Resumo: O presente trabalho aborda a desapropriação de bens públicos disciplinada pelo art. 2°, §2°, do Decreto-Lei 3.365/1941, que estabelece uma hierarquia verticalizada, permitindo à União desapropriar bens de Estados e Municípios, e aos Estados, desapropriar bens de Municípios. Propõe-se um olhar sobre o dispositivo normativo em questão, a ser lançado sobre a óptica do princípio federativo na atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que destaca a necessidade de que os dispositivos infralegais sejam interpretados no sentido de respeitar a autonomia e igualdade entre os entes políticos da federação. Nesse cenário, sugere-se que a interpretação mais alinhada aos princípios do federalismo cooperativo, da autonomia e da igualdade entre os entes federativos, é aquela que não considera hierarquia na desapropriação de bens públicos, refletindo a tendência da Suprema Corte em contextos semelhantes.
Palavras-chave: Desapropriação de Bens Públicos; Hierarquia Verticalizada; Pacto Federativo; art. 2°, §2°, do Decreto-Lei 3.365/1941.
Sumário: Introdução; A desapropriação de bens públicos e a hierarquia verticalizada estabelecida pelo Decreto-Lei n° 3.365/1941; O Princípio Federativo e a ADPF 357; O Princípio Federativo como fundamento da ADI 3454; Conclusão; Referências; Notas.
1. Introdução
Este artigo propõe uma análise sobre a compatibilidade do art. 2°, §2°, do Decreto-Lei 3.365/1941 com os princípios estabelecidos pela Constituição Federal de 1988, com ênfase especial no pacto federativo brasileiro.
O foco central do estudo reside na investigação de como a legislação, formulada em um contexto histórico e político significativamente diferente do atual, a despeito de haver sido reeditada recentemente, se alinha ou conflita com os preceitos do federalismo contemporâneo, conforme interpretado pelo Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, tem-se um estudo amparado na doutrina e na jurisprudência do Pretório Excelso, particularmente as decisões proferidas nas ADI 3454 e ADPF 357, que abordam a questão da hierarquia entre os entes federativos e o reflexo de tal entendimento no contexto da desapropriação de bens públicos.
2. A desapropriação de bens públicos e a hierarquia verticalizada estabelecida pelo Decreto-Lei n° 3.365/1941
José dos Santos Carvalho Filho conceitua desapropriação nos seguintes termos:
A desapropriação é um procedimento por meio do qual o ente público determina a retirada de bem privado do seu proprietário, para que este faça parte do patrimônio público, sempre embasado nas necessidades coletivas, mediante o pagamento de indenização previamente definida, de forma justa ao proprietário.[1]
Quanto à desapropriação de bens públicos, o art. 2°, §2°, do Decreto-Lei n° 3.365/1941, em sua redação originária, estabelecia que: “Os bens do domínio dos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios poderão ser desapropriados pela União, e os dos Municípios pelos Estados, mas, em qualquer caso, ao ato deverá preceder autorização legislativa”.
Tal dispositivo foi alterado pela Lei n° 14.620/2023, passando a vigorar com o seguinte teor:
Art. 2° (...)
§ 2º Será exigida autorização legislativa para a desapropriação dos bens de domínio dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal pela União e dos bens de domínio dos Municípios pelos Estados.
Portanto, observa-se que o Decreto-Lei n° 3.365/1941 estabeleceu uma hierarquia verticalizada para a desapropriação de bens público, de sorte que a União pode desapropriar bens dos Estados e dos Municípios e os Estados, por sua vez, podem desapropriar bens pertencentes aos Municípios constantes de seu território.
Conforme leciona Rafael Carvalho Rezende Oliveira:
Verifica-se que, em conformidade com o estabelecido, uma espécie de hierarquia entre os interesses envolvidos: o interesse nacional (União) prevalece sobre o interesse regional (Estados), que, por sua vez, tem primazia sobre o interesse local dos Municípios. Em consequência, os bens públicos federais são inexpropriáveis e os Municípios não podem desapropriar bens públicos de outros Entes federados[2].
Há três posições doutrinárias acerca da constitucionalidade do art. 2°, §2°, do Decreto-Lei n° 3.365/1941.
A primeira delas, que tem como um de seus defensores Fábio Konder Comparato, entende pela impossibilidade de desapropriação de bens públicos, pois isso infringiria a autonomia das entidades federativas (princípio federativo)[3].
