MARCELO JOSÉ BOLDORI[1]
(orientador)
RESUMO: O presente artigo pretende examinar se a exigência de confissão no Acordo de Não Persecução Penal, instituto de natureza negocial inserido pela Lei n.º 13.964/2019 no Código de Processo Penal Brasileiro, viola princípios e dispositivos constitucionais, considerando que apenas com uma confissão formal e circunstanciada do suposto delito é possível oferecer o referido acordo e evitar uma persecução penal. Para uma melhor compreensão do tema, foram utilizados métodos de pesquisa qualitativa, com base na análise de livros doutrinários, artigos científicos procedentes de periódicos especializados e na legislação pertinente. E partindo deste ponto, o estudo trouxe a estrutura do Acordo de Não Persecução Penal alicerceado na legislação legal, abordou a discussão acerca dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais do acusado de prática criminosa e, ao final, apurou que o requisito da confissão configura uma exigência inconstitucional, pois impõe uma condição que fere direitos constitucionais, ao vincular a possibilidade de se ofertar o acordo a essa obrigatoriedade.
Palavras-chave: Acordo de Não persecução Penal. Confissão. Inconstitucional. Persecução Penal.
ABSTRACT: This article aims to examine whether the requirement of confession in the Non-Prosecution Agreement, a negotiable legal instrument introduced by Law No. 13.964/2019 into the Brazilian Code of Criminal Procedure, violates constitutional principles and provisions. The study considers that the agreement can only be offered, and criminal prosecution avoided, through a formal and detailed confession of the alleged crime. To better understand the issue, qualitative research methods were employed, based on the analysis of doctrinal books, scientific articles from specialized journals, and relevant legislation. From this starting point, the study explored the structure of the Non-Prosecution Agreement as grounded in legal statutes, addressed the discussion on constitutional principles and the fundamental rights of the accused, and ultimately concluded that the confession requirement constitutes an unconstitutional demand, as it imposes a condition that infringes on constitutional rights by making the offer of the agreement contingent upon this requirement.
Keywords: Non-Prosecution Agreement. Confession. Unconstitutional. Criminal Prosecution.
1 INTRODUÇÃO
A Lei n.º 13.964/2019, amplamente conhecida como Pacote Anticrime, introduziu o Acordo de Não Persecução Penal no Código de Processo Penal, permitindo negociações no processo penal. Esse instrumento, incluído no artigo 28-A, procura reduzir a sobrecarga do sistema judiciário e evitar a prisão de indivíduos envolvidos em crimes de menor gravidade.
Com a oficialização do acordo entre o Ministério Público e o acusado, a persecução penal é descartada. Contudo, para ocorrer a formalização do Acordo de Não Persecução Penal, o acusado deve satisfazer requisitos cumulativos, dentre os quais a confissão formal e circunstanciada do crime, suscitando possíveis violações de dispositivos e princípios constitucionais.
Nesse contexto, o problema do presente artigo consiste em analisar se essa confissão exigida para o oferecimento do acordo é constitucional, justificado pela necessidade de um estudo mais aprofundado sobre o tema, dado que seu objeto de investigação é um instituto recente de despenalização.
Deste modo, em primeiro momento, tendo como base a legislação específica, foi abordado e explanada toda a estrutura do Acordo de Não Persecução Penal, com seus requisitos, condições, vedações e procedimentos. Na sequência, foram analisados e conceituados os princípios constitucionais e os direitos fundamentais da pessoa acusada de cometer um delito, todos relacionados a prerrogativas constitucionais que não permitem que o acusado produza provas contra si. E por fim, foram ponderados os principais questionamentos acerca da possível inconstitucionalidade da confissão, para a propositura do acordo.
A metodologia utilizada neste artigo foi o método qualitativo, com base na análise de bibliografia especializada, legislações e artigos científicos publicados, onde foram absorvidas informações relevantes para a pesquisa. A pesquisa conduziu-se a compreender o que seria o Acordo de Não Persecução Penal e quais dispositivos constitucionais este possivelmente afrontaria, e deste modo, mostrou-se necessário trazer diferentes pontos de vistas sobre essa indagação, visando enriquecer e possibilitar a construção de argumentos mais robustos e estruturados, para no deslinde ponderar uma interpretação fundamentada e equilibrada sobre o tema.
