RESUMO: Trata o presente artigo de uma reflexão sobre os problemas socioambientais decorrentes da construção de hidrelétricas no território nacional, aqui denominados de dilúvios planejados. A implantação de ditos projetos tem levado populações inteiras a abrir mão de seus modos de vida, de sua cultura e de sua técnica, em nome do desenvolvimento. A população local é vista como problema, um obstáculo a ser removido para liberar a área. Nesse contexto, mediante pesquisa bibliográfica, destacamos a influência do socioambientalismo na formação da atual Constituição Federal e os impactos socioambientais causados pelo modelo enérgico pautado na construção de hidrelétricas, mormente em relação as populações atingidas, direta ou indiretamente, pelos empreendimentos que inundam grandes áreas territoriais para formação dos lagos que alimentam as usinas.
Palavras-chave: socioambientalismo; impactos socioambientais; hidrelétricas; dilúvio planejado.
ABSTRACT: This article is a reflection on the socio-environmental problems arising from the construction of hydroelectric plants in the national territory, here called planned floods. The implementation of these projects has led entire populations to give up their ways of life, their culture and their techniques, in the name of development. The local population is seen as a problem, an obstacle to be removed to free up the area. In this context, through bibliographical research, we highlight the influence of socio-environmentalism in the formation of the current Federal Constitution and the socio-environmental impacts caused by the energetic model based on the construction of hydroelectric plants, especially in relation to populations affected, directly or indirectly, by projects that flood large territorial areas. for the formation of lakes that feed the plants.
Keywords: socio-environmentalism; socio-environmental impacts; hydroelectric dams; planned deluge.
1 INTRODUÇÃO
A Constituição Federal, em seu art. 225, caput, prevê que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (Brasil, 1988).
Outros dispositivos inseridos na Carta Magna, igualmente, tratam da proteção ambiental, a saber: arts. 5°, XXII e XXIII, 20, II a VII, 21, XIX, 22, IV, 23, VI e VII, 24, VI a VIII, 26, 170, VI, 184, § 2°, 186, II, e 200, VII e VIII.
Em verdade, a construção das bases constitucionais antes mencionadas sofreu forte influência do socioambientalismo que, nas palavras de Dourojeanni (2008), corresponde a um ambientalismo com consciência social. A natureza é vista como parte integrante e participante da vida humana (Rebelo, 2010).
O socioambientalismo defende preservar a convivência humana com a proteção de ambientes naturais, contrapondo-se ao tradicional preservacionismo, corrente distante dos movimentos sociais e das lutas políticas por justiça social e com uma visão de santuário das áreas protegidas (Antunes, 2023).
Os saberes e os fazeres populares, suas construções culturais sobre o seu ambiente, são reconhecidos como fatores determinantes no trato jurídico dos conflitos incidentes sobre bens socioambientais e como fontes de construção e renovação do Direito Ambiental (Cavedon; Vieira, 2011).
O meio-ambiente, como afirma Antunes (2023), não é somente a natureza, mas deve compreender o “humano como parte de um conjunto de relações econômicas, sociais e políticas construídas a partir da apropriação dos bens naturais que se transformam em recursos essenciais para a vida em quaisquer de seus aspectos”.
Nesse sentido, como bem destaca Santilli (2005), o socioambientalismo reconhece que as políticas públicas só terão eficácia social e sustentabilidade política se incluírem as comunidades locais e promoverem uma repartição socialmente justa e equitativa dos benefícios derivados da exploração dos recursos naturais.
Para Sarlet e Fensterseifer (2017), superados os paradigmas do Estado Liberal e do Estado Social, um novo Estado de Direito no horizonte jurídico-constitucional contemporâneo se fez necessário diante dos desafios gerados pela crise ecológica e pela sociedade tecnológica e industrial, configurado a partir da convergência das agendas social e ambiental em um mesmo projeto jurídico-político para o desenvolvimento humano. É o denominado Estado Socioambiental de Direito que, segundo Armada (2015), deve pontuar uma atuação de respeito, solidariedade, prudência e precaução do homem para com a natureza.
2 O IMPACTO SOCIOAMBIENTAL PROVOCADO PELOS DILÚVIOS PLANEJADOS
Inicialmente, sob o argumento de que se tratava de uma fonte de energia limpa, o Brasil adotou um modelo energético baseado na construção de grandes hidrelétricas, com a inundação de extensa área pelo represamento de águas para formação do lago necessário para funcionamento do equipamento.
Nóbrega (2011), entretanto, destaca que ocupam campos opostos os interessados na construção das barragens e as pessoas que ocupam os territórios visados pelos empreendimentos propostos.
Nesse diapasão, Vainer e Araújo (1990) afirmam que a depender dos interesses em jogo é possível identificar dois olhares, duas lógicas, duas maneiras de avaliar os impactos de um grande projeto de investimento.
