SUMÁRIO: 1. Apresentação; 2. A Luta dos dirigentes da OAB contra o “jus postulandi”; 3. A negação do “jus postulandi” aos bacharéis em direito; 4. Algumas opiniões favoráveis ao “jus postulandi”; 5. O “jus postulandi” nos países civilizados; 6. A Inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 45/2.004; 7. A jurisprudência anterior do Supremo Tribunal Federal; 8. A Decisão do Supremo Tribunal Federal; 9. Considerações Finais.
1. Apresentação
A Lei nº 8.906/94, o Estatuto da OAB, determina, em seu art. 1º, que: “São atividades privativas de advocacia: I - a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais;” (omissis)
Por essa norma, qualquer pessoa seria obrigada a contratar um advogado, para a defesa de seus direitos. O “jus postulandi”, direito fundamental reconhecido pelas nações civilizados, seria inteiramente negado aos jurisdicionados brasileiros.
No entanto, o Supremo Tribunal Federal já restringiu, em parte, as pretensões, excessivamente corporativistas, dessa norma, através do julgamento da ADI nº 1.127-8, que foi julgada procedente para determinar a inaplicabilidade do art. 1º do Estatuto da OAB aos Juizados Especiais e à Justiça do Trabalho.
Há mais de vinte anos, também, a Constituição Federal dispõe (§2º do art. 5º) que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” A enumeração do art. 5º, do “catálogo” de direitos e garantias, é meramente exemplificativa. Não deveria excluir, portanto, o direito fundamental de postular perante o Judiciário, em defesa de direitos. A contratação de um advogado deveria ser opcional, como em qualquer país civilizado.
Somente agora, porém, em dezembro do ano passado, no julgamento do Habeas Corpus nº 87.585-TO, embora discutindo especificamente a questão da prisão civil por dívida, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por cinco votos a quatro, que os tratados de direitos humanos valem mais do que a lei ordinária. Os votos dissidentes entendiam que esses tratados têm nível constitucional.
O que estava sendo discutido era a questão da prisão civil por dívida, proibida pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, a não ser na hipótese do não pagamento de pensão alimentícia, mas acontece que esse Pacto, além de dispor a respeito da prisão civil por dívida, também garante a qualquer pessoa o “jus postulandi”, em relação a “qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”
Portanto, ficou revogado, também, o art. 1º do Estatuto da OAB, acima referido, e todo jurisdicionado brasileiro deverá ter forçosamente reconhecido o seu direito de postular, pessoalmente, perante qualquer órgão do Poder Judiciário, de acordo com o novo entendimento do Supremo Tribunal Federal, que será esmiuçado em um tópico posterior.
2. A Luta dos dirigentes da OAB contra o “jus postulandi”
Alegando que somente o advogado dispõe dos conhecimentos técnicos necessários, os dirigentes da OAB têm procurado restringir, de várias maneiras, o direito fundamental de acesso à Justiça, que nos tem sido reconhecido apenas parcialmente, pelo Judiciário. A finalidade dessa luta, ao que tudo indica, deve ser a proteção e a ampliação do mercado de trabalho dos advogados. As maiores críticas desses advogados e dos dirigentes da OAB são dirigidas ao “jus postulandi” na Justiça do Trabalho.
Muitos alegam, por exemplo - o que já foi negado pelo Supremo Tribunal Federal -, que o art. 133 da Constituição teria revogado o “jus postulandi” na Justiça do Trabalho.
A respeito, é interessante a leitura da seguinte moção, publicada na página do Instituto dos Advogados Brasileiros:
“O jus postulandi na Justiça do Trabalho – Projeto de lei propondo sua supressão – Apoio do IAB. No momento em que tramitam no Congresso Nacional projetos de lei propondo a eliminação do jus postulandi na Justiça do Trabalho, o Instituto dos Advogados Brasileiros vem a público manifestar seu apoio a tais iniciativas. O IAB se permite lembrar que, ao prescrever que “O advogado é indispensável à administração da Justiça“, o art. 133 da Constituição de 1988 não excetuou dessa regra a Justiça do Trabalho. Não pode, pois, a CLT, que diz ser dispensável a intervenção do advogado na Justiça do Trabalho, prevalecer sobre o preceito constitucional que estabelece a indispensabilidade do advogado na administração da Justiça. Com maior razão, há de assim ser entendido se considerar que a Instrução Normativa do TST 27/20005, com quebra do princípio da isonomia, admitiu honorários sucumbenciais nas lides decorrentes da relação de trabalho. Por sua vez, o atual Código Civil, aplicável ao processo trabalhista, dispõe, nos arts. 389 e 404, que a reparação pelo inadimplemento da obrigação, compreende, além de perdas e danos, juros, atualização monetária “e honorários de advogados”. Em conclusão, entende o IAB que a persistência da negativa de concessão de honorários advocatícios na Justiça do Trabalho representa uma afronta ao ordenamento jurídico brasileiro. (Moção aprovada em sessão plenária do IAB, no dia 04.06.2008, disponível na internet em: http://www.iabnacional.org.br/mocoes.php)
Quanto às pretensões dos dirigentes da OAB no tocante aos Juizados Especiais, é interessante a leitura da seguinte notícia:
“Brasília, 19/10/2008 - O Plenário do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), decidiu hoje (19), de forma unânime, reivindicar junto aos senadores e deputados que compõem a bancada dos advogados no Congresso Nacional a apresentação de projeto de lei, na Câmara ou no Senado, tornando obrigatória a presença de advogados nos feitos promovidos perante os juizados especiais no âmbito federal. O pedido foi encaminhado ao Conselho Federal pela Comissão de Direitos e Prerrogativas da Seccional baiana da OAB, subscrita pela advogada Zíbia Lucia Damasceno e por mais dezesseis advogados, e distribuído ao conselheiro federal Raimundo Ferreira Marques. Em virtude de sua ausência na reunião de hoje, o processo foi relatado pelo conselheiro federal por Alagoas e ouvidor do Conselho Federal da OAB, Marcelo Brabo. Segundo ele, em seu voto "para reafirmação de nossa irresignação e tradição de lutas, será de bom alvitre que este Conselho acolha o pleito dos advogados da Bahia". A votação da matéria na sessão extraordinária que decidiu favoravelmente ao pedido da OAB da Bahia foi presidida pelo diretor Ophir Cavalcante Junior. (disponível na internet em: http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=14914)
