CONCURSO DE AGENTES versus CONCURSO DE PESSOAS
“Na maior parte dos casos, o delito é praticado por um único indivíduo a quem se reservou o título de ‘autor’. Algumas vezes, no entanto, o ‘autor’ não age isoladamente: há diversos ‘autores’ que atuam em conjunto, numa verdadeira divisão de tarefas, para a concretização de um crime. Outras vezes, certos indivíduos são alcançados pela lei penal não porque tenham praticado uma conduta ajustável a uma figura delitiva, mas porque, embora executando atos sem conotação típica, contribuíram, objetivamente e subjetivamente, para a ação criminosa de outra. Para eles foi atribuída a denominação de partícipes”.[1]
O tema acerca da autoria, co-autoria e participação é amplo, e enseja uma análise criteriosa que este pequeno trabalho não comporta. Daí porque irei me ater à questão da chamada participação de crime menos grave, também chamada pela doutrina de cooperação dolosamente distinta.
Tratando do Concurso de Agentes, o art. 53 do Código Penal Militar dispôs:
“Co-autoria
Art. 53. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas.
Condições ou circunstâncias pessoais
§ 1º A punibilidade de qualquer dos concorrentes é independente da dos outros, determinando-se segundo a sua própria culpabilidade. Não se comunicam, outrossim, as condições ou circunstâncias de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.
Agravação de pena
§ 2º A pena é agravada em relação ao agente que:
I - promove ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes;
II - coage outrem a execução material do crime;
III - instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade, ou não punível, em virtude de condição ou qualidade pessoal;
IV - executa o crime ou nele participa mediante paga ou promessa de recompensa.
Atenuação de pena
§ 3º A pena é atenuada com relação ao agente, cuja participação no crime é de somenos importância.
Cabeças
§ 4º na prática de crime de autoria coletiva necessária, reputam-se cabeças os que dirigem, provocam, instigam ou excitam a ação.
§ 5º Quando o crime é cometido por inferiores e um ou mais oficiais, são estes considerados cabeças, assim como os inferiores que exercem função de oficial.
Casos de impunibilidade
Art. 54. O ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição em contrário, não são puníveis se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado.”
A simples leitura do dispositivo revela que ele é uma cópia fiel do art. 35 do Código Penal comum de 1969, o que, aliás, não passou despercebido da visão crítica de Jorge Alberto Romeiro.[2]
Inobstante o CP de 1969 sequer ter entrado em vigor[3], o que lhe valeu, até hoje, o adjetivo de natimorto, a expressão concurso de agentes “foi severamente criticada pela doutrina da época, por entender que o termo, sendo muito abrangente, incluía também os fenômenos naturais que provocavam resultados naturalísticos”.[4] Com a devida vênia, se o crime é sempre obra do homem, não parece que na expressão referida pudesse ou possa estar incluído o concurso de fenômenos naturais para a consecução do resultado típico.
A exposição de motivos do CPM, em seu item sete, não se referiu à terminologia adotada.[5]
Para Nilo Batista, no entanto, “fundamentalmente, repetia-se no Código de 1969 a mesma disciplina do código de 1940, em termos de concurso de agentes, que era a denominação do título, sem dúvida mais apropriada”.[6]
Por sua vez, a reforma da Parte Geral do Código Penal comum, empreendida em 1984, “representou um importante avanço, não só do campo das penas e medidas de segurança, mas também no âmbito da teoria do delito. Embora a disciplina do concurso de agentes não tenha sofrido uma transformação notável – como, por exemplo, aquela que se deu quanto ao erro – é fora de dúvida que houve um aprimoramento.
(...) A hipótese de participação em crime menos grave, que antes implicava necessariamente responsabilidade objetiva (art. 48, parágrafo único), dispõe agora de solução mais atenta às exigências do princípio da culpabilidade (art. 29, § 2º). ”[7]
Para melhor entendimento, transcrevo o art. 29 do CP comum:
“Do concurso de pessoas
Art. 29. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.
§ 1º Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço.
§ 2º Se algum dos participantes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até a metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave”.
Apresenta-se como indisfarçável a diferença de tratamento entre o Código Penal comum e o Militar, visto que este último não cogitou da participação de crime menos grave – ou cooperação dolosamente distinta.
