Resumo: O presente artigo apresenta o conceito, a origem e as principais características do federalismo brasileiro. Após enumerar tais elementos, o trabalho analisa a posição do Supremo Tribunal Federal quando provocado a se manifestar sobre conflitos de competências entre os entes federados e os critérios por ele adotados a fim de dirimi-los.
Palavras-chave: Constitucional. Federalismo. Conflito de Competência.
1.Introdução
O federalismo brasileiro tem como uma de suas principais características a repartição constitucional de competências entre os entes federados. A importância da matéria se revela como cláusula pétrea da República Federativa do Brasil, consoante disposto no art. 60, §4º, inciso I da Constituição da República.
Não raro o Supremo Tribunal Federal é constantemente provocado a se manifestar acerca de potenciais conflitos de competência entre a União, Estados, DF e Municípios. Isso porque, muito embora a carta constitucional apresente um rol, a princípio, bem delineado de competências afetas a cada ente, certo é que há uma zona cinzenta em determinados assuntos que necessitam de uma posição da Suprema Corte.
Desse modo, considerando a relevância da matéria, o objetivo desse trabalho é apresentar quais os critérios utilizados pelo Supremo Tribunal Federal quando da resolução desses conflitos.
2.Conceito e origem
O federalismo consiste na forma de organização do Estado dentro de um determinando território. Em outras palavras, cuida-se uma modelo de repartição de poderes entre entes federados dotados de autonomia política, administrativa e financeira.
Em breve síntese, o primeiro modelo de federalismo teve origem nos Estados Unidos da América (EUA). Por esse modelo, conhecido como federalismo por agregação ou modelo centrípeto, as 13 colônias abriram mão de sua soberania em prol de um ente central, remanescendo em seu favor apenas a autonomia.
Nesse sentido, importante diferenciar o conceito de soberania do conceito de autonomia. Jean Bodin conceitua soberania como um poder absoluto e ilimitado, puramente político, não se sujeitando a qualquer tipo de limitação de ordem jurídica. Por outro lado, a autonomia seria um poder concedido e delimitado pela Constituição Federal, isto é, criado pelo direito e por ele limitado.
O federalismo brasileiro ocorreu por um processo de desagregação (centrífugo), em que o ente central abriu mão de sua soberania, reconhecendo autonomia aos entes periféricos e, por conseguinte, fortalecendo-os.
Além disso, o modelo brasileiro é tripartite, ou seja, um modelo de federalismo peculiar por possuir três níveis: a União, os Estados e os Municípios. Registra-se que os entes federados não são soberanos no plano interno, cabendo a soberania apenas a República Federativa do Brasil.
3.Características do federalismo
A doutrina elenca diversas características do Federalismo, dentre elas, pode-se citar cinco principais: (i) autonomia política; (ii) repartição constitucional de competências; (iii) participação dos estados membros na formação da vontade nacional; (iv) indissolubilidade do pacto federativo e; (v) unidade geográfica.
A autonomia política possui quatro elementos, sendo eles, o autogoverno, a autoconstituição, autoadministração e autonomia financeira. O autogoverno consiste no poder dos cidadãos de eleger seus próprios representantes dentro de um ente federado. Ao passo que a autoconstituição diz respeito a possibilidade de cada ente criar sua própria estrutura interna por meio da elaboração de sua própria constituição. Já a autoadministração é a capacidade do ente federativo de gerir seu próprio pessoal, além da capacidade de prestar serviços públicos que estejam inseridos dentro de sua competência. Por fim, a autonomia financeira é um pressuposto fático das demais dimensões da autonomia.
A previsão constitucional de partilha de competências é uma garantia fundamental do modelo de federalismo adotado pelo Brasil, preservando a autonomia dos entes federados, de modo a delinear as competências que lhe são afetas, sob pena de inconstitucionalidade por eventual usurpação de competência de um ente para com o outro.
Já a participação dos estados membros na formação da vontade nacional ocorre por meio do Senado Federal, de composição paritária (art. 46, §1º da CRFB/88). Desse modo, os estados participam na edição das leis.
A indissolubilidade do pacto federativo, por sua vez, está expressamente prevista no art. 1º, caput, da Constituição Federal, complementada pela vedação à secessão, sob pena intervenção federal (art. 34, I, da CRFB/88).