A segunda interpretação, que representa a corrente majoritária, entende que o art. 2°, §2°, do Decreto-Lei n° 3.365/1941deve ser aplicado em sua literalidade, ou seja, defende-se ser possível a desapropriação de bens públicos, desde que esteja presente a autorização legislativa e seja realizada de “cima para baixo”, observando-se , portanto, a hierarquia verticalizada estabelecida pelo referido dispositivo legal[4].
Por fim, a terceira posição sustenta a possibilidade de desapropriação de bens públicos “de baixo para cima” ou de “de cima para baixo”. Esse é o entendimento de Marçal Justen Filho[5] e Rafael Oliveira[6].
Entendemos que há fortes razões para se defender que a interpretação que melhor se coaduna com a Constituição Federal é a de que a desapropriação de bem público não deve obedecer a qualquer hierarquia entre os entes federativos, à míngua de amparo na Constituição Federal.
Como bem acentua Rafael Oliveira:
Entendemos, ainda que de forma minoritária, que a desapropriação de bens públicos não pode ser fundamentada na hierarquia de interesses consagrada no art. 2.º, § 2.º, do Decreto-lei 3.365/1941. A hierarquia dos interesses, neste caso, acarreta, consequentemente, a hierarquia entre os Entes federados, com primazia para a União em detrimento dos demais Entes autônomos. Essa concentração de poder nas mãos da União somente pode ser explicada pelo período em que a promulgada, momento de obscuridade da democracia ocasionado pela Constituição autoritária de 1937 ("Polaca"). O atual texto constitucional não estabelece qualquer hierarquia entre os Entes federados; pelo contrário, estabelece o federalismo cooperativo, respeitando a repartição constitucional de competências.
Por essa razão, a desapropriação de bens públicos "de baixo para cima", em nosso entender, deve ser também permitida. Em qualquer hipótese, a desapropriação de bens públicos depende da ponderação de interesses no caso concreto, respeitando o princípio da proporcionalidade. Por exemplo, a desapropriação de bem dominical estadual por Município para criação de hospital público. O interesse público secundário, predominantemente econômico, subjacente ao bem dominical estadual, pode ceder espaço para o interesse público primário promovido pela desapropriação[7]. (Original sem os grifos)
Não se olvida que a Suprema Corte, sob a égide da Constituição atual, referendou a hierarquia verticalizada inserta no art. 2°, §2°, do decreto-Lei n° 3.365/1941[8].
No entanto, os julgamentos da ADPF 357 e ADI 3454 trazem novas luzes para a discussão quanto à interpretação do referido comando normativo e a sua compatibilidade com Constituição Federal, conforme será demonstrado adiante.
3. O Princípio Federativo e a ADPF 357
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 357, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, teve como objeto principal a análise da constitucionalidade do parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional e do parágrafo único do art. 29 da Lei n. 6.830/1980, que estabeleciam uma ordem de preferência para a cobrança judicial de créditos tributários entre os entes federativos, privilegiando a União, seguida pelos Estados, Distrito Federal e Municípios.
Essa configuração normativa foi arguida como contrária aos princípios do federalismo cooperativo e do equilíbrio entre os entes federativos, tal como estabelecidos pela Constituição de 1988. Com efeito, segundo o autor da referida Ação, essa hierarquização dos entes na cobrança de créditos tributários violava a autonomia e a isonomia entre eles, fundamentos essenciais do pacto federativo brasileiro.
Quando da prolação de seu voto, a Ministra Cármen Lúcia, relatora da ADPF, destacou que, em decisões anteriores, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça aplicaram a Súmula n. 563 do STF[9] que, baseada na Constituição de 1967 e alterada pela Emenda Constitucional n. 1/69, endossava a existência de uma hierarquia entre os entes federativos na cobrança de dívidas.
Entrementes, a e. Ministra aponta uma mudança significativa com a Constituição de 1988, que redefiniu o federalismo brasileiro, diferenciando-o da Carta de 1967 e da Emenda de 1969, as quais contemplavam um federalismo formal (não havia contexto federativo mas mera referência formal no texto normativo).
Segundo a Relatora, sob a égide da Carta de 1967 e da Emenda de 1969, era inequívoco o entendimento de ser a União hierarquicamente superior aos demais entes federados, o que fundamentava a preferência no concurso de credores.
