A Carta Magna de 1988 prevê como direito social fundamental o direito ao lazer em seu artigo 6º, que, por ter status constitucional, é fundamento de validade das normas do ordenamento jurídico, devendo ser utilizado como diretriz interpretativa.
A esta mesma conclusão também se chega ao analisar o direito ao lazer como um direito fundamental, que, embora não tenha sido objeto de minuciosas considerações pelo legislador constituinte, possui eficácia imediata nos termos do art. 5º, §1º da Constituição.
Segundo Sarlet[1], todos os direitos fundamentais sociais possuem a eficácia imediata proclamada pelo supracitado artigo, todavia alguns, por serem direitos de defesa, são considerados normas auto-aplicáveis e outros, em razão da sua função prestacional e da forma que foram positivados, não podem ser efetivados da mesma forma.
Conquanto exista esta diferenciação de aplicabilidade, a doutrina moderna defende que todos os direitos fundamentais possuem uma dimensão objetiva e uma dimensão subjetiva[2]. A dimensão subjetiva protege o indivíduo da intervenção do Estado e a dimensão objetiva funciona como valor de toda sociedade, impondo a utilização dos direitos fundamentais como diretrizes de interpretação, como parâmetro para o controle de constitucionalidade e para direcionar a conduta do Poder Público e dos particulares.
Nas relações de trabalho, o direito ao lazer tem aplicabilidade com base na teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais. Defende esta teoria que os direitos fundamentais podem ser aplicados nas relações privadas ainda que não haja regulamentação por parte do legislador[3], como é o caso do direito ao lazer. Esse entendimento vem sendo aplicado pelo Supremo Tribunal Federal, conforme RE 160.222-8 e RE 158.215-4.
Com efeito, considerando a eficácia imediata e objetiva dos direitos fundamentais, conclui-se que o direito social ao lazer pode ser aplicado na esfera privada e que, por força da sua eficácia irradiante, as normas infraconstitucionais devem ser interpretadas à luz deste.
Nessa pegada, os artigos da CLT devem ser interpretados à luz do direito ao lazer, como, por exemplo, o art. 62, que dispõe, in verbis:
Art. 62 - Não são abrangidos pelo regime previsto neste capítulo:
I - os empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de empregados;
II - os gerentes, assim considerados os exercentes de cargos e gestão, aos quais se equiparam, para efeito do disposto neste artigo, os diretores e chefes de departamento ou filial.
O capítulo em que se encontra inserido o citado dispositivo regulamenta a duração da jornada de trabalho. Nele foram previstos os limites da jornada, as possibilidades desta ser prorrogada, o intervalo interjornada, o trabalho noturno e o repouso semanal remunerado. Nessa linha, a interpretação literal do mencionado artigo permite que se entenda que aos empregados por ele referidos não seriam assegurados qualquer destes direitos.
Entrementes, tendo em vista que o art. 62 da CLT é uma norma infraconstitucional, devendo ser analisada à luz da Constituição Federal e dos direitos fundamentais, tem-se que a melhor interpretação do referido dispositivo deve levar em consideração o direito ao lazer.
O direito ao lazer pode ser entendido como o direito ao descanso, à folga, ao repouso, ao tempo livre, ou ainda, conforme asseverou Souto Maior[4], o direito ao não-trabalho. Enfim, o direito ao lazer é o direito de não trabalhar.
Segundo Otávio Calvet[5], o direito ao lazer deve ser observado sob duas dimensões: a dimensão humana e a dimensão econômica. Esta entende o lazer como um meio para a busca do pleno emprego, um incentivo a outros setores da economia e uma forma de restaurar a produtividade do trabalhador.
Por sua vez, a dimensão humana o entende como uma necessidade biológica, social, psíquica e existencial do trabalhador, visto que a não preservação de períodos de lazer prejudica a saúde do trabalhador, que fica mais exposto à aquisição de doenças físicas e psíquicas, bem como sua vida social, posto que reduz o convívio do empregado com a família. Além disso, aumenta os riscos de acidentes de trabalho. Nessa senda, a proteção do direito ao lazer reduz os riscos de se concretizar a denominada “infortunística do trabalho”[6].
Sob a ótica do direito ao lazer, não é admissível que seja exigido dos altos empregados e daqueles que exercem atividade externa a prestação de jornada ilimitada ou mesmo excessiva, sob pena de se violar o referido direito fundamental em sua dimensão humana e econômica, bem como de afastar a sua dimensão objetiva.
Não se pode entender que os altos empregados e os que cumprem atividade externa, em razão da liberdade que aqueles possuem e da dificuldade de controlar a jornada destes, possam ficar à disposição da empresa por tempo indefinido, seja no ambiente de trabalho, seja através do uso de aparelhos eletrônicos, tendo em vista que tal conduta prejudica a saúde, a segurança, fere o direito ao lazer, à intimidade e à vida privada destes trabalhadores.
Sopesando o direito ao lazer, à intimidade, à vida privada e a função social da empresa de um lado; e a livre iniciativa de outro, força é de convir que os primeiros preponderam, razão pela qual não há como se admitir a total liberdade na imposição das jornadas dos trabalhadores referidos no art. 62 da CLT.
Dessa feita, pode-se concluir que uma interpretação gramatical do art. 62 da CLT, fere o direito ao lazer por permitir uma redução exacerbada ou até mesmo a supressão do seu gozo, o que viola sua dimensão econômica e humana e afasta sua dimensão objetiva, posto que não observa a eficácia irradiante deste.
BIBLIOGRAFIA
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. “Aspectos de Teoria Geral dos Direitos Fundamentais” In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. 1 ed, 2ª tiragem. Brasília: Bookseller, 2002.
CALVET, Otávio Amaral. Direito ao Lazer nas Relações de Trabalho, 1ª edição, Rio de Janeiro: LTR, 2006, pág 77 a 88. Material da 3ª aula da Disciplina Direitos Fundamentais e Tutela do Empregado, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito e Processo do Trabalho – UNIDERP/REDE LFG.
_______. Direito ao Lazer nas Relações de Trabalho, 1ª edição, Rio de Janeiro: LTR, 2006, pg. 89 a 117. Material da 3ª aula da Disciplina Direitos Fundamentais e Tutela do Empregado, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito e Processo do Trabalho – UNIDERP/REDE LFG.
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 7. ed. São Paulo: LTR, 2008. 1478 p.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008, 811 p.
MAIOR, Jorge Luiz Souto. Direito à Desconexão do Trabalho, in Núcleo Trabalhista Calvet, Disponível em http://www.calvet.pro.br/artigos/DO_DIREITO_A_DESCONE XAO_DO_TRABALHO.pdf, Acesso em 23/01/2009. Material da 3ª aula da Disciplina Direitos Fundamentais e Tutela do Empregado, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato
Sensu TeleVirtual em Direito e Processo do Trabalho – UNIDERP/REDE LFG.
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