RESUMO
O presente artigo se destina a analisar os procedimentos administrativos relacionados à prática da adesão à ata de registro de preços por órgão não participante, procedimento também conhecido como "carona", ferramenta esta criada por meio do Decreto 3.931/01 e que tem constituído objeto de discórdia na doutrina brasileira. Alicerçando-se nos princípios que regem as contratações públicas em nosso país, a análise se aprofunda nas disposições doutrinárias acerca do tema, visando a diagnosticar o posicionamento do "carona" dentro do ordenamento jurídico pátrio e procurando estabelecer possíveis práticas que poderiam amenizar os embates travados entre aqueles que defendem a celeridade do "carona" e os que o rejeitam, acusando o instituto de ilegal e criminoso.
Palavras-chave: Licitação. Sistema de Registro de Preços. “Carona”. Eficiência. Legalidade.
ABSTRACT
The present article if destines to analyze the related administrative procedures to the practical one of the adhesion to the act of register of prices for not participant agency, procedure also known as “hitchhiking”, tool this servant by means of Decree 3.931/01 and that it has constituted object of discord in the Brazilian doctrine. Basing in the principles that conduct the public acts of contract in our country, the analysis if goes deep the doctrinal disposals concerning the subject, aiming at to inside diagnosis the positioning of the “hitchhiking” of the native legal system and looking for to establish possible practical that they could brighten up you strike them stopped between that they defend the celerity of the “hitchhiking” and the ones that rejects it, accusing the illegal and criminal institute with.
Keywords: Licitation. System of Register of Prices. “Hitchhiking”. Efficiency. Legality.
SUMÁRIO: 1. Contextualização 2. O conflito doutrinário em torno do carona 3. O posicionamento do TCU a respeito do carona 4. Considerações finais. Referências bibliográficas
1 – CONTEXTUALIZAÇÃO
A evolução da Administração Pública em nosso país passou por três modelos diferentes: a Administração Patrimonialista, a Administração Burocrática e a Administração Gerencial. Essas modalidades surgiram sucessivamente ao longo do tempo, não significando, necessariamente, que alguma delas tenha sido abandonada.
Na Administração Pública Patrimonialista, o aparelho do Estado é a extensão do próprio poder do governante e os seus servidores são considerados membros da nobreza, fato que ensejou a malversação do patrimônio público. Para combater a corrupção e o nepotismo desse modelo administrativo, surge a Administração Pública Burocrática, que instituiu controles administrativos para implementar o poder racional-legal do administrador público e introduziu as bases iniciais de ferramentas como a licitação e os concursos públicos.
O modelo burocrático de administração, no entanto, apresentou “disfunções”, tais como a superconformidade a rotinas e procedimentos e o excesso de formalismo, o que gerou a necessidade de um novo modelo administrativo, capaz de dar maior eficiência à atuação dos gestores públicos. Surge então a Administração Pública Gerencial, que prioriza a eficiência da Administração, o aumento da qualidade dos serviços e a redução dos custos. Busca-se desenvolver uma cultura gerencial nas organizações, com ênfase nos resultados, e aumentar a governança do Estado, ou seja, sua capacidade de gerir com efetividade e eficiência. O cidadão passou a ser visto como cliente do Estado.
A Administração Gerencial constitui um avanço, mas sem romper em definitivo com a Administração Burocrática, uma vez que não nega todos os seus métodos e princípios. Na verdade, o gerencialismo apóia-se na burocracia, conservando seus preceitos básicos, como a admissão de pessoal segundo critérios rígidos, a meritocracia na carreira pública, as avaliações de desempenho, o aperfeiçoamento profissional e um sistema de remuneração estruturado.
Nesse novo contexto, onde o administrador público assume a obrigação de gerir o patrimônio público com presteza e rendimento funcional, o princípio da Eficiência assume um grau de relevância elevado, tal como proclama o professor José dos Santos Carvalho Filho (2003, p. 268, 269):
Deve o Estado prestar seus serviços com a maior eficiência possível. Conexo com o princípio da continuidade, a eficiência reclama que o Poder Público se atualize com os novos processos tecnológicos, de modo que a execução seja mais proveitosa com menor dispêndio. (...) É tanta a necessidade de que a Administração atue com eficiência, curvando-se aos modernos processos tecnológicos e de otimização de suas funções, que a Emenda Constitucional nº 19/98, incluiu no art. 37 da CF o princípio da Eficiência entre os postulados principiológicos que devem guiar os objetivos administrativos (...)