Essa tentativa dos dirigentes da OAB, no âmbito do Congresso Nacional, pretende reverter o que já foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, há mais de dois anos. A respeito dos Juizados Especiais da Justiça Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.168, proposta pelo Conselho Federal da OAB, o Supremo Tribunal Federal já decidiu, em junho de 2.006, pela constitucionalidade do art. 10 da Lei federal nº 10.259/01, que assegura o “jus postulandi”, permitindo que qualquer pessoa pleiteie seus direitos pessoalmente ou por meio de representante, seja este advogado ou não. O Conselho Federal da OAB, em sua petição, citava o art. 133 da Constituição, para defender a indispensabilidade da presença do advogado. O ministro Joaquim Barbosa, relator, observou que a Lei 10.259/01 tem a finalidade de ampliar o acesso à Justiça e agilizar a prestação jurisdicional, na linha do que foi estabelecido pela Lei 9.099/95, homenageando assim, dentre outros princípios, a oralidade, a publicidade, a simplicidade e a economia processual. O Ministro lembrou ainda que o Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.127, proposta contra artigos do Estatuto da OAB, já decidiu, por unanimidade, que não se aplicam aos Juizados de Pequenas Causas, à Justiça do Trabalho e à Justiça de Paz os dispositivos que determinavam serem privativas dos advogados as postulações perante os Juizados Especiais. (Veja aqui as Informações prestadas ao STF, na ADI nº 3.168)
Até mesmo em relação ao processo administrativo disciplinar os dirigentes da OAB têm procurado defender o mercado de trabalho dos advogados. Em agosto do ano passado, o Conselho Federal da OAB apresentou ao Supremo Tribunal Federal um pedido de cancelamento da Súmula Vinculante nº 5, que determinou: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição.” (Veja aqui a notícia)
O próprio Estatuto da OAB não prevê como atividade privativa do advogado a postulação perante a administração pública, mas mesmo assim os seus dirigentes, sob a alegação de que a Súmula Vinculante nº 5 contraria o direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa, apresentaram ao Supremo Tribunal Federal uma proposta de cancelamento dessa Súmula. (Petição nº 4385, de 13.08.2008)
Aliás, até mesmo para a separação consensual em cartório, permitida pela Lei nº 11.441/2007, os dirigentes da OAB defendem que deve ser obrigatória a presença do advogado, “para evitar prejuízos ao cidadão”.
Essa lei alterou alguns dispositivos do Código de Processo Civil, para permitir a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual perante um tabelião, através de escritura pública, exatamente para beneficiar os interessados e para desafogar o Judiciário. No entanto, por pressão dos dirigentes da OAB, foi incluída nessa Lei mais uma norma, que veio a ser o parágrafo único do art. 982, verbis:
“O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado comum ou advogados de cada uma delas, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.”
Ou seja: para simplificar, a Lei nº 11.441/07 dispensou a figura do juiz, e também o promotor. Mas do advogado ninguém se livra, porque os juízes e promotores recebem a sua remuneração no fim do mês, mas o advogado depende dos seus honorários, e a sua defesa depende da função sindicalista da OAB.
Aliás, depende da função sindicalista da OAB e da ajuda da Bancada da OAB no Congresso Nacional, que talvez consiga aprovar, também, o projeto de lei nº 2.171/2007, que pretende tornar obrigatória a presença do advogado em qualquer transação imobiliária. (Veja aqui o projeto)
Até mesmo na Justiça Desportiva, há quem defenda a indispensabilidade da presença do advogado!!! (Veja aqui)
Em breve, talvez o Congresso Nacional esteja discutindo, também, um projeto de lei para tornar obrigatória a presença do advogado em qualquer outra transação, como por exemplo a compra de um computador, ou de uma TV de 14 polegadas!!!
Para evitar possíveis prejuízos ao consumidor, evidentemente...
Essas são algumas das diversas manifestações dos fatores reais do poder, que restringem o nosso direito de acesso à Justiça e contribuem para a inefetividade de nossos direitos fundamentais.
3. A negação do “jus postulandi” aos bacharéis em direito
Os dirigentes da OAB desejam que a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário seja atividade privativa do advogado, ou seja, do bacharel inscrito em seus quadros. Aliás, até mesmo nas transações imobiliárias, nos cartórios, na Justiça Desportiva, nas repartições administrativas e, quem sabe, até mesmo nos supermercados?
Ao lado dessa defesa do mercado de trabalho dos advogados inscritos, pela negação do “jus postulandi” a qualquer jurisdicionado, os dirigentes da OAB também restringem o acesso aos seus quadros, através de seu inconstitucional Exame de Ordem, com a evidente finalidade de resguardar, da mesma forma, o mercado de trabalho dos advogados já inscritos, cuja enorme maioria não se submeteu a esse Exame e nem seria aprovada, certamente, se a ele fosse submetida. Ao mesmo tempo, eles conseguiram, recentemente, que o Ministério da Educação obrigasse as Faculdades de Direito a reduzirem 47% de suas vagas, com o mesmo objetivo.
