Numa manhã de terça-feira, após feriado prolongado, uma amiga telefona para mim, na Divisão de Comunicação da Polícia Civil do Distrito Federal, pedindo-me ajuda:
- Assaltaram a casa do meu irmão e levaram quase tudo. O que devo fazer?
Antes de indicar-lhe o registro de ocorrência na delegacia mais próxima para o início das apurações, procurei me inteirar mais sobre o assunto. Ela, então, informou que o irmão e a cunhada, acompanhados dos filhos, haviam viajado à Bahia e deixado a casa sem vigilância, sequer avisaram aos vizinhos que iam viajar.
Com os donos fora, os jornais foram-se acumulando na porta, o que serviu de sinal aos larápios. Os delinqüentes pularam o muro, arrombaram as portas e subtraíram bens diversos.
No início do telefonema, cheguei a tomar susto ao ouvir a palavra assalto, sinônimo de roubo, ação tipificada no art. 157 do Código Penal e que consiste na subtração de coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência. A pena prevista, para o tipo simples, é de 4 a 10 anos de reclusão.
Em suma, a amiga queria comunicar-me um furto qualificado, praticado com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa, tipificado no art. 155, § 4º, do CP.
Numa definição mais popular, furtar é subtrair coisa móvel alheia às escondidas e roubar é fazer a mesma coisa com violência ou grave ameaça.
Não é raro encontrarmos essas confusões sobre o nomen iuris (denominação legal) dos tipos penais em matérias jornalísticas e músicas populares.
Quem não já leu reportagem informando que um garoto foi “estuprado” por um pedófilo? Impossível a consumação desse crime, posto que o tipo objetivo do estupro é constranger (forçar, compelir) mulher (somente pessoa do sexo feminino), mediante violência ou grave ameaça (vis compulsiva, à força, a pulso), à conjunção carnal (penetração vaginal, cópula vagínica).
Qualquer outra forma de coito ou violação sexual diferente da conjunção carnal constituirá atentado violento ao pudor, que foi o crime praticado contra o garoto pelo pedófilo.
Confunde-se muito também subtração de incapaz (art. 249 do CP) e seqüestro (art. 148) com rapto (art. 219), que são coisas parecidas mas diferentes.
A subtração de incapaz consiste em subtrair menor de 18 anos ou interdito ao poder de quem o tem sob sua guarda em virtude de lei ou ordem judicial, enquanto o seqüestro e cárcere privado consiste em privar alguém de sua liberdade.
No crime do art. 249, a vítima tem de ser menor de 18 anos ou pessoa interditada (incapacitada para os atos da vida civil); no do art. 148, qualquer pessoa pode ser vítima, menor ou maior, capaz ou não.
Já o rapto somente pode ter como vítima mulher honesta, pois o tipo penal assim define: raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso.
Há diferenças também sobre o bem jurídico protegido pela norma: na subtração de incapaz, protege-se a guarda do menor ou interdito; no seqüestro e cárcere privado, a liberdade individual, especialmente a de locomoção (direito de ir, vir e ficar); no rapto, a liberdade sexual.
Na música Calúnias (Telma, eu não sou gay), Ney Mato Grosso comete o mesmo erro, ao se justificar para uma suposta amada: “Telma, eu não sou gay. O que falam de mim são calúnias, meu bem, eu parei”.
Chamar alguém de gay (homossexual), em tom ofensivo, pode constituir injúria (art. 140), que consiste na emissão de conceitos negativos sobre a pessoa, atingindo-lhe a honra subjetiva (a pretensão de respeito à dignidade humana), a dignidade (sentimento da própria honorabilidade ou valor social) e o decoro (a consciência da própria respeitabilidade social). Um exemplo mais claro e simples de injúria é o xingamento.
Para que haja calúnia (art. 138), é preciso que se impute falsamente a alguém a prática de um crime. Se na injúria o bem jurídico protegido é a honra subjetiva, na calúnia a norma protege a honra objetiva – a reputação do ofendido.
Não basta dizer que fulano é ladrão, mas indicar a outrem que a pessoa praticou um fato definido como crime, de determinada forma e em determinado lugar.
A calúnia e a injúria também não se confundem com a difamação (art. 139), que consiste em imputar a alguém fato ofensivo à sua reputação.
Como vimos, a calúnia se configura com a imputação falsa de fato definido como crime; na difamação, fato ofensivo à reputação do ofendido; na injúria, não há fatos imputados, mas emissão de conceitos negativos sobre a vítima.
Em brigas de vizinhos e casais, o que se retrata na MPB, surge, aqui e ali, o termo desacato.
Os compositores e cantores Antonio Carlos & Jocafi encaram uma ilusão destratada como desacato:
Inofensivo aquele amor
Que nem sequer se acomodou
Já morreu!
Quem destratou a ilusão
Que freqüentou meu coração
Não fui eu!
O nome da música é Desacato e o único sentimento que se aproxima desse termo é “destratou”, que vem a ser detratar, maltratar com palavras, descompor, insultar (Dicionário Aurélio, p. 578).
Nos balcões de delegacias, muitas das queixas de vizinhos (e muitas vizinhas) são de que foram vítimas de desacato.
No crime de desacato (art. 331 do CP), a conduta consiste em desacatar (desrespeitar ou ofender) funcionário público no exercício da função ou em razão dela.
Os sujeitos passivos desse crime são o Estado e, de modo secundário, o funcionário público desacatado. O bem jurídico protegido é a Administração Pública.
Portanto, não há que se falar em desacato entre vizinhos ou namorados ofendidos. Pode haver um crime contra a honra, mas nunca contra a Administração Pública.
Em fevereiro de 1999, quando ingressei na Polícia Civil do DF e fui trabalhar na 6ª Delegacia (Paranoá), acumulando plantão e expediente durante um período, deparei com inúmeras ocorrências de furto que me chamaram a atenção.
As vítimas compareciam ao plantão e comunicavam o furto de algum bem de sua propriedade (geralmente, rádio, televisor, caixa de ferramenta, panela de pressão e outros breguessos). O fato era registrado como furto, mas pontos do histórico indicavam ser outro delito.
Nas cidades mais pobres do Distrito Federal, pessoas ainda costumam resolver litígios a seu modo e muitos daqueles furtos eram, na verdade, exercício arbitrário das próprias razões, que também é crime previsto no Código Penal (art. 345), porém de pequeno potencial ofensivo (detenção, de 15 dias a um mês, ou multa, além da pena corresponde à violência, se for empregada para tanto).
Ocorre que alguém contratava o serviço de outrem (pedreiro, serralheiro, pintor etc.) e dava o calote. Cansado de esperar o pagamento, o credor ia até a casa e, mesmo que não encontrasse o dono, pegava o que achasse pela frente para se pagar.
Isso significa “fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permita”.
Adequando a conduta ao fato, com a aplicação técnica e não profana do Direito, evitamos que muitos pais de família trabalhadores virassem ladrões, o que certamente agradaria a alguns velhacos.
Em síntese, o povo em geral tem noção do que é direito ou errado, mas somente os operadores do Direito reúnem as condições para aplicar a lei sem confundir alhos com bugalhos.
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