2 O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) foi inicialmente introduzido pela Resolução n.º 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), posteriormente modificada pela Resolução n.º 183/2018, tratando de diversos aspectos relacionados à investigação criminal e trazendo a inovação na possibilidade de o Ministério Público propor um acordo para evitar a continuidade da persecução penal. No entanto, o ANPP ganhou classificação constitucional com a aprovação da Lei n.º 13.964, de 24 de dezembro de 2019, conhecida como Pacote Anticrime, que regulamentou o acordo por meio do artigo 28-A e o integrou ao Código de Processo Penal (Capez, 2024).
O ANPP foi formalmente incorporado ao sistema processual penal por meio da legislação apropriada. Com isso, ampliou-se a margem de negociação entre o Ministério Público e a defesa, exigindo, dentre outras condições, a confissão do acusado, desde que o crime não envolva violência ou grave ameaça e a pena mínima seja inferior a quatro anos, limite que permite a aplicação de penas alternativas à privação de liberdade (Lopes Júnior, 2024).
Para Guilherme de Souza Nucci (2024b, p. 81) o ANPP:
Torna-se mais um benefício ao investigado, que prefere não litigar para provar sua eventual inocência, aceitando algumas condições, após preencher determinados requisitos, a fim de não ser denunciado pelo MP, nem ser condenado pelo juiz.
Deste modo, o ANPP é um acordo jurídico processual, no qual o Ministério Público e o investigado concordam em evitar o oferecimento da denúncia e o início da ação penal. Esse acordo representa um instrumento de política criminal, no qual o órgão de acusação avalia a necessidade e adequação dessa medida para a prevenção e repressão do crime. No ANPP, o investigado se compromete a cumprir certas condições, enquanto o Ministério Público decide não dar início ao processo criminal. Não há imposição de pena e, uma vez cumprido o acordo, a punibilidade é extinta sem a necessidade de um processo, de modo que o ANPP se configura como um instituto que despenaliza o procedimento judicial (Capez, 2024).
No entanto, a confissão como condição para a negociação entre o Ministério Público e o acusado tem gerado desconforto na aplicação do Acordo de Não Persecução Penal, pois poderia comprometer certos dispositivos e princípios constitucionais. Assim, inicialmente, o presente artigo aborda a estrutura do ANPP. Em seguida, faz-se a análise dos princípios constitucionais envolvidos. E por fim, investiga-se a possível inconstitucionalidade da exigência de confissão para a formalização do ANPP.
2.1 REQUISITOS E IMPEDIMENTOS PARA A PROPOSITURA DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
Segundo o caput do artigo 28-A do CPP, após a conclusão do inquérito policial, caso não haja motivo para arquivamento e o investigado tenha confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça, com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público pode propor o Acordo de Não Persecução Penal, desde que isso seja considerado necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do delito (Brasil, 1941).
Assim, o caput do artigo 28-A estabelece requisitos cumulativos para a celebração do acordo. A ausência de qualquer um desses requisitos inviabiliza a realização de um acordo consensual para resolver o problema. Vale destacar a importância da confissão, expressamente prevista como um requisito cumulativo. A falta de confissão impede a negociação no âmbito penal, evidenciando a importância desse requisito (Silva; Reis; Silva, 2020).
Os incisos do caput do artigo 28-A do CPP determinam as condições que podem ser impostas no acordo. Essas condições podem ser de natureza alternativa ou cumulativa, sendo elas:
I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;
II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;
III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);
IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou
V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada (Brasil, 1941).
Além disso, conforme mencionado anteriormente, é necessário que o crime tenha uma pena mínima inferior a quatro anos. No entanto, para determinar a pena mínima atribuída ao delito, devem ser consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto, conforme previsto no §1º do art. 28-A do Código de Processo Penal (Brasil, 1941).