Ressalte-se que não estou defendendo, neste ponto, que o bacharel não inscrito na OAB pudesse advogar. Mas é um absurdo que ele não possa postular em causa própria. É um absurdo que o bacharel não inscrito, por qualquer que seja o motivo – não aprovação no Exame da OAB, exercício de cargo incompatível com a advocacia, etc -, esteja impedido até mesmo de postular em causa própria.
O bacharel em direito, portador de um diploma de uma instituição de ensino superior, reconhecida e fiscalizada pelo Ministério da Educação, tem a necessária qualificação técnica para o exercício da advocacia, nos termos do art. 48 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/96): “Os diplomas de cursos superiores reconhecidos, quando registrados, terão validade nacional como prova da formação recebida por seu titular.” No entanto, impedido de fazer a sua inscrição na OAB, sem a aprovação no Exame de Ordem, que supostamente serviria para avaliar essa mesma qualificação, o que certamente não compete à OAB, porque o art. 209 da Constituição declara que a avaliação do ensino compete ao poder público, esse bacharel fica impedido até mesmo de postular em causa própria, o que é um inominável absurdo, porque neste caso caem por terra os argumentos dos inimigos do “jus postulandi”, segundo os quais somente os advogados têm os conhecimentos técnicos necessários para a defesa de direitos perante o Judiciário – e os cartórios, as repartições administrativas, etc...
É um absurdo, portanto, que um bacharel em direito, pelo simples fato de que não esteja inscrito na OAB, porque ainda não foi aprovado no Exame de Ordem, fique impedido até mesmo de postular em causa própria.
Da mesma forma, é absurdo que esteja impedido de postular em causa própria um bacharel em direito, que tenha sido aprovado no Exame da OAB e tenha feito a sua inscrição, recebendo a sua carteira vermelha de advogado, mas depois tenha sido aprovado em um concurso para Auditor da Receita Federal, por exemplo, e tenha a sua inscrição cancelada, por esse motivo.
Da mesma forma, é absurdo – mais absurdo, ainda, se é que isso é possível -, que esteja impedido de postular, em causa própria, até mesmo para providenciar uma separação consensual em cartório, um juiz de direito de uma vara de família, ou um desembargador com mais de trinta anos de estrada, porque os dirigentes da OAB têm medo, supostamente, que ele se prejudique, por falta de conhecimentos técnicos.
Até mesmo um promotor ou um procurador de justiça, com ampla experiência na seara criminal, estarão impedidos de se defender pessoalmente em juízo, pelos mesmos “motivos” alegados pelos dirigentes da OAB!!!
Para finalizar, até mesmo um bacharel em direito, com mestrado e doutorado, que seja professor de Direito Administrativo de uma Universidade Federal – cargo efetivo, concursado, evidentemente -, e que exerça, por exemplo, ao mesmo tempo, em acumulação constitucionalmente permitida, outro cargo de provimento efetivo, privativo de bacharel em direito, e tenha a infelicidade de responder a um processo administrativo disciplinar, até mesmo esse bacharel será obrigado a contratar um advogado, supostamente para não sofrer prejuízo em seus direitos!!!
Se tudo isso não for capaz de comprovar, ainda, que a negação do “jus postulandi” tem motivações claramente corporativistas, eu não sei mais o que seria necessário.
4. Algumas opiniões favoráveis ao “jus postulandi”
Uma simples pesquisa na internet, referente à “indispensabilidade do advogado”, é capaz de revelar a existência de inúmeras opiniões contrárias ao instituto do “jus postulandi”, todas elas tentando justificar essa “indispensabilidade” pela citação do art. 133 da Constituição e alegando que, sem o advogado, as partes poderão sofrer prejuízos irreversíveis. Existem, porém, algumas opiniões favoráveis a esse instituto:
O Desembargador Antônio Álvares da Silva, em lúcido artigo que trata da questão do “jus postulandi” apenas na Justiça do Trabalho, afirma:
“Sempre achei pessoalmente que o acesso direto e o serviço de atermação deveriam existir, não só na Justiça do Trabalho, mas em todos os ramos do Judiciário. Se um cidadão bate às portas da Justiça Comum e alega rescisão de um contrato, prejuízo por ato ilícito e a guarda de um filho, é obrigação do Estado atendê-lo, caso não opte pela contratação de advogado nem procure a Defensoria Pública. O costumeiro argumento de que o processo é complexo e, por isso, não é acessível aos não especialistas é ilógico e insustentável. Se é verdade a afirmativa, então o que devemos fazer é simplificar o processo e não transferir o ônus de sua complexidade para as partes, prejudicando 80 milhões de pessoas.” (os grifos não são do original) (“Jus Postulandi”, Desembargador Antônio Álvares da Silva, Ouvidor do TRT da 3ª Região, artigo disponível na internet em: http://www.trt3.jus.br/download/artigos/pdf/19_jus_postulandi.pdf)
Para Sílvio Henrique Lemos, em artigo recente,
“É certo que sem assistência de advogado a parte fica mais vulnerável diante do oponente acompanhado de um profissional. Todavia, não é com a extinção do jus postulandi que isso será solucionado. Pelo contrário, estar-se-ia sacrificando mais um mandamento constitucional, qual seja, a garantia incondicionada de acesso à justiça. Ora, como já exposto, verdade é que há ocasiões em que mesmo o jurisdicionado optando por ingressar com sua reclamação por meio de advogado, oportunidade em que, no entender da classe, se estaria observando de forma integral o contraditório e a ampla defesa, não encontra profissional interessado em assumir o patrocínio da causa, dado o valor baixo do seu crédito. Considera-se tal conduta reprovável, ainda mais ao se levar em conta o que dispõe o preâmbulo do Código de Ética e Disciplina dos Advogados, in verbis:
O CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, ao instituir o Código de Ética e Disciplina, norteou-se por princípios que formam a consciência profissional do advogado e representam imperativos de sua conduta, tais como: [...] comportar-se, nesse mister, com independência e altivez, defendendo com o mesmo denodo humildes e poderosos; exercer a advocacia com o indispensável senso profissional, mas também com desprendimento, jamais permitindo que o anseio de ganho material sobreleve a finalidade social do seu trabalho;
Inspirado nesses postulados é que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, no uso das atribuições que lhe são conferidas pelos artigos 33 e 54, V, da Lei nº 8.906, de 04 de julho de 1994, aprova e edita este Código, exortando os advogados brasileiros à sua fiel observância (DIÁRIO DA JUSTIÇA, Seção I, do dia 01.03.95, pp. 4.000/4004, grifo nosso).
