Ao definir o vício da simulação, Maria Helena Diniz[1]afirma que se trata de uma declaração enganosa da vontade que visa produzir efeito diverso do ostensivamente indicado, iludindo-se terceiro através de uma falsa aparência, que acoberta a verdadeira feição do negócio jurídico.
Nota-se, na simulação, uma conformação da vontade das partes do negócio com o escopo de prejudicar terceiro que ignora a real situação[2]. Como ensina Alberto Trabucchi[3], “la verdadera situación resulta de la declaración reservada entre las partes que se emitió al momento de concluirse el negocio aparente”.
Os negócios simulados inegavelmente são bastante frequentes na prática, vezes intencionando contornar uma proibição oriunda de norma inderrogável pela vontade das partes, ora no intuito de se esquivar de gravames fiscais, fraudar credores etc[4].
Deve-se frisar, nesta oportunidade, que a simulação não implica necessariamente numa fraude. Conforme afirma Emilio Betti[5], trata-se “de duas qualificações heterogêneas, dependentes de dois aspectos diversos, sob os quais o negócio pode ser considerado. A fraude, e de uma maneira geral a ilicitude, exprime uma qualificação do interesse que determina em concreto a celebração do negócio (§ 9º), apreciado em conexão com a causa típica. A simulação, pelo contrário, exprime, simplesmente, uma divergência, ou uma repugnância, entre aquele interesse e a causa”.
Entre as características da simulação, Maria Helena Diniz[6] enumera: a) falsa declaração bilateral da vontade; b) vontade exteriorizada que diverge da interna ou real, não correspondendo à intenção das partes; c) acerto com a outra parte, sendo, portanto, intencional o desacordo entre a vontade interna e a declarada; d) objetivo de iludir terceiro.
Embora na simulação se observe uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada, não se trata de vício de consentimento porque o agente tem a percepção do resultado que a vontade procura realizar. Mas existe no negócio simulado um defeito a doutrina classifica como vício social, pela ausência de conformidade entre a declaração de vontade e a ordem legal, em razão do resultado daquela ou da técnica de sua realização[7].
Aliás, segundo ponderam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho[8] “trata-se, pois, de um vício social, que, mais do que qualquer outro defeito, revela a frieza de ânimo e pouco respeito ao ordenamento jurídico”.
Quanto à natureza do engano, como ensina Silvio Rodrigues[9], ou conforme o conteúdo, como prefere Orlando Gomes[10], a simulação se classifica em absoluta ou relativa.
De acordo com Arnoldo Wald[11], a simulação é absoluta “quando as partes não pretendem praticar, na realidade, ato jurídico algum e o ato simulado não encobre a realização de qualquer outro”. Como exemplo de simulação absoluta, o citado autor cita a venda simulada, em que o vendedor transfere ficticiamente a coisa, no intuito de evitar que esta seja objeto de penhora por parte dos seus credores.
Por outro lado, a simulação relativa, também conhecida como dissimulação, ocorre quando, a par do contrato simulado, existe um pacto dissimulado, que o primeiro visa ocultar. Orlando Gomes[12] ressalta que “na simulação relativa há dois contratos: um aparente e outro real que é escondido do terceiro. O contrato verdadeiro que diverge, no seu conteúdo, do contrato aparente, é, como diz Messineo, a verdadeira meta das partes. De regra, o contrato dissimulado se formaliza num instrumento de ressalva”.
Como afirma Emilio Betti[13], existe um nexo de contemporaneidade e contextualidade entre o negócio simulado e o dissimulado. Nas palavras desse autor, “dizer que o ato simulado possui, sem ser sincero, toda a realidade da sua mentira, a qual pode ter, por si mesma, eficácia jurídica, significa desconhecer que a falta de sinceridade recai, precisamente, sobre a causa, considerada em si mesma, ou em certas manifestações concretas, e esquecer que a analogia da simulação com a “mentira”, isto é, com o pretexto, está na função de justificar ou tornar possível, um comportamento que de outra maneira não seria admissível”.