Por outro lado, o §2º do artigo 28-A do CPP dispõe que o ANPP não será admitido nas seguintes situações:
I - se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei;
II - se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;
III - ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e
IV - nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor (Brasil, 1941).
Nos termos do art. 28-A, § 3º, do Código de Processo Penal, o Acordo de Não Persecução Penal deve ser formalizado por escrito e assinado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor. Para que o acordo seja homologado, conforme o art. 28, § 4º, do CPP, será realizada uma audiência na qual o juiz verificará a voluntariedade do acordo, ouvindo o investigado na presença de seu defensor, além de analisar a sua legalidade (Brasil, 1941).
O § 5º do art. 28-A do CPP estabelece que, se o juiz julgar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições estipuladas no Acordo de Não Persecução Penal, ele devolverá os autos ao Ministério Público para que a proposta de acordo seja reformulada, contando com a concordância do investigado e de seu defensor (Brasil, 1941).
Conforme o § 6º do art. 28-A do Código de Processo Penal, homologado judicialmente o Acordo de Não Persecução Penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que este inicie a execução do acordo perante o juízo de execução penal. No entanto, o juiz pode recusar a homologação da proposta caso ela não cumpra os requisitos legais ou se não tiver sido adequadamente reformulada, conforme indicado no § 5º do art. 28-A do CPP, tal como dispõe o art. 28-A, § 7º, do mesmo diploma legal (Brasil, 1941).
Caso a homologação seja recusada, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para analisar a necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia, conforme o art. 28-A, § 8º, do CPP. Contudo, cabe a interposição de Recurso em Sentido Estrito (RESE) contra a decisão de não homologação do acordo, conforme previsto no art. 581, XXV, do CPP (Bonfim, 2024).
A vítima será intimada tanto da homologação do ANPP quanto de qualquer violação do mesmo, conforme o art. 28-A, § 9º, do CPP. O Ministério Público deve informar ao juiz sobre o não cumprimento das condições estabelecidas no ANPP, para serem tomadas medidas para rescindir o acordo e oferecer a denúncia, consoante o art. 28-A, § 10, do CPP. Ademais, conforme o art. 28-A, § 11, do CPP, a violação do acordo pelo investigado pode ser utilizada pelo Ministério Público como base para não conceder a suspensão condicional do processo (Brasil, 1941).
O art. 28-A, § 12, CPP determina que a formalização e a execução do Acordo de Não Persecução Penal não serão registradas na certidão de antecedentes criminais, exceto para os casos previstos no inciso III do § 2º do art. 28 do CPP. Além disso, o art. 28-A, § 13, do CPP estabelece que, uma vez cumprido integralmente o acordo, o juiz competente decretará a extinção da punibilidade (Brasil, 1941).
Por fim, o § 14 do art. 28-A do Código de Processo Penal assegura ao investigado o direito de solicitar que os autos sejam encaminhados a uma instância superior do Ministério Público, nos casos em que a acusação tenha se negado a propor o Acordo de Não Persecução Penal (Brasil, 1941).
Analisados os requisitos, condições, vedações e procedimentos do ANPP, segue-se para a discussão acerca dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais do acusado de prática criminosa.
2.2 PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece, em seu artigo 5º, inciso LIV, que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (Brasil, 1988).
Esse princípio do devido processo legal assegura ao acusado o pleno direito de defesa, incluindo o direito de ser ouvido, de ser notificado pessoalmente sobre todos os atos processuais, de ter acesso a uma defesa técnica e de ter a oportunidade de se manifestar sempre após a acusação (Capez, 2024).
Além disso, estabelece que todas as formalidades legais devem ser observadas para que alguém possa ser privado de sua liberdade ou de seus bens. Contudo, por se tratar de um princípio fundamental de interpretação jurídica, as normas que garantem direitos não admitem uma interpretação restritiva. Portanto, a expressão “liberdade” não se limita apenas à liberdade de locomoção, abrangendo também todas as outras formas de liberdade previstas no ordenamento jurídico (Rangel, 2023).
