Coautor - ALESSANDRO MARQUES DE SIQUEIRA - Mestrando em Direito Constitucional pela UNESA. Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Professor convidado da Pós-Graduação na Universidade Cândido Mendes em parceria com a Escola Superior de Advocacia da OAB/RJ na cidade de Petrópolis. Associado ao CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis. Concursado da Corregedoria-Geral da Justiça Fluminense.
A partir da Revolução Francesa e sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão vivemos em um Estado de Direito. Um estado de permanente império da Lei, que deve ser abstrata, genérica e se voltar para a promoção do convívio social.
Quando se pensa em Estado de Direito, a autoridade decorre da Lei, e não de quem exerce o poder. Nesta medida o respeito à lei se mostra como o traço elementar de distinção com o absolutismo. É a Lei, e somente ela, que determina que o particular seja chamado a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa. O particular tem sua liberdade assegurada, e esta só é mitigada quando um valor superior, como a vida, foi violado.
Durante muito tempo legalidade foi vista em sua porção meramente formal, e não material. Por isto a tipicidade formal era o fundamento para a privação de liberdade. Hoje em dia, vivida a noção de legalidade material, passa a fazer todo o sentido de que a liberdade é inerente à condição humana, e só pode ser negada nas hipóteses em que a norma penal seja materialmente atingida. Neste contexto surge a idéia de tipicidade material.
INTRODUÇÃO
Em seu artigo 5º, II nossa Carta Política de 1988 aponta que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer se não em função de lei. Tem-se, neste dispositivo, o ponto de partida para o entendimento do Direito Penal: o Princípio da Legalidade.
O princípio relatado no parágrafo anterior é fundamental para o Direito Penal. Tanto o é que o Código Penal o traz em seu primeiro artigo. E não poderia deixar de ser diferente. É princípio básico, portanto, deve estar na base.
Quando se pensa em Direito Penal, não apenas a Legalidade interessa. Esta é o ponto de partida, mas deve ser vista de forma valorada. Legalidade, assim, veste as roupas da Reserva Legal. Tal vestimenta aduz para o fato de que apenas as normas erigidas do Poder Legislativo podem cominar ou majorar penas.
A Reserva Legal evita o arbítrio de outros poderes, como o Executivo e sua sanha de legislar via Medida Provisória, possibilidade absolutamente rechaçada pela doutrina. Além disto, não basta uma Lei em sentido estrito. Esta lei deve estar em consonância com o aspirado pela sociedade – logo adequada socialmente – e ter uma utilidade pública, como aliás já propugnava a Carta Política de 1824 em seu artigo 179, inciso II.
No primeiro capítulo falar-se-á dos Fundamentos do Direito Penal. Primeiramente acerca da Legalidade e da Reserva Legal. Em seguida será objeto de estudo o preceito da Intervenção Mínima, com o qual resta assente o caráter subsidiário do Direito Penal. Ainda no primeiro capitulo, será preocupação as questões afeitas à Adequação Social as Causas de Justificação.
O segundo capítulo abordará especificamente o Princípio da Insignificância. Abrindo o capítulo o tema será abordado como sendo um vetor necessário para a atuação do aplicador do direito, no sentido de que sua atividade não mais pode ser vista sem a valoração trazida pela aplicação prática do princípio sob exame. Na seqüência serão trazidos registros históricos do conceito, assim como o conceito que a doutrina concede a este. Finalizando o capítulo, serão objeto de análise as proposições jurisprudenciais sobre o tema.
1 FUNDAMENTOS DO DIREITO PENAL
A sistemática em que se insere o Direito Penal aponta para uma questão evidente: sua intervenção na sociedade deve atender ao Princípio da Legalidade. Mais especificamente, deve observar a Reserva Legal. Por isto, somente através da lei, entendida em sentido estrito, é que pode o Estado, com seu Poder de Império, tomar por típicas certas condutas.
O Princípio da Legalidade é meio pelo qual se evita o exercício arbitrário do poder punitivo. Assim sendo, para que o comando cominado seja legítimo, as especificidades do processo legislativo precisam ser observadas. Não se pode perder de vista que o Direito Penal é fragmentário, ou seja, que só é chamado como meio de coerção quando mecanismos como religião, ética, moral e outros campos do direito não se mostram efetivos para garantir a paz social. Que o Direito Penal, “por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico”[1]. Que, por isto mesmo, “não deve ocupar-se de bagatelas”[2].
Legalidade possui importância estrutural para o Direito Penal. O Estado tem o poder de punir, premissa que se mostra assente. Nada obstante, esta prerrogativa tem de estar contida nos contornos legais. Garante-se, desta forma, os direitos individuais mínimos, a que se convencionou chamar direitos de defesa:
“enquanto direitos de defesa, os direitos fundamentais asseguram a esfera de liberdade individual contra interferências ilegítimas do Poder Público, provenham elas do Executivo, do Legislativo ou, mesmo, do Judiciário. Se o Estado viola esse princípio, então dispõe o indivíduo da correspondente pretensão que pode consistir, fundamentalmente, em uma: (1) pretensão de abstenção (Unterlassungsanspruch); (2) pretensão de revogação (Aufhebungsanspruch); (3) pretensão de anulação (Beseitigungsanspruch).”[3] (destacou-se)
Os direitos de defesa, refúgio contra punições exacerbadas e desmedidas, configuram os Direitos Humanos de Primeira Dimensão[4], a partir dos quais o Estado possui dever precípuo de abstenção. Protegem os indivíduos contra o arbítrio estatal.
No sentido das proposições colacionadas são os apontamentos do professor Damásio, conforme se percebe na citação que segue:
“o princípio da legalidade (ou de reserva legal) tem significado político, no sentido de ser uma garantia constitucional dos direitos do homem. Constitui a garantia fundamental da liberdade civil, que não consiste em fazer tudo o que se quer, mas somente aquilo que a lei permite. À lei, e somente a ela, compete fixar as limitações que destacam a atividade criminosa da atividade legítima. Esta é a condição de segurança e liberdade individual. (...) Assim, não há crime sem que, antes de sua prática, haja uma lei descrevendo-o como fato punível. É lícita, pois, qualquer conduta que não se encontre definida em lei penal incriminadora. Com o advento da teoria da tipicidade, o princípio da reserva legal ganhou muito de técnica. Típico é o fato que se amolda à conduta criminosa descrita pelo legislador. É necessário que o tipo (conjunto de elementos descritivos do crime contido na lei penal) tenha sido definido antes da prática delituosa. Daí falar-se em anterioridade da lei penal incriminadora. Assim, o art. 1º, do Código Penal, contém dois princípios: 1) Princípio da legalidade (ou de reserva legal) – não há crime sem lei que o defina; não há pena sem cominação legal. 2) Princípio da anterioridade – não há crime sem lei anterior que o defina; não há pena sem prévia imposição legal. Para que haja crime é preciso que o fato que o constitui seja cometido após a entrada em vigor da lei incriminadora que o define.”[5] (destacou-se)
Os preceitos referentes à legalidade encontram-se inscritos em sede constitucional, precisamente no artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, possuindo, portanto, caráter pétreo[6].
O caráter conferido ao artigo em exame pelas disposições do artigo 60 da Carta Constitucional é salutar, pois resguarda segurança jurídica singular à matéria penal, impedindo modificações pelo poder constituído. Uma impossibilidade que deve ser mantida em um Estado Democrático de Direito e só pode ser revista através de nova constituinte ou de consulta popular (plebiscito ou referendo), caminho apontado por nossa doutrina, precisamente pelo professor Ives Gandra da Silva Martins[7].
1.1 LEGALIDADE E RESERVA LEGAL
O sistema que se liga ao Princípio da Legalidade se encontra refletido no Código Penal. Esta reflexidade é uma necessidade que decorre do inscrito no texto constitucional. No caso brasileiro, em todos textos, pois legalidade é garantia em nosso país desde a Constituição de 1824. In verbis:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte.