Atendendo aos anseios gerenciais, o Sistema de Registro de Preços surge como mais uma ferramenta de eficiência posta à disposição da Administração Pública, visando a proporcionar um maior planejamento e a trazer maior agilidade às contratações públicas. Esta técnica de contratação, apesar de figurar claramente como um advento da Administração Gerencial, já havia sido prevista no Decreto-Lei nº 2.300/86, que asseverou em seu artigo 14:
Art. 14 . As compras, sempre que possível e conveniente, deverão:
I – atender ao princípio da padronização, que imponha compatibilidade de especificações técnicas e de desempenho, observadas, quando for o caso, as condições de manutenção e assistência técnica;
II – ser processada através de sistema de registro de preços;
III – submeter-se às condições de aquisição e pagamento semelhantes às do setor privado;
§1º O registro de preços será precedido de ampla pesquisa de mercado.
§ 2º Os preços registrados serão periodicamente publicados no Diário Oficial da União, para orientação da Administração.
§ 3º O Sistema de Registro de Preços será regulamentado por decreto.
Com a revogação do Decreto-Lei nº 2.300/86 pela Lei Federal nº 8.666/93, o Sistema de Registro de preços passou a ter seu alicerce legal no art. 15 da Lei de Licitações e Contratos, a saber (grifo nosso):
Art. 15. As compras, sempre que possível, deverão:
I – (...)
II - ser processadas através de sistema de registro de preços;
III – (...)
§ 1º O registro de preços será precedido de ampla pesquisa de mercado.
§ 2º Os preços registrados serão publicados trimestralmente para orientação da Administração, na imprensa oficial.
§ 3º O sistema de registro de preços será regulamentado por decreto, atendidas as peculiaridades regionais, observadas as seguintes condições:
I - seleção feita mediante concorrência;
II - estipulação prévia do sistema de controle e atualização dos preços registrados;
III - validade do registro não superior a um ano.
§ 4º A existência de preços registrados não obriga a Administração a firmar as contratações que deles poderão advir, ficando-lhe facultada a utilização de outros meios, respeitada a legislação relativa às licitações, sendo assegurado ao beneficiário do registro preferência em igualdade de condições.
§ 5º O sistema de controle originado no quadro geral de preços, quando possível, deverá ser informatizado.
§ 6º Qualquer cidadão é parte legítima para impugnar preço constante do quadro geral em razão de incompatibilidade desse com o preço vigente no mercado.
Do disposto na norma, verifica-se claramente a intenção do legislador em deixar a normatização específica do Sistema de Registro de Preços a cargo do Executivo, mediante decreto. No âmbito Federal, a União editou os Decretos de Número 449/92; 2.743/98 e o Decreto nº. 3.931/01, que está em vigor com as modificações introduzidas pelo Decreto nº. 4.342/02.
Desta forma, com o intuito de proporcionar a racionalidade dos procedimentos administrativos mediante a simplificação de processos, encontra-se em pleno vigor no Brasil o Sistema de Registro de Preços, sendo que o “carona” integra o referido sistema, estando previsto no art. 8º do Decreto nº. 3.931/01.
2 – CONFLITO DOUTRINÁRIO EM TORNO DO “CARONA”
O Decreto Federal nº. 3.931/01, ao fazer a regulamentação do Sistema de Registro de Preços, trouxe em seu art. 8º, a possibilidade de utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos ou entidades que não participaram da licitação:
Art. 8º A Ata de Registro de Preços, durante sua vigência, poderá ser utilizada por qualquer órgão ou entidade da Administração que não tenha participado do certame licitatório, mediante prévia consulta ao órgão gerenciador, desde que devidamente comprovada a vantagem.
