plataformas, seja na via judicial ou legislativa. Na Nova Zelândia, o tema foi aceito para análise pelo Tribunal de Recursos, à luz da Seção 6 da Lei das Relações Laborais. A última vez que esse tribunal aceitou análise do tipo ocorreu há mais de 20 anos, com um modelista que atuou na franquia Senhor dos Anéis, que foi gravada no país. Já na Austrália, a justiça negou o vínculo. No Canadá, a justiça aceitou o trâmite de uma ação coletiva no valor de 400 milhões de dólares, o dobro da condenação no Brasil. O tema também é discutido na justiça indiana.
Na gestão de processos do judiciário brasileiro, a Uber utiliza IA com análise preditiva, deixando transcorrer apenas ações judiciais cujo algoritmo indica uma alta probabilidade de improcedência. Com essa estratégia, a empresa logrou êxito em mais de 2.500 decisões judiciais, oriundas de TRTs e Varas do Trabalho, que negaram o vínculo de emprego.
Apesar de alguns reveses iniciais em determinados países, a estratégia atual da Uber não é mais de confronto, privilegiando acordos coletivos, com a condição de que o vínculo não seja reconhecido. Assim, a Proposição 22 da Califórnia foi confirmada em 2023. Em 2022, a empresa também fez acordo coletivo com o sindicato GMB do Reino Unido e com a ITF, que representa cerca de 700 sindicatos no mundo, principalmente na Europa, além de acordos coletivos no Canadá e na Austrália. Esses acordos cobrem questões como desativação de contas, repasses dos valores e maior segurança, mas sem o reconhecimento de vínculo de emprego, possibilitando flexibilidade e autonomia aos motoristas. A empresa também passou a englobar entregadores e taxistas na sua plataforma e nos acordos coletivos.
A Uber e o iFood encomendaram pesquisas ao Datafolha, que constataram que 7 em cada 10 motoristas e entregadores não querem a carteira de trabalho assinada. A propalada economia de “bicos” não visa a população economicamente ativa. Nos grandes centros do país, é comum trabalhadores terem seus empregos fixos e reservarem algum tempo na semana para se logarem ao aplicativo e faturar uma renda extra. Profissionais liberais também se valem das plataformas para complementar a renda, assim como os aposentados, que não têm interesse no vínculo de emprego, pois isso pode resultar na perda da aposentadoria em alguns casos. Não raro, turistas viajam à Europa e reservam alguns dias da viagem para trabalhar como motoristas de aplicativos em carros alugados, ganhando o equivalente à despesa da viagem. Segundo levantamentos divulgados pela mídia, alguns motoristas de Uber Corporativo em Londres chegam a ganhar 75 mil a 100 mil libras por ano.
Caso o vínculo de emprego fosse realmente aplicado no Brasil, isso importaria em diversos encargos diretos e indiretos, resultando na exclusão de grande parte dos motoristas que utilizam o aplicativo, e na consequente perda de renda. A Uber tem uma média de 25 milhões de viagens por dia no mundo, com cerca de 137 milhões de passageiros por mês. No Brasil, são quase dois milhões de motoristas.
O entendimento que prevalece no STF é que a relação é cível, já que a plataforma é um parceiro comercial do motorista, que se qualifica como um profissional independente que contrata a tecnologia de intermediação digital. Eles podem aceitar ou não as corridas, e cancelar após o aceite. Não existem metas a serem cumpridas, não se exige número mínimo de viagens, não há exclusividade na contratação, podendo operar em várias plataformas simultaneamente, e nem cumprimento de jornada mínima.
O STF aplica analogicamente a Lei nº 11.442/2007, que revogou a Lei nº 6.813/1980. Na ADC 48, julgada em 2020, o STF confirmou a constitucionalidade da lei, ratificando a terceirização na atividade-fim, tal como já havia decidido no tema 725, descartando o vínculo de emprego com os transportadores. O art. 4º, §§ 3º e 5º, da lei referida, incluídos pela Lei nº 13.103/2015, também afastam a caracterização do vínculo de emprego entre o motorista principal e o auxiliar, ou entre aquele e o embarcador. Já o art. 5º, §2º, incluído pela Lei nº 14.206/2021, portanto após o julgamento da ADC 48, destaca a natureza comercial na contratação direta entre o proprietário da mercadoria e o motorista, afastando, por consequência, o vínculo de emprego. Por fim, o art. 13-B, incluído pela Lei nº 14.599/2023, impede o desconto no valor do frete do motorista de taxas administrativas e seguros de qualquer natureza. O art. 442-B da CLT, incluído pela Lei nº 13.467/2017, dispõe sobre o trabalho autônomo, em compasso com o art. 593 do Código Civil, que prevê o contrato de prestação de serviço, afastando a aplicação do art. 3º da CLT.
Em 2023, a 2ª turma do STF decidiu a Reclamação 57.917, confirmando a possibilidade de contratação de um médico como pessoa jurídica. O TRT2 havia reconhecido o vínculo de emprego com o hospital, decisão esta que foi cassada pela Suprema Corte, com base no tema 725. A Reclamação 47.843, julgada pela 1ª turma do STF, também foi no mesmo sentido. A contratação como pessoa jurídica também se aplica na relação entre advogados e escritórios.