No entendimento de Nucci (2024b), quando a lei estabelece um procedimento específico para a instrução criminal, é essencial que o magistrado o siga como regra geral, mesmo que haja concordância das partes para sua inversão ou supressão.
Sob essa ótica, questiona-se a aplicabilidade do princípio do devido processo legal, uma vez que sequer há a persecução penal, não se aplicando dessa forma o referido princípio. Partindo desse pressuposto, Barbosa (2020) argumenta ser inviável exigir do acusado uma confissão formal antecipada sobre uma possível responsabilidade criminal para a realização de um negócio jurídico processual, uma exigência cuja constitucionalidade é bastante controversa.
2.3 PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
A Constituição Federal de 1988 consagra, em seu art. 5º, inciso LV, que: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerente”.
O direito ao contraditório, do ponto de vista do réu, está ligado à garantia da ampla defesa. Não é por acaso que ambos são protegidos pelo mesmo dispositivo constitucional. Além disso, o contraditório se destaca como um dos princípios mais importantes no sistema acusatório. Esse direito garante às partes o conhecimento de todos os atos e fatos ocorridos durante o processo, permitindo-lhes se manifestar e apresentar as provas necessárias antes que a decisão judicial seja proferida (Avena, 2023).
Esse princípio estabelece que, para toda afirmação de fato ou apresentação de evidências feita por uma das partes no processo, a outra parte tem o direito de se manifestar. Ele assegura um equilíbrio justo entre a pretensão punitiva do Estado e a garantia do acusado de liberdade e presunção de inocência (Nucci, 2024b).
2.4 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
O princípio da presunção de inocência, outro princípio constitucional que poderia estar sendo infringido, está previsto no art. 5.º, LVII, da Constituição Federal, determinando que: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (Brasil, 1988).
No que se refere à presunção de inocência, Guilherme de Souza Nucci (2024b, p. 6) afirma: “As pessoas nascem inocentes, sendo esse o seu estado natural, razão pela qual, para quebrar tal regra, torna-se indispensável ao Estado-acusação evidenciar, com provas suficientes, ao Estado-juiz, a culpa do réu”.
Em outras palavras, o princípio da presunção de inocência visa impedir a autoacusação e assegurar o direito ao silêncio. Isso porque, se o estado natural é o de inocência, ninguém pode ser forçado a fornecer provas contra si (Nucci, 2024b).
O princípio da presunção de inocência está vinculado aos fatos, exigindo que a acusação comprove tanto a ocorrência do delito quanto a autoria pelo acusado. Portanto, esse princípio não é absoluto, pois, a "presunção" se altera quando a autoria do crime é comprovada. Se não houver prova da existência do fato criminoso, evidências suficientes de que o acusado tenha participado da infração penal, ou provas seguras que justifiquem uma condenação, o juiz deve absolver o réu, sem que se possa imputar-lhe a culpa por mera presunção, nessa situação, aplica-se o princípio do in dubio pro reo[2] (Bonfim, 2024).
Conforme mencionado, no princípio da presunção de inocência, o ônus da prova cabe exclusivamente à acusação. Assim, ao exigir a confissão, o Estado estaria transferindo ao acusado a responsabilidade de produzir provas, o que contraria que não lhe compete produzir provas contra si, uma vez que essa responsabilidade pertence ao órgão acusador (Reis Júnior; Bianchi, 2022).
Aury Lopes Júnior (2024) disserta sobre a presunção de inocência, afirmando que este princípio impõe um verdadeiro dever de tratamento, exigindo que o réu seja tratado como inocente. Este dever de tratamento opera em duas dimensões: interna e externa ao processo. Na dimensão interna do processo, a presunção de inocência impõe ao juiz a obrigação de tratar o acusado efetivamente como inocente até que haja uma eventual sentença penal condenatória transitada em julgado. Na dimensão externa ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização precoce do réu.