§ 1º Os órgãos e entidades que não participaram do registro de preços, quando desejarem fazer uso da Ata de Registro de Preços, deverão manifestar seu interesse junto ao órgão gerenciador da Ata, para que este indique os possíveis fornecedores e respectivos preços a serem praticados, obedecida a ordem de classificação.
§ 2º Caberá ao fornecedor beneficiário da Ata de Registro de Preços, observadas as condições nela estabelecidas, optar pela aceitação ou não do fornecimento, independentemente dos quantitativos registrados em Ata, desde que este fornecimento não prejudique as obrigações anteriormente assumidas.
§ 3º As aquisições ou contratações adicionais a que se refere este artigo não poderão exceder, por órgão ou entidade, a cem por cento dos quantitativos registrados na Ata de Registro de Preços.
Esta inovação ficou conhecida na doutrina sob a denominação “carona”, haja vista que um órgão/entidade que não participou do certame licitatório, poderá utilizar-se da Ata de Registro de Preços oriunda de licitação promovida por outros órgãos/entidades da Administração Pública, visando a adquirir determinado bem ou contratar determinado serviço.
Para melhor entendimento do “carona”, é necessário analisarmos o conceito desta figura, exposto de forma clara por J. U. Jacoby Fernandes (2009, p. 180):
Órgãos participantes (caronas): São aqueles que, não tendo participado na época oportuna, informando suas estimativas de consumo, requererem, posteriormente, ao órgão gerenciador, o uso da Ata de Registro de Preços.
Desta forma, o procedimento para se tornar “carona” pode ser resumido da seguinte forma: após a realização de todos os atos da licitação (concorrência ou Pregão) e formalização de uma Ata de Registro de Preços pelo órgão gerenciador, o órgão que desejar utilizar a ata, no intuito de ter a mesma demanda pelo objeto licitado do órgão gerenciador, consulta o órgão licitador sobre a possibilidade de fazer uso da ata. Com a devida autorização, o carona adquire diretamente, sem licitação, o objeto do fornecedor registrado, desde que este dê o seu consentimento. Ressalta-se que o carona está obrigado a demonstrar a vantagem trazida pela adesão.
Em uma primeira análise, a adesão à ata por órgão não participante do Registro de Preços se apresenta como um procedimento extremamente vantajoso, reduzindo os gastos e o tempo que seriam despendidos com uma nova licitação. Ocorre que, apesar das vantagens trazidas, tal procedimento não está plenamente delineado no Decreto 3.931/01 e tampouco tem previsão na Lei 8.666/93, o que tem gerado críticas severas de parte da doutrina sobre sua adoção no Ordenamento Jurídico Brasileiro.
Neste contexto, se forma o panorama de dissensão. De um lado, parte da doutrina tem afirmado que o procedimento de adesão à Ata de Registro de Preços viola os princípios da legalidade, obrigatoriedade da licitação e vinculação ao instrumento convocatório e de outro tem-se defendido que os princípios da economicidade, da eficiência e o aspecto pragmático da celeridade que é imposta às contratações públicas respaldam a aplicação do “carona”.
A respeito da figura do “carona”, disserta favoravelmente o mestre J. U. Jacoby Fernandes (2009, p. 373):
Acertadamente, o Decreto nº. 3.931/01 estendeu a possibilidade de utilização da Ata de Registro de Preços àqueles órgãos e entidades da Administração Pública, que não tenham participado do Sistema de Registro de Preços. Há nítidas vantagens nesse procedimento. Primeiro, porque motiva o uso do SRP por outros órgãos, aumentando a credibilidade do sistema; segundo, porque motiva a participação: quem tiver preços registrados e suportar novas demandas será contratado sem licitação por outros órgãos e entidades. Terceiro, o procedimento é desburocratizante, pois fixa requisitos mínimos.
