O rei está nu. Quem ousasse dizer tal coisa pela história de Hans Christian Andersen em “A nova roupa do imperador” seria considerado uma pessoa destituída de inteligência e inapta para ocupar os cargos no reino.
O imperador era um perfeito dandi e gostava tanto de roupas novas que passava mais tempo experimentando-as do que se ocupando das coisas do reino.
Aí, surgiram dois espertalhões dizendo que possuíam uma roupa que não apenas tinha cores deslumbrante mas também dotada de qualidade única: somente as pessoas especiais poderiam vê-la e apreciá-la propriamente... E, os destituídos de inteligência e nobreza iriam dizer que a roupa era invisível ou que esta não existia.
O estranho equilíbrio entre cegueira e sabedoria traça a sua saga, e, então o rei ansioso pelas novas vestes ordena que seus ministros supervisionem a tecelagem e a elaboração de tão esperado traje.
Em lá, chegando, um dos ministros intimamente pensava: não vejo nada. Mas temendo ser exonerado de seu cargo, e diante dos tecelões espertalhões declara extasiado: - Quão maravilhoso é esse tecido, que padronagem, que cores! Vou relatar ao imperador que fiquei deverasmente encantado!.
Assinala bem Affonso Romano de Sant’Anna que além da trapaça financeira, observamos que a palavra ocupa o lugar da coisa, e é muito comum, percebemos que o discurso cria uma invenção verbal de coisas inexistentes e quiçá impossíveis.
E nisso, os sofistas são mestres impressionantes. E, quando o próprio imperador decide verificar com seus próprios olhos a tal fabulosa vestimenta, defrontando-se com coisa nenhuma, pensou exatamente como o velho ministro e ao conselheiro que antes já haviam visitado os tecelões.
Até mesmo o imperador apesar de nada ver não desejava passar por estúpido ou imbecil e, então, começou a exclamar frases fascinantes a exortar o traje tão almejado. E, aí, toda a corte passou a fingir a ver o referido traje, e até mesmo os auxiliares fingiam carregar o manto invisível do imperador.
Consuma-se a alucinação quando diante do espelho, o próprio imperador dotado de poder e cegueira proposital admirava-se com a roupa que simplesmente não via. Esse conto é muito interessante de ser analisado principalmente no carnaval sob o brilho intenso de lantejoulas, paetês e trajes tão soberbos que nos permite ver a nudez e a crueza da realidade brasileira.
Então toda corte fingia ver a vestimenta inexistente e, na ocasião da apresentação oficial do traje ocorrera que uma criança que descompromissada, grita : - O rei está nu. Ele está sem roupa. É a visão pura da criança que desnuda a realidade e a denuncia aos berros.
E, o povo começa a abrir os olhos, a desanuviar a visão e concordar com a visão do infante.
A multidão urrava exasperada e acuado o imperador intimamente pensava que tinha que levar até o fim o desfile com toda pompa e circunstância. E, prosseguiu a caminhar garboso e orgulhoso cercado de seus cavaleiros e aios e ainda o camareiro real que seguiam e entravam numa carruagem que igualmente não existia.
A versão do conto de Andersen no folclore lusitano ganha em vez auxiliares competentes pela visão do traje, somente os filhos legítimos poderiam ver a roupa invisível do imperador. Seria assim como diversos mitos, uma seleção e uma senha para se apurar a legitimidade da sucessão ao trono.
E, no folclore lusitano quem é o denunciante do embuste é o estrangeiro negro. E passa então ser enjeitado.
A lenda narrada por Andersen desfia o pacto de cegueira, onde todo o povo brinca de avestruz e alguém (os tecelões trapaceiros) lucram com tal cegueira estimulada. E, porque todos temem a opinião ou a visão do outro, todos deixam de ver ou de ter opinião que caracteriza bem a chamada cegueira social.
È muito comum em partidos políticos, agremiações religiosas, cultrais onde ocorre a produção de discurso que ordena e coordena o que deve ser visto e ou não ser.
O que segundo La Boétie seria a chamada servidão voluntária, quando arrendamos nossos sentidos aos desejos e ao poder do outro. Mas quando se liberta da servidão voluntária do fanatismo podem os humanos envidar esforços em revoluções, dissidências , resistências e articulações tão bem demonstradas no filme recentemente estreiado chamado “Operação Valquíria”.
Mas, afinal, se havia tantos detalhes descritos, tantos pormenores ,e havia tanto espanto ante o traja inexistente ou invisível, o rei afinal está ou não nu? Está nu aos olhos da corte. Está nu aos olhos da realidade. Mas, está vestido aos olhos de sua vaidade e egocentrismo.
Está trajado com o imaginário. Apenas isso. Trajado apenas para si mesmo.
Restam ainda algumas cruciais indagações: quem lucra verdadeiramente com a cegueira social brasileira? Quem será que dotado de visão pura e desvinculada poderá nos indicar a realidade? Sigamos a perseguir as respostas, a diligenciar nossos sentidos para apurá-los e fugir sempre que possível da alienação que cega, emburrece e desumaniza.
Referências
SANT´ANNA AFFONSO ROMANO DE. A cegueira e o saber. Rio de Janeiro, Rocco, 2006.
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