Introdução
Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o Ministério Público sofreu grande transformação, principalmente no tocante ao seu âmbito de atuação.
Em razão de suas novas incumbências constitucionais, devemos perquirir se as atribuições ministeriais anteriores à Constituição de 1988 permanecem válidas e em consonância com o art. 127 do Texto Maior.
Uma das atribuições fixadas antes da Constituição Cidadã se refere ao poder outorgado ao Ministério Público para homologar rescisão trabalhista, poder este conferido pelo art. 477, § 3º da Consolidação das Leis do Trabalho.
Assim, o objeto do presente estudo é acerca da recepção ou não da norma celetista supramencionada pela atual Constituição Federal.
Do instituto da recepção
Todo o nosso arcabouço jurídico deve estar em consonância com a norma superior consistente na Constituição Federal, conforme o Princípio da Supremacia da Constituição.
Todas as normas jurídicas somente são válidas de compatíveis com o texto da Lei Maior, pois a Carta Magna está no ápice do ordenamento jurídico.
Para buscarmos o sentido do instituto da recepção, devemos diferenciar se a norma a ser confrontada com a Constituição é anterior ou posterior a esta.
Se a lei for posterior à Constituição, fala-se em constitucionalidade ou inconstitucionalidade da mesma, vez que a norma foi criada já com a existência da Lei Maior na qual busca validade, devendo a lei já ser criada visualizando as normas superiores preexistentes.
Agora, se a lei for anterior à Constituição, fala-se em recepção ou não-recepção da norma, pois criada sob a égide de outra lei maior, sendo que, embora válidas sob a ordem constitucional antiga, vem agora buscar validade na nova norma superior.
Acerca do fenômeno da recepção, importante lição de Leo van Holthe em Direito Constitucional, 4ª ed, pág. 142:
“O fenômeno da recepção consiste em um processo automático de verificação da compatibilidade entre a legislação infraconstitucional anterior e a nova Constituição, a fim de atestar quais atos normativos continuam em vigor, sob a égide do novo ordenamento jurídico inaugurado pela novel Carta Magna.”
Assim, por ser a norma do art. 477, § 3º, da CLT criada antes da Constituição de 1988, o fenômeno aplicável no caso é o da recepção.
Da norma sob estudo
Diz a norma do art. 477 da CLT com a redação dada pela Lei 5.584/70:
“Art. 477. É assegurado a todo empregado, não existindo prazo estipulado para a terminação do respectivo contrato, e quando não haja ele dado motivo para cessação das relações de trabalho, o direito de haver do empregador uma indenização, paga na base da maior remuneração eu tenha percebido na mesma empresa.
§ 1º O pedido de demissão ou recibo de quitação de rescisão do contrato de trabalho, firmado por empregado com mais de 1 (um) ano de serviço, só será válido quando feito coma a assistência do respectivo Sindicato ou perante a autoridade do Ministério do Trabalho.
(...)
§ 3º Quando não existir na localidade nenhum dos órgãos previstos neste artigo, a assistência será prestada pelo representante do Ministério Público ou, onde houver, pelo Defensor Público e, na falto ou impedimento destes, pelo Juiz de Paz.”
O único ponto do referido artigo a ser analisado é referente à atribuição do Ministério Público para realizar a homologação da rescisão trabalhista, sendo que deixaremos para outra análise a hipótese de atribuição da Defensoria Pública quando as partes não forem hipossuficientes.
Dos fundamentos acerca da não-recepção
Inicialmente, a Constituição Federal de 1988, dando novos contornos ao Ministério Público, prevê no seu artigo 127 a função ministerial voltada para a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
A determinação do art. 127, caput, da Lei Maior (defesa da ordem jurídica, etc), serve como paradigma para qualquer atribuição a ser dada ao Ministério Público no plano infraconstitucional.
A assistência para a rescisão trabalhista não pode ser enquadrada em nenhuma das funções ministeriais previstas na Constituição, concluindo assim pela sua não adequação ao novo regime constitucional.
Diversas outras matérias, que inclusive em tese gozam de maior 'interesse público' do que a assistência para rescisão trabalhista, tais como separação consensual sem filhos menores, ações previdenciárias, usucapião de imóvel regularmente inscrito entre outras, vem sendo excluídas da intervenção ministerial através de movimento conhecido como Racionalização da Intervenção do Ministério Público.
Tal entendimento (da não recepção de algumas matérias com necessária intervenção do Ministério Público antes da Constituição de 1988) foi adotado no âmbito da Conamp e do próprio Ministério Público do Estado do Tocantins (Recomendação Técnica Jurídica PGJ/CGMP 001/03).
Embora tenham as recomendações supracitadas deixado de apreciar o interesse ministerial nas rescisões trabalhistas, parece-nos que ocorreu mero lapso, pois a mesma ratio que motivou a exclusão da intervenção dos casos acima descritos é aplicável ao art. 477 da CLT. Com até mais razão.
Muitos poderão argumentar que, caso o Ministério Público deixe de realizar as homologações de rescisão trabalhista onde não existem os demais órgãos previstos no art. 477 da CLT, causará grandes transtornos aos trabalhadores.
Para amenizar este problema, nada impede que, em caráter subsidiário, possa ser usada a Teoria da Inconstitucionalidade Progressiva (aplicável nas ações civis ex delicto) para que o Promotor de Justiça avalie a necessidade de assistência nas rescisões nas comarcas desprovidas de Sindicato e escritório do Ministério do Trabalho.
Conclusão
Por tudo que foi acima exposto, ficou evidenciado que a Constituição da República de 1988 não recepcionou o art. 477 da Consolidação das Leis do Trabalho no tocante às atribuições do Ministério Público de servir como assistente na homologação de rescisão trabalhista.
Referências bibliográficas:
HOLTHE, Leo van. Direito Constitucional. 4ª ed., São Paulo: Podivm, 2008.
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