“A lei me assusta como um cadáver a uma pessoa viva.”
NIETZSCHE
Baltasar Garzón Real tornou-se o juiz mais conhecido no Ocidente. Sua notoriedade deve-se à tese que concebeu e pôs em prática, expressa nesta súmula: a justiça é uma condição civilizatória da humanidade, concebida como e onde ela vive – ou seja, em sociedade, no mundo todo - de modo que não existem “espacios sin derechos”.
Como um dos cinco Juízes de Instrução do tribunal espanhol Audiência Nacional, que se equipara ao nosso STJ, Garzón expediu ordens internacionais de investigação e prisão de pessoas envolvidas na morte ou desaparecimento de cidadãos espanhóis, sendo o caso mais notório aquele que redundou na detenção de Augusto Pinochet no Reino Unido.
Em 2008, atendendo ao pedido da Associação Para a Memória Histórica, organização civil espanhola, Baltasar Garzón baixou uma resolução para investigar o desaparecimento forçado de pessoas ocorrido por ação do Estado, em seu país, entre 1936 e 1951. Foram catalogados 114 mil e 266 casos, bem como localizadas 20 fossas coletivas com ossadas humanas não identificadas. (Para uma comparação, os desaparecidos políticos são 140 no Brasil, segundo a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. E não é pouco).
Três entidades, notoriamente situadas no espectro político à extrema direita (Manos Limpias, Liberdad e Identidad, Falange Española) ingressaram com representações contra Baltasar Garzón alegando o cometimento por ele dos crimes de “prevaricación” e de abuso por extrapolação de sua competência jurisdicional, infringindo a Lei da Anistia de 1977.
Vendo-se alvo pessoal de represálias, Garzón renunciou à investigação e a transferiu para o Poder Executivo nacional e das regiões onde foram encontradas as fossas.
O Juiz de Instrução Luciano Varela Castro, do Tribunal Supremo Espanhol, conheceu das representações de maneira estranha: verificando a existência de falhas e inconsistências jurídicas, determinou a retificação das peças, conforme instruções procedimentais que indicou às entidades representantes.
A Falange Española perdeu o prazo e foi excluída; as demais entidades fizeram a retificação, e sua reiteração foi aceita.
Luciano Varela, então, contra o parecer do Ministério Público, requereu a abertura de processo punitivo. Garzón propôs recursos e suscitou a suspeição de Varela, por ter prestado orientação jurídica às representantes, como se fora seu consultor. Os recursos foram julgados em decisões singulares (aqui ditas monocráticas) do Juiz do Supremo Adolfo Prego de Oliver. Todos negados; a exceção de suspeição ainda tramita.
Prego é nada menos do que patrono da entidade “Defensa da La Nación Española” entidade civil que faz pregação política pós e pró-franquista e foi signatário de um manifesto contra a Lei da Memória Histórica. Já então atuava como juiz, em tese proibido de prejulgamentos.
Afinal, o Tribunal Supremo recebeu as representações contra Garzón e ele foi afastado do cargo em 14 de maio de 2010, pelo Conselho Geral do Poder Judicial Espanhol, órgão administrativo equivalente ao nosso CNJ.
Estranhamente, a Associação dos Juízes Para a Democracia (que na Espanha mostrou-se bem oposta à congênere brasileira), pelo porta-voz Ignácio Espinosa, disse que tão somente foi cumprido o rito da lei, com o afastamento de Garzón.
José Saramago – com a coragem de sempre – viu significados maiores, simbólicos e dramáticos, divulgando declarações incisivas contra o acontecido: “quem se atreveu com ditadores foi afastado da magistratura pelos seus pares. Ou, melhor dito, por juízes que nunca processaram Pinochet nem ouviram as vítimas do franquismo. (...) [Os sinos] dobrarão a finados, sim, mas milhões de pessoas sabem reconhecer o cadáver, que não é o de Garzón, esclarecido, respeitado e querido em todo mundo, mas o daqueles que, com todo o tipo de argúcias, não querem uma sociedade com memória, sã, livre e valente.” Foi uma das últimas manifestações do detentor do Prêmio Nobel, que em seguida faleceu.
Conviria que a lição que Baltasar Garzón não pôde completar em seu próprio país fosse ouvida até o fim no Brasil.
A democracia retomada, tanto lá como aqui, acabou criando mecanismos que infirmam a função jurisdicional a tal ponto que judicar tornou-se profissão de alto risco. Se alguma ditadura houver no futuro, não precisará editar nenhum ato institucional similar ao AI-5 para submeter a magistratura, e dela afastar quem tenha as mais remotas inspirações que engrandeceram Garzón. Um Caso Herzog, por exemplo, jamais poderá ser julgado, numa similitude futura, se for mantido o mecanismo de controle judicial implantado ... pela nossa democracia.
O decano do STF, Ministro Celso de Mello, que não leu a advertência do Eclesiastes a respeito da “vanitas vanitatis”, decidiu que o juiz não pode ser vítima de injúria, ofensas ou difamação no processo que dirige, desde que as invectivas da parte ou do advogado estejam relacionadas com o tema processual. Onde está essa imunidade absoluta que o ministro faz decorrer do Estatuto da Advocacia ? Apenas em filigranas incompatíveis com a interpretação sistemática do Direito. Por que o juiz seria privado de seus direitos subjetivos (demais, reconhecidos universalmente a todos os sujeitos, como integrantes dos direitos humanos) só porque (e tanto mais porque) judica ? E a recíproca, tão importante ao raciocínio lógico em Direito Penal: pode o juiz injuriar, ofender e difamar nos autos do processo, contando com igual imunidade ? Não fora tudo isso, a Constituição do Brasil, no art. 5º, inciso X, assegura a inviolabilidade da honra.
