I. Introdução
Em decisão publicada no mês de maio do ano 2009, o Superior Tribunal de Justiça tornou a enfrentar o tema da reparação pecuniária por abandono afetivo ou moral, apenas dignando-se, no entanto, a reiterar entendimento anunciado poucos anos antes, quando do julgamento do Recurso Especial 757411/MG.
Na contramão do posicionamento outrora esteado pelas instâncias inferiores com respaldo em significativa parcela da doutrina civil-constitucionalista, a Egrégia Corte pôs mais uma pá de cal no assunto, sedimentando a tese negativista da compensabilidade de danos morais sofridos em razão de abandono afetivo, nos seguintes termos:
CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. RECONHECIMENTO. DANOS MORAIS REJEITADOS. ATO ILÍCITO NÃO CONFIGURADO.
I. Firmou o Superior Tribunal de Justiça que "A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária" (Resp n. 757.411/MG, 4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, unânime, DJU de 29.11.2005).
II. Recurso especial não conhecido.
(REsp 514.350/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 28/04/2009, DJe 25/05/2009)
Sem pretensão de exaurir a discussão acerca da reparação dos danos morais provocados pelo abandono moral na relação paterno-filial, objetiva-se, através do presente estudo, resgatar o debate sobre tão relevante tema, precipitadamente abortado ou, ao menos, arrefecido, pelos precedentes supra referidos, tão simplistas quanto destoados da nova realidade social e jurídica da família.
II. Perfis social e jurídico da família contemporânea
Com efeito, as vicissitudes sofridas pelas relações sociais, especialmente, em virtude urbanização acelerada e da emancipação feminina, modificaram substancialmente a organização familiar ao longo do século XX, conferindo-lhe um perfil mais concentrado na busca da felicidade individual, na igualdade de gêneros, na valorização da dignidade dos filhos e da solidariedade recíproca em lugar dos interesses utilitaristas e no despotismo patriarcal do passado liberal-individualista da família.
De outro lado, os mais recentes indicadores sociais brasileiros evidenciam arranjos familiares multifacetários e flexíveis, moldados ao sabor dos encontros (e desencontros) afetivos e, por isso mesmo, menos duráveis. Nessa esteira, evidencia-se o crescimento de lares com ausência da figura paterna ou materna, situação factual que está a exigir dos profissionais do direito uma reflexão mais profunda, especialmente no âmbito do direito das famílias.
Essa nova conformação das relações de família, se de um lado espelha evolução e conquista, de outro, expõe desordem, pois, embora democrática e flexível, não logrou isentar-se de certas problemáticas, que, ao contrário, se aprofundaram, como, por exemplo, a ausência dos pais, a debilidade dos limites que se impõem aos filhos e as dificuldades de reduzir os índices de conflitos por eles apresentados.
Os inúmeros pedidos de indenização deduzidos por filhos em face de pais ausentes visando à compensação dos danos morais e psicológicos causados à sua personalidade são as maiores provas dessa realidade bipartida, que requer dos operadores do Direito uma nova postura, mais comprometida com a tutela dos interesses existenciais dos familiares, da sua personalidade e dignidade.
As novas demandas de família, na realidade contemporânea, não se cingem aos interesses patrimoniais. São demandas de afeto, voltadas à tutela da confiança, da boa-fé, dos legítimos interesses afetivos, que não se dirimem à luz dos vetustos institutos do Direito de Família.
Impende reconhecer que a família reiventou-se social e juridicamente, reencontrando sua unidade na afetividade, seu elemento nuclear e definidor. De uma instituição eminentemente matrimonial, patriarcal e hierárquica, transmudou-se em entidade de afeto e entre-ajuda, voltada à realização da dignidade humana dos seus membros.
A Constituição de 1988 assimilou tais transformações sociais. Recepcionou, em pé de igualdade, as novas entidades familiares constituídas à margem do casamento e proclamou a igualdade de gêneros e de filhos, bem como a liberdade de constituição, extinção e planejamento familiar, abolindo definitivamente o modelo patriarcal herdado da fase colonial e fazendo emergir uma nova concepção da família, multifacetária, plural e, precipuamente, afetiva.
Além do mais, definiu princípios e valores específicos no que concerne às relações familiares, impondo a necessidade de se deslocar para a sua tábua axiológica o ponto de referência antes localizado na Lei Civil codificada e de se individuar o sistema civil de forma mais harmonizada com os valores fundamentais da pessoa humana, situados no vértice da nova ordem constitucional.