I. Nenhum Cidadão pode ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma cousa, senão em virtude da Lei.
II. Nenhuma Lei será estabelecida sem utilidade pública[8]. (destacou-se)
Legalidade, consoante Mirabete em citação de Luiz Carlos de Oliveira, é a “mais importante conquista de índole política, norma básica do Direito Penal Moderno, inscrito como garantia constitucional.”[9] Logo, tornar o fato típico, só se afigura legítimo quando há previsão em Lei, entendida no sentido estrito. Além disto, a própria lei deve restar justificada. É preciso trazer consigo a noção de “utilidade pública” como suposto de legitimidade. Se já era assim no século XIX, marcado por uma índole liberal, mais ainda se diz nos dias atuais.
O princípio da legalidade, conforme Francisco de Assis Toledo[10], apresenta alguns desdobramentos. Em seu “Princípios Básicos de Direito Penal” defende fórmula consagrada na doutrina estrangeira, propondo quatro desdobramentos: nullum crimen, nulla poena sine lege praevia[11]; nullum crimen, nulla poena sine lege scripta[12]; nullum crimen, nulla poena sine lege stricta[13]; e, nullum crimen, nulla poena sine lege certa[14].
Tais especializações seriam corolárias da legalidade, sendo os veículos pelos quais se assegura a inviolabilidade dos direitos e garantias individuais. Especificamente, apontam para o fato de que a lei que comina pena deve ser anterior, escrita, estrita e certa. Fatos anteriores à Lei Penal não interessam[15] a este ramo especializado do direito.
Palotti Junior, citando Fernando Carlomagno, consigna que “a lei que institui o crime e a pena deve ser anterior ao fato”[16]. Esta ponderação vem ao encontro da não-retroatividade da lei penal. Anterioridade em matéria penal é, assim, correlata da legalidade.
No Direito Penal deve a Lei ser anterior ao fato tomado punível: “só a lei em seu sentido estrito pode criar crimes e penas criminais.”[17] Apenas a Lei pode tornar típico, ou mais grave, determinado ato, e esta não pode retroagir. Não basta qualquer norma. É preciso ser Lei (Ordinária ou Complementar) ou Emenda à Constituição para trazer norma incriminadora. Tal posicionamento resta pacificado na doutrina, pelo que dizemos ser inconstitucional se tratar de matéria penal através de medida provisória[18].
Medida provisória e matéria penal não podem coexistir por suposto democrático. Com isto resta claro que não é qualquer norma que pode instituir figuras típicas ou majorar a pena cominada para determinada conduta. Este sentimento é manifesto, entre outros, por Luiz Flávio Gomes, que, já em 1990, assim se pronunciou:
“A medida provisória surgiu na Constituição brasileira como sucedâneo do decreto-lei. Pode-se dizer que é o antigo decreto-lei com roupagem um pouco diferente. Competente para emiti-la é o presidente da República, em caso de relevância e urgência (CF,art. 62). A moderna doutrina européia tem procurado demonstrar a total incompatibilidade do decreto-lei para a criação de crimes e penas...Quanto à doutrina italiana, vale lembrar a opinião de Fiandaca e Musco: ‘As garantias inerentes ao princípio da reserva de lei se eliminam ou se atenuam no caso de expedição de normas penais mediante decreto-lei: não só o direito de controle das minorias é desconsiderado, mas as mesmas razões de necessidade e urgência que justificam o recurso ao decreto-lei contrariam aquelas exigências de ponderação que não podem ser eliminadas em sede de criminalização das condutas humanas.’ Para a criação de crimes e penas ou medidas de segurança ou para restrição de qualquer dos direitos fundamentais nunca estará presente o requisito urgência assinalado no art. 62 da CF. Não que não haja, às vezes, urgência na criminalização de uma determinada conduta humana, não; o fundamental é que toda norma com caráter penal tem que seguir rigorosamente o procedimento legislativo previsto na Constituição para as leis ordinárias (CF, arts. 61 e ss), isto é, projeto tem que ser apresentado, discutido, votado, aprovado, promulgado, sancionado e publicado, ensejando-se a possibilidade de ampla discussão, inclusive pelas minorias. Para restrição de direitos fundamentais, estabelecidos democraticamente pelo legislador constituinte, só esta via é possível. Como se sabe, historicamente, esses direitos foram reconhecidos e passaram a integrar as Cartas Magnas der todos os países civilizados, para evitar o abuso do Estado absoluto, de todo-poderoso chefe da Nação. Devemos falar em monopólio da lei, mas não qualquer lei, pois só é válida a lei formal do Legislativo.”[19]
Ao cuidar dos direitos e garantias individuais nosso legislador asseverou no artigo 5º da Constituição da República que “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.” Esta garantia sedimenta a estrutura Democrática de Direito vivenciada, que tem por base a ordem constitucional vigente. Uma ordem que fundamenta as relações sociais e regulamenta as disposições de ordem penal: suas regras punitivas, sanções e bens jurídicos tutelados.
Na direção debatida, mostra-se importante o entendimento da professora Alice Bianchini, doutora em Direito Penal pela PUC de São Paulo e professora da Faculdade de Direito da USP, elucidando que “a criminalização da conduta deve pautar-se, neste quadro, por processo meticuloso e que jamais pode deixar de contemplar direitos e garantias inscritos na Constituição”[20].
O artigo 5º, II da Constituição da República consagra o princípio em exame: “ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Disto se assevera que apenas a Lei pode impor atuação ou abstenção do particular[21].
O que se entende por Reserva Legal representa marco avançado do Estado de Direito, porque, consigo, amoldam-se comportamentos às normas legais. É de importância vital, já que estabelece as distinções entre o Estado Constitucional e o Absolutista. Vivenciando o primado da lei[22], expressão da vontade coletiva, cessam as prerrogativas caprichosas de quem detém o poder e suas tendências personalistas.
Pelo princípio da reserva legal, de um modo geral, nenhum ato pode ser considerado crime sem que lei assim determine. Nenhuma pena pode ser aplicada sem que haja previsão de punição para a conduta. Constitui, assim, real e imanente limitação ao poder estatal de fazer ingerências na esfera das liberdades individuais.
O princípio da reserva legal se justifica por uma questão que se apresenta clara: o caráter subsidiário do Direito Penal. As normas penais são excepcionais. São aplicáveis quando não existe outro meio de conservação da segurança, da paz e da ordem social por mecanismos como religião, moral e outros ramos do Direito. Disto se assenta que o Direito Penal só deve ser avocado para a proteção de bens jurídicos de relevo, onde a proteção conferida por outras disciplinas se mostra insuficiente.
O fundamento básico da atuação do Direito Penal deve se limitar aos bens jurídicos fundamentais. A concepção de figuras penais típicas deve ser informada e corresponder à tutela de um bem consagrado na Constituição. Há de ser lembrando que, em nenhuma hipótese, tal elaboração pode ir de encontro aos direitos e garantias fundamentais.
1.2 INTERVENÇÃO MÍNIMA: POR UM DIREITO PENAL SUBSIDIÁRIO
O princípio da intervenção mínima aponta para o caráter subsidiário do Direito Penal. Quer dizer que este ramo do direito será chamado para manter a ordem social quando os demais não forem suficientes. Logo, sua proteção somente será conferida quando a que se depreende de outras esferas sejam ineficazes. Nesta esteira, mais uma vez se mostram esclarecedoras as proposições do mestre Toledo:
“se a intervenção do Direito Penal só se faz diante da ofensa de um bem jurídico, nem todos os bens jurídicos se colocam a tutela específica do Direito Penal. Do ângulo penalístico, bem jurídico é aquele que esteja a exigir uma proteção especial, no âmbito da norma penal, por se revelarem insuficientes, em relação a ele, as garantias oferecidas pelo ordenamento jurídico em outras áreas extrapenais”.[23] (destacou-se)
O princípio em exame tem por objetivo limitar o processo legislativo. A Lei, seja ela qual for, deve ter uma razão de justificação que caiba no espírito constitucional, eis que no atual estágio do direito não faz qualquer sentido se conceber o processo legislativo como mero reflexo do Poder de Império. É evidente que a criação de leis traz reflexos do Poder de Império (refletindo também soberania), mas, de há muito, deixou de ser um fim em si própria. Leis podem ser criadas, mas a criação destas devem ter uma razão de justificação que se mostre compatível com valores meta-legais, como Dignidade, Solidariedade, Razoabilidade, Eticidade, dentre outros. São valores que apontam para a tese dos “Adquiridos Constitucionais”. Valores que, positivados ou não, precisam ser levados em conta por ocasião da criação das leis ou da subsunção das mesmas.