Além disso, a falha em preservar o estado de inocência, mesmo na fase de investigação, poderia aumentar o receio das pessoas de serem processadas. Nesse contexto, a confissão do réu em um Acordo de Não Persecução Penal poderia estar relacionada a temores ou incertezas quanto à ação penal estatal, devido à dúvida sobre a aplicabilidade de suas garantias fundamentais (Stein, 2021).
2.5 PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA
A ampla defesa, também mencionada no art. 5º, LV, da Constituição Federal, se materializa no direito das partes de apresentar e provar argumentos em sua defesa, dentro dos limites permitidos. Esse direito pode ser exercido tanto por meio da defesa técnica quanto da autodefesa (Bonfim, 2024).
A defesa técnica é aquela realizada em nome do acusado por um advogado habilitado, seja constituído ou nomeado, e garante a paridade de armas no processo em relação à acusação, sendo indispensável. Por outro lado, a autodefesa é exercida diretamente pelo acusado, sendo livremente dispensável, e visa assegurar ao réu o direito de influenciar diretamente na formação da convicção do juiz e de estar presente nos atos processuais. Vale destacar que o “direito ao silêncio”, previsto no art. 5º, LXIII, da Constituição da República, é uma extensão do direito à autodefesa, permitindo ao acusado optar por permanecer calado (Bonfim, 2024).
2.6 PRINCÍPIO DA NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO
A Constituição Federal assegurou o direito ao silêncio em seu artigo 5º, LXIII, que estabelece: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado” (Brasil, 1988).
No entanto, o direito ao silêncio foi consolidado como o princípio da não autoincriminação, representado pelo brocardo latino "nemo tenetur se detegere". Esse princípio estabelece que o acusado não pode ser compelido a produzir provas contra si. Ele fundamenta o direito constitucional ao silêncio, garantindo que o investigado em um inquérito policial ou o réu em um processo penal não sejam obrigados a responder às perguntas durante seus depoimentos. Assim, ninguém é compelido a depor contra si próprio, evitando a autoincriminação. Nesse contexto, surge a possível colisão entre o direito constitucional ao silêncio e a exigência de confissão imposta no Acordo de Não Persecução Penal (Bonfim, 2024).
Por sua vez, Aury Lopes Júnior (2024, p. 88) define o princípio da não autoincriminação da seguinte forma:
O direito de silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia muito maior, insculpida no princípio nemo tenetur se detegere, segundo o qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por exercer seu direito de silêncio quando do interrogatório.
No Código de Processo Penal, o artigo 186 e seu parágrafo único determinam que, após a devida qualificação do acusado e sua plena ciência sobre a acusação, o juiz deve adverti-lo, antes do início do interrogatório, sobre o seu direito de permanecer em silêncio. Esse silêncio não será considerado como confissão, nem poderá ser interpretado de forma prejudicial à sua defesa (Brasil, 1941).
É preciso acrescentar que o privilégio assegurado ao réu de não ser constrangido a produzir prova contra si, além do direito de não responder às perguntas feitas durante seu interrogatório, também se estende a qualquer outro meio probatório que, mesmo de forma indireta, possa acarretar prejuízo à sua defesa (Avena, 2023).
Contudo, a exigência de confissão como um dos requisitos para a concessão do ANPP revela-se incompatível com o mencionado dispositivo processual. A lógica observada não corresponde à intenção do legislador, que estabeleceu que nenhum prejuízo deve ser imposto àquele que exerça o direito ao silêncio. Pelo contrário, ao recusar-se a confessar as imputações, o acusado deixa de receber a proposta de Acordo de Não Persecução Penal, resultando, assim, em um prejuízo para sua defesa, considerando que o ANPP é um instituto destinado a evitar a persecução penal em juízo (Reis Júnior; Bianchi, 2023).
A vedação à autoincriminação também está consagrada na Convenção Americana de Direitos Humanos:
Artigo 8º- Garantias judiciais
[...]
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
[...]
g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada;
Da mesma forma, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, dispõe:
Art. 14
[...]
3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias:
[...]
g) De não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.