Com isso, altera-se, inescapavelmente, o sentido da proteção jurídica da família, que volve sua atenção para a tutela qualificativa das relações interpessoais, essencialmente funcionalizada à dignidade de seus membros. A entidade familiar converte-se em uma unidade essencialmente instrumental, voltada à realização espiritual e desenvolvimento da personalidade de seus membros, sendo a sua proteção condicionada ao atendimento dessa função.
III. A fundamentalidade material do direito à afetividade e a compensabilidade dos danos morais decorrentes da sua violação
A criança e o adolescente, dada a sua peculiar condição de dependência da estrutura familiar, são protagonistas desta nova conformação funcionalizada da família, lastreada no afeto, na solidariedade e na responsabilidade parental, passando, de objeto de direito - à qual eram reduzidos no modelo patriarcalista, vigente desde os primórdios do Direito de Família brasileiro até o advento da nova Lei Civil - à condição de sujeitos de direitos.
Tamanha inversão, por seu turno, enseja uma profunda modificação do conteúdo do poder familiar, que, sendo, hoje, menos uma prerrogativa e mais um dever, converte-se em múnus, em função a ser exercida em atenção ao melhor interesse da criança e em respeito à sua especial condição de pessoa em desenvolvimento.
Nesse diapasão, os deveres parentais ganham conotação profundamente finalística, voltada ao atendimento dos direitos fundamentais dos menores, dispostos explícita e implicitamente na Constituição (art. 227) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Título II).
Dentre os direitos implícitos, vislumbra-se o direito à afetividade paternal/maternal, essência existencial do poder familiar, propiciada pelo desvelo e convívio profícuo que oportunize aos filhos o pleno desenvolvimento de suas potencialidades e a construção da própria liberdade.
Sendo o valor que condensa o real sentido dos princípios norteadores da família, notadamente os da solidariedade, igualdade e liberdade familiar, constituindo a nota essencial que especializa, na relação de filiação, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana, verdadeiro fundamento e essência dos direitos fundamentais, a afetividade, embora não esteja positivado no catálogo constitucional formal, reveste-se de fundamentalidade material, encontrando assento no art. 5º, § 2º da CRFB/88, verdadeira cláusula de abertura material dos direitos fundamentais.
Não se trata, porém, de um “direito ao amor”. Menos que um apelo romântico, o direito à afetividade possui um apelo ético, de cumprimento responsável dos deveres legais inerentes à paternidade – de criação, cuidado, educação e companhia. A sua consecução se dá precisamente por meio do cumprimento responsável desses deveres, que de outro modo não se pode dar senão pela convivência afetuosa.
A afetividade distingue-se, destarte, do afeto e do amor, que são fatos anímicos de ocorrência concreta necessária. Constitui, diversamente destes, um liame psíquico entre as partes, que se revela, no meio interno e social, pelo trato afetuoso, fraterno, solidário que compõe o estado de filiação. Nesse sentido, tem inegável força normativa, enquanto condicionante do exercício legítimo da paternidade (e maternidade), impondo dever e obrigação aos pais em relação à pessoa dos filhos, ainda que na realidade existencial entre eles tenha desaparecido, ou mesmo, nunca existido o afeto.
Inflige aos pais e dever de efetivamente preencherem o seu “lugar” na estrutura familiar, sem o que se abre, pela falta de referência e identidade, um vazio na formação psicológica e moral da criança ou adolescente.
É o que retrata Pereira (2004, p. 134):
Não se trata, aqui, de uma imposição jurídica de amar, mas de um imperativo judicial de criação da possibilidade da construção do afeto, em um relacionamento em que o amor, a afetividade lhe seria inerente. Essa edificação torna-se apenas possível na convivência, na proximidade, no ato de educar, no qual são estruturados e instalados a referência paterna.
Com o mesmo entendimento, merecem registro, dentre outros: Lôbo (2006), Hironaka (2000) e Silva (2004).
Pois bem. Na esteira do entendimento doutrinário acima esposado, o dever de afetividade não se confunde com uma obrigação de amar. Trata-se, na realidade, de um imperativo jurídico de criação da possibilidade da construção do afeto, o que só se torna viável na convivência, na proximidade, no ato de educar, no qual se estruturam e instalam as referências paterna e materna.
Destarte, o pai (ou mãe) que se omite do dever de convivência afetuosa com seus filhos, não está desrespeitando preceito apenas de índole moral, mas de ordem supralegal, mal-educando e interferindo negativamente na formação da personalidade do menor, devendo responder pelos danos causados a estes, com fulcro na garantia constitucional inscrita no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal.
A tutela da omissão afetiva não deve cingir-se à disciplina do direito de família, que pune o abandono filial exclusivamente mediante a destituição do responsável do poder familiar.