A diferença entre as duas legislações não é de hoje, o projeto do CPM de 1944, visou quanto possível, harmonizar com os preceitos da legislação comum o nosso Código Penal Militar.
Todavia, se hoje o texto do atual CPM se acha mais divorciado do CP comum, tal situação decorre de um acidente de percurso durante um momento da vida política brasileira que coincidiu com a edição da legislação penal militar atual. É que exatamente a 21 de outubro de 1969, a Junta Militar que governava o Brasil, outorgou quadrigêmeos[8] legais, na forma de Decretos-lei de nºs 1001(o CPM); 1002 (o CPPM); 1003 (a LOJM) e; 1004 (o CP comum que por sua excessiva severidade foi revogado mesmo antes de entrar em vigor).
Desta forma, em todas as discrepâncias aqui demonstradas, foi o Código Penal Militar abeberar-se no texto legal de seu irmão gêmeo natimorto.
Com a edição da Nova Parte Geral do Código Penal em 1984 a distância entre os dois Códigos tornou-se ainda maior, sendo que a Carta Política de 1988 tornou inconstitucional um grande número de seus artigos.
Porém esta importante fonte do direito penal militar que é a jurisprudência vem ajustando seus mandamentos à vida em sociedade, à evolução dos costumes, de modo que é possível afirmar que se atualmente, o texto gélido do CPM carece urgentemente de uma reforma, o direito penal militar está permeado das garantias constitucionais, na busca incessante do ideal de Justiça.
Parece razoável, no entanto, discutir a viabilidade de mantença desta diferença tão marcante, e até mesmo da possibilidade de aplicação da regra mais benéfica da legislação penal comum em face da omissão do Código Penal Militar seguindo, portanto, o norte estabelecido pelo art. 12 do CP.
A PARTICIPAÇÃO DE CRIME MENOS GRAVE E SUA APLICAÇÃO NO DIREITO PENAL MILITAR
Inexistente no Código Penal Militar a participação de crime menos grave tem plena aplicação no direito penal comum.
É que o legislador da Parte Geral de 1984, adotando o princípio do nullum crimen sine culpa como parâmetro de toda a reforma penal, dispôs, no § 2º do art. 29 do CP que “se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até a metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave”.
Melhorou consideravelmente o tratamento dado à matéria pela PG/40, onde o partícipe era punido pelo fato mais grave, que lhe era atribuído independentemente de qualquer vinculação de caráter subjetivo (art. 48, par. único).
Esse gravame, que a doutrina passou a considerar responsabilidade objetiva, a toda evidência não analisava a medida da culpabilidade de cada concorrente.
Agora, o partícipe será punido pelo crime menos grave que praticou e quis efetivamente praticar.
A questão que se apresenta, portanto é saber se o instituto da participação de crime menos grave pode, ou não, ser aplicado ao direito penal militar onde é inexistente.
Creio que para melhor se entender a questão posta em debate, razoável que se estabeleça um paralelo com dois outros institutos tratados de forma diversa entre o código penal comum e o código penal militar, sendo mais grave neste último: o concurso de crimes e o crime continuado.
Sabe-se que o Código Penal comum impôs tratamento diverso às duas espécies de concurso de crimes. No concurso material (art. 69) as penas privativas de liberdade aplicam-se cumulativamente. No concurso formal (art. 70) o tratamento dependerá da homogeneidade ou heterogeneidade do concurso, de maneira que em caso de penas diversas aplica-se a mais grave ou se iguais uma delas, agravado, em qualquer caso, de 1/6 até metade.
Já no Código Penal Militar (art.79) o concurso material foi igualado ao concurso formal, sendo que o tratamento às duas espécies é o mesmo: se as penas forem de mesma espécie a pena única é a soma de todas; se forem de espécies diferentes a pena única é a mais grave, com aumento correspondente à metade das menos graves (de cada uma das menos graves), sendo, portanto, mais gravoso ao réu.
Por sua vez, o crime continuado é tido pela doutrina e jurisprudência como “uma ficção jurídica instituída em favor do réu – semelhante ao concurso formal – visa minorar a responsabilidade do indivíduo que comete diversas infrações”(Fernando Galvão).