Os motoristas se beneficiam com a tecnologia, que faz todo o trabalho de intermediação, restando a eles apenas o deslocamento do passageiro. A Uber utiliza IA com PNL para compreender as interações dos usuários, possibilitando que os motoristas respondam com apenas um clique, sem necessidade de digitar textos enquanto dirige. Outras patentes da Uber envolvem a detecção de “usuários incomuns”, como passageiros ébrios, captados pelo algoritmo com base na forma como o usuário interage com a interface do smartphone, e enviando a solicitação para motoristas com treinamento e experiência neste tipo de passageiro. A IA também se adapta a eventos atípicos, como jogos, feriados movimentados, como as festas de fim de ano, e mudanças climáticas, como chuvas intensas, ciclones e furacões. Um pedido de patente já visa a pré-solicitação, utilizando redes neurais artificiais que analisam o histórico do passageiro e dados de localização, para avisar motoristas sobre possíveis solicitações de viagens.
Na via legislativa, diversos projetos de lei visam regular o trabalho em aplicativos, como o PL 974/2021, que altera a CLT para estender direitos trabalhistas aos motoristas, o PL 1471/2022 que fixa uma tarifa mínima, além do PL 3055, dentre outros. O melhor caminho é a adoção pela empresa de um acordo coletivo, constando um valor mínimo da hora de trabalho e a proibição de descontos no valor repassado aos motoristas, mas sem o reconhecimento do vínculo de emprego, possibilitando autonomia e flexibilidade aos trabalhadores e evitando os encargos indiretos, em uma proposta de terceira via semelhante à adotada nos outros países.
6-Conclusão
A inteligência artificial é um tema com mais de 50 anos, mas que ganhou enorme repercussão após a incorporação do Big Data no aprendizado de máquina. O Chat GPT já é visto com maus olhos pelo mercado e pelas instituições de ensino, uma vez que os trabalhos acadêmicos plagiados não são detectados, sendo chamados de lixo generativo. No entanto, logo surgirá uma IA que contorne esse problema e constate o plágio.
Quando da adoção dos computadores nas empresas e órgãos públicos uma frase ganhou notoriedade: os computadores são os melhores resolvedores de problemas que eles mesmos criaram. Essa ideia continua atual, e se aplica à inteligência artificial. Recentemente, surgiram diversos programas de IA que manipulam áudios e vídeos, como HeyGen, ElevenLabs, Swapface, Musicfy e Undetectable. Paralelamente, também surgiram programas de IA que detectam e até revertem o processo de manipulação, utilizando redes neurais convolucionais e recorrentes (CNN e RNN). De início, veio o impacto da IA, depois vieram os problemas, e por fim a própria IA foi usada para resolvê-los. Após esse período de adaptação, a IA tende finalmente a ser incorporada em todos os processos produtivos.
Contudo, essa adaptação nos tribunais é morosa, mas irrefreável. Como comparação, a Kodak foi lenta na adaptação às câmeras digitais, sendo praticamente excluída do mercado do qual era líder. Hoje, as corporações não hesitam em adotar a IA em seus processos. De igual modo, o CNJ e o PNUD criaram uma série de soluções para o uso de inteligência artificial no judiciário brasileiro, no âmbito do programa Justiça 4.0, com mais de 150 iniciativas.
Mas essa incorporação deve ser racional. O robô do INSS, por exemplo, utiliza IA, mas é apontado como causador de diversos entraves para o acesso da população aos benefícios a que tem direito.
A declaração que consta na sentença da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo sobre a “poluição sintática e semântica de termos tecnológicos e não jurídicos” revela o descompasso entre o avanço da inteligência artificial e o desconhecimento dos juristas acerca da ciência de dados e do aprendizado de máquina.
Como visto acima, o TRT15 incorporou métodos de IA para agilizar os processos, contornando a falta de recursos humanos. O art 27 da Resolução do CSTJ nº 296/2021 prevê o fechamento de diversas Varas do Trabalho em todo país, adiando-se para o dia 31/01/2024 pelo Ato nº 59/CSJT.GP.SEJUR. A falta de concursos públicos nos tribunais para alguns cargos já é um indicativo da substituição de tarefas repetitivas por algoritmos avançados de IA. É um caminho sem volta, que irá impactar diversos cargos públicos e empregos privados, mas que irá conduzir a uma revolução no mercado com a geração de diversas outras oportunidades de trabalho.
A demora dos tribunais na absorção da IA tanto do ponto de vista endógeno (no uso da IA na sua produtividade) quanto exógeno (nos processos que julga cujo tema é IA) apenas retarda um processo inevitável, que promete grandes benefícios aos jurisdicionados.
Referências
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Custer, Bart. Fosch-Villaronga, Eduard. Law and Artificial Intelligence: Regulating AI and Applying AI in Legal Practice, Springer, 2022.
Filho, Oscar Gabriel. Inteligência Artificial e Aprendizagem de Máquina: Aspectos Teóricos e Aplicações, Blucher, 2023.
Kelleher, John D. Namme, Brian Mac. D’Arcy, Aoife. Fundamentals of Machine Learning for Predictive Data Analytics, The MIT Press, 2ª edição, 2022.
Russel, Stuart J. Norvig, Peter. Inteligência Artificial - Uma Abordagem Moderna, editora LTC, 2022.
Shah, Chirag. A Hands-On Introduction to Data Science, Cambridge University Press, 2022.
Schmidt, Eric. Huttenlocher, Daniel. Kissinger, Henry A. A Era da Inteligência Artificial: e o Nosso Futuro como Humanos, editora Alta Cult, 2023.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. A Inteligência Artificial e o Direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 dez 2023, 04:46. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/64083/a-inteligncia-artificial-e-o-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Por: Isnar Amaral
Por: REBECCA DA SILVA PELLEGRINO PAZ
Por: Isnar Amaral
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