Destituir do poder familiar o pai que descumpriu esse dever faltando com os cuidados afetivos junto ao filho, ao longo do desenvolvimento da criança, soa muito mais como uma sanção premial que punitiva.
A supressão do pai omisso representa, em verdade, a coroação de uma conduta ilícita e prejudicial aos interesses do menor. Premia a omissão e o pai relapso, pois lhe retira o dever, a obrigação, que este ascendente não fez questão alguma de exercer, tanto que sofreu a demanda pelo abandono que deu causa.
Há, pois, necessidade de enfrentamento da questão sob a perspectiva daquele contra quem foi descumprido o dever jurídico de afetividade. Isto é, a solução do problema deve inclinar-se para o lado da vítima e suscitar outra ordem de inquietações que se condensem na preocupação com a violação de seus direitos de personalidade e com recuperação de sua integridade ou moral, como instrumento de superior categoria e valoração, endereçado à mantença da dignidade da pessoa humana, credora da máxima proteção e efetividade na ordem jurídica.
Nessa perspectiva, um dos principais instrumentos jurídicos de tutela previstos em nosso sistema consiste a reparação do dano moral, elevada, igualmente, à categoria de garantia fundamental, com a promulgação da Constituição de 1988.
Frise-se, nesse âmbito, que as profundas inflexões sofridas pelo dano moral na nova ordem jurídico-social, denotam uma preocupação cada vez maior com a tutela dos direitos da personalidade, de onde resulta a sua inegável convergência com os princípios norteadores das relações de família, mormente as de filiação.
A reparação civil sofreu uma progressiva evolução deslocando seu eixo da proteção de interesses eminentemente patrimoniais, passando a vislumbrar pessoa sob ângulo diverso, valorizando e protegendo os aspectos que lhe são inerentes em razão da sua condição humana.
Concebida, assim, sob essas novas bases, especialmente no campo específico do dano moral, não há, de resto, fundamento lógico-jurídico que justifique a sua não aplicação nas relações de família, afinal seus membros não se desabrigam da proteção conferida aos direitos da personalidade pela circunstância de ter sido a violação praticada nos limites do núcleo familiar.
Urge, portanto, abandonar a idéia de que a aplicação das normas de responsabilidade civil na esfera das relações de família representa uma ameaça de destruição dos vínculos afetivos que caracterizam essas relações humanas.
Sua aplicação na relação paterno-filial, conforme salientado no presente estudo, antes de constituir um fator desordenador da família, resgata a sua honorabilidade perante o meio social, configurando um instrumento de tutela da dignidade humana naquela que é, em primeiro plano, a entidade propulsora do desenvolvimento da personalidade individual.
A tese negativista da reparabilidade do dano moral ao filho desassistido afetivamente pelos próprios pais, encampada pelo Superior Tribunal de Justiça, data vênia, ressente-se de arcaísmos, pois revolve dos escombros os antigos dogmas da fase da irreparabilidade do dano moral, definitivamente suplantados após a previsão constitucional expressa da sua reparação autônoma.
A remansosa resistência de seus adeptos à ingerência de outros ramos do direito privado no campo das relações próprias ao Direito das Famílias, não se coaduna com a hermenêutica sistematizante do novo Direito Civil constitucionalizado. Eminentemente principiológico, o novo sistema civil não é monolítico, hermético, mas aberto e dinâmico. Privilegia, assim, a construção do direito pelo intérprete, com vistas à perenidade da norma em face das vicissitudes sociais e à harmonização do sistema civil-constitucional.
Tampouco se justifica, no estado atual da ciência jurídica, a negativa do direito à compensação pecuniária do filho pela impossibilidade de se coagir o pai a amá-lo. Afinal, a indenização não sanciona a falta de amor - que, por ser fato psicológico, queda imune à coercibilidade jurídica - mas a violação dos deveres morais contidos nos direitos correlativos à formação da personalidade do filho. E, de mais a mais, em outro postulado não se funda a responsabilidade civil por dano moral senão no inadimplemento da obrigação e na impossibilidade de restituir o lesado ao status quo ante mediante tutela específica da obrigação.
Outrossim, não há que se falar em precificação do amor, uma vez que a compensação moral não recompõe o bem da vida perdido (afeto), mas apenas atenua os danos experimentados pelo filho em razão da conduta lesiva dos pais consistente na falta de atenção para com a prole.
Não se trata, portanto, de "dar preço ao amor". A finalidade da responsabilização é compensar, por meio diverso, a falta de afetividade, causadora de injusta lesão dignidade do menor, e conscientizar o pai e a comunidade do gravame causado ao filho, sinalizando que semelhante conduta deve ser cessada e evitada, por reprovável e grave.