É razoável e plenamente compreensível que o advogado, profissional liberal que é, tenha total livre arbítrio sobre o seu ofício, escolhendo o patrocínio da causa que melhor lhe convier. Entretanto, o que se repreende é o teor demagógico do discurso da classe, objetivando fazer crer que a principal preocupação, ao defender o término do Jus Postulandi na Justiça Laboral, é conservar a observância integral da ampla defesa e do contraditório ao jurisdicionado, que teria, sem a faculdade do instituto, obrigatoriamente, que demandar por intermédio de advogado.” (Sílvio Henrique Lemos, O Jus Postulandi como meio de assegurar a Garantia Fundamental de Acesso à Justiça, disponível na internet em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12096)
Antônio Álvares da Silva entende que o “jus postulandi” se constitui em uma das maiores conquistas democráticas do trabalhador. Mas, se não criarem os meios necessários para concretizá-lo, segundo ele, de nada servirá a garantia constitucional de acesso a Justiça, constante no art. 5º., XXXV, da Carta Magna.
Ele ainda afirma que o argumento de que o processo é uma ciência complicada e difícil, como justificativa para extinguir o instituto do “jus postulandi”, não merece prosperar, porque:
“o acesso à justiça, como bem de toda a sociedade, é maior do que a representatividade por advogado, que é dele apenas um dos meios. Por isso não se pode inverter os papéis de ambos. Se o processo é complexo, está na hora de torná-lo simples.” (Antônio Álvares da Silva, Pequeno Tratado da Nova Competência Trabalhista, p. 417, apud Clemilton Francisco de Paiva, A Indispensabilidade do Advogado no Estado Democrático de Direito, disponível na internet em: http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=397)
Para Janete Ricken Lopes de Barros,
“A possibilidade de dispensa da presença de advogado para determinados atos pelo cidadão, sem que ocorra conflito com o citado princípio constitucional da indispensabilidade do advogado à administração da justiça, é o que ora se argumenta. A evolução dos anseios da sociedade requer a facilitação da via judiciária e a agilização da prestação jurisdicional para que se alcance a pacificação social.” (Janete Ricken Lopes de Barros, A Representação em Juízo como barreira ao acesso à Justiça, disponível na internet em: http://ojs.idp.edu.br/index.php/cadernovirtual/article/view/358/393)
O Promotor de Justiça André Luís Alves de Melo, em artigo escrito bem antes, também, dessa decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a prevalência dos tratados de direitos humanos, defende que “Principalmente em se tratando de causas patrimoniais o cidadão deve ter o direito de se dirigir diretamente ao Judiciário ou optar por estar representado por advogado. Assim, advogado é um direito e não uma limitação da cidadania.” (os grifos não são do original)
De acordo com esse autor, “É grave violação da cidadania plena e dos direitos humanos negar ao cidadão o direito de optar por se dirigir diretamente ao Judiciário. Se for comprovadamente carente e desejar ser representado por advogado, cabe ao Estado nomear um...” (Veja aqui o artigo)
Esse autor afirma, ainda, que estamos vivendo em um sistema jurídico cartorial, onde se cria dificuldades para vender facilidades e que
“criticamos os políticos que distribuem cestas para que o eleitor seja seu dependente, mas os juristas no Brasil criaram a cesta jurídica para ser distribuída à sociedade para que seja dependente de seus serviços burocráticos. Isto não significa que o serviço jurídico não seja importante, mas deve ser para casos complexos e não para administrar toda a vida do país e do cidadão. Em breve, no Brasil, estaremos fechando hospitais e escolas e deixando de construir moradias populares para construir fóruns.” (os grifos não são do original)
A respeito, é interessante a leitura, do mesmo Autor, do artigo “A judicialização do Estado Brasileiro, um caminho antidemocrático e monopolista”, disponível na internet em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2408
5. O “jus postulandi” nos países civilizados
O direito de defender pessoalmente os próprios direitos perante o Judiciário é o mais fundamental de todos, e tem sido reconhecido na maioria dos países civilizados, bem como em diversos tratados de direitos humanos.
Em seu Relatório Anual de 2.000-2.001, a Corte Federal da Austrália declarou que “continuará a desenvolver e implementar práticas e procedimentos, para garantir que os casos que lhe sejam submetidos sejam tratados com eficiência e que, em particular, a Corte terá especial consideração com os assuntos relacionados ao crescente número de litigantes “self represented” (sem advogados) e com o impacto sobre o tempo e os recursos necessários para resolver as questões nas quais eles estão envolvidos. A Corte adotará um conjunto de estratégias para lidar com essas questões e para assegurar que os direitos dos litigantes “em pessoa” não sejam afetados.” (os grifos não são do original)
No Canadá, existe um projeto oficial, destinado a garantir o acesso à justiça dos SRL – “self represented litigants” (Veja aqui)
Essa é a postura que tem sido adotada na maioria dos países civilizados, bem diferente da nossa, onde se procura restringir, de várias maneiras, com evidentes motivações corporativistas, o direito fundamental de acesso à Justiça, supostamente no intuito de proteger esse mesmo direito, evitando prejuízos aos litigantes, que assim não poderiam prescindir dos advogados, em nenhuma hipótese.