Outro assunto mal legislado é o de que a competência censória contra o juiz afinal tornou-se concorrente, sendo competente tanto o tribunal a que ele esteja vinculado (segundo a LOMAN) como o CNJ (pela EC 45). Qual é a outra função de Estado ou profissão no Brasil submetida a essa dualidade, que prescinde mesmo da avocação ? Em caso bem recente, de novo o Ministro Celso de Mello superou-se em interpretação idiossincrática: suspendeu a aposentadoria compulsória de sete desembargadores do TJ do Mato Grosso, envolvidos em desvio de verbas públicas para a Maçonaria, decretada pelo CNJ, por entender que este funcionaria como instância recursal, e primeiro o procedimento disciplinar deveria tramitar no próprio TJ do Mato Grosso ... Onde está escrito isso ? ignoramus et ignoramibus. Ou seja: para contornar uma estranha competência concorrente estabelecida no Direito Positivo, o ministro referido criou uma competência sucessiva, sem lei nenhuma ... E – surpreendentemente – é essa a tese que vem ganhando adeptos na doutrina.
A punição pronta contra casos de corrupção, nepotismo, tráfico de influência, favorecimento e outros desvios graves, infelizmente amiúdes, requer medidas processuais próprias, céleres e de competência bem determinada. Isso nada tem a ver com a criação de um arcabouço interventivo e antijudicial que penda como a espada da mitologia sobre a cabeça dos que são justos.
Por estes dias, em abril de 2010, o STF rejeitou a interpretação da lei de anistia conforme preceitos fundamentais da Constituição. Houve, por certo, um erro estratégico do autor da ação (o Conselho Federal da OAB), pois já tramitam muitas ações pleiteando o mesmo em casos concretos, e seria muito mais consistente moldar a jurisprudência a partir dos fundamentos favoráveis expendidos desde o primeiro grau, quando mais se abundantes. É lícito indagar: se os juízes de Varas julgarem procedentes agora as causas em trâmite, onde se pleiteia a responsabilização de torturadores e homicidas, durante o regime militar, por motivação diversa do STF, haverá a revisão jurisdicional ou a penalidade disciplinar ? Sim, a possibilidade do expurgo está de volta.
Esse julgamento do Supremo, com o voto prevalente do Ministro Eros Grau, certamente integrará os casos históricos colacionados no site do próprio STF. Histórico erro supremo, no caso. Na época da lei da anistia nem havia tipificação do crime de tortura praticado por autoridade pública, salvo para a qualificação de simples abuso de autoridade. Como poderia um crime que não estava tipificado ser objeto de anistia ?
Além disso, a pretensão exposta ao Supremo era a de que ele se pronunciasse diante da nova ordem constitucional. O artigo 5º, inciso XLIV, da CF, determina que é imprescritível a ação de grupos armados civis ou militares contra a ordem constitucional e o Estado democrático. Ninguém ignora que a Operação Bandeirantes-OBAN, o DOI, o CODI e outros grupos inominados e congêneres consistiam em grupos armados que cometiam crimes sistematicamente, contrariando mesmo a ordem constitucional vigente entre 1964 e 1985. Tanto é assim que o presidente Geisel teve que praticar atos de força para dissolver redutos armados que resistiam naqueles órgãos ao processo de redemocratização, após a morte do operário Manoel Fiel Filho.
Demais, se os crimes não foram nunca apreciados judicialmente, jamais sobreveio a coisa julgada. Da mesma forma, como nenhuma ordem constitucional republicana anterior à atual Carta permitiu o crime de morte (inclusive em guerra) sem julgamento, nem de tortura, nem de “desaparecimento”, não se poderia falar em um estranhíssimo direito adquirido de praticá-los.
A posição adotada pelo Supremo, portanto, somente pôde considerar a impossibilidade de revisão com base no ato jurídico perfeito. Assim é que estamos diante, talvez, do único caso na história da legislação no mundo que absolve in abstrato o crime “perfeito”.
Um último argumento deve ser considerado: a Carta de 1988 é de fato constitutiva originária de uma nova ordem constitucional. Não haveria forma diferente e democrática de estabelecer a imprescritibilidade que não fosse aquela afinal adotada. O julgamento do Supremo quer dizer, em outras palavras, que a história não tem memória nem passado, sendo apenas um registro instantâneo a que as gerações do futuro não têm acesso nem interferência, salvo como algo irremediável que sujeitará a vida dos pósteros como na tragédia cênica. Ou como farsa...
Não poderemos ter em nosso país nenhum desfecho como o ocorrido com Baltasar Garzón na Espanha. Nem um só caso. Foi essa a última lição que o grande magistrado nos deu. Ela tem de ser aprendida. Do contrário, nossa democracia estará por um fio. E morrerá na primeira hora em que as forças políticas que ora se equilibram não puderem mais afiançá-la. Há exemplos atuais disso na América Latina. Franco se proclamava caudillo de España por la gracia de Dios. Tem imitadores. Portanto, o que se impõe dizer é: lute desde agora sem descanso, sem capitulação, diuturnamente, sem trégua, sem pausa, sem sono e sem silêncio para que não aconteça – inexorável - o pior.
Desembargador aposentado do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, com estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional, em Paris, e autor dos livros "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABEDA, Luiz Fernando. A última lição de Baltasar Garzón ao Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 set 2010, 08:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21426/a-ultima-licao-de-baltasar-garzon-ao-brasil. Acesso em: 22 nov 2024.
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