No que pesem as considerações honrosas ao procedimento, inúmeros são os seus opositores. Exemplificativamente, trazemos à baila os pensamentos de alguns doutrinadores que se levantam contra o “carona”, a saber:
A prática da “carona” é inválida. Frustra o princípio da obrigatoriedade da licitação, configurando dispensa de licitação sem previsão legislativa. Não cabe invocar a existência de uma licitação anterior, eis que tal licitação tinha finalidade e limites definidos no edital. (JUSTEN FILHO, 2008)
Na verdade, não pode existir essa figura estranha, denominada de "carona", porque, além do mais, é crime "dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade" (art. 89 da Lei n.º 8.666/93).
Portanto, o órgão gestor que permitir que o "carona" se utilize da Ata de Registro de Preços, porque este não participou da licitação, comete o crime previsto no art. 89 da Lei n.º 8.666/93. (MUKAI, 2007)
O carona viola abertamente o princípio da vinculação ao edital porquanto ele dá azo à contratação não prevista no edital. Ora, licita-se dado objeto, com quantidade definida e para uma entidade determinada, tudo em conformidade com o edital. Quem ganha a licitação firma com a entidade que promoveu a licitação ata de registro de preços, pelo que se compromete a entregar ou prestar a ela o que fora o objeto da licitação, conforme o edital, inclusive no que tange aos quantitativos. Durante a vigência da ata de registro de preços, outra entidade que não a promotora da licitação, que não foi referida sequer obliquamente no edital, adere à ata de registro de preços, através do carona, com o propósito de receber os préstimos do vencedor da licitação. Com efeito, o contrato que decorre do carona não foi previsto no edital. Quem participou da licitação não sabia que seria contratado também por esta outra entidade, que não a promotora da licitação. Ademais, com o carona, quem adere à ata de registro de preços, pode requerer para si a mesma quantidade do que fora licitado. Então, se a licitação envolvia cem unidades, com o carona de apenas uma outra entidade, o vencedor da licitação pode ser contratado para duzentas unidades.
Isso afronta com veemência o princípio da vinculação ao edital, na medida em que quem participou de licitação para fornecer cem unidades de dado objeto não pode acabar sendo contratado para fornecer duzentas. Se fosse para fornecer duzentas unidades, o edital que tratasse disso e comunicasse a todos os interessados que da licitação decorreria contrato para duzentas unidades e não apenas para cem.
E a afronta ao princípio da vinculação ao edital não se restringe à questão dos quantitativos estabelecidos no edital. Também há afronta ao princípio porque a licitação é feita para uma entidade específica, referida expressamente no edital, e o vencedor da licitação pode acabar sendo contratado por outra entidade, não indicada no edital. Ou seja, licitante participa de certame para ser contratado por "A" e, em razão dele, acaba sendo contratado também por "B", "C" e tantos quanto aderirem à ata de registro de preços de "A".
Em síntese, o carona importa contratação apartada das condições do edital, sobretudo no tocante à entidade contratante e aos quantitativos estabelecidos no edital. Nesses termos, o carona fere de morte o princípio da vinculação ao edital, dado que dele decorre a assinatura de ata de registro de preços e contratação fora do preceituado e previsto no edital de licitação pública. (NIEBUHR, 2006)
A análise das disposições doutrinárias anteriormente expostas não pode ser realizada de forma estanque, sem que se considere o contexto de criação e aplicação da figura do “carona”. Frisamos que o presente artigo não pretende apontar uma verdade absoluta a respeito do tema, pelo contrário, nos dedicamos à presente análise em prol do debate e da argumentação, sem qualquer intuito de apresentar um posicionamento definitivo sobre o tema.
Inicialmente, observa-se que o discurso contrário à utilização do “carona” está fundamentado em três pressupostos principais: ofensa aos princípios da legalidade, da obrigatoriedade da licitação e da vinculação ao instrumento convocatório. A respeito dessas alegações, passamos a expor nosso posicionamento.