A “Common Law” há muito reconhece o direito de um litigante representar a si mesmo, em assuntos civis ou criminais. O “Bill of Rights”, de 1.689, “assegurando antigos direitos e liberdades”, já garantia a todos os súditos o direito de apresentar petições ao Rei: “That it is the right of the subjects to petition the king, and all commitments and prosecutions for such petitioning are illegal.” (Veja aqui)
Agora, mais de trezentos anos depois, muito ao contrário do que acontece no Brasil, os ingleses têm inteiramente respeitado o seu direito fundamental de postular em juízo, diretamente ao Judiciário, para defender direito próprio, sem a intervenção de advogado, como se observa pelo noticiário referente ao divórcio do ex-beatle Paul McCartney. Assim, em uma causa de 90 milhões de dólares, “Paul McCartney tem o melhor time de advogados a seu lado, enquanto a ex-modelo Heather Mills trabalha sozinha no divórcio” e “Heather Mills dispensou seus representantes e compareceu pessoalmente perante a Justiça.” Ou, então: “Heather Mills, cujo casamento com McCartney durou menos de quatro anos, afastou seus advogados e representou sua própria defesa no processo contra McCartney, cuja fortuna é estimada em 825 milhões de libras (US$ 1,6 bilhão). Estimativas da imprensa sobre quanto Mills ganhará variam de 25 milhões a aproximadamente 200 milhões de libras.” (Veja aqui o noticiário) (E também aqui)
No Brasil, infelizmente, até mesmo para uma separação consensual em cartório (!!!), o cidadão não tem outra escolha: ele tem que pagar, aproximadamente, cinco mil reais, pela simples assinatura de um advogado...
Nos Estados Unidos, também está muito difundido o “jus postulandi”, ou o que os americanos denominam “pro se representation”, a representação própria, perante os juízes e tribunais.
Uma pesquisa da American Bar Association, de 1.991, mostrou que: a) as pessoas com renda anual inferior a 50 mil dólares, mais provavelmente, utilizarão essa faculdade; b) aproximadamente 20% das pessoas que se utilizam do “pro se” dizem que poderiam pagar um advogado; c) essas pessoas, mais provavelmente, ficarão satisfeitas com os resultados do processo, do que aquelas representadas por advogados; d) quase 75% das pessoas que postularam em causa própria disseram que voltariam a fazê-lo. (Veja aqui o noticiário, nesta página destinada à orientação dos “pro se litigants”)
A Suprema Corte norte-americana, em uma decisão de 1.993, reconheceu o direito de qualquer pessoa à defesa própria, perante os tribunais, desde que essa pessoa seja mentalmente capaz. (Veja aqui a decisão: Godinez v. Moran, 509 U.S. 389)
Na sistema americano de Cortes Federais, em 2.007, aproximadamente 27% das ações ajuizadas, 92% das petições de presidiários e 10% das petições de não presidiários couberam aos “pro se litigants”.
Até mesmo no “Jornal” da American Bar Association é possível ler um artigo, recente, de novembro do ano passado, dizendo que tem aumentado o número de americanos que utilizam o “pro se”, mesmo em assuntos complexos. (Veja aqui). Aliás, a própria American Bar Association tem encorajado os Estados a adotarem mecanismos de auxílio aos “pro se litigants”, e também disponibiliza um Guia de Orientação Jurídica.
O art. 47 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia assegura que:
“Toda pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal. Toda pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma eqüitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo. É concedida assistência judiciária a quem não disponha de recursos suficientes, na medida em que essa assistência seja necessária para garantir a efetividade do acesso à justiça.” (os grifos não são do original)
No Brasil, ao contrário, todos os brasileiros são considerados incapazes, para o exercício do seu direito fundamental do “jus postulandi”, para defenderem os seus direitos, embora não sejam considerados incapazes, quando se trata de pagar tributos, ou de escolher os seus governantes. Mesmo que não queiram ou precisem, eles são obrigados a contratar advogados, e os carentes ficam inteiramente sem acesso à Justiça, por falta de quem os represente, a não ser que consigam um dos raros defensores públicos concursados, pagos pelo Estado brasileiro, ou então um dos muitos advogados, não concursados, indicados pela OAB, e pagos, também, com os nossos tributos. O melhor exemplo, nesta última hipótese, é aquele do convênio inconstitucional da OAB/SP, que dá emprego a 50 mil advogados, para a defesa dos carentes.
A esse respeito, verifica-se também a falta de transparência da Ordem dos Advogados, que não respondeu, até esta data, a um questionamento meu, de novembro de 2.007, sobre a constitucionalidade desse Convênio. (Veja aqui)
Aliás, é interessante ressaltar, neste ponto, uma inovação, que também poderá ser considerada inconstitucional, se contar com verbas públicas: a do Cadastro Nacional de Advogados, “criado” pela Resolução nº 62, do Conselho Nacional de Justiça, supostamente para “fornecer assistência judiciária gratuita às pessoas que não dispõem de recursos financeiros e para estimular os advogados a participarem de ações sociais por meio do voluntariado”. (Veja aqui)
De acordo com o Ministro Gilmar Mendes, Presidente do CNJ, cuja opinião foi citada nessa notícia, defendendo a criação do Cadastro Nacional de Advogados, é preciso oferecer defesa aos 440 mil presos do sistema carcerário brasileiro e “os interesses corporativistas das defensorias não poderiam prevalecer em detrimento dessa proposta”.