Do que se expôs, tem-se que a Legalidade deve ser observada para a limitação do arbítrio judicial. Nada obstante, deve ser observada na criação das Leis. Com isto se evita que o Estado, obedecendo à reserva legal, crie penas imperfeitas e cruéis[24]. Nesta medida a noção de subsidiariedade é fundamental. A fundamentalidade desta proposição, uma vez compreendida, implica que o Direito Penal só deve ser acionado nos casos de ataques a bens jurídicos relevantes que recebam a tutela estatal.
Intervenção mínima se corporifica com a “Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão”[25], possível em razão da experiência Iluminista. Nesta declaração restam assentes idéias no sentido de que a criminalização só se faz legítima quando constituía única via para a efetiva tutela de um determinado bem jurídico, consoante o artigo 8º da Declaração sob exame: “a Lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias, e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada”.
Com o Princípio da Intervenção Mínima objetiva-se restringir a incidência de normas incriminadoras às hipóteses de ofensas a bens jurídicos fundamentais. Desta forma, ficam reservados aos demais ramos do ordenamento jurídico as ilicitudes que não ofendem bens fundamentais.
O princípio em exame não se encontra explícito nas legislações penais e constitucionais contemporâneas. Devido a sua vinculação com outros postulados explícitos e com os fundamentos do Estado Democrático de Direito, todavia, tem de ser observado pelo legislador e pelo aplicador do direito, conforme assinala Maurício Antônio Ribeiro Lopes no seu “Princípio da Insignificância no Direito Penal”[26].
Do Princípio da Intervenção Mínima surge um corolário necessário: o Princípio da Insignificância. Neste sentido, pertinente se mostra a lição de Vico Mañas, onde lemos que:
“o princípio da insignificância surge justamente para evitar situações dessa espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, com o significado sistemático e político-criminal de expressão da regra constitucional do nullum crimen sine lege, nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal”.[27]
Tendo por certo que o Direito Penal possui caráter subsidiário, resta claro que este deve se ocupar somente das hipóteses em que há grave ameaça aos bens jurídicos fundamentais tutelados pelo Estado. As bagatelas não devem ser preocupação do Direito Penal. Conquanto seja um ramo extremamente importante, seu caráter fragmentário deixa claro que sua aplicação deve ser subsidiária.
Subsidiariedade no Direito Penal decorre da consideração de que este é remédio sancionador extremo, ministrado quando os demais ramos não são eficazes. Disto se apõe que a intervenção deste ramo do direito só se legitima quando os demais ramos não são eficientes no controle das doenças sociais.
1.3 ADEQUAÇÃO SOCIAL E CAUSA DE JUSTIFICAÇÃO
Formulada por Welzel, consoante Odone Sanguiné[28], a Teoria da Adequação Social surge como princípio geral de interpretação dos tipos penais. Um princípio útil em sistemas jurídicos carentes de atualização legislativa, como o brasileiro. É útil em sistemas onde a realidade social está em compasso adiantado em relação à positivação jurídica.
Em nosso país, nas questões acerca da Sedução e do Adultério, ficou patente a adequação social. Tais comportamentos, conquanto formalmente típicos até a Lei n. 11.106/05, que revogou as disposições dos artigos 217 e 240 do Código Penal, de há muito vinham sendo admitidos pela realidade social. Exatamente por isto, a comunidade jurídica já não os recriminava como se fossem materialmente típicos.
Quando se pensa em adequação social, resta assente que o direito é um organismo sistêmico. Daí a importância de se comunicar com os outros campos do conhecimento. Sendo assim, pertinente se mostram as idéias contidas na Teoria Sistêmica[29], onde o direito se apresenta como um subsistema: um sistema autônomo, mas que reconhece as demandas apresentas pela sociedade.
Os reclamos sociais não podem ser negados pelo direito. Por outro lado, tais reclamos não podem comprometer a autonomia que a disciplina ostenta. Nesta medida, as contribuições de Luhmann e Teubner são essenciais à compreensão do direito. A partir destes autores é possível se ver um direito que é, a um só tempo, fechado e aberto: dogmaticamente autônomo (desta forma fechado), mas aberto do ponto de vista cognitivo, eis que interacional.
O direito (na porção Lei) é fechado, porque do ponto de vista formal apenas uma norma de hierarquia igual ou superior pode promover sua revogação. Nesta medida é preciso uma Lei Ordinária para revogar outra Lei Ordinária. É preciso pelo menos uma Lei Ordinária, já que uma Complementar, ou uma Emenda Constitucional, também poderia.
Em outra medida o direito é aberto. Esta abertura se dá no nível da aplicação da norma e no momento de sua criação. Quando o juiz faz o trabalho de subsunção da norma não pode fazer com os olhos fechamos para a realidade social. Na mesma medida, quando se submete determinada matéria ao processo legislativo, resta claro que a atuação deste deve ter por arcabouço a dinâmica social. É preciso ter referibilidade como suposto de legitimação.
Do que se expôs, aponta Flávio Siqueira que quando Hans Welzel mencionou o caráter social da lei penal, o fez no sentido de que garantir que a norma deve visar ao controle social. Que a norma penal deve ser adequada ao que aspira a sociedade:
“ao mencionar a necessidade não só de uma adequação aos elementos normativos, subjetivos e objetivos do tipo penal, devendo ainda encartar a ‘adequação social’ da figura penal, ou seja, a sociedade admitir tal conduta como afrontosa aos valores sagrados a manutenção da paz e equilíbrio a esfera jurídica, então, demandando a aplicação de pena visando o controle social, que é máxime da norma penal.”[30] (destacou-se)
O penalista alemão foi percussor de idéias que hoje são comuns no Direito Penal. São idéias que apontam para o percebido por Assis Toledo: “podem as condutas socialmente adequadas não ser modelares, de um ponto de vista ético. Delas se exige apenas que se situem dentro da moldura do comportamento socialmente permitido ou, na expressão textual de Welzel, dentro do quadro da liberdade da ação social.”[31] Esta percepção, conquanto não a ideal, é mais razoável que mandar para cadeia praticantes de bagatelas.
O direito conhece outras disciplinas e depende delas para se recriar. Sendo assim, o Princípio da Adequação Social aponta para uma recriação autopoiética[32]. Desta forma, exclui-se a incidência da norma incriminadora sobre o ato que a sociedade já tomou por aceita. O Poder Legislativo tem sua legitimidade quando cria normas que representam a aspiração social. O Poder Judiciário tem legitimidade derivada, e esta resta assegurada quando o procedimento adotado implementa os valores que a sociedade almeja. Sendo assim, como o povo é o titular do poder, não pode quem o exerce ir de encontro a este mesmo povo. Dito isto, a hermenêutica jurídica não pode ser feita sem levar em conta uma interpretação social da norma. Especificamente, a compatibilidade do juridicamente ordenado com o conteúdo social.
A norma, para ser eficaz, precisa estar em consonância com o mundo real. Não surte efeito, portanto, quando superada socialmente, como bem aponta a professora Ana Paula de Barcellos[33]. Desta forma, quando o comando contido na norma já foi socialmente superado, este deve deixar de ser aplicado, uma vez que nosso sistema é eminentemente representativo e sua representação pressupõe consonância entre o aspirado pela sociedade e o consagrado pelo processo Legislativo e o praticado pelo Judiciário.
Quando se pensa em “Adequação Social” é preciso se cuidar para não se equivocar com “Causa de Justificação”. Esta preocupação é ressaltada por Francisco de Assis Toledo[34]. Assim, a ação socialmente adequada está desde o início excluída do tipo porque se realiza dentro da normalidade social. Quando se pensa em causa de justificação, contudo, a conduta, apesar de socialmente inadequada, recebe autorização especial para a realização típica.