A simulação relativa se subdivide em subjetiva ou objetiva. No primeiro caso, tem-se como foco os participantes do negócio, sendo que a pessoa que figura no negócio não é a mesma que deverá se beneficiar do seu resultado. Como lembra Orlando Gomes[14], o sujeito aparente nesses casos se denomina de “testa-de-ferro” ou “homem de palha”. Trata-se do que a doutrina classifica como interposição de pessoa.
Já na simulação relativa objetiva, o enfoque está na natureza, no objeto ou em um dos elementos do contrato. A natureza do negócio é mascarada quando, ostentando uma venda, na verdade as partes realizam uma doação. O objeto será dissimulado quando, declarando vender um bem, a verdadeira venda ocorre sobre coisa diversa. Já a adulteração de elemento do contrato se observa, por exemplo, nos casos de alteração da data da celebração do pacto.
O ponto comum entre simulação e dissimulação, segundo Washington de Barros Monteiro[15], é que “em ambas, o agente quer o engano; na simulação, quer enganar sobre a existência de situação não verdadeira, na dissimulação, sobre a inexistência de situação real. Se a simulação é um fantasma, a dissimulação é uma máscara”.
Pondera Maria Helena Diniz[16], entretanto, que “não há que confundir a simulaçãodissimulação. A simulação absoluta provoca falsa crença num estado não real, quer enganar sobre a existência de uma situação não verdadeira, tornando nulo o negócio (CC, art. 167, 1ª parte). Procura, portanto, aparentar o que não existe. A dissimulação (simulação relativa) oculta ao conhecimento de outrem uma situação existente, pretendendo, portanto, incutir no espírito de alguém a inexistência de uma situação real e no negócio jurídico subsistirá o que se dissimulou se válido for na substância e na forma (CC, art. 167, 2ª parte)”. com a
Sobre a questão dos efeitos da simulação, inclusive no direito comparado, não se pode olvidar a lição de Emilio Betti[17], para quem, “na fenomenologia do direito, um estudo comparativo dos diversos sistemas sugere e confirma o seguinte critério. Dada uma sociedade historicamente determinada, quanto maior sinceridade e clareza se costumar exigir nas relações sociais, tanto menor será a propensão para atribuir relevância social e jurídica a uma intenção propositalmente oculta ou não manifestada de maneira sincera e adequada. Vice-versa, quanto mais tão manifestada de maneira sincera e adequada. Vice-versa, quanto mais tolerante e elástica é, nas relações sociais, a exigência da recognoscibilidade, unida ao dever de calar claro, quanto mais propenso é o costume social a considerar norma de ‘boa educação’ velar a expressão do próprio pensamento, tanto mais propenso será o direito a ter em contra um afastamento entre a intenção e a sua manifestação exterior: e tanto mais ele será propenso a admitir a relevância de propósitos, ainda que manifestados por forma indireta, e de motivos que mal tenham ultrapassado o limiar do foro interior; e será indulgente no tratamento de certas reticências e formas de inércia mental. Um tal modo de ver leva, naturalmente, a tratar a simulação, não como um vício do negócio, mas como uma forma de linguagem de calão, na qual o que deve ter valor social e jurídico entre as partes, não é o sinal adotado, mas, simplesmente, a alusão nele contida. Ela leva, portanto, em substância, a negar qualquer razão para distinguir entre negócio simulado e negócio indireto ou fiduciário, e torna propriamente improponível um problema de simulação. Se não estamos em erro, é precisamente este o ponto de vista do direito inglês, que não conhece o problema da simulação, nem admite qualquer diferença entre negócio simulado e negócio simulado e negócio fiduciário ou negócio indireto, e, em correlação psicológica com tal atitude, considera perfeitamente lícita a reticência (non disclosure) numa série de situações, nas quais os direitos continentais europeus a consideram como uma incorreção, e vice-versa reconhecem como relevante o erro acerca de motivos meramente individuais, dificilmente reconhecíveis, e atribuem eficácia à chamada condição implícita”.