Data vênia do ilustre Ministro, eu diria também que não devem prevalecer os interesses corporativistas dos advogados, ou do Judiciário. Não é possível que se admita uma proposta dessas, que vai permitir o pagamento, com verbas públicas, de milhares de advogados, não concursados, para supostamente defenderem os direitos dos milhões de carentes que existem no Brasil. Seria mais um ralo sem fundo de dinheiro público, porque, evidentemente, os “advogados voluntários” deverão ser remunerados com verbas públicas, haja vista que o Estatuto da OAB, a Lei nº 8.906/94, determina, em seu art. 22, § 1º, que todo trabalho advocatício deve ser remunerado pelo Estado, quando o advogado é indicado para patrocinar causa de uma pessoa carente:
“Art. 22. A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência.
§ 1º O advogado, quando indicado para patrocinar causa de juridicamente necessitado, no caso de impossibilidade da Defensoria Pública no local da prestação de serviço, tem direito aos honorários fixados pelo juiz, segundo tabela organizada pelo Conselho Seccional da OAB, e pagos pelo Estado.” (os grifos não são do original)
Em defesa desse Cadastro Nacional de Advogados, “criado” pelo Conselho Nacional de Justiça, pode ser lembrado, apenas, que até mesmo nos Estados Unidos, país que costumava ser apontado como modelo de democracia e de respeito aos princípios republicanos, o corporativismo jurídico tem prevalecido. A American Bar Association, alegando as necessidades decorrentes da crise econômica, está propondo ao Governo Obama a criação de um “Serviço Jurídico”, integrado por mil advogados – eles são bem mais modestos -, pagos com verbas federais, que poderiam ajudar as famílias que perderam os seus imóveis. A proposta inicial da A.B.A. pede verbas federais para ajudar no pagamento de cerca de mil advogados, que prestarão serviços a clientes que preencham certos critérios econômicos.
O Presidente da American Bar Association, H. Thomas Wells Jr., está otimista quanto à aprovação desse projeto, tendo em vista que “Nós temos um advogado na Casa Branca – aliás dois”, porque “Michelle Obama também se graduou em Harvard, como Barack Obama”. “O Vice-Presidente também é um advogado”. (Veja aqui a notícia, no Jornal da A.B.A.)
6. A Inconstitucionalidade da EC nº 45/2.004
A Constituição de 1.988 dispõe, no parágrafo 2º do artigo 5º, que os direitos e garantias nela expressos “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Somente agora, porém, com a já referida Decisão de dezembro de 2.008, que será examinada a seguir, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconheceu que os tratados internacionais de direitos humanos devem ser respeitados pelo Brasil, tornando assim inaplicável qualquer norma que com eles conflite, no caso, a prisão civil do depositário infiel, que era permitida pela própria Constituição. Essa Decisão, ressalte-se, embora tenha afirmado que o Pacto de São José da Costa Rica tem apenas o status supralegal, permitiu, na verdade, o descumprimento da norma do inciso LXVII do art. 5º da Constituição: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.
Essa Decisão, tomada por 5 votos contra 4, revelou também a divergência de entendimento dos Ministros do Supremo, tendo sido vencida a tese do status constitucional dos tratados de direitos humanos. Um dos motivos dessa divergência, na minha opinião, é a existência da norma do § 3º do art. 5º, incluída pela Emenda Constitucional nº 45/2.004, verbis:
“§3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”
A norma do § 2º do art. 5º, acima transcrita, e esta outra, do § 3º do art. 5º da Constituição de 1.988, são claramente incompossíveis, porque a correta exegese do §2º do art. 5º permitiria a imediata inclusão dos direitos e garantias decorrentes dos tratados no rol de nossos direitos e garantias fundamentais, constantes do “catálogo” constitucional, enquanto que o § 3º exige, ainda, a aprovação dos tratados – sobre direitos humanos, especificamente -, por 3/5 de votos, em cada Casa do Congresso Nacional. Daí, certamente, a dificuldade enfrentada pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, com seus diversos votos dissidentes, até que pudessem alcançar a já mencionada Decisão histórica. Coisas da nossa Constituição analítica, uma das mais prolixas e remendadas!
Não seria infundado afirmar, mesmo, que a norma do § 3º do art. 5º da Constituição Federal, incluída pela Emenda Constitucional nº 45/2.004, é inconstitucional, por ferir cláusula pétrea, ao criar uma nova exigência, antes inexistente, restringindo assim os nossos direitos e garantias fundamentais decorrentes “dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. O § 4º do art. 60 da Constituição proíbe, recorde-se, a proposta de emenda “tendente a abolir... direitos e garantias fundamentais”.
Ora, se o § 3º, incluído pela Emenda Constitucional nº 45/2.004, exige a aprovação dos tratados sobre direitos humanos por 3/5 de votos, é evidente que essa norma é inconstitucional. Ela incide, sem dúvida, na proibição do § 4º do art. 60 da Constituição, porque é uma norma tendente a abolir os nossos direitos e garantias fundamentais.
7. A jurisprudência anterior do Supremo Tribunal Federal
Desde 1.977, quando julgou o Recurso Extraordinário nº 80.004-SE, o Supremo Tribunal Federal firmou jurisprudência no sentido de que, ocorrendo um conflito entre as normas de um tratado e as de uma lei posterior, deveria sempre prevalecer a vontade do Congresso, mesmo que isso importasse em afronta a um compromisso internacional. Tal entendimento resultava da idêntica hierarquia atribuída aos tratados e às leis internas, o que era considerado, por uma expressiva parcela da doutrina, como um posicionamento retrógrado, devido ao entendimento de que aos tratados internacionais de direitos humanos deve ser atribuída supremacia, em face da própria Constituição Federal.
