Dentre os personagens que transitam na atuação estatal relacionada à violência, é patente o esquecimento a que são relegados os policiais, particularmente os estaduais. A questão é preocupante, pois nossas taxas de violência sobem assustadoramente e a sociedade sempre lidará com o crime, mesmo que com índices mais aceitáveis que os atuais. Enquanto a ONU relata que a região metropolitana de São Paulo concentra 1% dos homicídios no mundo[1], embora só tenha 0,17% da população do planeta, Salvador, no mesmo caminho, apresentou, até 13 de setembro de 2007, cerca de 870 assassinatos[2], com relatos de até 9 homicídios em apenas 12 horas[3]. Por outro lado, o Canadá inteiro reporta 605 homicídios em um ano[4]!
Deixando de lado a questão social, políticas governamentais e as demais causas que influenciam nos índices de violência, atenho-me ao abandono de nossas forças policiais. No exercício da magistratura desenvolvi boas amizades nas corporações policiais e ouço relatos de entristecer, principalmente, nas idas e vindas entre comarcas, quando dou caronas a policiais na estrada.
Um soldado da Policia Militar em uma cidade do interior da Bahia ganha em torno de R$ 1.300,00 por mês, isto por conta de gratificações, já que o vencimento básico – soldo – situa-se na faixa de R$ 380,00. Sai de manhã de sua casa, normalmente modesta, deixando a família com o básico para sobreviver. Terá de entrar de graça no ônibus – para diminuir a despesa -, o que é permitido até o limite de dois policiais, salvo “colaboração” do motorista. De ônibus, irá até os limites da cidade onde mora e tentará conseguir uma carona até o Município onde exerce sua atividade, pois o policial usualmente mora em um local e trabalha em outro, já que ao ser aprovado em um concurso pode ser designado para qualquer local do estado. É rara, para não dizer inexistente, segundo os policiais, a reciclagem nas táticas policiais e prática de tiro. Aliás, os recrutas reclamam que atiram poucas vezes durante o período de treinamento. O policial militar ainda é obrigado a usar uniforme. Sempre me pergunto por que um Estado tão quente exige um uniforme com duas camisas e um sapato – coturno, no jargão profissional – tão desconfortável: além de esquentar de forma insuportável, dificulta correr. Muitos policiais complementam suas atividades com outros serviços, normalmente como vigilantes, ainda que trabalhem como policiais em turnos de 24hs, com folga de 72hs.
A situação não é diferente entre os delegados, que recebem na Bahia, no início de carreira, vencimentos em torno de R$ 3.700,00 por mês, dento de uma intricada malha de gratificações que normalmente desaparecem na aposentadoria, subsistindo apenas o vencimento básico em torno de R$ 1.500,00. A delegacia no interior tem geralmente um agente em cada turno de trabalho e não dispõe de mais servidores do quadro, que são substituídos por servidores da Prefeitura Municipal. Os delegados recebem regularmente uma ajuda de custo da Prefeitura para pagamento de despesas, sem falar na gasolina das viaturas, com base em um convênio mantido com a Secretaria de Segurança Pública. O serviço de investigações é normalmente complementado ou efetivado por policiais militares do serviço reservado, já que não existem investigadores. O carcereiro também é servidor municipal e o delegado sequer pode contar com apoio pericial rápido: poucos são os profissionais peritos espalhados no Estado e as delegacias normalmente não contam com materiais de apoio para coletas de provas, como máquinas fotográficas, por exemplo.
Tanto os policiais como os delegados ficam ao alvedrio das pressões funcionais, já que não dispõem de inamovibilidade, podendo sofrer remanejamentos para locais diversos a qualquer momento. Existe, ainda, a nebulosa distribuição dos profissionais entre as cidades do Estado. Todos sabem quão diferente é trabalhar em uma cidade com 12mil habitantes e outra com 100mil.
Os atos descritos repetem-se em outros Estados e o conjunto relatado – baixos salários + péssimas condições + crescimento profissional dificultado – ocasiona uma desmotivação em profissionais de extrema importância no combate ao crime, tornando-os presas fáceis da corrupção – em nível ainda baixo, felizmente, mesmo diante das condições relatadas - e confirmando o adágio de que quando a fome bate na porta, a honra sai pela janela.
A sociedade parece esquecer que é o policial que trava o primeiro contato com o criminoso e com as provas que servirão para sua condenação. A regra hoje é encarar a exceção – profissionais bandidos – como a regra. Não se vê movimentos ou organizações voltadas para o aumento das condições dignas de trabalho destes profissionais, mas todos exigem um padrão de primeiro mundo quando nos deparamos com a face fria e cruel do crime ou quando precisamos do serviço policial. Se a sociedade quer um corpo de profissionais eficientes, educados e estimulados para o combate ao crime, deve lhe dar salário digno, formação científica e regras rígidas para punição de desvios. Não se alegue o lugar comum de que existem outras profissões com baixos salários. O crescimento da criminalidade inviabilizará mais cedo ou mais tarde o funcionamento normal da sociedade, sendo até mesmo um dos incrementos da distinção entre as pessoas pelo dinheiro que possuem: os ricos podem sempre contratar segurança privada e os pobres só contam com a força policial estatal.
Os governos trilham caminhos semelhantes, elaborando planos mirabolantes com resultados incertos previstos para longo prazo, enquanto a criminalidade desenvolve suas entranhas de tal forma que o crime tipificado de hoje é a conduta socialmente aceita amanhã por falta de condições de repressão e não por política criminal. A situação do aparato estatal, contudo, é sempre relegada. A cada gestão surgem projetos novos, abandonados na seguinte, elaborados, normalmente, no silêncio das repartições e objetivando a pirotecnia política e a ocupação da mídia. O governo não ataca sequer o problema da subnotificação dos crimes e todos conhecem alguém que sofreu um crime e não se deu ao trabalho de comparecer a uma delegacia. A população, então, diante da alta de crimes em determinado local e horário, o que faz? Muda seus hábitos, muitas vezes orientadas pelo próprio aparato estatal, incapaz de garantir a segurança.
Os policiais e delegados, no meio deste tiroteio, não são apoiados nem pela sociedade a quem precisam proteger, nem pelo Estado que deveria valorizá-los. Parece que o Estado precisa da ação da sociedade e esta espera um ato estatal. Espero que não se repita a situação do provérbio antigo: cachorro que tem dois donos, morre de fome.
Novembro de 2007
Josemar Dias Cerqueira
Juiz de Direito de Rio Real/Ba
Especialista em Ciências Criminais
Co-autor do livro “Princípios Penais Constitucionais” – Editora JusPodivm
[email protected]
Notas:
[1] http://www.un.org/av/radio/portuguese/story.asp?NewsID=4090
[2] http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=3834&Itemid=1
[3] http://www.atarde.com.br/cidades/noticia.jsf?id=795874
[4] http://www.thestar.com/article/267792
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