Aliás, a principal função da compensação do dano moral na relação paterno-filial reside justamente nesse caráter propedêutico da reparação moral, a qual, mais que satisfazer a vítima da ofensa, castiga o culpado pelo agravo moral e estimula os demais integrantes da comunidade a cumprirem os deveres éticos impostos pelas relações familiares.
Nesse toar, a tese a reparação pecuniária do abandono afetivo revela-se consentânea com o movimento de repersonalização das relações familiares e com a nova concepção da “família-instrumento” enquanto centro de realização da dignidade e da personalidade humanas.
Não se olvida a temeridade que essa construção representa no que diz respeito à instalação de uma indevida indústria indenizatória e conseqüente transformação das relações familiares em relações argentarias. Porém, a solução não consiste em negar a garantia constitucional de indenização por dano injustamente causado à honra e a dignidade humanas, mas em se construir, dogmaticamente, filtros à reparação civil pelo descumprimento do dever de afeto e parâmetros objetivos para aferição desse novo dano.
Nesse diapasão, faz-se preemente um juízo de merecimento de ressarcibilidade do dano que derive de uma análise concreta dos interesses (lesado e lesivo) contrapostos em cada conflito particular e, portanto, não resulte em aceitações gerais pretensamente válidas para todos os casos. Trata-se de uma alteração significativa de abordagem do dano, que o liberta da sua análise abstrata e estrutural, excessivamente generalizante - e, portanto, fecunda a arbitrariedades e expansões descomedidas do dano afetivo -, possibilitando ao magistrado proceder, em cada caso particular, para além da sequidão do exame da norma, abarque o controle do merecimento de tutela in concreto dos interesses colidentes.
Cabe ao intérprete examinar se, no caso concreto, a ação ou omissão dos pais ultrapassou a sua área legítima de atuação em detrimento da integridade moral, psíquica ou emocional do infante, prejudicando-lhe o digno e pleno desenvolvimento das potencialidades da sua personalidade ou ferindo-lhe a honra, caso em que haverá dano ressarcível.
Nesse intento, incumbe ao julgador analisar se houve violação do deveres legais de comportamento impostos aos pais, tomando em consideração fatos tão objetivos quanto possível, como participação no processo educacional, freqüência das visitas ao filho, atividades conjuntas de lazer, dentre outros, valendo-se, preponderantemente, da prova testemunhal.
Em caso positivo, isto é, constatando-se que o pai violou os deveres supra referidos, sua conduta não será merecedora de tutela, prevalecendo o interesse lesado em toda a sua esfera abstrata de proteção. Eventual dano causado a tal interesse será, pois, ressarcível, o que não afasta, entretanto, o dever do autor de demonstrar que a ausência de sustento guarda, educação, companhia ou criação afetaram concretamente a formação da sua personalidade.
É dizer: não basta a alegação em tese de lesão. Assim como para o dano material não basta à vítima demonstrar que o réu agiu de forma antijurídica trazendo risco à propriedade alheia, para haver dano extrapatrimonial não é suficiente que a vítima prova ter o réu se conduzido de forma a causar risco à integridade psíquica e moral, sob pena de uniformização rígida das indenizações, que tende a prevalecer sempre que se dispensa a produção de prova concreta do dano em favor do dano presumido.
Exige-se, pois, inclusive como instrumento de desestímulo a demandas frívolas, a prova concreta da lesão, a fim de que se possa aferir a real existência de prejuízo e da sua conexão com a ausência paterna ou materna. Para o cumprimento desse mister, de forma isenta a análises subjetivas e arbitrárias, as perícias psicológicas devem assumir caráter de obrigatoriedade, subsidiando o julgador de elementos comprobatórios das implicações psíquicas e morais sofridas pelo infante em decorrência da ausência dos referenciais familiares.
Constatado o dano, far-se-á necessária ainda a prova do nexo causal e da culpa, afinal, na hipótese estudada, a responsabilidade civil se submete aos postulados da responsabilidade civil subjetiva, não prescindindo de um juízo de censurabilidade da conduta dos pais.
Nessa linha, comprovados os pressupostos de ressarcibilidade – conduta antijurídica, dano, culpa ou dolo e nexo de causalidade – impõe-se a reparação dos danos impingidos pelo filho, sem prejuízo da aplicação das medidas sancionatórias específicas previstas no (arts. 244 a 247), Civil (art. 1.638), e no ECA (art. 249), bem como, se cabíveis, as preceituadas no Código Penal (art. 244 a 247).