Em primeiro lugar, a doutrina contrária à utilização do “carona” enfatiza que o referido instituto fere o princípio da legalidade, princípio este sabiamente descrito por Celso Antônio Bandeira de Mello (2004, p. 47):
Para avaliar corretamente o princípio da legalidade e captar-lhe o sentido profundo cumpre atentar para o fato de que ele é a tradução jurídica de um propósito político: o de submeter os exercentes do poder em concreto – administrativo – a um quadro normativo que embargue favoritismos, perseguições ou desmandos. Pretende-se através da norma geral, abstrata e impessoal, a lei, editada pelo Poder Legislativo – que é o colégio representativo de todas as tendências (inclusive minoritárias) do corpo social – garantir que a atuação do Executivo nada mais seja senão a concretização da vontade geral.
Em uma interpretação equivocada, muitos afirmam que os defensores do “carona” procuram substituir o princípio da legalidade pelo da eficiência, buscando desprestigiar o primeiro (intimamente ligado à Administração Burocrática) e valorizar demasiadamente o segundo (que tem a sua importância elevada com o advento da Administração Gerencial). Sobre este equívoco, é importante ressaltar que, em momento algum, nos posicionamos favoravelmente à sobreposição do princípio da Eficiência ao da Legalidade, pelo contrário, enfatizamos nosso posicionamento de que a perfeição e a eficácia administrativa não podem ser alcançadas com o desrespeito aos pressupostos legais que delineiam a atuação dos gestores públicos no Brasil.
Ocorre que, em defesa da legalidade do “carona”, partilhamos do entendimento de que o Decreto 3.931/01 possui uma natureza dupla, apresentando-se como regulamento para fiel execução do art. 15 da Lei de Licitações e, ao mesmo tempo, assumindo a função de regulamento autônomo, disciplinador do atual Sistema de Registro de Preços em âmbito federal, conforme preceitua Carlos Pinto Coelho Motta (2010, p. 683):
Veja-se que a competência constitucional que sustenta a edição do Decreto nº. 3.931/01, diferentemente dos inúmeros decretos exclusivamente regulamentadores de dispositivos de lei (art. 84, inc. IV, da Constituição), encontra respaldo, também, no inc. IV, alínea “a”, do mesmo art. 84. Sabemos que o decreto pode atribuir fiel execução à lei ou pode ser autônomo (...)
Observa-se, portanto, que os argumentos de que a adesão à ata de registro de preços por órgão não participante fere a legalidade, uma vez que não caberia ao Decreto 3.931/01 a introdução de uma figura não prevista na Lei 8.666/93, perde a sua força diante do entendimento de que o referido decreto também tem natureza de regulamento autônomo.
Como vimos, outro ponto negativo apontado por parte da doutrina e que inviabilizaria a aplicação da adesão seria a afronta trazida ao princípio da obrigatoriedade da licitação. Data venia, entendemos que não há frustração à licitação, uma vez que a adesão à ata de registro de preços por órgão não participante é precedida por procedimento licitatório (concorrência ou pregão) perfeitamente instaurado nos moldes da legislação competente. Corroborando com nosso entendimento, Huilder Magno de Souza (2010) defende a aplicabilidade do carona:
Os críticos do sistema – ao se depararem com uma contratação oriunda de uma “carona” – argumentam que a empresa contratada o teria sido sem prévia licitação, porém tal argumento não resiste a um mínimo de contraditório. E isso ocorre porque o registro de preços é precedido de ampla pesquisa de mercado e submetido ao crivo da licitação, nas modalidades concorrência ou pregão, sendo este último mais utilizado na forma eletrônica, com acirrada disputa de lances.