Não obstante a existência de um território nacional único na federação, a unidade territorial geográfica é também uma característica do federalismo. Nesse sentido, há a necessidade de uma nítida divisão geográfica entre os entes federativos a fim viabilizar o exercício de suas autonomias sem afetar as dos demais.
4.Modelos de federalismo
A doutrina destaca, sobretudo, três modelos de federalismo: (i) o federalismo dual; (ii) o federalismo por cooperação; (iii) o federalismo assimétrico e simétrico.
O federalismo dual é o clássico modelo norte-americano. Cuida-se de um importante instrumento do constitucionalismo liberal, objetivando a limitação do poder do Estado através de uma divisão de competências privativas e exclusivas entre os entes federados.
No modelo original norte-americano, a União possui competências expressamente enumeradas, enquanto os Estados possuem competências residuais ou remanescentes. Nesse caso, ao contrário do que ocorre no Brasil, a União detêm um rol de competência pequeno quando comparado aos Estados.
Ressalta-se que o Brasil adotou o modelo do federalismo dual desde a Constituição da República de 1891, apesar de algumas peculiaridades. Na Constituição Federal de 1988, os art. 21 e 22 dispõem acerca de tais competências privativas e exclusivas.
O federalismo por cooperação, por outro lado, adota a lógica das competências comuns e concorrentes. Nesse cenário, determinadas matérias serão atribuídas a todos os entes federados.
O modelo de federalismo cooperativo funda-se na ideia do constitucionalismo social, isto é, os entes buscam unir esforços para atingir fins comuns, tais como a prestação de serviços de saúde, educação, previdência social, alimentação, moradia, entre outros.
Destaca-se que o Brasil também adota o modelo de federalismo cooperativo desde a Constituição Federal de 1934. Logo, a melhor doutrina ensina que o Brasil adota um federalismo híbrido, ou seja, adota ambos os modelos acima supracitados.
Importante destacar, ainda, o modelo de federalismo assimétrico e simétrico. Nesse ponto, todo federalismo pode ser caracterizado como assimétrico, tendo em vista ser o pluralismo e a diversidade características que lhe são inerentes. Contudo, quando o nível de assimetria é baixo, estar-se-ia diante de um federalismo simétrico.
Há a assimetria material no que tange à diversidade cultural, linguística, social e econômica, como também a assimetria jurídica no que diz respeito a repartição de competências entre os entes federados.
O federalismo brasileiro é considerado como materialmente assimétrico. Já no aspecto jurídico caracteriza-se como simétrico, uma vez que a Constituição Federal confere o mesmo tratamento jurídico a todos os entes federados.
5.Repartição de competência na Constituição Federal de 1988 e o STF
No intuito de dirimir conflitos de competências entre os entes federados, o Supremo Tribunal Federal e a doutrina estabeleceram alguns critérios a serem considerados à luz da Constituição Federal de 1988. É possível delinear três principais critérios, como restará demonstrado.
O primeiro critério de resolução de conflitos, também conhecido como critério central de divisão de competências, é o da predominância de interesses. Sendo assim, quando o interesse for de abrangência nacional, a competência será da União; quando for interesse regional, a competência será do Estado; e quando for interesse local, a competência será do Município.
O segundo critério foi desenvolvido pela Suprema Corte norte-americana e adotada pelo STF, conhecido como a “teoria dos poderes implícitos”. Por essa teoria, quando a constituição expressamente atribui uma competência a um determinado ente, ela implicitamente também lhe atribui as competências necessárias para realiza-la.
Já o terceiro critério é o princípio da subsidiariedade, consistindo em uma técnica adotada pela União Europeia. Cuida-se de um método que tem por objetivo prestigiar as competências dos entes menores, no qual a competência só é concedida a um ente maior quando o ente menor não tiver condições de bem exercâ-la.
Frisa-se que o princípio da subsidiariedade está atrelado a ideia de laboratório legislativo, ou seja, quanto mais perto da sociedade o poder for exercido, maior será a referibilidade da vontade popular, assim como a sua participação no que tange à fiscalização.