O exemplo que o mestre Toledo nos apresenta para elucidar as divergências entre os dois institutos é contundente. Traz à baila a hipótese da lesão corporal cometida em legítima defesa. Explicando o exemplo aponta que, embora esteja o fato justificado, o autor do delito poderá ser submetido aos trâmites de um processo criminal, para, ao final se reconhecer a exclusão do ilícito. Por outro lado, caso a lesão corporal fosse oriunda da prática de um desporto, como em um acidente do jogo, desde o início não haveria que se falar em conduta típica.
Reconhecer as particularidades da adequação social e das causas de justificação é fundamental quando se fala em insignificância. Nesta medida resta claro que furtar uma maçã não é uma conduta socialmente adequada, mas pode restar justificada. Conquanto seja um fato tipicamente formal, portanto capaz de autorizar uma demanda penal, não atende aos supostos da tipicidade material. Nesta medida, ausência de tipicidade material e insignificância autorizam a não-condenação penal.
Do que se expôs, resta claro que o Direito Penal moderno não pode ser pensado sem os ditames principiológicos. Não mais se pode entender o injusto penal meramente como fato típico e ilícito. Avançar esta discussão é fundamental para se superar a cultura da prisão em nome da cultura da inclusão.
2 INSIGNIFICÂNCIA: PRINCÍPIO INFORMADOR DA ORDEM PENAL
A questão da insignificância é salutar para o Direito Penal. Tal assertiva decorre do caráter subsidiário deste ramo do direito. O Direito Penal existe para manter a ordem e só atua em casos excepcionais. Em regra, a tutela concedida pelos demais ramos é suficiente para garantir a paz social.
Liberdade é bem jurídico fundamental. Por ser garantia fundamental, qualquer medida que a contrarie deve ser entendida como excepcional, uma vez que a privação da liberdade só se justifica quando for essencial para o resguardo de outro bem jurídico de inquestionável valia, como a vida.
Quando se pensa na insignificância, resta assente que não apenas a tipicidade formal interessa ao Direito Penal. Furtar uma maçã é, sim, conduta típica. Diz-se isto porque a apropriação de coisa alheia se consubstancia. Nada obstante, não se afigura razoável uma ação penal pública incondicionada visando à aplicação de uma pena que varia de 1 a 4 anos, como dispõe o artigo 155 do Código Penal. Exatamente por isto resta pacificado que questões como esta precisam sem entendidas à luz do princípio da insignificância.
Quando se pensa na insignificância como princípio informador da ordem penal, coíbem-se situações como a configurada na seguinte notícia: “justiça demora 2 anos para decidir sobre furtos de R$ 1”[35]. Não é razoável se punir com a privação de liberdade quem tenha cometido delito de potencial ofensivo acanhado e cuja repercussão social seja mínima. Não nos parece plausível que o Estado gaste mais de R$ 1.000,00[36] por mês para coibir condutas que representam, do ponto de vista objetivo, ofensa a centésimos deste valor. Não é razoável se jogar na conta da coletividade uma punição desta ordem, onde a persecução é muito mais onerosa que o bem da vida ofendido. Como aponta Marina Hamud de Andrade, defensora pública em São Paulo, “só de papel e tinta já vai esse valor”[37].
A hipótese das maçãs foi trazida para o corpo do texto. Do ponto de vista real, contudo, tem-se na decisão do juiz da 3ª Vara Criminal de Palmas, no Tocantins, Rafael Gonçalves de Paula, um exemplo concreto da aplicabilidade da insignificância. Sua decisão foi tão relevante que a Escola Nacional de Magistratura a incluiu em seu banco de sentenças.
A decisão interlocutória do juiz em referência foi pouco comum. Não é de se duvidar que nulidades sejam aventadas, afinal sua motivação não perpassa o lugar comum. Na verdade relatou, cogitou vários argumentos e mandou soltar Saul Rodrigues Rocha e Hagamenon Rodrigues Rocha, detidos sob acusação de furtarem duas melancias. Não expôs especificamente o argumento de que estava se valendo. Ainda assim, bom senso é percebido em cada linha de sua decisão. In verbis:
“Trata-se de auto de prisão em flagrante de Saul Rodrigues Rocha e Hagamenon Rodrigues Rocha, que foram detidos em virtude do suposto furto de 2 (duas) melancias.
Instado a se manifestar, o Senhor Promotor de Justiça opinou pela manutenção dos indiciados na prisão.
Para conceder a liberdade aos indiciados, eu poderia invocar inúmeros fundamentos: os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda e Ghandi, o Direito Natural, o princípio da insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios do chamado Direito alternativo, o furto famélico, a injustiça da prisão de um lavrador e de um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados, que sonegam milhões dos cofres públicos, o risco de se colocar os indiciados na Universidade do Crime (o sistema penitenciário nacional)... Poderia sustentar que duas melancias não enriquecem nem empobrecem ninguém. Poderia aproveitar para fazer um discurso contra a situação econômica brasileira, que mantém 95% da população sobrevivendo com o mínimo necessário. Poderia brandir minha ira contra os neoliberais, o consenso de Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a utopia do socialismo, a colonização européia... Poderia dizer que George Bush joga bilhões de dólares em bombas na cabeça dos iraquianos, enquanto bilhões de seres humanos passam fome pela Terra – e aí, cadê a Justiça nesse mundo? Poderia mesmo admitir minha mediocridade por não saber argumentar diante de tamanha obviedade.
Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas: não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir. Simplesmente mandarei soltar os indiciados.
Quem quiser que escolha o motivo.
Expeçam-se os alvarás.
Intimem-se.” [38] (destacou-se)
Parece-nos que o magistrado agiu dentro do espírito da razoabilidade e seus sucedâneos lógicos: necessidade, utilidade e adequação. Entendeu a alma da proporcionalidade. Um entendimento que afasta a análise do tipo da mera forma para avançar por seu conteúdo.
Partindo do que se depreende da decisão colacionada, resta claro que para uma conduta ser considerada criminosa deve ser feito também o juízo de tipicidade material, ou seja, a verificação da ocorrência do pressuposto básico para a incidência da lei penal, qual seja, lesão significativa a bens jurídicos relevantes da sociedade. Caso a conduta (formalmente típica) lese de modo desprezível o bem jurídico protegido, não há que se falar em tipicidade material. Assim, como uma condenação à privação de liberdade é improvável, inclusive por razões de política criminal, não se apresenta como razoável todas as circunstâncias da persecução penal.
O Direito Penal deve cuidar das condutas que a privação de liberdade seja o mais provável. Caso não seja, como em um crime de dano, necessário se mostra a ampliação dos espaços de diálogo, como na delegacia e na conciliação nos Juizados Especiais Criminais. Diz-se isto porque quem tem um bem danificado tem muito mais interesse na composição civil do que na condenação criminal. Nada obstante, a figura do dano se mantém típica.
As ponderações do parágrafo anterior partem do pressuposto de que o Direito Penal moderno tem por fundamento basilar a intervenção mínima. De que a área penal deve ser vista como última ratio, ou seja, última solução para o problema jurídico apresentado. No sentido do que aponta o mestre Toledo um ramo fragmentário. Por ser assim, sua aplicação subsidiária é caminho. Outras vias devem ser tentadas. Uma vez insuficientes, parte-se para a utilização do Direito Penal:
“Assim, no sistema penal brasileiro, por exemplo, o dano do art. 163 do Código Penal não deve ser qualquer lesão à coisa alheia, mas sim aquela que possa representar prejuízo de alguma significação para o proprietário da coisa; o descaminho do art. 334, parágrafo 1º, d, não será certamente a posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja quantidade ou cujo valor indique lesão tributária, de certa expressão, para o Fisco; o peculato do art. 312 não pode estar dirigido para ninharias como a que vimos em um volumoso processo no qual se acusava antigo servidor público de ter cometido peculato consistente no desvio de algumas poucas amostras de amêndoas; a injúria, a difamação e a calúnia dos arts. 140, 139 e 138, devem igualmente restringir-se a fatos que realmente possam afetar significativamente a dignidade, a reputação, a honra, o que exclui ofensas tartamudeadas e sem conseqüências palpáveis; e assim por diante.”[39] (destacou-se)
A insignificância ganha notoriedade em matéria penal em razão do insucesso das penas como meio de socialização do réu. Na verdade, em muitos casos, adentrar no sistema carcerário corrompe mais, pelo que a sanção penal perde seu objetivo: punir o delito e evitar novas incursões típicas.