Entrementes, conforme leciona a Ministra Carmen Lúcia:
22. Contra a ideia de hierarquia entre entes federados, o art. 18 da Constituição da República de 1988 expressa a autonomia que iguala os entes em sua feição política:
“A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”.
Quer dizer, no plano internacional, o Estado Nacional, representado pela União, é soberana. No plano interno, a União é autônoma e iguala-se aos demais entes federados, sem hierarquia, com competências próprias.
Naquele dispositivo se tem a expressão obrigatória da autonomia dos entes federados, indicando-se ausência de hierarquia entre os entes e delimitando-se que suas competências administrativas e legislativas decorram unicamente das previsões constitucionais.
23. Pela ausência de hierarquia entre os entes federados, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 663.696, Relator o Ministro Luiz Fux, ponderou-se que:
“eventual invasão de competência legislativa exclusiva dos Municípios resulta em flagrante inconstitucionalidade, ainda quando tenha sido praticada pelo ente mais abrangente, já que não há qualquer hierarquia entre os entes da federação. Se assim o é, não há que se falar em maior ou menor relevância entre as diferentes competências atribuídas por cada um deles” (Tribunal Pleno, processo julgado em repercussão geral, DJ 22.8.2019).
No mesmo sentido, no julgamento da ACO n. 1098 AgR-TA, Relator o Ministro Joaquim Barbosa, DJ 8.10.2009, asseverou-se, expressamente, que “não há hierarquia ou subordinação do Estado de Minas Gerais à União, circunstância que, ao menos neste exame, justificaria a distinção feita quanto aos entes submetidos ao preenchimento da DCTF."[10]. (Original sem os grifos)
Em igual diretriz, o Ministro Alexandre de Moraes assentou em seu voto que:
A vedação federativa é muito clara e dentro desse novo federalismo, dentro dessa nova ideia constitucional, dentro de um regime democrático que elege núcleos autônomos de poder para que haja uma descentralização de poder com autogoverno, autoadministração e autolegislação. Nessa tríplice capacidade que caracteriza a autonomia dos entes federativos, a União não é mais do que os estados, que, por sua vez, também não são hierarquicamente superiores aos municípios.[11] (Original sem os grifos)
Por sua vez, o Ministro Luiz Roberto Barroso mencionou que:
A igualdade entre os entes da federação é tão evidente, que eles não estão sujeitos a qualquer tipo de hierarquia entre si, que os autores sequer destacam esse elemento como característico da Federação, simplesmente porque ele é um elemento implícito em toda a configuração do modelo dessa forma específica de Estado. Claro que a Constituição poderia, como pode eventualmente, prever tratamento desequiparado entre os estados por alguma escolha, por alguma opção legítima do constituinte, mas certamente o legislador ordinário, o legislador infraconstitucional não pode fazê-lo[12]. (Original sem os grifos)
Da mesma forma, o Ministro Ricardo Lewandowski destaca:
O federalismo cooperativo é exatamente isto: há um entrelaçamento de competências e rendas, tanto da União como dos estados, Distrito Federal e municípios, e esta cooperação se destina exatamente à consecução do bem comum de todo o povo brasileiro. Não há hierarquia e não há a possibilidade de estabelecer-se qualquer tipo de privilégio nesta nossa federação, neste nosso federalismo cooperativo.[13] (Original sem os grifos)
Portanto, nos termos do entendimento da Suprema Corte, o federalismo de cooperação e de equilíbrio, estabelecido na Constituição da República de 1988, não permite a criação de diferenciações entre os entes federativos por meio de legislações de nível inferior à Constituição.
A propósito, o Acórdão restou ementado nos seguintes termos:
EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 187 DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 29 DA LEI N. 6.830/1980. CONCURSO DE PREFERÊNCIA ENTRE OS ENTES FEDERADOS NA COBRANÇA JUDICIAL DOS CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS E NÃO TRIBUTÁRIOS. INCOMPATIBILIDADE DAS NORMAS IMPUGNADAS COM A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988. AFRONTA AO INC. III DO ART. 19 DA CONSTITUIÇÃO. ARGUIÇÃO JULGADA PROCEDENTE.
1. A arguição de descumprimento de preceito fundamental viabiliza a análise de constitucionalidade de normas legais pré-constitucionais insuscetíveis de conhecimento em ação direta de inconstitucionalidade. Precedentes.
2. A autonomia dos entes federados e a isonomia que deve prevalecer entre eles, respeitadas as competências estabelecidas pela Constituição, é fundamento da Federação. O federalismo de cooperação e de equilíbrio posto na Constituição da República de 1988 não legitima distinções entre os entes federados por norma infraconstitucional.
