A Constituição Federal de 1988 acarretou rigidez e formalismo demasiadamente burocrático. Imprescindível ressaltar, que tão somente a partir da década de 90, certamente com o advento da abertura da economia brasileira, que a administração da concorrência e a proteção dos mercados legaram importância jurídica e econômica.
O desenvolvimento da economia e a mudança de paradigma da atuação estatal frente ao mercado impuseram uma revolução na forma do Estado lidar com a economia. Crises econômicas recorrentes e a incapacidade do Estado figurar como principal ator no cenário econômico fizeram com que novos modelos de desenvolvimento e de intervenção do Estado na economia fossem repensados. A figura do Estado-empresário foi relegada a segundo plano e aos particulares foi atribuída a função de atuar no mercado, ficando reservada ao Estado a posição tão somente de agente normativo e regulador da atividade econômica. Nesse embalo, serviços públicos essenciais também foram transferidos à iniciativa privada, dada a reconhecida ineficiência do Estado na prestação dos mesmos. Por meio do Programa Nacional de Desestatização, setores estratégicos foram transferidos aos particulares por meio das concessões. Serviços como de telefonia, eletricidade, exploração do petróleo, dentre outros, agora não constituem mais monopólio estatal.
A concorrência, própria da iniciativa privada, que deve conduzir à busca permanente pela melhoria dos serviços prestados, foi determinante para a mudança de postura e estratégias do Estado em relação aos serviços públicos até então conservados sob sua exclusiva atuação. Contudo, o Estado não abriu mão do seu poder fiscalizador e regulamentar.
Aliás, foi nesse contexto que o art. 174 da Constituição Federal previu que o Estado como agente normativo e regulador da atividade econômica exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
A professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em passagem de trabalho especifico sobre o tema menciona que,
a idéia se reforça com a norma do art.174 que, ao falar no papel do Estado como agente normativo e regulador da atividade econômica, designa a intenção de reduzir o papel do Estado como agente prestador de serviços, que atua diretamente na ordem econômica (intervenção direta), e, paralelamente, realçar o seu papel de Estado regulador, que se limita a disciplinar, fiscalizar, reprimir a atividade econômica exercida pelo particular (intervenção indireta). O objetivo é que o Estado reduza a chamada intervenção direta exercida por meio de empresas estatais que atuam no domínio econômico, limitando-a às hipóteses previstas no art. 173, e acentue a intervenção indireta, que corresponde, em grande parte, ao poder de polícia exercido na área econômica. O Objetivo fundamental seria o de corrigir as deficiências do mercado e proteger o consumidor. (Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Omissões na Atividade Regulatória e Responsabilidade Civil das Agências Reguladoras. In. FREITAS, Juarez. (org). Responsabilidade Civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006).
Verifica-se, então, que o dispositivo constitucional trouxe as premissas da nova função que o Estado deveria assumir como regulador da atividade econômica. Essa nova linha de atuação estratégica do Estado na economia materializou-se, ainda na década de 90, com o chamado “programa nacional de desestatização”.
Esse programa, também conhecido como “privatização” foi institucionalizado pela lei 9.491/97 que, por sua vez, revogou outra lei que tinha o mesmo propósito, a lei 8.031/90. Pelo programa de desestatização, algumas atividades até então exercidas com exclusividade pelo Estado, foram transferidas a particulares, contudo, por se tratar de serviços, de certo ponto, fundamentais para o desenvolvimento nacional ou de primeira necessidade para a população, não era possível entregá-los integralmente à iniciativa privada. A lei não descuidou de manter nas mãos do Estado o controle de tais atividades.
A novidade que se trouxe é que, anteriormente, essas atividades eram prestadas pelo próprio Estado, através de entes próprios e específicos, e o controle era feito dentro da própria estrutura estatal. Agora, o controle deveria ser feito sobre a atividade exercida pelo particular. Surgem, então, as Agências Reguladoras, dotadas do poder de fiscalizar e regulamentar as atividades exercidas pelos particulares em razão da concessão dos serviços públicos, tendo como função precípua a edição de atos de caráter geral, abstratos e impessoais em relação aos setores da economia postos sob seu controle.
A própria Constituição Federal instituiu a matriz desses órgãos reguladores nos artigos 21, XI e 177, § 2º, III para os setores de telecomunicações e petrolífero. Posteriormente, a lei 9.427/96, que dispõe sobre o regime de concessões dos serviços públicos de energia elétrica criou a Agência Nacional de Energia Elétrica, a ANEEL; a lei 9.427/97 instituiu a Agência Nacional de Telecomunicações, a ANATEL; a lei 9.478/97 criou a Agência Nacional do Petróleo, ANP, dentre outras. A todas essas Agências, criadas sob a forma de “autarquias de regime especial” o traço marcante comum é o exercício da função regulatória, ou seja, a competência para editar normas gerais, abstratas e impessoais sobre o setor sob seu controle.