Neste contexto, nas condutas que lesem bens jurídicos de pequena relevância e o impacto social do crime é leve, a tendência é a de atestar a atipicidade da conduta pela insignificância do bem lesado. Em alguns casos por medida de adequação social. Em outros por haver uma causa justificante.
A doutrina penal moderna se inclina para este princípio a fim de que se excluam delitos onde não haja o alcance da resposta demandada pela sociedade, como o que ocorre com o crime de dano, ainda previsto no artigo 163 do Código Penal, como salientou Francisco Toledo. Na verdade, trata-se de um ilícito civil, que, antes de qualquer coisa, atinge a esfera patrimonial do ofendido, e não sua integridade. Dito isto, resta claro que a composição civil é o caminho, e não a esfera penal. A relevância material da conduta é pequena sob o enfoque penal, por isto as conseqüências desta devem ser vistas pela ótica do Direito Civil.
Os postulados acerca da insignificância, que impõe a chamada tipicidade material, acabam por refletir na teoria da Tipicidade Conglobante, sustentada por Zaffaroni e Pierangeli. Veja-se:
“Pois bem: pode parecer que o fenômeno da fórmula legal aparente abarcar hipóteses que não são alcançadas pela norma proibitiva, considerada isoladamente, mas que, de modo algum, podem incluir-se na sua proibição, quando considerada conglobadamente, isto é, fazendo parte de um universo ordenado de normas. Daí que a tipicidade penal não se reduz à tipicidade legal (isto é, á adequação à norma legal), e sim que deva evidenciar uma verdadeira proibição com relevância penal, para o que é necessário, que esteja proibida à luz da consideração conglobada da norma. Isto significa que a tipicidade penal implica a tipicidade legal corrigida pela tipicidade conglobante, que pode reduzir o âmbito da proibição aparente, que surge da consideração isolada da tipicidade legal[40]”. (destacou-se)
Insignificância não implica em laurear condutas típicas. Ao contrário, implica em que a punição seja razoável. Implica na utilização via penal dentro da conglobação da norma. Toda ordem normativa persegue a uma finalidade e tem um sentido: garantir juridicamente a convivência. Qualquer norma que vá de encontro à sua finalidade acaba por ser desmedida. Sendo assim, a justificativa social da medita deve ser atestada. A norma deve atender ao suposto da adequação social e restar fundamentada em uma causa de justificação.
A ação penal deve ser instaurada sempre que for a via mais efetiva para garantir a paz social. Por outro lado, havendo outros meios, o Direito Penal se mostra inadequado. Assim como não se deve propor uma ação de conhecimento quando se tem um título executivo extrajudicial (por ser a execução o caminho e a ação de conhecimento caracterizar via imprópria por falta de condição da ação[41] interesse de agir na subespécie adequação), não se deve abarrotar varas criminais questionando danos, se a questão é, antes de tudo, de natureza civil. Aponta-se, com isto, que a insignificância só pode surgir à luz da finalidade geral que dá sentido à ordem normativa. Por esta razão, o que é insignificante para o Direito Penal, pode possuir significância em outros ramos do direito. É uma questão de adequação.
2.1 ANTECEDENTES E EVOLUÇÃO HISTÓRICA
As idéias sobre insignificância são significativas em um mundo marcado pelo ter e pelos descompassos sociais. Ainda assim, há quem sustente haver registros sobre a insignificância na História Antiga.
A maior relevância da insignificância é fato da contemporaneidade, mas a existência já pode ser notada no Direito Romano, conforme magistério de Diomar Ackel Filho: “no tocante à origem, não se pode negar que o princípio já vigorava no direito romano, onde o pretor não cuidava, de modo geral, de causas ou delitos de bagatela, consoante a máxima contida no brocardo de minimis non curat praetor”[42].
Seguindo o registro histórico colacionado, podemos apontar que o pretor não cuidava de delitos de bagatela como regra. O pretor não se atinha às coisas mínimas. É verdade que o Direito Romano nos trouxe muito mais referências sob a perspectiva civil. Ainda assim, não se pode negar a contundência da lição colacionada. Tanto é verdade que no ano de 2004, no julgamento do Habbeas Corpus 84.412, proveniente de São Paulo, o Supremo Tribunal Federal recobrou o preceito. Ao tratar do postulado da insignificância e da função do Direito Penal, asseverou o de minimis non curat praetor. Nesta linha trouxe para a realidade da jurisdição constitucional a máxima de que, para a privação de liberdade, o sistema jurídico há de considerar a real necessidade da medida. Que o pretor, Direito Penal, não cuida de coisas mínimas.
Não-obstante o reconhecimento do próprio Supremo Tribunal Federal em relação à máxima romana, houve, sim, uma notória discrepância entre o desenvolvimento do Direito Civil e o Direito Penal em Roma. Sabendo disto, Maurício Lopes[43] da dicotomia para criticar o registro de Ackel Filho. Nesta linha, aponta que os romanos tinham bem desenvolvido o Direito Civil, mas que não tinham a mínima noção do princípio da legalidade penal. Disto, aponta que naquele brocardo romano residiria uma máxima, mas não um estudo mais calculado. Com esse argumento conclui que é precipitado se creditar ao Direito Romano a origem histórica da insignificância.
A discussão enriquece qualquer trabalho. Nesta medida foi colacionada. Todavia, resta claro que Insignificância, nos moldes conhecidos, é criação do século XX e que, desde o lançamento da obra Kriminalpolitik und Strafrechtsystem por Roxin em 1970 – versada para o espanhol em 1972 por Muñuz Conde, consoante anuncia Luiz Flávio Gomes[44] –, a interpretação do injusto penal não mais se faz pela literalidade.
A partir de Roxin resta assente que o delito deve ser entendido de forma multidimensional, impondo para sua análise variáveis como conduta, tipicidade ofensiva, antijuridicidade, culpabilidade e punibilidade. Princípios políticos-criminais como intervenção mínima e proporcionalidade devem ser levados em conta por ocasião da incidência do Direito Penal.
As idéias acerca do princípio da insignificância – desconsideração dos delitos de bagatela para os doutrinadores alemães: Bagatelledelikte –, como dito no parágrafo anterior, surgem de forma significativa na Europa do século XX. E por que? Porque o século XX foi um século de antíteses. Uma fase de mutação, logo propícia para o borbulhar de idéias.
O século XX foi um período de intensa modificação social: duas grandes guerras, uma guerra fria marcada pela corrida armamentista, liberação dos costumes, intensas modificações nos meios de produção, fartura demasiadas, escassez em excesso etc. Um século de antinomias. Um período em que o estar em sociedade passou por uma mudança paradigmática. Uma fase que refletiu em mudanças sociais notórias, sobretudo no alargamento das diferenças sociais.
Em um mundo de antinomias, marcado por uma contraposição social sem precedentes, onde nunca se teve tanto bilionário, mas também tantos miseráveis, a razoabilidade é medida de extrema necessidade para garantir a convivência. Disto se pode dizer que a origem fática da insignificância é a patrimonialidade: o reconhecimento de que o dano patrimonial, para trazer reflexos ao Direito Penal, deve ser relevante.
2.2 CONCEITO DE INSIGNIFICÂNCIA
O conceito de insignificância não se encontra definido em nossa legislação. A interpretação doutrinária e jurisprudencial, contudo, tem permitido delimitar as condutas tomadas por insignificantes, o que se faz a partir do suposto de um Direito Penal mínimo e subsidiário.
O princípio em exame pode ser conceituado como sendo o preceito que permite aferir a não-tipicidade de fatos por serem inexpressivos. São fatos que constituem bagatelas, e cuja reprovabilidade geral não atinge o grau que justifique a coerção penal da conduta. Nesta medida, são irrelevantes para o Direito Penal.
Na linha tracejada, Alberto Silva Franco[45] associa o Princípio da Insignificância à Antijuridicidade Material. Aldo Montoro[46], também citado por Ackel Filho, acrescenta que além deste limite quantitativo-qualitativo, não há racional consistência de crime, nem justificação de pena, sendo irrelevante os fatos que se encontrem abaixo deste limite.