Pelo tratamento dado ao Código Penal comum pela PG/84, se as penas dos diversos crimes são idênticas, aplica-se apenas uma e se forem diversas, a do crime mais grave, aumentado, em qualquer caso, de 1/6 a 2/3.
Pela regra do CPM (art. 80), o crime continuado foi igualado ao concurso de crimes, ou seja, se as penas forem de mesma espécie, somam-se todas elas; se de espécies diferentes, aplica-se a mais grave mais a metade do tempo das menos graves.
O ponto inicial para se discutir a questão é o princípio da especialidade, sendo certo que a norma especial prevalece sobre aquela outra, de caráter geral. Nos termos do art. 12 do CP comum, “as regras gerais deste código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso”. Pressupõe, portanto, a inexistência da norma pretendida na legislação especial.
Nesse sentido, tanto o Superior Tribunal de Justiça como o Supremo Tribunal já se manifestaram pela inaplicabilidade dos princípios do CP comum aos crimes previstos no CP Militar, tanto no concurso de crimes (HC nº 48.546-SP (2005/0164479-9), rel. Min. Félix Fischer) quanto no crime continuado (HC nº 86.854/SP, rel. Min. Carlos Britto).
Constou do voto do Min. Carlos Brito que a inaplicabilidade se deve ‘porque, nos termos do art. 12 do CP, a inexistência de regramento específico em sentido contrário é premissa da aplicação subsidiária do Código Penal às legislações especiais. No caso, tal premissa não se faz presente. Bem ou mal, o Código Penal Militar cuidou de disciplinar os crimes continuados de forma distinta e mais severa do que o Código Penal Comum.
Não se pode mesclar o regime penal comum e o castrense, de modo a selecionar o que cada um tem de mais favorável ao acusado. Tal proceder geraria um “hibridismo” incompatível com o princípio da especialidade das leis. Sem contar que a disciplina mais rigorosa do Código Penal Castrense funda-se em razões de política legislativa que se voltam para o combate com maior rigor daquelas infrações definidas como militares’.
Já do voto do Min. Félix Fischer colhe-se: “Com efeito, os delitos previstos na parte especial do Código Penal Militar devem ter a sua pena fixada na forma prevista na parte geral do respectivo Estatuto. Não é admissível a aplicação analógica do art. 70 do CP a tais delitos. A uma, em razão de a analogia presumir, para o seu uso, uma lacuna involuntária, o que evidentemente não se observa no caso. A duas, em razão de a isonomia presumir a identidade de situações, o que, mais uma vez, não corresponde à hipótese em análise, vez que o direito penal brasileiro optou por dispor de uma legislação penal específica para os militares, o que justifica a diferença de tratamento, até pela natureza da função exercida pelos membros das organizações militares.”
Em contrapartida o Superior Tribunal Militar já pacificou a aplicação da regra do crime continuado prevista no CP comum aos delitos militares. Nesse sentido, Apelação 2001.01.048785-9/MG, rel. Min. Sérgio Xavier Ferola e, Apelação 2007.01.050502-4/SP, rel. Min. José Coelho Ferreira.
Nos Tribunais Militares Estaduais, a jurisprudência oscila. Quando se nega a aplicação da regra do CP comum, baseia-se no princípio da especialidade (TJM/SP, Agravo em Execução 301/05; Apelação 5010/01). Quando se aceita a aplicação da regra do CP comum, baseia-se em política criminal (TJM/MG, Apelação números 2379, 2401, 2426 e 2455).
CONCLUSÃO
No cotejo entre as regras do direito penal comum e o direito penal militar convém lembrar-se de dois fatos importantes.
O primeiro, de que a aproximação entre as duas legislações sempre foi pretendida, conseguiu-se o máximo por ocasião da edição do CPM de 1944, afinado com o CP de 1940.