Assim, o princípio não se restringe apenas à garantia do direito ao silêncio durante o processo. A norma aplica-se a todos os atos processuais que possam prejudicar o réu. Ademais, o preceito da não autoincriminação possui status constitucional e internacional, uma vez que está previsto tanto na Constituição Federal quanto no principal tratado e pacto de direitos humanos, devendo, portanto, ser amplamente respeitado (França Lima; Alves Aranha; Brutti, 2021).
No processo penal, o ônus da prova refere-se ao interesse da parte que alega um fato em apresentar evidências ao juiz, para convencê-lo de sua argumentação, conforme art. 156, caput, CPP (Brasil, 1941).
Desde logo, isso significa que não se pode exigir autoincriminação no processo penal, ou seja, o réu não é obrigado a fornecer provas contra si. Portanto, qualquer prova demandada pelo juiz que possa prejudicar sua defesa pode ser recusada. O princípio que protege o réu contra a autoincriminação é amplamente reconhecido na doutrina e na jurisprudência, especialmente pelo Supremo Tribunal Federal, fundamentando-se, em última análise, no estado natural de inocência do réu (Nucci, 2024b).
Embora parte da doutrina argumente que a exigência de confissão como requisito para o acordo seja inconstitucional, alegando que isso leva à autoincriminação do investigado, Avena (2023) entende que não há inconstitucionalidade em exigir a confissão formal e circunstancial do investigado para a formalização do ANPP. Isso porque a adesão ao ANPP ocorre no âmbito da voluntariedade do investigado, que o aceita se desejar, sem qualquer tipo de coerção. Se optar por fazer o acordo com o Ministério Público, ele deverá cumprir os requisitos legalmente estabelecidos, incluindo a confissão.
No mesmo sentido, Carvalho (2020) argumenta que a exigência de confissão como condição para a concessão do ANPP não infringiria o direito de não se autoincriminar. De acordo com sua visão, não haveria violação do direito ao silêncio, uma vez que o investigado teria a liberdade de decidir se confessa ou não o ato delituoso. Ou seja, o investigado poderia escolher permanecer em silêncio ou fornecer uma confissão detalhada do crime, exercendo sua autonomia de vontade com o apoio de sua defesa técnica.
2.7 A CONFISSÃO NO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
A Lei n.º 13.964/2019 trouxe uma inovação significativa ao exigir que o investigado faça uma confissão formal e detalhada do crime, conforme previsto no art. 28-A, caput, do Código de Processo Penal. Essa confissão é um requisito fundamental para a oferta do ANPP, o que levanta dúvidas sobre a possível inconstitucionalidade dessa exigência.
Em primeiro lugar, é importante destacar que, tanto na transação penal quanto na suspensão condicional do processo, que fazem parte da justiça negocial e estão previstas nos artigos 76 e 89 da Lei 9.099/1995, não há qualquer exigência de confissão por parte do suspeito ou acusado. A legislação requer apenas a aceitação das condições propostas pela acusação, evidenciando que a confissão não poderia ser considerada um requisito para o acordo de não persecução penal (Castro; Meira, 2021).
Para o entendimento de Guilherme de Souza Nucci (2024b, p. 79) o ANPP:
Sendo um benefício, não nos parece que deva o investigado confessar amplamente o crime para fazer o acordo. Afinal, se, depois, não for cumprido, o MP pode denunciá-lo e a confissão já terá sido realizada. Ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo.
Dando continuidade ao raciocínio, Nucci (2024a) sustenta que a exigência de confissão formal antes da imposição de penas alternativas não é ideal, pois poderia violar, indiretamente, o direito à proteção contra a autoacusação. Entretanto, essa decisão caberia ao investigado e seu advogado. Um ponto crucial é que, caso o investigado não cumprisse o acordo, o Ministério Público poderia rescindi-lo e apresentar denúncia. Nessa situação, a confissão, já realizada, não poderia ser utilizada no processo criminal, pois se trataria de uma prova ilegítima obtida para o acordo. Assim, deveria ser preservado o direito a não autoincriminação (Nucci, 2024a).