O Supremo Tribunal Federal adota os critérios supramencionados em diversos de julgados, como por exemplo:
Ementa: COSTITUCIONAL. FEDERALISMO E RESPEITO ÀS REGRAS DE DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA. LEI ESTADUAL 23.797/2021 DE MINAS GERAIS. SANEAMENTO BÁSICO. ISENÇÃO DE TARIFA. SERVIÇOS DE INTERESSE LOCAL. COMPETÊNCIA DOS MUNICÍPIOS. CONTRATO DE CONCESSÃO. EQUILÍBRIO ECONÔMICOFINANCEIRO. 1. As regras de distribuição de competências legislativas são alicerces do federalismo e consagram a fórmula de divisão de centros de poder em um Estado de Direito. Princípio da predominância do interesse. 2. A Constituição Federal de 1988, presumindo de forma absoluta para algumas matérias a presença do princípio da predominância do interesse, estabeleceu, a priori, diversas competências para cada um dos entes federativos – União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios – e, a partir dessas opções, pode ora acentuar maior centralização de poder, principalmente na própria União (CF, art. 22), ora permitir uma maior descentralização nos Estados-Membros e nos Municípios (CF, arts. 24 e 30, inciso I). 3. As competências municipais, dentro dessa ideia de predominância de interesse, foram enumeradas no art. 30 da Constituição Federal, o qual expressamente atribuiu aos Municípios a competência para legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I) e para suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (art. 30, II). 4. Lei estadual que atribui ao Poder Executivo estadual a faculdade de isentar o pagamento de tarifas de saneamento básico incorre em violação aos arts. 23, IX; 21, XX e 30, I e V da Constituição Federal. 5. É da essência da regulação setorial a autonomia das agências para a definição dos valores de tarifas, observados os termos e a juridicidade do contrato subjacente. Precedentes. 6. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. (Supremo Tribunal Federal, Tribunal Pleno, ADI 6912, Relator Ministro Alexandre de Moraes, Julgamento em 16/08/2022, Publicação em 22/08/2022 – destaque nosso)
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. LEI 5.517/2009 DO RIO DE JANEIRO. PROIBIÇÃO DO USO DE PRODUTOS FUMÍGENOS EM AMBIENTES DE USO COLETIVO. EXERCÍCIO LEGÍTIMO DA COMPETÊNCIA DOS ESTADOS PARA SUPLEMENTAREM A LEGISLAÇÃO FEDERAL. VIOLAÇÃO À LIVRE INICIATIVA. INEXISTÊNCIA. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. 1. Nos casos em que a dúvida sobre a competência legislativa recai sobre norma que abrange mais de um tema, deve o intérprete acolher interpretação que não tolha a competência que detêm os entes menores para dispor sobre determinada matéria. 2. Porque o federalismo é um instrumento de descentralização política que visa realizar direitos fundamentais, se a lei federal ou estadual claramente indicar, de forma necessária, adequada e razoável, que os efeitos de sua aplicação excluem o poder de complementação qe detêm os entes menores, é possível afastar a presunção de que, no âmbito regional, determinado tema deve ser disciplinado pelo ente maior. Nos conflitos sobre o alcance das competências dos entes federais, deve o Judiciário privilegiar as soluções construídas pelo Poder Legislativo. 3. A Lei fluminense n. 5.517, de 2019, ao vedar o consumo de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou de qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco, não extrapolou o âmbito de atuação legislativa, usurpando a competência da União para legislar sobre normas gerais, nem exacerbou a competência concorrente para legislar sobre saúde pública, tendo em vista que, de acordo com o federalismo cooperativo e a incidência do princípio da subsidiariedade, a atuação estadual se deu de forma consentânea com a ordem jurídica constitucional. 4. Depreende-se que a Lei Federal 9.294/1996, ao estabelecer as normas gerais sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígenos, ao dispor acerca da possível utilização em área destinada exclusivamente para este fim, não afastou a possibilidade de que os Estados, no exercício de sua atribuição concorrente de proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, CRFB) estipulem restrições ao seu uso. Ausência de vício formal. 5. A livre iniciativa deve ser interpretada em conjunto ao princípio de defesa do consumidor, sendo legítimas as restrições a produtos que apresentam eventual risco à saúde. Precedente. É dever do agente econômico responder pelos riscos originados da exploração de sua atividade. 6. Ação direta julgada improcedente. (Supremo Tribunal Federal, Tribunal Pleno, ADI 4306, Relator Ministro Edson Fachin, Julgamento em 20/12/2019, Publicação em 19/02/2020 – destaque nosso)
Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL 10.995/2001 DE SÃO PAULO. INSTALAÇÃO DE ANTENAS TRANSMISSORAS DE TELEFONIA CELULAR. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE TELECOMUNICAÇÕES. NORMA ESTADUAL EDITADA NO ÂMBITO DA COMPETÊNCIA ESTADUAL DE PROTEÇÃO À SAÚDE. LEI FEDERAL QUE CLARAMENTE REGULAMENTA A MATÉRIA. INCONSTITUCIONALIDADE. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO DIRETA. 1. Nos casos em que a dúvida sobre a competência legislativa recai sobre norma que abrange mais de um tema, deve o intérprete acolher interpretação que não tolha a competência que detêm os entes menores para dispor sobre determinada matéria (presumption against preemption). 2. Porque o federalismo é um instrumento de descentralização política que visa realizar direitos fundamentais, se a lei federal ou estadual claramente indicar, de forma necessária, adequada e razoável, que os efeitos de sua aplicação excluem o poder de complementação que detêm os entes menores (clear statement rule), é possível afastar a presunção de que, no âmbito regional, determinado tema deve ser disciplinado pelo ente maior. 3. A União, no exercício de suas competências (art. 21, XI e art. 22, IV CRFB), editou a Lei 9.472/1997, que, de forma nítida, atribui à Anatel a definição de limites para a tolerância da radiação emitida por antenas transmissoras. 4. A União, por meio da Lei 11.934, fixou limites proporcionalmente adequados à exposição humana a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos. Precedente. 5. Dessa forma, a presunção de que gozam os entes menores para, nos assuntos de interesse comum e concorrente, legislarem sobre seus respectivos interesses (presumption against preemption) foi nitidamente afastada por norma federal expressa (clear statement rule) 6. É inconstitucional a Lei n. 10.995/2001 do Estado de São Paulo, pois, a pretexto de proteger a saúde da população, disciplinando a instalação de antenas transmissoras de telefonia celular, adentrou na esfera de competência privativa da União. 7. Ação direta julgada procedente. (Supremo Tribunal Federal, Tribunal Pleno, ADI 3110, Relator Ministro Edson Fachin, Julgamento em 04/05/2020, Publicação em 10/06/2020 – destaque nosso)
Isso posto, é possível extrair dos julgados colacionados a posição do Supremo Tribunal Federal quando instado a se manifestar acerca do conflito de competências entre entes federados. Depreende-se os critérios definidos nesse tópico, sobretudo, a predominância de interesses e o princípio da subsidiariedade.
6.Considerações finais
Da análise do presente artigo, é possível se depreender que o modelo de federalismo adotado pelo Brasil almeja privilegiar a autonomia e a independência dos entes federados. Contudo, ainda há uma inegável centralização de competências em prol do ente maior, a União.
Em regra, a Suprema Corte afirma que se deve prestigiar a autonomia dos entes locais quando a norma geral existente deixa um espaço a ser regulamentado. Para tanto, o STF utiliza os critérios da predominância de interesses, a teoria dos poderes implícitos e o princípio da subsidiariedade para se chegar a uma decisão.
Com efeito, os critérios adotados, embora sejam utilizados com o objetivo de criar uma segurança quando da tomada de decisão, ainda possuem um conceito aberto e abstrato, fazendo com que as análises dos casos concretos sejam casuísticas.
Referências Bibliográficas:
Mendes, Gilmar Ferreira; Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo. Ed. Saraiva, 2023.
Sarlet, Ingo Wolfgang; Marinoni, Luiz Guilherme; Mitidiero, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo. Ed. Saraiva, 2018.
Lenza, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo. Ed. Saraiva, 2018.
Barcellos, Ana Paula de. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro. Ed. Forense. 2018.
Site do Supremo Tribunal Federal: https://portal.stf.jus.br/
Advogada na área de contencioso cível desde 2016. Graduada em Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2016. Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes em 2018.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LARA NASCIMENTO MAGALHÃES, . Federalismo brasileiro: Conflito de Competências e o STF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 fev 2024, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/64575/federalismo-brasileiro-conflito-de-competncias-e-o-stf. Acesso em: 25 dez 2024.
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