Como lembra Caio Mário da Silva Pereira[18], antes do Código Civil atual, o ordenamento jurídico brasileiro tratava a simulação como defeito do negócio ligado ao interesse das partes, gerando, portanto, simples anulabilidade. Na nova ordem, todavia, por influência do direito alemão (BGB, § 117), a simulação foi consagrada à causa de nulidade do negócio.
Nesse sentido, o art. 167, do Código Civil brasileiro, dispõe que: “é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”.
Enumerando as conseqüências da alteração legislativa susomencionada, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery[19] asseveram que a questão da simulação passou a ser de ordem pública, de interesse social. Isso implica dizer que a simulação: a) independe de ação judicial para ser reconhecida; b) pode ser alegada como objeção de direito material (defesa) e deve ser reconhecida de ofício pelo juiz (CC, 168 par. ún.), a qualquer tempo e grau ordinário de jurisdição; c) é insuscetível de confirmação pelas partes (CC 172) ou de convalidação pelo decurso do tempo (CC 169); e d) tem os efeitos do seu reconhecimento retroativos à data da realização do negócio jurídico simulado (eficácia ex tunc).
No caso da simulação relativa, entretanto, o Código Civil, no seu citado art. 167, determina que o negócio dissimulado subsiste, se lícito. Nesse sentido Roberto de Ruggiero[20] ressalva que “isto desde que no negócio simulado se contenham todos os elementos substanciais e formais que são necessários para a existência do dissimulado (assim: uma venda simulada para mascarar uma doação, o que nasce é a doação, desde que seja lícita uma doação entre as partes), se tenha observado a formalidade da escritura pública etc)”.
Em resumo, como ensina Alberto Trabucchi[21], “entre las partes es de aplicación la regla de que produce efectos lo realmente querido: plus valet quod agitur quam quod simulate concipitur (v. art.. 1.414). Por tanto, si la simulación es absoluta, él negocio carecerá de efectos inter partes; si la simulación es relativa, tendrá valor jurídico el negocio disimulado, siempre que contenga los requisitos esenciales y formales establecidos por La ley”. Frise-se que, embora o referido autor se refira a artigo do Código Civil italiano, o mesmo regime foi adotado no Código Civil Brasileiro.
Faz-se mister, ainda, destacar que simulação e dissimulação, além da ótica dos efeitos entre as partes, acima elucidados, devem ser analisados quanto aos efeitos que produzem perante terceiros.
Como bem aduz Alberto Trabucchi[22], perante terceiros, os participantes do negócio não poderão invocar a simulação para escusar-se de cumprir suas obrigações, pois os terceiros não podem ser prejudicados nessas hipóteses.
É nesse sentido que o Código Civil brasileiro determina, em seu art. 167, § 2º, que “ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado”.
Manifestando sua opinio sobre as alterações em matéria de simulação patrocinadas pelo atual Código Civil, Caio Mário da Silva Pereira[23] afirma: “melhor seria que o Código de 2002 mantivesse a doutrina consagrada no de 1916 e mantida no meu Projeto de 1965. Assim procedesse, e evitaria a incongruência de catalogar como nulo o negócio simulado, ressalvando entretanto o negócio dissimulado (art. 167, caput), bem como os direitos dos terceiros de boa-fé (art. 167. § 2º). Aliás, o parágrafo segundo é bom subsídio para sustentar que só simuladores fraudulentos não têm a ação de anular o negócio jurídico simulado, tendo em vista que mesmo os terceiros somente terão ressalvados os seus direitos se estiverem de boa-fé, em face dos participantes do negócio jurídico simulado”.
Bibliografia.
BETTI, Emilio. Teoria geral do negócio jurídico. Campinas/SP: Servanda Editora, 2008.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral do direito civil. 22 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, vol. 1, 2005.