Aliás, esse entendimento do Supremo Tribunal Federal, permitindo que uma lei posterior revogasse as normas de um tratado, conflitava com o art. 27 da Convenção de Viena, que outorga prioridade ao direito internacional. Dessa maneira, nenhum Estado poderia invocar dispositivos de ordem interna como pretexto para o descumprimento dos acordos internacionais.
Na verdade, no que tange aos tratados de direitos humanos, não se trata de uma verdadeira supremacia sobre a Constituição Federal, porque esses tratados integram, pela via do § 2o do art. 5o, o núcleo de nosso ordenamento constitucional, aliás imutável, por força da norma inserta no § 4o do art. 60, já referida, fazendo parte das “cláusulas pétreas”. A dignidade humana, erigida em princípio fundamental, determina a diretriz sistêmica de nosso ordenamento e impõe a sua correta exegese, no sentido de que esses tratados integram a nossa Lei Fundamental e dela são indissociáveis. A dignidade humana preexiste aos Estados e aos tratados internacionais. Não se trata, portanto, de conflito entre Constituição e tratados.
Na minha opinião, portanto – e na do Ministro Celso de Mello - os direitos e garantias fundamentais que ingressam em nosso ordenamento pela via do § 2º do art. 5º da Constituição Federal têm hierarquia constitucional, porque na verdade os assim chamados direitos humanos são preexistentes ao próprio Estado e têm aplicabilidade imediata e direta, porque prescindem de sua internalização, uma vez que estão estruturados em uma esfera prévia, de supralegalidade.
Essa é a opinião, também, de ALEXANDRE MORAIS DA ROSA:
“Todavia, por ter o constituinte originário explicitado que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata” (CF, art. 5º, § 1º) e que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes ... dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (CF, art. 5º, § 2º), bem assim a “prevalência dos Direitos Humanos” (CF, art. 4º, II), possível a defesa da desnecessidade de manifestação ulterior pelo legislador ordinário sobre a conveniência do acolhimento das normas internacionais, justamente pela prévia autorização de aderência declarada pelo constituinte originário no tocante aos Direitos Humanos, particularmente.
Caso aceita a tese da exclusão, o Brasil defenderia internacionalmente Direitos constantes nesses diplomas legais e negaria aplicabilidade interna, em flagrante vilipêndio ao princípio de tratamento isonômico. Tal situação não se concilia perante a concepção de prevalência dos Direitos Humanos e com as diretrizes constitucionais presentes na Carta de 1988, como normas indisponíveis dos indivíduos.” (ROSA, Alexandre Morais da. Garantismo Jurídico e Controle da Constitucionalidade Material, Florianópolis: Habitus, 2.002, p. 94)
8. A Decisão do Supremo Tribunal Federal
Em março de 2.008, apesar da existência da norma do inciso LXVII do art. 5º da Constituição: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”, o Ministro Celso de Mello já havia votado pela inconstitucionalidade da prisão civil do depositário infiel – no julgamento dos Recursos Extraordinários nºs 349.703 e 466.343, e no Habeas Corpus nº 87.585, tendo em vista a proibição constante de diversos tratados de direitos humanos, ratificados pelo Brasil (Veja a íntegra do voto).
No entendimento desse Ministro, os tratados que versem sobre direitos humanos, dos quais o Brasil seja signatário, integram o ordenamento jurídico como norma de nível constitucional. O Ministro Celso de Mello, em seu voto, disse que a Constituição Federal determina, em seu art. 4º, inciso II, a prevalência dos direitos humanos sobre qualquer outra norma. Dessa forma, os tratados de direitos humanos, mesmo os anteriores à Emenda Constitucional nº 45, de 30.12.2004, são normas de nível constitucional. O Ministro também ressaltou que outros dois dispositivos constitucionais se referem à valorização dos direitos humanos no plano constitucional, o § 2º do art. 5º, que determina que os direitos reconhecidos pela Constituição não excluem outros, provenientes dos tratados internacionais, e o § 3º do mesmo artigo, que equipara os tratados às emendas constitucionais, desde que observado o procedimento para a sua aprovação, acrescentado pela Emenda Constitucional nº 45.
Neste ponto, evidentemente, do §3º, estaria a inconstitucionalidade, já referida, no meu entendimento, porque não seria possível que, a partir da entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45/2.004, ocorresse uma restrição, no tocante à prevalência dos tratados de direitos humanos.