Na mesma trilha, vale trazer à baila a lição de Dias (2008), para quem uma vez descumprida a irrenunciável função paterna de convivência afetiva com seus filhos, por injustificável ausência daquele que jamais deveria eximir-se da assistência à prole, exsurge o dano que há de ser reparado. Negá-lo, arremata a autora, é sancionar paternidade irresponsável.
III. Conclusão
Assim concebidos, a responsabilidade civil como os deveres familiares, sob as bases do direito civil constitucional, nos moldes ora assentadas, não há, conforme ressalta Branco (2006, p. 208), fundamento lógico que justifique a não aplicação do dano moral nas relações de família, afinal seus membros não se “desabrigam da proteção conferida aos direitos da personalidade pela circunstância de ter sido a violação praticada nos limites do núcleo familiar.
Urge, para tanto, abandonar a idéia de que a aplicação das normas de responsabilidade civil na esfera das relações de família representa uma ameaça de destruição e monetarização dos vínculos afetivos que caracterizam essas relações humanas.
O temor da banalização do dano moral– que, de resto, percorre toda a demanda indenizatória –, como salienta Hironaka (2006), não deve fazer com que se perca de vista o verdadeiro papel dos juízes - mormente em casos como o abandono filial - que corresponde exatamente à sua função de agentes transformadores dos valores jurídicos, de molde a adequar o Direito aplicado aos paradigmas da atualidade.
Demais disso, conforme vastamente demonstrado neste trabalho, os novos paradigmas da responsabilidade civil revelam o amadurecimento de uma nova análise da ressarcibilidade das lesões morais, voltada à maior realização possível da dignidade da pessoa humana, e, o que é mais importante, por meios controláveis e sistemáticos, que reconhecem ao magistrado, em lugar de arbitrariedade, discricionaridade para, em cada caso particular, proceder a um juízo concreto de ressarcibilidade do dano em consonância com os princípios constitucionais de tutela da personalidade.
Sem embargo, a medida compensatória deve assumir lugar subsidiário, não podendo servir como fator determinante do rompimento do vínculo filial. Isto é, deve atuar somente nos casos em que este já se mostre desfeito, não se concebendo a subsistência material da relação de filiação.
Não lhe cabe, pois, opção primordial, prefacial. Sempre que possível, a tutela deve voltar-se contra o ilícito, visando impedi-lo (tutela inibitória) ou removê-lo (tutela reintegratória), compelindo os responsáveis ao adimplemento dos seus misteres parentais, através de medidas tais como a aplicação de multa cominatória por descumprimento do dever de visitas ou, ainda, no âmbito eminentemente preventivo, a guarda compartilhada e a mediação.
É dizer: a tutela ressarcitória se impõe como ultima ratio, com a finalidade de não deixar irressarcido o dano, cuja ocorrência não se tenha logrado evitar através dos demais institutos de adequação da família.
Vista, nesses lindes, neutraliza em razoável medida, o receio de instauração de um generalizado processo de vitimização, com a resolução de todas as relações afetivas frustradas em perdas e danos e a proliferação tendencialmente irrefreável de demandas bagatelares, com finalidades marcadamente econômicas, que conduziriam a tão temida monetarização do afeto.
Se bem compreendida e aplicada, antes de significar uma indesejada intromissão de reparação civil, em seu sentido utilitarista, nos vínculos familiares, a reparação civil por abandono afetivo filial implica a apropriação pelos operadores do Direito de um instrumento hábil a conferir uma enérgica resposta, no âmbito privado, às violações dos direitos da personalidade praticadas na esfera da família, constituindo, assim, importante instrumento de transformação social e dignificação das relações humanas, como já vêm ocorrendo, por exemplo, no âmbito das de consumo e trabalhistas.
Diante de todo o exposto, desde que assimilado o conteúdo do direito à afetividade, não como um direito ao amor, mas ao respeito e zelo devidos ao filho em razão sua peculiar condição de pessoas em desenvolvimento e, mais ainda, um direito a que a paternidade (ou maternidade), livre na origem, seja com deferência aos valores de solidariedade, proteção e instrumentalidade que devem nortear a família, revela-se plenamente admissível o reconhecimento da compensabilidade do dano moral decorrente de sua violação pelos pais como instrumento de extrema importância para a configuração de um Direito de Família mais consentâneo com a contemporaneidade.
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Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe, Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LUCIANA CAVALCANTI NóBREGA, . A responsabilidade civil por danos morais causados pelo abandono afetivo à luz do Direito Civil Constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 out 2010, 09:13. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21967/a-responsabilidade-civil-por-danos-morais-causados-pelo-abandono-afetivo-a-luz-do-direito-civil-constitucional. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
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