O princípio da insignificância, como instrumento de interpretação restritiva baseado na concepção de tipicidade material, permite a que se alcance a proposição político-criminal da atipicidade de condutas que, formalmente típicas, não atingem de forma relevante os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal.
Nos chamados crimes de bagatela as condutas são delitos. São fatos que, em um primeiro momento, moldam-se ao fato típico. Posteriormente, contudo, têm sua tipicidade desconsiderada por se tratar de ofensas a bens jurídicos que não causam reprovabilidade social considerável, de maneira que não se faz necessária a atuação do Direito Penal.
Dentro do exposto, retoma-se a necessidade da discussão nas fases pré-judiciais para se evitar prejuízos. Os delegados de polícia devem possuir preparo para orientar as pessoas envolvidas em delitos de bagatela, alertando, por exemplo, para o fato da maior importância da composição civil em um crime de dano. O mesmo se diz do promotor de justiça. É preciso se superar a frieza do texto legal para se fazer uma leitura inclusiva. Ter uma perspectiva de que a privação de liberdade é o último estágio na tentativa da composição da ordem social.
Ao se analisar a importância do princípio em exame, resta assente que a função jurisdicional, como atividade privativa do Estado, deve ser exercida sempre com os olhos voltados para uma eficácia vinculativa plena. Por isto mesmo, em razão de tal magnitude, verdadeiro ato de soberania, não deve se deter à consideração de bagatelas irrelevantes.
Na linha percorrida, temos que medidas como a “admoestação verbal” devem ser ampliadas. Conquanto vista de forma tímida por nossos governantes, como na Mensagem de Veto n. 1.447/98, anexada a este trabalho, resta-nos claro que esta medida pode ser muito mais efetiva do que a privação de liberdade, no sentido em que evolui o Direito Penal:
“o Direito Penal evoluiu no sentido de que novos métodos de repressão ao crime deveriam ser instituídos, mediante a previsão de sanções de natureza alternativa, que ao juiz seriam facultadas impor ao condenado, em caráter substitutivo às penas de detenção e de reclusão, desde que atendidos alguns requisitos relacionados com a pessoa do delinqüente e com o ilícito por ele perpetrado.”[47]
Pois bem, constatada a não-adequação das penas privativas de liberdade para atender aos fins a que se destinam, deve ser mudado o próprio entendimento acerca do Direito Penal. Se o fim último deste é a privação de liberdade com o fim de (re)socialização, mas a privação é remédio extremo e pouco eficaz, resta claro que as fases pré-penais precisam ser melhor entendidas. O diálogo deve ser ampliado e o formalismo superado.
2.3 INSIGNIFICÂNCIA NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA
Não obstante ter se sedimentado proposições acerca da insignificância em nossa doutrina, mostra-se forçoso concluir que este princípio ainda tem sido aplicado de forma tímida por nossos tribunais. Salvo casos excepcionais, como o do juiz Rafael Gonçalves de Paula, colacionado na abertura deste capítulo, a regra é a cultura do formalismo. Mesmo neste caso, que mereceu atenção da Escola Nacional de Magistratura, a posição do Ministério Público foi no sentido da manutenção da prisão. Não-obstante a pouco reprovabilidade, o membro do parquet “o opinou pela manutenção dos indiciados na prisão”, conforme já colacionado. Nossa prática consagra uma infeliz repulsa aos princípios de cunho político-criminal.
Dito isto, parece-nos estar havendo um preconceito ideológico em relação à Insignificância. É verdade que a percepção negativa da Insignificância já foi maior, mas, ainda assim, esta é percebida de forma pejorativa. Muitos temem que esta possa virar porto seguro da impunidade, por isto não lhe concedem efetividade, que fica latente.
Pensar na aplicação do princípio em exame por nossa jurisprudência levaria a uma só conseqüência: a descaracterização da tipicidade penal. Bem aplicada seria uma medida muito coerente com a ordem social. Repisa-se que não se está levantando a bandeira da impunidade, mas apenas reconhecendo que o Direito Penal deve ser aplicado de forma subsidiaria. Reconhecendo que socialização se faz no convívio, e não no sectarismo.
A consideração do parágrafo anterior no sentido da desconsideração de tipicidade representa marco jurisprudencial avançado, no exato sentir do que decidiu o Supremo Tribunal Federal, em voto relatado pelo ministro Celso de Mello, no Habbeas Corpus 84.412, oriundo de São Paulo. Poucas vezes se viu uma aplicação tão contundente do preceito da Insignificância. Por isto mesmo a colação do julgado se mostra uma exigência acadêmica. In verbis:
“PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL – CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL – DELITO DE FURTO - CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE - "RES FURTIVA" NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL.
O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da subsidiariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.
O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: ‘DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR’.
O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.
O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social”[48]. (destacou-se)
Não-obstante o entendimento no sentido de se afastar a tipicidade da conduta, que é que predomina na jurisprudência, há casos em que à insignificância nossos julgadores somam outros supostos. No julgado a seguir, por exemplo, noções acerca da restituição foram trazidas à colação. O desembargador Sylvio Baptista Neto pugnou pela mantença da absolvição não apenas em razão da pequena monta do valor furtado, mas também em razão da postura tomada pelos acusados. In verbis:
“FURTO. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. Como destacou o Magistrado, absolvendo os recorridos, embora constatada a existência e a autoria do delito, tenho que é despiciendo aprofundar o mérito. Isso porque tenho que é de se aplicar, na hipótese, os princípios da insignificância e da subsidiariedade. Verifica-se que o furto, praticado em concurso de agentes, redundou em dano de R$ 132,00 (cento e trinta e dois reais). Entrementes, é forçoso reconhecer que houve restituição, pelos acusados Márcio e Andrevis – comprovantes das fls. 68/72 -, da quantia total de R$ 100,00 (cem reais). Ainda, foi devolvido pelo co-réu Celi 40 (quarenta) latas de cerveja - depoimento da testemunha Cezisnando à fl. 92. DECISÃO: Apelo ministerial desprovido. Unânime”[49]. (destacou-se).
A questão da atipicidade da conduta é a mais relevante no que concerne às conseqüências da insignificância. É evidente que outros argumentos podem ser trazidos, e isto é válido. Ainda assim, a maior forca da aplicação da atipicidade reside em tomar por atípica uma conduta que, do ponto de vista forma, é típica. Formalmente típica, mas atípica do ponto de vista material.
Tais assentamentos são muito relevantes, e se mostram assim porque reconhecer a atipicidade da conduta implica em conceder ao Direito Penal um caráter que lhe é próprio: a subsidiariedade. Neste sentido, por exemplo, decidiu o Tribunal Regional Federal da 5ª Região no processo n. 9905370943/CE, relatado pelo desembargador Geraldo Apoliano. As proposições contidas na ementa do julgado são esclarecedoras, motivo pelo qual a colacionaremos. Vejamos:
“PENAL. DESCAMINHO. COTA DE IMPORTAÇÃO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E DA SUBSIDIARIEDADE. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. APLICAÇÃO.
1) Laudo merceológico de avaliação direta a apontar que o valor dos bens constritos não ultrapassou o limite da quota de importação. 2) O Direito Penal não se deve ocupar de ninharias. Aplicação, à espécie, do princípio da insignificância e da inexigibilidade da conduta diversa. 3) O Direito Penal não protege todos os bens jurídicos feridos, mas tão-somente aqueles mais importantes. Pode-se dizer, assim, que um dos princípios do direito penal é o da subsidiariedade. 4) Atipicidade penal da conduta. Improvimento da apelação”[50]. (destacou-se)
O caráter subsidiário do Direito Penal restou pacífico. Por esta razão fica claro que este deve se ater às questões onde se apresente como único meio de resolução do litígio apresentado. Não deve ser preocupar com ninharias como suposto de legitimidade, afinal nem todos os bem da vida se enquadram como objetos de sua alçada, mas apenas aqueles cuja tutela da ética, da moral, da religião ou de ramos como o Direito Civil e Administrativo não é suficiente.