3. A definição de hierarquia na cobrança judicial dos créditos da dívida pública da União aos Estados e Distrito Federal e esses aos Municípios descumpre o princípio federativo e contraria o inc. III do art. 19 da Constituição da República de 1988.
4. Cancelamento da Súmula n. 563 deste Supremo Tribunal editada com base na Emenda Constitucional n. 1/69 à Carta de 1967.
5. Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada procedente para declarar não recepcionadas pela Constituição da República de 1988 as normas previstas no parágrafo único do art. 187 da Lei n. 5.172/1966 (Código Tributário Nacional) e no parágrafo único do art. 29 da Lei n. 6.830/1980 (Lei de Execuções Fiscais)[14]. (Original sem os grifos)
Portanto, os fundamentos utilizados no referido Acórdão podem ser validamente invocados para demonstrar que a interpretação da hierarquia verticalizada estabelecida por norma infraconstitucional, prevista no art. 2°, §2°, do Decreto-Lei n° 3.365/1941, segundo a qual apenas a União pode desapropriar bens dos Estados e dos Municípios e os Estados desapropriar bens dos Municípios, não se coaduna com o federalismo de cooperação e de equilíbrio inserto na Constituição Federal de 1988, que, conforme acentuado, não legitima distinções entre os entes federados por norma infraconstitucional.
Aliás, a despeito de haver sido o voto vencido, o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, acentuou a semelhança da hierarquia prevista nos dispositivos do CTN e da Lei de Execução Fiscal declarados não recepcionados pela Constituição Federal de 1988 e o art. 2°, §2°, do Decreto-Lei n° 3.365/1941, nos seguintes termos:
Em reforço argumentativo, de obiter dicta, relembremo-nos do assunto que admite certo paralelismo em termos de precedência entre entes federados que, de igual modo, não me parece constituir distinção inconstitucional entre entes federados.
Reporto-me, no âmbito do Direito Administrativo, à previsão de que a União possa desapropriar bens dos Estados e estes de seus Municípios, mas não o inverso.
Essa é a dicção do § 2º, do Art. 2º do Decreto-lei 3.365, de 1941, bem como a compreensão manifestada em diversos julgados deste Tribunal (por todos, RE 172816, Relator(a): Paulo Brossard, Tribunal Pleno, julgado em 09/02/1994; e ACO 2162 AgR, Relator(a): Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 24/08/2020). A ideia subjacente, nas palavras do Ministro Paulo Brossard, dialoga com a prevalência do interesse nacional sobre regional, e deste sobre o local.[15] (Original sem os grifos)
Nesse cenário, diante da similitude das normas supracitadas, tem-se como necessária a análise do art. 2º, § 2º, do Decreto-lei n° 3.365/1941 sob a óptica do federalismo assentada na ADPF 357, para rechaçar qualquer interpretação da qual se extraia a existência de hierarquia entre os entes da federação estabelecida por norma infraconstitucional, ou seja, pelo diploma legislativo que disciplina a desapropriação por utilidade pública.
4. O Princípio Federativo como fundamento da ADI 3454
Na ADI 3454, julgada em 21.06.2022, o Supremo Tribunal Federal se concentrou na interpretação do art. 15, XIII, da Lei nº 8.080/90, que versa sobre a requisição administrativa de bens e serviços em necessidades coletivas urgentes decorrentes de perigo iminente de calamidade pública ou surtos epidêmicos. A principal questão jurídica debatida foi a possibilidade de um ente federativo (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) requisitar bens e serviços pertencentes a outro ente federativo.
O dispositivo normativo em questão se acha erigido nos seguintes termos:
Art. 15. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão, em seu âmbito administrativo, as seguintes atribuições:
(...)
XIII - para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização;
O Pretório Excelso julgou procedente o pedido, para conferir interpretação conforme à Constituição ao artigo 15, inciso XIII, da Lei nº 8.080/90, em ordem a excluir a possibilidade de requisição administrativa de bens e serviços públicos de titularidade de outros entes federativos, pois a requisição administrativa, em tais condições, ofenderia a autonomia destes entes e o pacto federativo, alicerçado no princípio do federalismo cooperativo, que preconiza cooperação e horizontalidade entre os entes federados.