Nesse compasso, esclarece José dos Santos Carvalho Filho que,
A essas autarquias reguladoras foi atribuída a função principal de controlar, em toda a sua extensão, a prestação dos serviços públicos e o exercício de atividades econômicas, bem como a própria atuação das pessoas privadas que passaram a executá-los, inclusive impondo sua adequação aos fins colimados pelo Governo e às estratégias econômicas e administrativas que inspiraram o processo de desestatização. (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 18. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007. p. 435).
O Estado, por meio das Agências Reguladoras, passou a ter a faculdade de influenciar diretamente, e sem a necessidade de lei em sentido estrito, na liberdade econômica, na esfera de atuação dos particulares, na imposição de normas de conduta e sanções pelo descumprimento de tais normas.
Tal atuação instrumentaliza-se pelos decretos regulamentares editados pelas Agências Reguladoras; daí a necessidade de delimitação do alcance, abrangência e a própria constitucionalidade e legalidade de tais decretos, visto que em nosso sistema, atos legislativos secundários não podem inovar no ordenamento jurídico. E como toda regulamentação implica, necessariamente, intervenção na esfera de direitos do particular, torna-se ainda mais patente a necessidade de se classificar, adequadamente, em nosso ordenamento jurídico a configuração e natureza de tais atos.
Longe de serem atos estritamente administrativos, os regulamentos impostos por tais agências, não raro, trazem em si forte carga de normatividade, cuja observância é obrigatória ao concessionário do serviço público, sob pena de responsabilização, cujas sanções também são previstas pelas próprias agências reguladoras.
Para alguns haveria, no caso, uma crise de legalidade, tendo em vista que somente a lei poderia impor sanções ou ditar normas de conduta aos particulares; para outros, adeptos da chamada teoria da delegiferação, nada obsta que a lei atribua a esses entes determinadas funções regulatórias, mesmo que o exercício dessa função implique inovação no ordenamento jurídico, nesse caso estariam amparadas pela lei que lhe traçou tal âmbito de atuação, seria, mutatis mutandis, uma espécie de delegação do próprio Poder Legislativo, razão pela qual não há que se falar em ilegalidade ou inconstitucionalidade. Há, ainda, aqueles que fazem a distinção entre função regulamentar e função regulatória, esta conferida, por lei, às Agências Reguladoras, aquela, ao chefe do Poder Executivo pela própria Constituição Federal.
Contudo, como toda norma regulatória de determinada atividade, inevitavelmente, invade a esfera particular impondo restrições de direitos e sanções pelo descumprimento dos regulamentos, a inevitável discussão é que normas restritivas dos direitos dos particulares ou sancionatórias devem ter sua matriz em lei. Há ainda, a questão da duvidosa constitucionalidade desses regulamentos frente à atribuição privativa dada ao Presente da República pelo art. 84 da Constituição Federal.
Celso Antônio Bandeira de Mello é um dos doutrinadores que não deixou de tomar parte na discussão e assevera que
De toda sorte, ditas providências, em quaisquer hipóteses, sobre deverem estar amparadas em fundamento legal, jamais poderão contravir o que esteja estabelecido em alguma lei ou por qualquer maneira distorcer-lhe o sentido, maiormente para agravar a posição jurídica dos destinatários da regra ou de terceiros; assim como não poderão também ferir princípios jurídicos acolhidos em nosso sistema, sendo aceitáveis apenas quando indispensáveis, na extensão e intensidade requeridas para o atendimento do bem jurídico que legitimamente possam curar e obsequiosas à razoabilidade. Alexandre Mazza recusa-lhes, inclusive, a possibilidade de uma competência regulamentar propriamente dita, fundado na singela mas certeira observação de que esta é, pelo Texto Constitucional, declarada privativa do Chefe do Poder Executivo. (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.p. 173).
A questão nodal que se coloca, portanto, frente a esse panorama é a delimitação da função normativa ou regulatória das agências reguladoras em face dos postulados constitucionais da tripartição de poderes e do princípio da legalidade, que no nosso sistema têm como parâmetros fundamentais os arts. 5º, inc. II, e 84, inc. IV, da Constituição Federal, segundo os quais, respectivamente, somente a lei pode obrigar condutas e impor sanções e que é do Presidente da República a competência para expedir regulamentos, com a estrita finalidade de permitir "o fiel cumprimento da lei".
Em que pese a matéria ostentar longas e calorosas discussões na doutrina e jurisprudência pátria, o fato é que ainda não se chegou a um consenso sobre a real função de tais Agências, ou melhor, sobre o alcance de tais normas regulamentares.
REFERÊNCIAS
CAL, A. R. B. As Agências Reguladoras no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 18. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Omissões na Atividade Regulatória e Responsabilidade Civil das Agências Reguladoras. In. FREITAS, Juarez. (org.). Responsabilidade Civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
MORAES, Alexandre de. Agências Reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
Advogada. Mestra em Educação pela Universidade de Uberaba - Uniube.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Elizangela Santos de. Poder normativo e regulador das agências reguladoras federais: abrangência e limites Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jun 2010, 00:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/20006/poder-normativo-e-regulador-das-agencias-reguladoras-federais-abrangencia-e-limites. Acesso em: 22 nov 2024.
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