Isso ocorreria porque o art. 28-A, § 10, do CPP estabelece que, em caso de descumprimento do acordo, o Ministério Público deve comunicar o juiz para a rescisão do acordo. Isso resultaria no oferecimento da peça acusatória e poderia incluir a confissão obtida anteriormente para a homologação do benefício legal (Daguer; Júnior Soares, 2024).
Com relação ao requisito da confissão, Castro e Meira (2021, p. 90-91) discutem a questão da voluntariedade, destacando que:
Embora a exigência em tela não se trate de um constrangimento do nível da tortura, a previsão legal da confissão como critério para a proposição do ANPP também equivale a uma forma de coação. É uma ilusão falar em voluntariedade se a confissão é uma exigência. O que leva o indivíduo a confessar nas tratativas do acordo não é a vontade, mas sim a necessidade.
[...]
Em que pese o § 4º do art. 28-A do Código de Processo Penal exija voluntariedade para o ANPP, ela nunca existirá. O beneficiário é obrigado a confessar para obter a proposta: ou confessa ou a persecução penal continua. Existe um vício do consentimento na medida em que o suspeito ou acusado não possui poder de escolha.
Ao tratar da delação premiada, outro tipo de acordo entre um acusado e o Ministério Público, Nucci (2024a) observa que a admissão de culpa, por contrariar a essência do ser humano, deve ser avaliada com equilíbrio e prudência. Não pode mais ser vista, como no passado, como a "rainha das provas", já que frequentemente se revela inconsistente e impura. O Estado não deveria se contentar em enviar ao cárcere uma pessoa inocente que, envolvida por uma série de erros e pressões, acaba confessando algo que não cometeu (Nucci, 2024a).
Aplicando essa contextualização ao cenário do ANPP, observa-se que não haveria paridade ou igualdade entre as partes na negociação do acordo de não persecução penal. Na maioria dos casos, as cláusulas e condições são estabelecidas unilateralmente por uma das partes. Diante da possibilidade de enfrentar um inquérito criminal e, eventualmente, uma condenação, o acusado tende a aceitar as exigências da acusação, mesmo que isso implique em desvantagens para ele (Castro; Meira, 2021).
Dessa forma, o acusado preferiria não enfrentar um litígio para provar sua possível inocência, aceitando certas condições e cumprindo requisitos específicos para evitar ser denunciado pelo Ministério Público ou condenado pelo juiz (Nucci, 2024b).
Nas palavras de Vasconcellos e Reis (2021, p. 295):
Percebe-se, também, pela disposição do art. 28-A, a banalização da assunção de culpa. Ignoram-se, por completo, independente de repercussão penal, os impactos que a confissão pode causar na vida de uma pessoa. Ainda que não seja condenação penal, haverá um documento formal escrito no qual constará que o seu subscritor confessa ter praticado um crime.
Em sua obra, ao discutir a prisão temporária, Lopes Júnior (2024, p. 812) disserta a seguinte frase: “[...] especialmente das ardilosas promessas do estilo - confessa ou faz uma delação premiada que isso acaba”.
Constata-se do posicionamento acima que a ausência de uma persecução penal também poderia ser uma promessa atraente para o acusado. Ao confessar, ele poderia ter acesso ao ANPP, encerrando assim o processo com o cumprimento apenas das demais condições, sem o dispêndio de uma árdua ação penal, e podendo negligenciar a prova de sua possível inocência.
O Acordo de Não Persecução Penal tem se consolidado como um importante instrumento de negociação no processo penal, exigindo uma abordagem distinta por parte dos profissionais jurídicos. Anteriormente habituados ao confronto, agora precisam adotar uma abordagem estratégica e negociadora, que envolve a análise do que pode ser oferecido e o valor a ser pago, o momento apropriado para negociar e a habilidade necessária para a negociação (Lopes Júnior, 2024).
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do presente artigo, restou demonstrado que a exigência de confissão para o oferecimento do Acordo de Não Persecução Penal pode ser considerada inconstitucional. Embora o ANPP ofereça benefícios para a eficiência do sistema penal, a obrigatoriedade de confissão pode comprometer a proteção dos direitos constitucionais dos acusados.