A propósito, em seu voto, o Ministro Relator Dias Tofoli acentuou que:
Aqui, é relevante salientar que a Constituição de 1988 consagrou o federalismo “cooperativo” ou “de integração”, caracterizado pela autoorganização, pelo autogoverno e pela autoadministração dos entes que o compõem. Isso significa dizer que os entes federados possuem autonomia, que não há hierarquia entre eles e que lhes é assegurado o tratamento isonômico, ressalvadas apenas as distinções porventura constantes do próprio texto constitucional.[16] (Original sem os grifos)
Alfim, o Acórdão restou ementado nos seguintes termos:
EMENTA Ação direta de inconstitucionalidade. Artigo 15, inciso XIII, da Lei nº 8.080/90 (Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde ' SUS). Requisição administrativa de bens e serviços para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias. Interpretação conforme à Constituição. Vedação a que um ente federado requisite bem ou serviço de outro. Entendimento jurisprudencial da Suprema Corte consolidado no decorrer da Pandemia da Covid-19. Ofensa à autonomia do ente federado e ao pacto federativo. Princípio do federalismo cooperativo. Cooperação e horizontalidade. Procedência do pedido.
1. A questão jurídica debatida nos autos está em saber se a requisição de que trata o art. 15, inciso XIII, da Lei nº 8.080/90 pode recair sobre bens e serviços públicos. Em outras palavras, discute-se, na presente ação, se um ente federativo pode requisitar bens e serviços pertencentes a outro.
2. Segundo a firme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ofende o princípio federativo a requisição de bens e serviços de um ente federativo por outro, o que somente se admitiria à União, de forma excepcional, durante a vigência das medidas excepcionais de estado de defesa (art. 136, § 1º, inciso II, da CF) e estado de sítio (art. 139, inciso VII, da CF) (v.g., ACO nº 3.463-MC-REF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 8/3/21, publicado no DJe de 17/3/21; ACO nº 3.393-MC-Ref, Tribunal Pleno, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 22/6/20, publicado no DJe de 8/7/20; ACO nº 3.398, Rel. Min. Roberto Barroso, publicado em 23/6/20; e ACO nº 3.385, Rel. Min. Celso de Mello, publicado no DJe de 23/4/20).
3. Conforme entendimento firmado na ADI nº 6.362, a requisição administrativa é instrumento de intervenção do Estado na propriedade privada que independe de aquiescência do particular e atuação prévia do Judiciário, cujo pressuposto único é o atendimento de uma situação de perigo público iminente.
4. Mesmo que os bens públicos estejam vocacionados ao atendimento de uma finalidade pública (o que é indiscutível) e que o pressuposto único indispensável para a requisição seja o atendimento de situação de perigo público iminente (e não a natureza do bem requisitado), seu uso excepcional e transitório por ente federativo que não aquele a que está vinculado o bem (ou serviço), ainda que a pretexto de acudir a uma situação fática de extrema necessidade, fere a autonomia do ente cujo bem seja requisitado e lhe acarreta incontestável desorganização.
5. A validade constitucional do dispositivo questionado está condicionada à exclusão da possibilidade de que a norma recaia sobre bens e serviços públicos, uma vez que tal preceito se volta a disciplinar a relação entre o Poder Público e o particular, constituindo-se em garantia desse em face daquele. No tocante aos entes federativos, suas relações se caracterizam pela cooperação e pela horizontalidade, não se admitindo a ente federativo requisitar bem ou serviço pertencente a outro, sob pena de ferimento da autonomia desse ente e, consequentemente, ofensa ao pacto federativo.
6. Pedido que se julga procedente para se conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 15, inciso XIII, da Lei nº 8.080/90, excluindo-se a possibilidade de requisição administrativa de bens e serviços públicos de titularidade de outros entes federativos.[17]
Portanto, mais uma vez, essa compreensão do STF sobre o pacto federativo e a autonomia dos entes federativos pode ser aplicada ao contexto do art. 2°, §2°, do Decreto-Lei 3.365/1941, relacionado à desapropriação de bens públicos.
Com efeito, com base nos fundamentos lançados na decisão da ADI 3454, verifica-se, extrai-se a incompatibilidade com a Constituição Federal de 1988 de se centralizar poderes na União para desapropriar, potencialmente conflitando com a autonomia dos entes federativos e o princípio do federalismo cooperativo.