Desmistificando a alternativa energética que se apresenta como limpa, a Comissão Mundial de Barragens publicou relatório no ano de 2000 em que indica os principais prejuízos causados pela construção de uma barragem.
No aspecto ambiental, tem-se
A destruição de florestas e habitats selvagens, o desaparecimento de espécies e a degradação das áreas de captação a montante devido à inundação da área do reservatório; a redução da biodiversidade aquática, a diminuição das áreas de desova a montante e a jusante, e o declínio dos serviços ambientais prestados pelas planícies aluviais a jusante, brejos, ecossistemas de rios e estuários, e ecossistemas marinhos adjacentes; e impactos cumulativos sobre a qualidade da água, inundações naturais e a composição de espécies quando várias barragens são implantadas em um mesmo rio (Barragens, 2000).
Quanto ao social, apresenta-se
Muitas das pessoas deslocadas não foram reconhecidas (ou cadastradas) como tal e, portanto, não foram reassentadas nem indenizadas. Nos casos em que houve indenização, esta quase sempre se mostrou inadequada; e nos casos em que as pessoas deslocadas foram devidamente cadastradas, muitas não foram incluídas nos programas de reassentamento. Aquelas que foram reassentadas raramente tiveram seus meios de subsistência restaurados, pois os programas de reassentamento em geral concentram-se na mudança física, excluindo a recuperação econômica e social dos deslocados. Quanto maior a magnitude do deslocamento, menor a probabilidade de que os meios de subsistência das populações afetadas possam ser restaurados. Populações afetadas que moram perto de represas, bem como pessoas deslocadas e comunidades a jusante, sofreram frequentemente efeitos adversos sobre sua saúde e meios de subsistência, decorrentes das mudanças no meio ambiente e da ruptura social. Dentre as comunidades afetadas, a desigualdade entre os sexos muitas vezes aumentou, com as mulheres sofrendo uma parcela desproporcional dos custos sociais e, via de regra, sendo discriminadas na partilha dos benefícios (Barragens, 2000).
Pela dimensão é possível, como menciona Benincá (2011), em face da grande quantidade de água que uma usina retém, efetuar uma ilação com a simbólica imagem do dilúvio bíblico, e, nesse sentido, impactar de sobremaneira a vida de pessoas, modelando quadros dramáticos de injustiça socioambiental.
De igual modo, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) contesta o modelo energético baseado na construção de hidrelétricas/barragens por entender que produz o esgotamento dos recursos naturais; acentua as desigualdades entre ricos e pobres, entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos; acirra os conflitos entre o poder dominante e as classes desfavorecidas; estimula o embate entre ordem e desordem; evidencia a disputa do capital pelo território[1]. Enquanto as empresas visam ao território com interesses econômicos, as comunidades residentes veem nele um espaço de sustentabilidade e sobrevivência. Mantém com o lugar uma profunda identificação, adotando-o como ambiente de vida e convivência.
Há, ainda, quem sustente que a construção de uma hidrelétrica é forma de colonização moderna, em que o “outro”, forte e estranho, impõe seu projeto. Apropriando-se dos bens naturais, subordina, silencia e expulsa compulsoriamente as populações locais. Aí a água é transformada em energia; a energia, em mercadoria; a mercadoria, em obsessão de consumo; o consumo em sinônimo de desenvolvimento; o desenvolvimento em destruição da natureza e exclusão dos pobres.
Trata-se de um verdadeiro processo de desterritorialização imposto às comunidades atingidas pelo empreendimento, que são deslocadas compulsoriamente para outras regiões, têm rompidos os seus laços familiares e grupais, passam um processo de desenraizamento cultural e perda do vínculo espacial, e, após reassentadas, sofrem com problemas que afetam a saúde, os meios de subsistência e o convívio social.
Para Zen (2007) “ditadura é a palavra exata, sem exageros, com condições de denominar um processo que se materializa na retirada e expropriação dos meios de vida e subsistência das populações não-proprietárias que são afetadas por uma barragem”.
Benincá (2011) destaca que também são atingidos pelos citados empreendimentos “os sem-terra, a professora da escola que fechou, o freteiro do leite que ficou sem a frota, o pequeno comércio que se inviabilizou”, sem que tenham direito a indenização em razão das empresas adotarem o conceito patrimonialista, que considera atingido somente quem possui propriedade com documentação.
Ademais, as populações tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pequenos agricultores e outros) mantém com a natureza uma ligação afetiva muito profunda. Para os indígenas, por exemplo, os rios são sagrados e intocáveis. Desse modo, a intervenção feita sobre seus territórios representa uma violência simbólica grave.