O caminho da consideração da Insignificância parece ser o mais sólido por que caminha nossa jurisprudência. Ainda assim, nosso direito ainda é muito patrimonial, pelo que questões financeiras voltadas para a proteção do Ter ainda permeiam a cabeça de muitos julgadores. Diz-se isto com base na observação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, notadamente no Habbeas Corpus 49.423, no qual a sexta turma sustentou, sobre frágeis argumentos, parece-nos, que o valor do bem furtado não é determinante para a aplicação, ou não, da Insignificância. Em seu voto, sustentou o ministro Hamilton Carvalhido que: “Em que pese o valor do bem subtraído ter sido avaliado em R$ 80, não se pode concluir pela ínfima afetação do bem jurídico tutelado, notadamente pela presença da periculosidade social da ação do agente”. A questão da insignificância, que pensamos dever ser o ponto de partida para a aplicação da lei penal, foi relegada a figurante, mantendo-se a periculosidade como principal variável.
Conquanto a Insignificância tenha o condão de afastar a tipicidade material, o que se diz com forte arcabouço doutrinário, nosso Superior Tribunal pareceu no caso colacionado muito mais preocupado com a questão patrimonial. Nada obstante, desta mesma decisão, vale ser retirado o voto do ministro Nilson Naves, que assim se pronunciou: “a melhor das compreensões penais recomenda não seja mesmo o ordenamento jurídico penal destinado a questões pequenas – coisas quase sem préstimo ou valor.”
Questões patrimoniais são, eminentemente, civis. Nesta medida, mecanismos civilistas devem ser chamados à resolução do conflito como regra. É claro que quando se está diante de violência, o argumento apresentado perde força. Por outro lado, nos crimes patrimoniais, praticados sem violência contra a pessoa, se mostra um contra-senso a aplicação puramente formal da lei. Nestes casos, mais racional é se fazer uma interpretação conglobante e buscar auxílio em mecanismos de Direito Civil como a repetição de indébito.
APONTAMENTOS FINAIS
Vivemos em um Estado (Social) Democrático de Direito. Nossa doutrina tem asseverado com muita preponderância esta idéia. Sendo assim, pensamos que três assertivas se mostram elementares.
Ter um Estado Social implica em que os Direitos Sociais sejam implementados. Assim socialização se faz em sede de Direitos Sociais. A (re)socialização pretendida pelas escolas clássicas do Direito Penal, afeta à idéia de privação de liberdade, mostra-se pouco produtiva, devendo, por isto, o Estado se voltar para a inclusão social. Não se trata de incentivar ao delito quando este é considerado. Trata-se de reconhecer que a privação de liberdade daquele que não foi nem socializado nada soma ao espírito constitucional. Em verdade, mostra-se uma antinomia pretender ressocializar quem não foi nem socializado, já que privado de Direitos Sociais.
A discussão sociológica é fundamental, pois, como se viu no corpo do texto, a noção contemporânea de bagatela se molda em uma sociedade de grande diferença social. Portanto, como o Brasil é um país de países, com as mais diversas realidades, o suposto da Insignificância tem muito a somar com a ordem penal.
Ter um Estado Democrático aduz para a prerrogativa de participação, pois participar é legítimo. Esta assertiva aduz para a obrigação estatal de investir em políticas públicas que tendam à inclusão. Investir para evitar o assoberbamento do Poder Judiciário, já que este poder, sobretudo em matéria penal, se mostra subsidiário, pelo que só deve ser chamado em casos excepcionais. Quando se pensa em Direito Penal, o Poder Judiciário é chamado para segregar, quando o espírito constitucional pretende agregar. Sendo assim, mais uma vez se mostra relevante tratar deste ramo do direito como sendo fragmentário.
Temos ainda, e sobretudo, um Estado de Direito. Ter um Estado de Direito implica em se viver sobre o primado da Lei. Não qualquer norma, como se viu, mas a Lei em sentido estrito quando a matéria em exame for de cunho penal.
Ter a Lei para tratar de matéria penal é suposto do Estado de Direito. Agora, como temos um Estado Social Democrático, só o suposto legalidade é bastante. A Lei só se legitima, e isto é assente entre nós desde a Carta de 1824, que já falava em utilidade pública da Lei.
A noção de utilidade pública de outrora é chamada nos dias de hoje de razão de justificação. Um argumento salutar, já que qualquer norma deve ter uma razão de justificação que caiba no espírito constitucional.
A efetivação da aplicação das normas penais nos dias de hoje passa por duas idéias elementares: não se pode punir um comportamento que a sociedade não considera digno de receber punição; e, o Direito Penal não se deve ocupar de bagatelas. A norma tem que se justificar, e esta justificativa é encontrada na adequação social. Além disto, quando a norma se justifica, mas a realidade fática apresenta outra demanda, pode ser que a conduta típica seja conglobável, por exemplo nos casos de inexigibilidade de conduta diversa.
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[1] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 133.
[2] Ibidem.
[3] MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998, p. 33.
[4] Enquanto os Direitos Humanos de primeira geração impõem um dever de abstenção do Estado, os de segunda determinam uma prestação positiva deste, contexto em que surgem os Direitos Sociais. Neste sentido aponta Carlos Leite que: “inovando substancialmente em relação ao regime anterior, a Constituição Federal de 1988 preocupou-se não apenas com a proteção dos direitos humanos de primeira dimensão (direitos civis e direitos políticos) e os de segunda dimensão (direitos sociais, econômicos e culturais), mas, concomitantemente, com a tutela dos direitos humanos de terceira dimensão, também denominados novos direitos, direitos híbridos, direitos ou interesse metaindividuais.” LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ministério Público do Trabalho: doutrina, jurisprudência e prática. 2. ed. São Paulo: Ltr, 2002, p. 145.
[5] JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal: Parte Geral. 17. ed. 1. v. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 51.
[6] Este caráter se deve ao disposto no artigo 60, § 4º, IV da Carta Política, onde se lê que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir, os direitos e garantias individuais”. Legalidade é, assim, uma garantia individual, com a qual se retira do poder constituinte (constituído) derivado a prerrogativa de imiscuir em matéria afetas aos direitos individuais.
[7] Perguntado sobre a alteração da maioridade penal, apôs o jurista Ives Gandra que a consulta popular é a única saída para a alteração da maioridade penal sem a necessidade de uma nova constituinte. Apontou, ainda, que uma mudança sem este rito seria inconstitucional. Neste sentido: “uma cláusula é pétrea até deixar de ser. Qual é a forma de vencer uma cláusula pétrea? O plebiscito ou referendo. Seria a única hipótese, ao meu ver, e não seria pacífico entre os constitucionalistas”. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Relator de projeto
da maioridade penal defende consulta popular. Paranavaí: Diário do Noroeste. Disponível em: <www.diariodonoroeste.com.br/nacional.htm> Acesso: 8 setembro 2010.
[8] Constituição do Império de 1824. Brasília: Casa Civil. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao24.htm> Acesso: 04 maio 2007.
[9] Júlio Fabbrini Mirabete. Apud OLIVEIRA, Luiz Carlos de. À luz do princípio da legalidade e seus corolários, há possibilidade de medida provisória versar sobre crime e pena? Teresina: Jus Navigandi. Disponível em: <www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=1044> Acesso: 02 setembro 2010.
[10] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 22 e ss.
[11] Seguindo a moderna doutrina penalista nosso legislador originário adotou tal preceito. Lê-se no art. 5º, XXXIX, da CF que: “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.”
[12] A proposição Lei Escrita tem o condão de resguardar o cidadão de tentativas afoitas de o se o incriminar. Assim, a menos que sua conduta tenha sido expressamente escrita dentro das figuras típicas, essa será lícita. Pode-se resumir tal postulado com a afirmativa de que, em regra, toda conduta é lícita, salvo previsão no taxativo rol do Direito Penal.
[13] A Lei Estrita restringe a criação de tipos penais e a cominação de sanções apenas à Lei, esta considerada em sentido estrito. Com isso veda-se o uso da analogia para estender para se incriminar uma conduta não prevista em lei como contrária à ordem. Nesse diapasão cumpre informar que há discussões sobre a possibilidade da utilização das MPs como instrumentos de criação de tipos penais.