Em outubro de 2.008, no julgamento do Habeas Corpus nº 88.240-4-SP (Veja aqui o Acórdão), a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu que:
"Há o caráter especial do Pacto Internacional dos Direitos Civis Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ratificados, sem reserva, pelo Brasil, no ano de 1992. A esses diplomas internacionais sobre direitos humanos é reservado o lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação." (Os grifos não são do original)
Em dezembro de 2.008, finalmente, no julgamento do Habeas Corpus nº 87.585-TO, desta vez o Pleno do Supremo Tribunal Federal reconheceu a prevalência dos tratados de direitos humanos. Por cinco votos a quatro, prevaleceu o entendimento de que esses tratados têm valor supralegal, contra a tese do Ministro Celso de Mello, que lhes atribuía nível constitucional. (Veja o Voto do Ministro Celso de Mello)
De acordo com o Noticiário do Supremo Tribunal Federal,
“Em conclusão de julgamento, o Tribunal concedeu habeas corpus em que se questionava a legitimidade da ordem de prisão, por 60 dias, decretada em desfavor do paciente que, intimado a entregar o bem do qual depositário, não adimplira a obrigação contratual — v. Informativos 471, 477 e 498. Entendeu-se que a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (art. 7º, 7), conduz à inexistência de balizas visando à eficácia do que previsto no art. 5º, LXVII, da CF (“não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;”). Concluiu-se, assim, que, com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel. Prevaleceu, no julgamento, por fim, a tese do status de supralegalidade da referida Convenção, inicialmente defendida pelo Min. Gilmar Mendes no julgamento do RE 466343/SP, abaixo relatado. Vencidos, no ponto, os Ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Eros Grau, que a ela davam a qualificação constitucional, perfilhando o entendimento expendido pelo primeiro no voto que proferira nesse recurso. O Min. Marco Aurélio, relativamente a essa questão, se absteve de pronunciamento.” HC 87585/TO, rel. Min. Marco Aurélio, 3.12.2008. (HC-87585) (Os grifos não são do original)
O que estava sendo discutido pelo Supremo Tribunal Federal, especificamente, era a questão da prisão civil por dívida, proibida pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, mas acontece que esse Pacto, além de dispor a respeito da prisão civil por dívida, também garante a qualquer pessoa o “jus postulandi”, em relação a “qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”
O Pacto de São José da Costa Rica, de 1.969, ratificado em 1.992 (Veja aqui o Decreto que promulgou o Pacto), deveria estar efetivamente em vigor, no Brasil, desde novembro de 1.992. Somente agora, porém, nessa Decisão histórica, de dezembro de 2.008, o Supremo Tribunal Federal decidiu reconhecer a sua prevalência, em relação às normas infraconstitucionais.
De acordo com o art. 8º desse Pacto, (Veja aqui a íntegra do Pacto)
“1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. (os grifos não são do original)
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou tribunal;
b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;
c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa;
d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor; (os grifos não são do original)
e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei; (os grifos não são do original)
f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;
g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e
h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.
3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.
4. O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.
5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça.
Portanto, em decorrência dessa Decisão de dezembro de 2.008, do Supremo Tribunal Federal, que atirou no que viu, mas acertou no que talvez não quisesse, é inaplicável a norma do art. 1º do Estatuto da OAB, que considera como atividade privativa da advocacia a postulação ao Judiciário. Esse artigo está inapelavelmente revogado, na minha opinião, e todo brasileiro deverá ter reconhecido, agora, o seu direito de postular, pessoalmente, perante qualquer órgão do Poder Judiciário, em defesa de seus direitos, nos termos do art. 8º do Pacto de São José da Costa Rica.
A contratação de um advogado, para a postulação perante qualquer juiz ou tribunal – e com mais razão, ainda, no processo administrativo disciplinar, na Justiça desportiva ou perante os Cartórios -, >é agora um direito, e não uma obrigação, porque o próprio Pacto de São José da Costa Rica assim dispõe, em seu art. 8º.
9. Considerações Finais
9.1. O ‘jus postulandi” é um direito fundamental, resguardado como cláusula pétrea pela Constituição de 1.988, e reconhecido pelas nações civilizadas, embora quase totalmente negado aos jurisdicionados brasileiros.
9.2. O “jus postulandi” deve ser reconhecido como essencial para garantir a efetividade de outro direito fundamental, o direito de amplo acesso à Justiça. Sem isso, todos os outros direitos poderão ser facilmente negados ao jurisdicionado brasileiro.
9.3. Os direitos fundamentais do povo não podem continuar sofrendo restrições, apenas para atender aos interesses corporativos da classe jurídica.
9.4. A contratação de um advogado, para que seja garantida a ampla defesa do jurisdicionado, deve ser um direito e não uma obrigação.
9.5. Se o jurisdicionado não puder pagar os serviços profissionais de um advogado, caberá ao Estado indicar um defensor público, concursado, para a defesa dos seus direitos.
9.6. A defesa dos carentes através de advogados dativos, não concursados, ou como no caso dos convênios da OAB e do Cadastro Nacional de Advogados, “criado” pelo CNJ, atenta contra os princípios constitucionais da igualdade, da moralidade, da eficiência e do concurso público.
9.7. É preciso criar os meios necessários para que se torne efetivo o “jus postulandi”, assegurando-se dessa maneira que não sejam prejudicados os direitos dos litigantes que preferirem postular em causa própria.
9.8. É preciso modernizar o Judiciário, reduzir a burocracia e simplificar o processo.
9.9. É preciso tornar efetiva a garantia constitucional de acesso à Justiça, que não se pode mais aceitar que sofra quaisquer restrições, com evidentes motivações corporativistas.
Os créditos deste artigo vão para o colega Antonio Vinicius, bacharel em Direito, de João Pessoa, na Paraíba, e membro do MNBD - Movimento Nacional de Bacharéis em Direito, que tem o objetivo de extinguir o inconstitucional Exame de Ordem da OAB, e que foi o primeiro a compreender (mensagem enviada em 15.12.2008) as implicações dessa Decisão do Supremo Tribunal Federal em relação ao direito fundamental do “jus postulandi”.
Advogado, corretor de imóveis, jornalista, professor de Direito Constitucional da UNAMA, assessor de procurador no Ministério Público do Estado do Pará. Constato: [email protected]. Site: www.profpito.com
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Fernando Machado da Silva. O Supremo Tribunal Federal e o "Jus Postulandi". A contratação do advogado é um direito, e não uma obrigação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 mar 2009, 09:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/16959/o-supremo-tribunal-federal-e-o-quot-jus-postulandi-quot-a-contratacao-do-advogado-e-um-direito-e-nao-uma-obrigacao. Acesso em: 22 nov 2024.
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