Logo no início da pesquisa, ao analisar o princípio do devido processo legal, observou-se que ele garante a observância de todas as formalidades legais em um processo, ou seja, os procedimentos devem ser seguidos, sem inversão ou supressão. No entanto, com o Acordo de Não Persecução Penal, não há persecução penal e, consequentemente, não se aplica o devido processo legal. Todavia, ainda assim, exige-se uma confissão para o oferecimento do acordo, antes mesmo de qualquer persecução penal.
Ao analisar o princípio do contraditório, ficou evidente que ele assegura um equilíbrio justo entre a pretensão punitiva do Estado e a garantia da presunção de inocência. Essa garantia quer dizer que ninguém é considerado culpado até o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória, cabendo à acusação o ônus de comprovar a ocorrência do delito. No entanto, ao confessar, o ônus pode ser invertido, e muitas vezes, por receio de enfrentar uma ação penal, o acusado opta pela confissão como um caminho mais fácil, ao invés de provar sua real culpabilidade.
Sobre a ampla defesa, observou-se que ela se materializa no direito das partes de apresentar e provar argumentos em sua defesa, dentro dos limites permitidos. Nesse contexto, inclui-se o direito à autodefesa, que garante ao acusado o direito ao silêncio. A intenção é que nenhum prejuízo seja imposto àquele que exerça o direito ao silêncio. Contudo, ao recusar-se a confessar as imputações, o acusado deixa de receber a proposta de acordo de não persecução penal, resultando, assim, em um prejuízo para sua defesa.
A proibição da autoincriminação, como foi discutido, é um princípio fundamental que assegura que nenhum indivíduo seja obrigado a produzir provas que possam incriminá-lo. Esse princípio é consagrado em diversas legislações e convenções internacionais, garantindo que o acusado não seja forçado a confessar um crime sob pressão ou coação.
Além disso, no tocante à voluntariedade da confissão, levantou-se a hipótese de que o imputado é frequentemente submetido a uma série de coações ao longo da persecução penal. Argumentou-se que falar em voluntariedade é uma ilusão quando a confissão é uma exigência, pois o que leva o indivíduo a confessar nas tratativas do acordo não é à vontade, mas sim a necessidade, muitas vezes motivada pelo desejo de evitar um processo penal.
Outro ponto contradito seria que, caso o investigado não cumpra o acordo, o Ministério Público pode rescindi-lo e apresentar denúncia. Nessa situação, a confissão, já realizada, poderia ser utilizada no processo criminal, tornando-se uma prova ilegítima obtida para o acordo.
Mesmo que a pesquisa tenha contribuído para o debate sobre a constitucionalidade da exigência de confissão para o Acordo de Não Persecução Penal, é importante esclarecer que não se está defendendo a impossibilidade de se fazer confissão no processo penal, mas sim que essa confissão deve ser obtida de forma constitucional. A confissão obtida para o ANPP não deve ter valor probatório, uma vez que o objetivo do ANPP é simplificar o procedimento e minimizar os efeitos deletérios de uma sentença penal, e não fornecer provas por meio de procedimentos que possam violar direitos constitucionais.
REFERÊNCIAS
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[1] Professor Orientador. Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade do Contestado. Porto União. Santa Catarina. Brasil. E-mail: [email protected]
[2] O in dubio pro reo é uma manifestação da presunção de inocência enquanto regra probatória e também como regra para o juiz, no sentido de que não só não incumbe ao réu nenhuma carga probatória, mas também no sentido de que para condená-lo é preciso prova robusta e que supere a dúvida razoável. Na dúvida, a absolvição se impõe” (Lopes Júnior, p. 409, 2024).
Graduanda em Direito pela Universidade do Contestado, Porto União. Santa Catarina. Brasil
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOTT, Thalia. A (in)constitucionalidade da exigência de confissão no acordo de não persecução penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 set 2024, 04:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /66579/a-in-constitucionalidade-da-exigncia-de-confisso-no-acordo-de-no-persecuo-penal. Acesso em: 29 dez 2024.
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