Outra acusação levantada contra a figura do “carona” é a de que esta fere o princípio da vinculação ao edital. No que pese a maestria com que Joel de Menezes Niebuhr (2006) analisa este ponto, posicionamento já exposto no presente artigo, ousamos discordar dos argumentos do ilustre mestre. Cabe lembrar que o edital do procedimento licitatório adotado pelo órgão gerenciador da ata é elaborado tendo como base a legislação que disciplina o registro de preços (Decreto 3.931/01) e, por conseqüência, admite a adesão disciplinada no artigo 8º do mencionado decreto. Não merece prosperar a sustentação de que “o contrato que decorre do carona não foi previsto no edital”, visto que a própria norma que embasou a formulação do edital faz com que esta previsão esteja ínsita no instrumento convocatório. Oportunamente, mencionamos o entendimento de J. U. Jacoby Fernandes (2009, p. 672), que rejeita a idéia de vinculação exclusiva de cada contrato a uma licitação correlata:
Depois de ressalvar os casos de contratação direta e impor, como regra, o princípio da licitação, a Constituição Federal define os limites desse procedimento, mas em nenhum momento obriga a vinculação de cada contrato a uma só licitação ou, ao revés, de uma licitação para cada contrato. Essa perspectiva procedimental fica ao alcance de formatações de modelos: no primeiro, é possível conceber mais de uma licitação para um só contrato, como na prática se vislumbra com o instituto da pré-qualificação em que a seleção dos licitantes segue os moldes da concorrência, para só depois licitar-se o objeto, entre os pré-qualificados; no segundo, a figura do “carona” para em registro de preços ou a previsão do art. 112 da Lei 8.666/93. Desse modo, é juridicamente possível estender a proposta mais vantajosa conquistada pela Administração Pública como amparo a outros contratos.
Entendemos, por conseguinte, que, apesar das afrontas doutrinárias que apregoam a ilegalidade do “carona”, esta figura ainda resiste firme como meio ágil, prático e eficiente para a realização de contratações públicas no Brasil.
3. O POSICIONAMENTO DO TCU A RESPEITO DO CARONA
Analisados os principais pontos de divergência na doutrina acerca do “carona”, passamos a examinar o tratamento dado pela Corte de Contas Brasileira ao tema. O Tribunal de Contas da União, através do Acórdão n.º 1487/2007 deliberou quanto à utilização da Ata de Registro de Preços por órgãos não participantes . Esta deliberação foi motivada por uma representação efetuada por uma unidade técnica do próprio TCU, que identificou uma licitação para Registro de Preços realizada pelo Ministério da Saúde, cujo objeto foi a contratação de empresa para prestação de serviços, apoio logístico e realização de eventos, com o valor de R$ 32.000.000,00 (trinta e dois milhões de reais). Foi verificado que, após o registro da Ata, outras 62 entidades “pediram carona” ao procedimento licitatório do órgão gerenciador, ocorrência que gerou a seguinte manifestação por parte da Corte de Contas (Acórdão 1.487/2007):
Acórdão: VISTOS, relatados e discutidos estes autos de Representação da 4ª Secex, apresentada com base no art. 237, inciso VI, do Regimento Interno, acerca de possíveis irregularidades na ata de registro de preços do Pregão nº. 16/2005, da Coordenação-Geral de Recursos Logísticos do Ministério da Saúde, consoante o decidido no Acórdão nº. 1927/2006-1ª Câmara. ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão Plenária, ante das razões expostas pelo Relator, em:
9.1. conhecer da presente representação por preencher os requisitos de admissibilidade previstos no art. 237, inciso VI, do Regimento Interno/TCU, e considerá-la parcialmente procedente;
9.2. determinar ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão que:
9.2.1. oriente os órgãos e entidades da Administração Federal para que, quando forem detectadas falhas na licitação para registro de preços que possam comprometer a regular execução dos contratos advindos, abstenham-se de autorizar adesões à respectiva ata;
9.2.2. adote providências com vistas à reavaliação das regras atualmente estabelecidas para o registro de preços no Decreto n.º 3.931/2001, de forma a estabelecer limites para a adesão a registros de preços realizados por outros órgãos e entidades, visando preservar os princípios da competição, da igualdade de condições entre os licitantes e da busca da maior vantagem para a Administração Pública, tendo em vista que as regras atuais permitem a indesejável situação de adesão ilimitada a atas em vigor, desvirtuando as finalidades buscadas por essa sistemática, tal como a hipótese mencionada no Relatório e Voto que fundamentam este Acórdão;
9.2.3. dê ciência a este Tribunal, no prazo de 60 (sessenta) dias, das medidas adotadas para cumprimento das determinações de que tratam os itens anteriores;
9.3. determinar à 4ª Secex que monitore o cumprimento deste Acórdão;
9.4. dar ciência deste Acórdão, Relatório e Voto, ao Ministério da Saúde, à Controladoria Geral da União e á Casa Civil da Presidência da República.