5. Conclusão
O exame do art. 2°, §2°, do Decreto-Lei n° 3.365/1941, em face da Constituição Federal de 1988, revela que a persistência de uma estrutura hierárquica, tal como delineada pelo Decreto-Lei em sua origem e mantida com poucas alterações pela Lei n° 14.620/2023, colide frontalmente com o espírito e a letra da Constituição vigente, que advoga um modelo de federalismo pautado no equilíbrio e na cooperação mútua entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Não se pode olvidar que o Decreto-Lei n° 3.365/1941, originário de um contexto histórico distinto e marcado por uma perspectiva de centralização de poderes na União, foi recentemente revisado pela Lei n° 14.620/2023. Essa revisão, contudo, não alterou substancialmente o cerne da questão hierárquica, mantendo a verticalização no processo de desapropriação, estabelecendo que a União pode desapropriar bens dos Estados e Municípios e os Estados, por sua vez, dos Municípios.
Entrementes, a análise jurisprudencial revela um cenário em transformação. Recentes decisões do STF, particularmente as proferidas nas ADPF 357 e ADI 3454, lançam luzes sobre a interpretação contemporânea do federalismo brasileiro, evidenciando um deslocamento significativo em relação à visão de hierarquia verticalizada entre os entes federativos.
Deveras, a Suprema Corte, em tais precedentes, enfatizou a autonomia e a igualdade entre os entes políticos da federação, afastando qualquer noção de subordinação intrínseca entre estes no contexto do federalismo cooperativo.
Nesse diapasão, é possível concluir que a manutenção de uma estrutura hierarquizada para a desapropriação de bens públicos, tal como se extrai da redação literal do art. 2°, §2°, do Decreto-Lei n° 3.365/1941, conflita com a Constituição Federal de 1988, estando apta a comprometer a autonomia e a igualdade entre os entes federativos.
Portanto, a partir da análise realizada no presente estudo, conclui-se que há uma premente necessidade de que seja lançado um novo olhar sobre o art. 2°, §2°, do Decreto-Lei n° 3.365/1941, e, nesse contexto, há de prevalecer a interpretação de que a desapropriação de bens públicos pode ser realizada, sem considerar qualquer hierarquia entre os entes federativos.
Com efeito, tal interpretação, embora ainda minoritária, é a que melhor se harmoniza com os princípios do federalismo cooperativo, da autonomia e da igualdade entre os entes federativos, conforme estabelecido na Carta Magna.
Para além disso, essa compreensão se alinha à tendência contemporânea do STF, que tem demonstrado uma clara inclinação para fortalecer o equilíbrio federativo, afastando-se de concepções que propiciam a centralização de poder na União em detrimento da autonomia dos Estados e Municípios.
Referências
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SALLES, José Carlos de Moraes. A desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 5ª ed. São Paulo: RT, 2006.
5. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 22ª ed. São Paulo: Atlas, 2009.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 18ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
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10. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula n° 563: "O concurso de preferência a que se refere o parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional é compatível com o disposto no art. 9º, inciso I, da Constituição Federal". Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/sumariosumulas.asp?base=30&sumula=2403. Acesso em: 16/01/2024.
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3454. Relator: Ministro Dias Toffoli. Tribunal Pleno. Julgado em 21 de junho de 2022. Processo eletrônico. Diário da Justiça Eletrônico n° 162. Publicado em 17 de agosto de 2022. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&pesquisa_
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[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 31. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2017, p. 1002.
[2] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 10 ed. rev., atual e ampl. – Rio de Janeiro: Método; 2022, p. 707.
[3] COMPARATO, Fábio Konder. Pareceres – Princípio Federal – Bens Estaduais Não Podem Ser Desapropriados – Caso Banespa. RT DP 11/82.
[4] Nesse sentido: SALLES, José Carlos de Moraes. A desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 5. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 129-132; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 171; CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 18. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 780; GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 785-786.
[5] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 537. Sobre o tema, criticando a literalidade do art. 2.º, § 2.º, do Decreto-lei 3.365/1941.
[6] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 10 ed. rev., atual e ampl. – Rio de Janeiro: Método; 2022.
[7] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 10 ed. rev., atual e ampl. – Rio de Janeiro: Método; 2022, p. 707-708.
[8] Nesse sentido: STF - RE 172816, Relator(a): PAULO BROSSARD, Tribunal Pleno, julgado em 09-02-1994, DJ 13-05-1994 PP-11365 EMENT VOL-01744-07 PP-01374.