GAGLIANO, Pablo Stolze; e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: parte geral. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002.
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: parte geral. 39 ed. rev. e atual. São Paulo; Saraiva, Vol. 1, 2003.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: introdução ao direito civil. 20 ed. Rio de Janeiro: Forense, Vol. I, 2004.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte geral. 32 ed. atual. São Paulo: Saraiva, vol. 1, 2002.
RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. Campinas/SP: Bookseller, vol. 1, 1999, p. 328.
TRABUCCHI, Alberto. Instituciones de derecho civil. Parte general. Negocio jurídico. Familia. Empresas y Sociedades. Derechos reales. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1967.
WALD, Arnoldo. Direito civil: introdução e parte geral. 9 ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002.
[1] Maria Helena Diniz, Curso de direito civil brasileiro: teoria geral do direito civil, 22 ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, vol. 1, 2005, p. 458.
[2] Maria Helena Diniz, Curso..., cit., p. 459. No mesmo sentido, Roberto de Ruggiero, Instituições de direito civil, Campinas/SP: Bookseller, vol. 1, 1999, p. 328.
[3] Alberto Trabucchi, Instituciones de derecho civil. Parte general. Negocio jurídico. Familia. Empresas y Sociedades. Derechos reales, Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1967, p. 162.
[4] Alberto Trabucchi, Instituciones..., cit., p. 163. Vide Roberto de Ruggiero, Instituições..., cit., p. 328.
[5] Emilio Betti, Teoria geral do negócio jurídico, Campinas/SP: Servanda Editora, 2008, p. 568.
[6] Maria Helena Diniz, Curso..., cit., p. 459.
[7] Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil: introdução ao direito civil, 20 ed., Rio de Janeiro: Forense, Vol. I, 2004, p. 535.
[8] Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Novo curso de direito civil: parte geral, 2 ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 381.
[9] Silvio Rodrigues, Direito Civil: parte geral, 32 ed. atual., São Paulo: Saraiva, vol. 1, 2002, p. 297.
[10] Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil, 13 ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 428.
[11] Arnoldo Wald, Direito civil: introdução e parte geral, 9 ed. rev., ampl. e atual., São Paulo: Saraiva, 2002, p.206.
[12] Orlando Gomes, Introdução..., cit., p. 428-429.
[13] Emilio Betti, Teoria..., cit., p. 570-571.
[14] Orlando Gomes, Introdução..., cit., p. 429.
[15] Washington de Barros Monteiro, Curso de direito civil: parte geral, 39 ed. rev. e atual., São Paulo; Saraiva, Vol. 1, 2003, p. 254.
[16] Maria Helena Diniz, Curso..., cit., p. 459.
[17] Emilio Betti, Teoria..., cit., p. 565-566.
[18] Caio Mário da Silva Pereira, Instituições..., cit., p. 535.
[19] Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, Código Civil comentado, 3 ed. rev. e ampl., São Paulo: RT, 2005, p. 258.
[20] Roberto de Ruggiero, Instituições... cit., p. 332.
[21] Alberto Trabucchi, Instituciones..., cit., p. 163.
[22] Alberto Trabucchi, Instituciones..., cit., p. 163.
[23] Caio Mário da Silva Pereira, Instituições..., cit., p. 639.
Advogada, doutoranda em direito civil comparado pela PUC/SP. E-mail: [email protected]. Site pessoal: www.nbsadvogados.com.br.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTIAGO, Mariana Ribeiro. Simulação e dissimulação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 jun 2010, 01:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/19970/simulacao-e-dissimulacao. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Heitor José Fidelis Almeida de Souza
Por: STJ - Superior Tribunal de Justiça BRASIL
Por: STJ - Superior Tribunal de Justiça BRASIL
Por: Conteúdo Jurídico
Por: STJ - Superior Tribunal de Justiça BRASIL
Precisa estar logado para fazer comentários.