É praticamente impossível quantificar e qualificar a totalidade dos impactos que incidem sobre as pessoas e o conjunto da biodiversidade. Eles iniciam com o anúncio da barragem, passam pela execução das obras e se prolongam para além de sua instalação.
Inegavelmente, o preço material e imaterial a ser pago pelos atingidos pela construção de uma hidrelétrica ou barragens é muito alto à medida que são retirados da convivência com a natureza, com sua estrutura familiar bem definida e jogados para um mundo estranho, baseado em um consumismo desenfreado (Benincá, 2011).
Os atingidos, como refere Nóbrega (2011), são considerados como refugiados do desenvolvimento, categoria criada para enfatizar a realidade dos atingidos por barragens, que são expulsos de seus territórios, sem qualquer opção de permanência (Haesbaert, 2016).
Para os representantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o discurso do desenvolvimento sustentável é um engodo, classificando as grandes hidrelétricas como projetos insustentáveis, porquanto geram dramas sociais e agridem de forma terrível a fauna e a flora. Os segmentos menos favorecidos economicamente é que sofrem as consequências de modo mais acentuado. Todos esses grupos têm uma cidadania precarizada pelas injustiças socioambientais. Portanto, defendem ser impossível o desenvolvimento sustentável na esfera do capitalismo.
É bem verdade que não existe risco ambiental zero, pois qualquer atividade de utilização de recursos naturais, produção e desenvolvimento provoca danos e riscos, porém, como destacam Ayala e Leite (2002), na sociedade de risco, os riscos adquirem irresistíveis estados de invisibilidade.
E, como explica Benincá (2011), citando Boaventura de Sousa Santos, o risco é sempre a probabilidade de um acontecimento danoso poder vir a ocorrer. O perigo é uma situação danosa iminente; é a possibilidade da catástrofe, inclusive na imposição de sofrimento humano. O risco é o risco do perigo e do seu impacto.
As promessas de progresso e desenvolvimento feitas para as populações locais não se materializam. Ao contrário, esvaem-se com o tempo. Os empregos gerados foram transitórios e desaparecem com a conclusão das obras, falindo toda a cadeia econômica que deles dependia. O êxodo rural se agrava e o destino da família acaba sendo a periferia da cidade, onde sem emprego, as pessoas se tornam mais miseráveis do que antes (Zen, 2007).
Com a intenção de reverter o quadro, foi aprovada a Lei nº 14.755/23, que, dentre outras medidas, institui a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB); discrimina os direitos das Populações Atingidas por Barragens (PAB), prevê o Programa de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PDPAB) e estabelece regras de responsabilidade social do empreendedor.
Surge, portanto, uma luz no final do túnel, esperando-se que, a partir da própria conceituação legal de Populações Atingidas por Barragens (PAB), possa o quadro ser revertido, protegendo-se os indivíduos que, sob o argumento de atrapalharem o desenvolvimento, são arrancados de seu território, perdendo suas raízes e de seus antepassados, sem que possam transmitir para as futuras gerações os que lhes foram passado.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para Redclift (1984 apud Krell; Souza, 2020), necessário se faz que cada sociedade se estruture em termos próprios de sustentabilidade mediante respeito a sua cultura, história e composição ética, definindo o seu padrão de consumo, sendo, na sua ótica, mais adequada a expressão “sociedade sustentável”, ao invés de desenvolvimento sustentável.
Vizeu, Meneghetti e Seifert (2012) assinalam que a lógica do desenvolvimento sustentável seria uma utopia à medida que busca preservar a natureza sem reconhecer a necessidade de se limitar o consumo e a expansão econômica.
E, nesse aspecto, Pereira e Calgaro (2019) pontuam a posição central que a aquisição de bens ocupa na vida das pessoas, a que denominam de “consumocentrismo”, pautado em um comportamento desenfreado na aquisição de bens e serviços que sequer, por vezes, deles necessitam usufruir. Não há preocupação com a sociedade, mas sim nelas mesmas.
Portanto, o grande desafio é encontrar um ponto convergente ideal que assegure desenvolvimento que seja ao mesmo tempo socialmente justo, economicamente viável, politicamente democrático e ecologicamente sustentável, tarefa das mais difíceis diante de uma sociedade cada vez mais consumerista e que exige a utilização irracional dos recursos naturais.
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[1] Raffestin (1993 apud Benincá, 2011) emprega o conceito “espaço” para identificar uma área geográfica e o conjunto do patrimônio natural que ela contém, e refere-se a “território” para designar a utilização do espaço por determinados sujeitos sociais.
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado da Paraíba
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Luis Nicomedes de Figueiredo. Os problemas socioambientais provocados pelos dilúvios planejados Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jun 2024, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/65561/os-problemas-socioambientais-provocados-pelos-dilvios-planejados. Acesso em: 23 dez 2024.
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