[9] Súmula n° 563 do STF: “O concurso de preferência a que se refere o parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional é compatível com o disposto no art. 9º, inciso I, da Constituição Federal”
[10] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 357. Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Tribunal Pleno. Julgado em 24 de junho de 2021. Processo eletrônico. Diário da Justiça Eletrônico n° 200. Publicado em 07 de outubro de 2021. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&pesquisa_inteiro_teor=false&sinonimo=true&plural=true&radicais=false&buscaExata=true&page=1&pageSize=10&queryString=adpf%20357&sort=_score&sortBy=desc. Acesso em: 16 de janeiro de 2024.
[11] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 357. Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Tribunal Pleno. Julgado em 24 de junho de 2021. Processo eletrônico. Diário da Justiça Eletrônico n° 200. Publicado em 07 de outubro de 2021. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&pesquisa_inteiro_teor=false&sinonimo=true&plural=true&radicais=false&buscaExata=true&page=1&pageSize=10&queryString=adpf%20357&sort=_score&sortBy=desc. Acesso em: 16 de janeiro de 2024.
[12]SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 357. Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Tribunal Pleno. Julgado em 24 de junho de 2021. Processo eletrônico. Diário da Justiça Eletrônico n° 200. Publicado em 07 de outubro de 2021. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&pesquisa_inteiro_teor=false&sinonimo=true&plural=true&radicais=false&buscaExata=true&page=1&pageSize=10&queryString=adpf%20357&sort=_score&sortBy=desc. Acesso em: 16 de janeiro de 2024.
[13] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 357. Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Tribunal Pleno. Julgado em 24 de junho de 2021. Processo eletrônico. Diário da Justiça Eletrônico n° 200. Publicado em 07 de outubro de 2021. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&pesquisa_inteiro_teor=false&sinonimo=true&plural=true&radicais=false&buscaExata=true&page=1&pageSize=10&queryString=adpf%20357&sort=_score&sortBy=desc. Acesso em: 16 de janeiro de 2024.
[14] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 357. Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Tribunal Pleno. Julgado em 24 de junho de 2021. Processo eletrônico. Diário da Justiça Eletrônico n° 200. Publicado em 07 de outubro de 2021. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&pesquisa_inteiro_teor=false&sinonimo=true&plural=true&radicais=false&buscaExata=true&page=1&pageSize=10&queryString=adpf%20357&sort=_score&sortBy=desc. Acesso em: 16 de janeiro de 2024.
[15] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 357. Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Tribunal Pleno. Julgado em 24 de junho de 2021. Processo eletrônico. Diário da Justiça Eletrônico n° 200. Publicado em 07 de outubro de 2021. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&pesquisa_inteiro_teor=false&sinonimo=true&plural=true&radicais=false&buscaExata=true&page=1&pageSize=10&queryString=adpf%20357&sort=_score&sortBy=desc. Acesso em: 16 de janeiro de 2024.
[16] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3454. Relator: Ministro Dias Toffoli. Tribunal Pleno. Julgado em 21 de junho de 2022. Processo eletrônico. Diário da Justiça Eletrônico n° 162. Publicado em 17 de agosto de 2022. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&pesquisa_inteiro_teor=false&sinonimo=true&plural=true&radicais=false&buscaExata=true&page=1&pageSize=10&queryString=adi%203454&sort=_score&sortBy=desc. Acesso em: 16 de janeiro de 2024.
[17] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3454. Relator: Ministro Dias Toffoli. Tribunal Pleno. Julgado em 21 de junho de 2022. Processo eletrônico. Diário da Justiça Eletrônico n° 162. Publicado em 17 de agosto de 2022. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&pesquisa_inteiro_teor=false&sinonimo=true&plural=true&radicais=false&buscaExata=true&page=1&pageSize=10&queryString=adi%203454&sort=_score&sortBy=desc. Acesso em: 16 de janeiro de 2024.
Pós-Graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade Maurício de Nassau.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ARRUDA, MARIO CESAR OLIVEIRA CAVALCANTI DE. Compatibilidade Constitucional do Art. 2°, §2°, do Decreto-Lei 3.365/1941: Reflexões sobre o Pacto Federativo e Jurisprudência do STF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 jan 2024, 04:38. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/64471/compatibilidade-constitucional-do-art-2-2-do-decreto-lei-3-365-1941-reflexes-sobre-o-pacto-federativo-e-jurisprudncia-do-stf. Acesso em: 25 dez 2024.
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