[14] A Lei não deve deixar margem a dúvidas. Por isso não deve fazer uso de normas muito abrangentes nem se valer de tipos incriminadores genéricos. A lei penal deve ser clara e de fácil entendimento. Acessível a todos, portanto!
[15] Uma discussão muito interessante diz pertinência ao caso Daniela Perez. O homicídio qualificado de que foi vítima, ao tempo do ocorrido, não se encontrava referido na Lei dos Crimes Hediondos. Assim os autores do delito tiveram o benefício da progressão de regimes. Com a alteração da lei os homicídios qualificados foram tomados por hediondos, e, portanto, não mais sujeitos ao regime da progressividade de regimes.
[16] Osvaldo Palotti Junior. Apud CARLOMAGNO, Fernando. Princípio da Legalidade ou da Reserva Legal. São Paulo: Damásio de Jesus. Disponível em: <www.advogado.adv.br/estudantesdireito/damasiodejesus/ fernandocarlomagno/legalidadereservalegal.htm#_msoanchor_1> Acesso: 05 setembro 2010.
[17] TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit., p. 23.
[18] Neste sentido: TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2001; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à constituição Brasileira de 1988. São Paulo, Saraiva, 2000; e, PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
[19] GOMES, Luiz Flávio. Lei formal como fonte única do direito penal (incriminador). Revista dos Tribunais. São Paulo, ano 79, n. 656, p. 257-68, jun.1990, p. 265.
[20] BIANCHINI, Alice. Considerações críticas ao modelo de política criminal paleorepressiva. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 772, p. 455-62, fev. 2000, p. 458.
[21] A legalidade em tela diz pertinência aos cidadãos. Em outra medida, quando se está a analisar o administrador público, a legalidade que interessa aponta na direção de que legal é apenas o que a lei determina, salvo as hipóteses de discricionariedade. Legalidade na administração pública significa, portanto, agir determinado pela lei. Neste sentido é a lição de Bandeira de Melo: “o princípio da legalidade, no Brasil, significa que a Administração nada pode fazer senão o que a lei determina. Ao contrário dos particulares, os quais podem fazer tudo o que a lei não proíbe, a Administração só pode fazer o que a lei antecipadamente autorize. Donde, administrar é prover aos interesses públicos, assim caracterizados em lei, fazendo-o na conformidade dos meios e formas nela estabelecidos ou particularizados segundo suas disposições. Segue-se que a atividade administrativa consiste na produção de decisões e comportamentos que, na formação escalonada do Direito, agregam níveis maiores de concreção ao que já se contem abstratamente nas leis.” MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 95.
[22] Primado da Lei é a essência do Estado de Direito. Surge com a experiência constitucional do final do século XVIII, corporificada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 14 de julho de 1789. Esta declaração vem para superar o absolutismo então imperante, onde os exercentes do poder corporificavam a máxima “O Estado Sou Eu”, sobretudo Luís XIV, que governou a França entre 1774 e 1792.
[23] TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit., p.17.
[24] BITENCOURT, Cézar. Novas Penas Alternativas. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 34.
[25] Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Os representantes do povo francês, constituídos em Assembléia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos Governos, resolveram expor em declaração solene os Direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem, a fim de que esta declaração, constantemente presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre sem cessar os seus direitos e os seus deveres; a fim de que os atos do Poder legislativo e do Poder executivo, a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reclamações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral. Por conseqüência, a Assembléia Nacional reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do Homem e do Cidadão. BIBLIOTECA Virtual de Direito Humanos. Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. São Paulo: Direitos Humanos. Disponível em: <www.direitoshumanos.usp.br/counter/Doc_Histo/texto/Direitos_homem_cidad.html> Acesso: 5 setembro 2010.
[26] LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da Insignificância no Direito Penal. Análise à Luz da Lei n. 9.099/95 - Juizados Especiais Criminais e da Jurisprudência Atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 75.
[27] MAÑAS, Carlos Vico. O Princípio da Insignificância no Direito Penal. Cuiabá: Justiça Federal. Disponível em: <www.mt.trf1.gov.br/judice/jud4/insign.htm> Acesso: 15 fevereiro 2007.
[28] Cf.: WELZEL. Apud. SANGUINÉ, Odone. Observações sobre o Princípio da Insignificância. Fascículos de Ciências Penais. Sergio Antonio Fabris. Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 36-50, jan./mar. 1990.
[29] Esta concepção de sistemas auto-referenciados é de que se valem Luhmann e Teubner para explicar o sistema legal. Luhmann, partindo da estrutura geral da teoria da sociedade, aponta que o sistema legal deve ser entendido como um subsistema funcional. Tal sistema se constitui a partir de suas funções, determinadas no nível do sistema societário. Os arranjos requerem autonomia funcional, porque nenhum outro sistema desempenhará suas funções, pelo que a autonomia é uma necessidade fática. Cf.: LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito. Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1983; TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
[30] SIQUEIRA, Flávio Augusto Maretti. A Insignificância no Direito Penal Moderno. Belo Horizonte: Praetorium. Disponível em: <www.praetorium.com.br/index.php?section=artigos&id=9> Acesso: 04 maio 2007.
[31] TOLEDO, Francisco de Assis. Apud SIQUEIRA, Flávio Augusto Maretti. Ibidem.
[32] Uma máquina autopoiética é uma máquina organizada como um sistema de processos de produção de componentes concatenados de tal maneira que produzem componentes que: I) geram os processos (relações) de produção que os produzem através de suas contínuas interações e transformações; e, II) constituem à máquina como uma unidade no espaço físico. MATURANA, Humberto Romesín; VARELA G., Francisco. De Máquinas e Seres Vivos: Autopoiese – a organização do vivo. 3.ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, p. 71.
[33] BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Principio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 76.
[34] TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit., p. 131-32.
[35] PENTEADO, Gilmar. Justiça demora 2 anos para decidir sobre furtos de R$ 1. Vitória: Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Disponível em: <ww2.tj.es.gov.br/Novo/conteudo.cfm?conteudo=4184> Acesso: 28 agosto 2010.
[36] Ibidem.
[37] Ibidem.
[38] HERDY, Ronaldo. Crime sem preço: Juiz manda soltar acusados de furtar duas melancias. São Paulo: Consultório Jurídico. Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/static/text/45918,1> Acesso: 5 setembro 2010.
[39] TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit., p. 133.
[40] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 550.
[41] As condições da ação são: possibilidade jurídica do pedido, legitimidade para a causa e interesse de agir, que se desdobra em utilidade e adequação.
[42] Cf.: ACKEL FILHO, Diomar. O Princípio da Insignificância no Direito Penal. Revista Jurisprudencial do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. São Paulo, n. 94, p. 72-79, abr-jun 1988, p. 73.
[43] LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da Insignificância no Direito Penal. Op. cit., p. 37-38
[44] GOMES, Luiz Flávio. Delito de bagatela, princípio da insignificância e princípio da irrelevância penal do fato. São Paulo: Instituto Luiz Flávio Gomes. Disponível em: <www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20041008145549539> Acesso: 28 agosto 2010.
[45] FRANCO, Alberto Silva. Apud ACKEL FILHO, Diomar. Op. cit., p. 79.
[46] MONTORO, Aldo. Apud ACKEL FILHO, Diomar. Op. cit., p. 79.
[47] MENSAGEM 1.447, de 25 de novembro de 1998. Brasília: Casa Civil. Disponível em: <www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/Mensagem_Veto/1998/Mv1447-98.htm> Acesso: 25 agosto 2010.
[48] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habbeas Corpus 84.412/SP. Relator: Ministro Celso de Mello. DJ, 19 nov. 2004, p. 37.
[49] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Processo n. 70013220009. Relator: Desembargador Sylvio Baptista Neto. Julgado em 01 dez. 2005. Unânime. Disponível em: <www.tj.rs.gov.br> Acesso: 02 setembro 2010.
[50] PERNAMBUCO. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Processo n. 9905370943/CE. Relator: Desembargador Federal Geraldo Apoliano. DJ, 19 dez. 1999, p. 1038.
Juíza de Direito em Roraima. Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA. Professora licenciada de Direito Penal da FACSUM. Pós-Graduada em Direito Público pela UNIGRANRIO. Associada ao CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pelo Instituto Vianna Júnior.<br>
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