Da análise do Acórdão é possível concluir que o Tribunal de Contas da União reconheceu a necessidade de um maior detalhamento legal dos procedimentos relativos à adesão à ata de registro de preços por órgão não participante. O tratamento muitas vezes genérico e aberto trazido pelo Decreto 3.931/01 em relação ao “carona” já trouxe a necessidade de complementações, necessidade esta suprida em parte com o advento do Decreto Federal nº. 4.342/02, que inseriu o § 3º no art. 8º do Decreto n. 3.931/01, estabelecendo ao “carona” a limitação a 100% dos quantitativos registrados na Ata de Registro de Preços. O TCU, no entanto, foi além dessa complementação e solicitou a adoção de “providências com vistas à reavaliação das regras atualmente estabelecidas para o registro de preços no Decreto n.º 3.931/2001, de forma a estabelecer limites para a adesão a registros de preços realizados por outros órgãos e entidades (...)”.
Frise-se, portanto, que o Tribunal de Contas da União, em momento algum, proibiu formalmente a prática do “carona”, apenas determinou que seja aperfeiçoada a norma do Sistema de Registro de Preços, visando a limitar a utilização da Ata pelos órgãos e entidades não participantes. Neste ponto, é importante ressaltar que não pretendemos afirmar a infalibilidade do Decreto 3.931/01, pelo contrário, reconhecemos como necessária e urgente a fixação de regras mais detalhadas acerca da adesão à Ata de Registro de preços por entidade não participante e que, de preferência, sejam externadas por meio de lei – a fim de que se desfaça a penumbra que foi construída em torno da legalidade do “carona”.
4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise descontextualizada do título do presente artigo poderia levar o leitor a uma interpretação deturpada da figura do “carona”, uma vez que não são raras as alegações de que a adesão à Ata de Registro de Preços por órgão não participante representa a sobreposição da Eficiência à Legalidade. Nos levantamos, no entanto, para desconstituir tal pensamento e apregoar o “carona” como uma ferramenta capaz de proporcionar um caráter de celeridade e eficácia às aquisições governamentais, sem, contudo, ferir os ditames traçados pela norma que disciplina sua aplicação.
Como já foi afirmado anteriormente, não alimentamos a soberba pretensão de apresentar um posicionamento peremptório acerca da aplicabilidade do “carona” no Ordenamento Jurídico Brasileiro, todavia, chamamos a atenção para o fato de que o conflito de interpretações gerado em torno deste tema gera a necessidade de uma maior ponderação na construção das idéias. Se não é possível afirmar o enquadramento pleno da figura do “carona” nos ditames legais (até porque a própria norma que disciplina a ferramenta carece de maior detalhamento), também não é cabível a construção de qualificações negativas, como se já houvesse a clara comprovação do caráter criminoso da figura em estudo.
A afirmação de que a figura do “carona” é criminosa e que constitui ato de improbidade é prematura e imponderada, uma vez que ainda não se tem uma decisão clara e definitiva por parte das Cortes de Contas pátria acerca da sua legalidade e aplicação. É firme o entendimento de que existe a necessidade de edição de uma lei que venha a dirimir o conflito gerado em torno do tema em análise, no entanto, até que tal lei seja elaborada ou os Tribunais de Contas estabeleçam um norte a ser seguido, é preferível atentarmos para as sábias palavras do poeta Sá de Miranda:
“... Todo o mal jaz nos extremos,o bem todo jaz no meio.”
5 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Acesso em: 10 de setembro de 2010.
Analista Administrativo do INCRA - Superintendência Regional Sul do Pará. Tecnólogo em Gestão Empresarial pelo CEFET-PI. Bacharelando em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. Especialista em Gestão Pública pela FIJ e em Docência do Ensino Superior pela FSA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Agnelo Rocha Nogueira. A figura do "carona": legalidade x eficiência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 out 2010, 07:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21993/a-figura-do-quot-carona-quot-legalidade-x-eficiencia. Acesso em: 22 nov 2024.
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