Daí porque não se pode afirmar que a disciplina mais rigorosa do Código Penal castrense funda-se em razões de política legislativa que se voltam para o combate com maior rigor daquelas infrações definidas como militares porque o CPM de 1969 também estava afinado com o CP comum de 1969, todavia dele divorciou-se quando o CP/69 foi revogado sem nunca ter entrado em vigor. Esta distância aumentou com a edição da nova Parte Geral de 1984, inspirada pelo direito penal da culpabilidade, no qual a participação de crime menos grave (cooperação dolosamente distinta) ganhou lugar de destaque.
Assim, urge reformar a legislação penal militar para compatibilizá-la com o direito penal comum, dele divergindo apenas naquelas características que informam a sociedade militar e justificam procedimentos distintos.
Enquanto isto não ocorre, acredito que, se por um lado mesmo quando existem regras distintas tratando dos mesmos institutos (crime continuado p.ex.) a práxis dos tribunais militares tem aceitado a aplicação de princípios do direito penal comum aos crimes militares, por uma questão de política criminal, com muito mais razão é de se aceitar, com base no art. 12 do CP, a aplicação do instituto da cooperação dolosamente distinta aos crimes militares praticados em concurso de agentes, já que a analogia aqui é perfeitamente aceitável, em face de inexistência de previsão similar no Código Penal Militar.
[1] FRANCO, Alberto Silva e STOCO, Rui. Código Penal e sua Interpretação, 8ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p.223.
[2] ROMEIRO, Jorge Alberto. Curso de Direito Penal Militar – Parte Geral. São Paulo: Editora Saraiva, 1994, p. 190.
[3] Foi sendo sucessivamente adiada sua vigência até ter sido revogado pela Lei nº 6.578, de 11.10.1978.
[4] Conforme Osmar Lino Farias. Concurso de Pessoas. Revista Âmbito Jurídico, disponível em www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_lin=revista_artigos_leitura&artigo_id=911 acesso em 25.10.2008.
[5] Exposição de Motivos: (...) Item 7. Conserva-se, no concurso de agentes, o conceito militar de cabeças, não só para os que dirigem a ação nos crimes de autoria coletiva necessária, como também para os oficiais, numa fictio iuris baseada no princípio de hierarquia, quando estes aparecem em concurso com inferiores na autoria de um crime.
[6] BATISTA, Nilo. Concurso de Agentes, 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, p.19.
[7] BATISTA, Nilo, ibidem, p. 24-5.
[8] Quadrigêmeos porque nasceram em um mesmo momento, todavia os autores dos anteprojetos eram diversos, sendo o do CP de 1969 de autoria do insigne Nelson Hungria.
Membro do Ministério Público da União. Promotor da Justiça Militar, exercendo suas atividades na Procuradoria da Justiça Militar em Santa Maria/RS. Oficial da reserva não remunerada da Polícia Militar do Estado do Paraná, lecionou na Academia Policial Militar do Guatupê e no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças. Foi também Promotor de Justiça do Paraná, entre os anos de 1995 a 1999. Sócio fundador da Associação Internacional das Justiças Militares e membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar. Articulista assíduo em várias revistas jurídicas e Palestrante do Direito Militar, em inúmeros eventos, destacando-se o 1º Encontro Internacional de Direitos Humanos, Direito Penal e Direito Militar, realizado em Brasília/DF, em novembro de 2000, e o II Encontro Internacional de Direito Humanitário e Direito Militar, realizado em Florianópolis/SC, em dezembro de 2003. Semana de Reflexão sobre a Justiça Militar, realizado na cidade de Praia, República de Cabo Verde, em março de 2008, aonde palestrou a convite do Chefe do Estado Maior das Forças Armadas daquele país, e o 3º Encontro de Direito Humanitário e Direito Militar, realizado pela Associação Internacional das Justiças Militares-AIJM, na cidade de Santiago, Chile, em maio de 2008, onde atuou na condição de Secretário Geral - Ad Hoc, da AIJM. Autor de livros relacionados a área militar. Site: www.jusmilitaris.com.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ASSIS, Jorge Cesar de. Considerações sobre a participação de crime menos grave no Direito Penal Militar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jan 2009, 08:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/16576/consideracoes-sobre-a-participacao-de-crime-menos-grave-no-direito-penal-militar. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Gabriel Bacchieri Duarte Falcão
Por: Gabriel Bacchieri Duarte Falcão
Por: Sócrates da Silva Pires
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